Índice Geral
1 – Como o capitalismo
criou o estado-nação
2 - O nacionalismo como
instrumento de controlo ideológico
3 - A cada nação um estado-nação?
4 - O capitalismo engrandece o estado-nação no
seu processo de consolidação
5 – A globalização
capitalista reconfigura o papel do estado-nação
5.1 – Alguns segmentos retirados ao domínio dos estados-nação
6 – O Estado, gestor local da estratificação do Homem
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5 – A globalização
capitalista reconfigura o papel do estado-nação
Atualmente, a globalização desenvolve processos de subalternização
dos estados-nação[1], com a
criação de normas e instituições de âmbito plurinacional ou internacional,
dando como adquirido que o plano dos estados-nação é demasiado estreito.
Entre o estado-nação do passado e a unificação e uniformização
do planeta levadas a cabo pelas multinacionais
e pelo capital financeiro[2], onde se
situam os povos e as pessoas? E, de um ponto de vista activo e prospetivo, que
atitudes e escolhas deverão os povos assumir?
Durante a predominância
da produção industrial a necessidade de mão-de-obra era resolvida, numa
primeira instância, internamente, por gente jovem ou vinda do campo, em busca
de oportunidades de subsistência e de vida.
Por outro lado, em
vários países, onde a produção industrial era insuficiente para absorver os
acréscimos populacionais gerados no campo, a emigração era a alternativa de
vida. Dirigia-se para territórios de colonização europeia e em grande processo
de desenvolvimento capitalista ou, onde os espaços eram enormes e a população
indígena escassa e marginalizada (Brasil, Argentina, Austrália, EUA ou Canadá,
principalmente). Por exemplo, há cem anos os portugueses emigravam em massa
para o Brasil ou a Argentina, os italianos para aqueles países e para os EUA,
tal como gente de muitos outros países europeus; para além dos afro-americanos
que se deslocavam do Sul agrícola dos EUA para as regiões industriais de N.
York ou Illinois; uma marcha desenhada na evolução do blues.
As emigrações arrastavam
problemas de inclusão social, atitudes xenófobas, criação de guetos. Por outro
lado, resultava também como uma pressão sobre os salários dos trabalhadores
autóctones porque os imigrantes, para sobreviverem numa terra estranha, com
dificuldades de adaptação cultural e linguística, tendiam a aceitar salários
mais baixos ou condições de trabalho mais penosas do que os trabalhadores
nativos do país industrial.
A produção tendia a
incluir todas as suas fases num mesmo espaço, com milhares de trabalhadores sob
uma única cadeia de comando, que acompanhava toda a produção, dos vários
componentes até ao produto final. Como os transportes eram lentos ou
irregulares e a logística rudimentar, não eram possíveis grandes
descentralizações e a produção teria de se concentrar, se não numa mesma
fábrica, dentro de uma mesma cidade ou circunscrita a uma região. Pelas mesmas
razões, o destino da produção industrial cingia-se sobretudo a consumidores
próximos, num entrosamento que favoreceu o alargamento de grandes conurbações.
Essa concentração da
produção induzia uma grande concentração de população e de assalariados que
viviam nas proximidades das fábricas, amontoados em bairros insalubres. Esse
geral contexto de pobreza e de famílias numerosos[3]
facilitava a união dos trabalhadores contra os capitalistas, na defesa dos seus
interesses – salariais, condições de trabalho, tempo de trabalho – com
protestos, manifestações, greves. A resposta dos capitalistas e do Estado era,
invariavelmente, uma violenta repressão, com prisões e assassínios, visando os
trabalhadores e suas organizações; para além da praticada através da
contratação “privada” de jagunços vocacionados para atingirem os trabalhadores
mais ativos na organização dos protestos.
A globalização do
capital envolveu os “seus” trabalhadores no trabalho árduo, diretamente ligado
à produção de valor e no serviço militar, como agentes das destruições da
guerra, para a defesa ou o engrandecimento da sua pátria. Muito cedo os
trabalhadores perceberam a sua própria globalização e que do outro lado da fronteira,
os seus congéneres tinham exatamente os mesmos problemas perante capitalistas e
governos, com as mesmas atitudes contra o operariado; foi o tempo da construção
da consciência internacionalista dos trabalhadores, que ocorreu à medida que se
desenvolvia a produção fabril, as redes de transporte, o sistema financeiro e a
indústria militar.
Esse tempo de duras
lutas só abrandou, nos EUA e na Europa, com a saída da grande recessão dos anos
30, através de um plano de obras públicas, que só veio a ter bons resultados
globais com a mobilização de trabalhadores e recursos materiais para o esforço
de guerra e que serviu de base para o surgimento do keynesianismo. Na Europa, a
proliferação de regimes fascistas poupava poucos países - Grã-Bretanha, países
escandinavos, Benelux e, uma França onde era forte a ameaça fascista, como se
veio a observar com a instauração do regime de Vichy, após a vitória nazi.
A concorrência
internacional incorporava a concorrência entre as empresas de vários países,
nos salários e condições de trabalho como ainda, no assalto às matérias-primas
dos países colonizados ou dependentes. As novas tecnologias - maquinaria, meios
de transporte, técnicas de venda e de fomento do consumo - eram rapidamente
adoptadas pelos concorrentes, constituindo vantagens efémeras, exigindo desde o
último quartel do século XIX, novos investimentos e mobilização de capitais,
com caráter transfronteiriço. Por seu turno, o investimento público
orientava-se para o apetrechamento de portos, infraestruturas de transporte,
vias ferroviárias e rodoviárias, canais, etc. como forma de assegurar a
competitividade dos capitalistas nacionais.
A massificação do uso do
automóvel e dos meios de transporte de massa só era possível com a abundância
de petróleo, surgindo para o efeito o oleoduto e o navio-tanque, cuja dimensão
e capacidade de carga chegou a umas inauditas 500000 t durante o fecho do Suez,
não se chegando a concretizar os planos para navios com capacidade para um
milhão de toneladas. Os minérios, mormente de ferro e cobre, chegavam às
metrópoles industriais da Europa, da América do Norte e do Japão em enormes
graneleiros, exigindo estruturas portuárias especializadas e caras. Mais
recentemente, observou-se a deslocalização da metalurgia pesada e da poluição
para os países mineiros, encerrando-se as unidades nos países mais ricos que
adquirem apenas, os produtos transformados; deixando nos países pobres as
emissões de CO2.
O contentor padronizado
e os navios porta-contentores aumentaram substancialmente a fiabilidade e a
rapidez na carga/descarga, contribuindo para a redução do custo do transporte
por unidade de carga. E daí passou-se para o transporte intermodal em que
vários operadores logísticos se articulam para uma solução optimizada que
envolve vários modos de transporte, desde a saída do local de produção até ao
local do destinatário, provavelmente a milhares de quilómetros de distância.
Paralelamente, em cada
ponto de mudança de meio de transporte, como nos locais de origem ou destino
utilizam-se técnicas de gestão de stocks
(kanban, just in time…) para
minimizar o tempo (e os custos) de armazenagem, desenvolvendo-se o trabalho
noturno e a laboração permanente, para rendabilizar os investimentos. Nunca se
levou tão a sério uma velha frase do mundo dos negócios: “time is money”[4].
Ligada a estes
desenvolvimentos tecnológicos no âmbito da mobilidade e da logística está a
atual segmentação e deslocalização da produção material. Em vez de uma fábrica
única que incorpore todas as fases do fabrico, o capitalismo actual segmenta
essa produção em parcelas, distribuindo-as para locais geograficamente
distintos. Essa segmentação em parcelas simples, isoladamente sem sentido,
serve para o aproveitamento de baixos preços do trabalho, de per si ou relativamente
ao nível de conhecimentos exigido; precisa de locais onde qualquer
reivindicação salarial ou laboral é proibida ou reprimida liminarmente pelo
governo; em situações onde o desemprego seja elevado e qualquer unidade fabril,
mesmo com baixos salários, é bem-vinda (Volkswagen em Palmela, nos anos 90);
para além de outras vantagens, como o preço da energia, a abundância de água, a
militarização do trabalho, a sobre-exploração do trabalho doméstico, mormente
de mulheres e crianças; ou, onde existam sindicatos e governos corrompidos. Os
movimentos de trabalhadores que desde o final da II Guerra vinham adoptando
posturas de colaboração com os capitalistas e de aceitação de um muito duvidoso
papel arbitral dos governos, sofreram um golpe brutal com as deslocalizações,
enquanto fatores de separação e de competição entre trabalhadores de diversas
geografias. Essas são algumas das grandes vantagens da deslocalização, a nível
da produção, para as multinacionais assim constituídas, que atuam num plano
muito para além da abrangência de um estado-nação.
O conjunto de grandes
empresas que constroem estas redes desenha um poder enorme sobre os
estados-nação hospedeiros, cuja aceitação de exigências está garantida, porque
o recurso à antiga arma da nacionalização nem sequer faz sentido, no âmbito de
uma produção segmentada em componentes, de
per si, sem utilidade fora da rede montada pela empresa-mãe. E, no âmbito
desse poder sobre o estado-nação, a multinacional - em geral, localizada num
país rico - pode mesmo obter subsídios do Estado local para manter o emprego a
centenas ou milhares de trabalhadores e colocar em concorrência países
diferentes, pobres e desestruturados, onde estejam instaladas as unidades
deslocalizadas.
A impotência da grande
maioria dos estados-nação ainda se torna mais evidente quando se utilizam
entidades offshore no circuito, com
fórmulas engenhosas de sobrefaturação ou subfacturação, com elementos
produzidos num país e faturação emitida num offshore,
para a minimização da carga tributária e maximização do “valor” para acionistas
e quadros gestores; isto é, boas condições para a formação de lucros,
acumulação de capital e distribuição de dividendos. Um caso divulgado há poucos
anos[5]
deu o protagonismo à Swatch, empresa suíça cuja exportação era materializada
por uma faturação emitida por uma empresa – constituída por uma simples caixa
postal – registada no Centro Internacional de Negócios da Madeira, com sede no
Funchal; e daí que a Madeira figurasse oficialmente como exportadora de
relógios… mesmo que nem um ponteiro fosse lá fabricado. Claro que a “exportação
de relógios” pode mudar instantaneamente e com frequência de local de
“fabrico”.
No campo da mercadoria
para consumo final, ela pode ser colocada à venda pelos vários cantos do
planeta, por empresas fidelizadas por contratos leoninos, com preços
estabelecidos a priori, nomeadamente
no âmbito de contratos de franchise,
em que o franchisado investe na infraestrutura, determinada em detalhe, a
montante, pela empresa multinacional; e, estando esta segura do cumprimento das
suas premissas por contratos leoninos, em que o risco recai todo sobre o
franchisado local.
No caso dos serviços de
comunicações, financeiros, marketing, de saúde, educação, consultadoria… a
dependência da casa-mãe não difere, a não ser na nacionalidade dos
trabalhadores; as multinacionais procedem a descentralizações supranacionais,
nacionais, regionais, para terem uma ágil máquina de vendas ou de gestão da
produção. E a internet introduziu um elemento técnico de enorme encurtamento da
troca de informação, acelerando os processos de transformação e evitando
deslocações físicas de trabalhadores e gestores, como acontecia décadas atrás.
A banalização das
viagens aéreas, mormente turísticas, facilitou as ligações entre pessoas e o
conhecimento de outras realidades, pese embora o impacto ambiental (poluição
atmosférica, ruido); também as redes de autoestradas, as vias ferroviárias de
alta velocidade, as infraestruturas urbanas, todas expandiram substancialmente
a área de atuação e circulação de pessoas e mercadorias, tornando as fronteiras
porosas e tendencialmente marcos de separação a que ninguém liga, a não ser…
para um futuro enquadramento em roteiros turísticos; excepto nos aeroportos
onde os governos muito temem atentados e bombas escondidas.
A consolidação da matriz
de estados-nação chegou ao fim[6];
já não surgem novos estados-nação como no período da descolonização. Os
territórios ingleses do “ultramar” (os offshores
nas Caraíbas, Gibraltar ou Bermudas, territórios no Atlântico Sul e no Índico e
ainda Diego Garcia, alugada aos EUA para o controlo militar do sul da Ásia,
depois de despejada da sua população nativa), bem como os franceses (na
América, no Índico e no Pacífico) são unidades pequenas, com pouca ou mesmo
nenhuma população mas com recursos marinhos ou posições estratégicas
importantes para potências ainda com pretensões a um desempenho
global que já não têm. Excepto enquanto acessórios dos EUA para
configurarem a designação de "comunidade internacional".
Em paralelo com a
referida segmentação que conduz à captura dos estados-nação pelas redes das
multinacionais, do sistema financeiro e do capital do crime, está a construção
de organizações plurinacionais de coordenação, essencialmente setoriais que
desenvolvem planos específicos de competências aplicáveis aos seus membros –
NATO, OMC, OMS, SEATO, APEC… As mais abrangentes têm poderes limitados sobre os
seus membros (ONU, OSCE, UNASUL, OEA, CEDEAO, EEE, OCX…). A União Europeia é o
caso mais evidente e desenvolvido de uma integração plurinacional, económica e
política que, obviamente, reestrutura e re-hierarquiza os espaços, mantendo
enormes diferenças nos rendimentos e nas condições de vida entre os povos
integrantes, bem como no seio de cada estado-nação; para além, de uma tíbia
afirmação de autonomia perante os EUA que, claramente estão, em termos globais,
em perda estratégica. Ainda assim, não é politicamente aconselhável, nem
economicamente frutuoso para a vida dos povos, um desmembramento da UE,
mormente porque não se divisa ali uma movimentação social e política com um
quadro alternativo de objetivos e atuações democráticas. Mais à direita a
ligação ao capital é claramente expressa; e, menos à direita, não há estratégia
para além da manutenção de pequenas clientelas e da recolha de fundos públicos,
esbracejando em torno de focagens conjunturais ou mediáticas.
Como é óbvio, o
interesse dos povos está subalternizado à acumulação de capital e pela atuação
das classes políticas nas organizações atrás referidas, onde estão
representados os estados-nação. Noutros casos – Bilderberg, Davos… -
confraternizam, num contexto de grande segredo, membros das organizações
internacionais, das principais classes políticas, CEO’s das multinacionais,
grandes banqueiros, think-tanks…;
para além do chamamento experimental de políticos em ascensão de países de
menor relevância.
No seio das
infraestruturas produtivas e financeiras, da produção segmentada, desenvolveu-se
uma classe capitalista globalizada – os conhecidos 1% da população mundial,
popularizados pelo movimento Occupy Wall Street[7]
- que utilizam cada estado-nação como espaço adequado para o desenvolvimento
desta, ou de outra parcela de um processo produtivo, que tanto pode ser o
fabrico material, como a produção de um serviço, a circulação de impulsos
eletrónicos geradores de ganhos financeiros ou, a instalação de bases
militares.
Por outro lado, as
tecnologias de informação, as redes sociais e a internet, ultrapassaram os
controlos estatais, dispensando a sua intervenção ou presença. O processo de
globalização, de participação e partilha de informação, através de redes
mostra-se completamente despido de qualquer preocupação face à integração ou
densificação da matriz intersectorial no seio de cada estado-nação, ao
equilíbrio das contas externas ou de maior complementaridade entre as empresas
desse mesmo estado-nação; isso era algo que constituía a grande preocupação ao
tempo das estruturas de planeamento constituídas no seio dos aparelhos de
Estado na época keynesiana e que continua nos ideários das supostas esquerdas,
em regra, nacionalistas.
Assim,
os estados-nação e os seus governos mostram-se pequenos e impotentes para lidar
com todas estas realidades, competindo uns com os outros na procura de
investimentos de multinacionais, ofertando facilidades materiais, financeiras e
tributárias para atrair o investidor; e mostrar serviço nas próximas eleições.
Desta diluição das fronteiras e do poder dos estados-nação vão resultando, como
reações primárias, derivas nacionalistas, xenófobas, regionalistas ou de pureza
religiosa - seitas cristãs evangélicas, o ISIS, os talibans… - com o apoio de
partes significativas de populações, amedrontadas; e a uma focagem autocentrada
que, para além dos deuses, se foca na família, por vezes na comunidade, nos
pertences mais relevantes (casa, carro, telemóvel, dinheiro no banco…) e, nos
EUA, no incontornável poder das armas. A consciência da inoperância das classes
políticas mostra-se pelo crescimento da abstenção eleitoral, como também pelas
taras securitárias, com a proliferação de guardadores, à entrada de empresas,
serviços públicos, supermercados…
5.1 –
Alguns segmentos retirados ao domínio dos estados-nação
Claro que as multinacionais
e o sistema financeiro não estão tomados pela secreta aplicação de um projeto
anarquista, sem estado-nação, nem aparelho estatal. A segmentação em espaços
nacionais é útil para efeitos de supervisão localizada da multidão, a cargo das
respetivas classes políticas; serve para a manutenção de um determinado grau de
concorrência, de competição entre espaços geográficos, para a fixação de
investimentos dos grandes grupos multinacionais. A existência de estruturas
estatais próprias - aparelho repressivo, judicial e legislativo – geridas por
uma específica classe política é um factor gerador de nacionalismo, de
antagonismos, face a outros estados-nação e outros povos, para benefício de
quem sabe dividir para reinar. A Internacional não faz parte dos hinos mais
cantados pelos capitalistas, na base ou no topo.
A dívida
O capitalismo há décadas
deixou de ser uma força dinâmica no âmbito da produção material, passando a
ancorar-se numa deriva financeira, constitutiva de cascatas crescentes de
dívida[8]
que se autoalimentam, deixando atrás um lastro de encargos que direta ou
indiretamente recaem sobre as populações; trata-se de um grupo estrito,
fechado, de especuladores, em busca de lucros de forma tão instantânea quanto
possível e que em nada favorecem os não envolvidos naquela volúpia; mas, cuja
queda é repercutida na população em geral, pela mão dos governos e das estirpes
partidárias mais próximas e pagas pelo referido sistema financeiro[9].
As classes políticas, por um lado, entregam bens e negócios públicos à
sacrossanta iniciativa privada e, criando deficits como normalidade, emitem
títulos de dívida que rapidamente são absorvidos pelos especuladores que os
entregam como garantias aos bancos centrais. Em caso de desastre financeiro
global, ninguém se lembrará de anular as dívidas públicas, uma vez que os
estados-nação terão sempre população para as pagar.
O controlo da informação
As necessidades de uma
infraestrutura global onde a informação circule, quase instantaneamente, são
permanentes e derivam, em grande parte, da volúpia em que se ancora o
funcionamento do sistema financeiro; e, na sequência, aquela infraestrutura
global é partilhada por uma vasta variedade de interesses, desde a banal
comunicação interpessoal, ao acesso à informação, sem garantias de uma
generalizada fiabilidade e, menos ainda, de privacidade Essas reservas sobre o
que circula na internet, acentuaram-se com a massiva introdução das célebres fake news.
Os dados pessoais e as
opiniões são capturadas e exploradas por empresas de recolha de dados,
nomeadamente as plataformas de redes sociais, de circulação de mensagens ou
outras, como a célebre Cambridge Analytics… cujo mentor é o instrutor de Boris
Johnson. A exploração de dados, em tempo real e em quantidades gigantescas,
permitem a captura de informação pessoal e do local onde cada pessoa vive ou
circula a qualquer momento, uma vez que o telemóvel, o GPS e o computador são
antenas ao serviço efetivo dessas empresas…como também de serviços de
espionagem e policiais. Por seu turno, as transferências de capitais, a fuga
fiscal dos poderosos, a acumulação de capitais em contas sediadas em registos offshore não são molestadas porque
constituem interfaces essenciais entre o sistema financeiro, o mundo do crime e
as classes políticas. Em paralelo, a migração da ocupação do tempo junto do
aparelho de tv – que exigia alguma imobilização física – para o telemóvel,
torna o uso da internet mais extensivo no espaço e mais intensivo no tempo;
para não se referir a vacuidade do que invade os cérebros, mormente dos jovens.
Em todos estes processos a intervenção das estruturas políticas de cada
estado-nação é mínima, até porque os operadores dessas tecnologias detêm
poderes de intervenção muito superiores aos que se verificavam no tempo dos
pesados equipamentos físicos e localizados. O que lhes importa é a fluidez
compatível com a apetência dos mercados para a recolha de dados e a emissão de
publicidade.
Os tratados que
menorizam os estados-nação
As recentes formulações
dos grandes tratados emanados de tribunais arbitrais (um género de tribunais
paralelos, fora da jurisdição de qualquer país) - Transatlantic Trade and
Investment Partnership (TTIP), Comprehensive Economic and Trade Agreement (CETA) e Trade in Services Agreement (TISA) - colocam os direitos das
multinacionais acima dos imputados aos estados-nação. Inserem-se na lógica de
transferência de poder para as grandes empresas capitalistas, colocando os
estados-nação, numa situação subalterna face aquelas; qualquer transgressão
resulta em elevadas penalizações a favor das empresas que, em última análise
vão corresponder a maiores cargas fiscais ou endividamento público, que irão
sobrecarregar os rendimentos da população ou promover redução de gastos
públicos de caráter social, em nome do sacrossanto equilíbrio orçamental.
Um sistema monetário
global sem moeda
A disponibilidade de
cartões com chip, de uso
personalizado, de débito, de crédito, de compras de bens ou serviços,
possibilita informação para empresas comerciais, como para as redes do sistema
financeiro global, sobre a habitação, os tipos de consumo, os rendimentos, as
relações pessoais; e daí que haja uma longa pressão para gerar hábitos de
compras e pagamentos através de cartões, uma tendência em curso que conduzirá a
médio prazo à abolição do dinheiro físico… acusado de ter um elevado custo de
produção e circulação.
A sua abolição fará
também desaparecer todo e qualquer movimento monetário para além do que esteja
incorporado nas bases de dados do sistema financeiro e das empresas
intermediárias que se situam de permeio, como os “velhos” cartões tipo Visa e
muitos outros; será o domínio do Big Brother e o desejado fim das “economias
informais”. Uma falha grave, o produto de uma sabotagem informática, de uma
guerra, pode colocar milhões de pessoas sem a possibilidade de comprar ou
transacionar coisa alguma, com consequências catastróficas que colocarão de
novo no terreno a antiquíssima troca direta.
Por outro lado, passando
a moeda apenas a constituir símbolos a circular na internet e controlada pelo
sistema financeiro, os Estados deixam de emitir notas e moedas e o banco
central deixa de ter massa monetária para gerir; do mesmo modo como não é
gerida, hoje, a massa de valores incorporados nos chamados produtos derivados.
Antecipando esse
cenário, as moedas virtuais do tipo bitcoin
ou libra (a moeda anunciada pelo
Facebook), apontam para um futuro próximo, para a aceleração da intangibilidade
total dos meios de pagamento, baseados em cadeias de impulsos eletrónicos, em
movimento constante e acelerado, inseridos em lógicas de auto-reprodução,
cumulativas, desligadas de materialidade e de qualquer estado-nação.
Os estados-nação têm
sido, tradicionalmente sedentos de controlo de pessoas e seus rendimentos. Essa
nova situação de desmaterialização da moeda e sua total integração no sistema
financeiro globalizado conduz a que os aparelhos de Estado também introduzirão
todos os seus fluxos, todos os actos relativos às suas funções – cobrança de
impostos e manutenção de serviços de saúde, educação, aplicação da justiça,
corpos militares e policiais… sob o controlo do sistema financeiro. Será a
abolição do poder do Estado e o domínio absoluto do sistema financeiro
globalizado?
Os sistemas de ensino
A normalização dos
sistemas de ensino é um desejo essencial para o grande capital que pretende
alargar a base de recrutamento de gama média e alta, introduzindo uma forma
comum de pensar e atuar que permita uma “empregabilidade” padronizada que possa
servir a qualquer empresa multinacional, em qualquer parte do planeta. Na China
e na prossecução da tradição de produzir uma administração pública competente
(que remonta ao século XIV) foram criadas a partir de 2005, “academias de
liderança” como a CELAP em Xangai, a CELAJ em Jingaushan e a CELAY em Yan’na,
no seguimento de instituições semelhantes inauguradas em Singapura; ainda que
continuem a rumar a … Sylicon Valley, estudantes para uma familiarização com a
inovação. Dois mundos, dois sistemas com uma só finalidade – a maximização da
acumulação de capital ou, de forma mais popular, o crescimento do PIB, no
âmbito de uma concorrência comercial, tecnológica e geopolítica que poderá
desembocar em guerras globais ou regionalizadas, por procuração.
Pretende-se que o ensino
se vocacione para a produção de agentes de criação de valor, armados do
necessário empreendedorismo que permita uma competição ganhadora face à
concorrência, com um espírito de sacrifício que subalternize a vida familiar e
pessoal; e que contudo, se manterá num contexto de precariedade, porque os
direitos laborais são aberrações nos tempos atuais. As técnicas de gestão
apresentam-se como formas de produzir ganhos de produtividade, competitividade,
através de programas informáticos com a rigidez adequada para evitar
tergiversões, dúvidas e criatividade da parte dos executantes. Integração em
obediência e sacrifício como regra.
Neste contexto
normalizado, depreciam-se as ciências sociais ou as artes como instrumentos
para a compreensão da realidade porque não se inserindo no ambiente
competitivo, não têm “empregabilidade”.
Para os jovens, o
ensino, mormente superior, é uma fábrica de obediência, de formatação
neoliberal e muito estandardizada. Os que se mantiverem críticos terão também
de se manter calados para garantir o posto de trabalho; e, quem se não contiver
na sua insignificância, é desvalorizado e empurrado para tarefas burocráticas e
inúteis – os trabalhos de merda[10]
– nas margens da criação de valor.
6 – O Estado, gestor local da
estratificação do Homem
A existência de uma estrutura de domínio político exige a
segmentação da sociedade - e de cada pessoa - nas vertentes convenientes para
uma pacífica continuidade da condição de súbditos. Para tal, é preciso
transformar cada hilota num zelota da pátria e do capital, sem que o mesmo
tenha a consciência de que se comporta como um idiota.
Em tempos muito
distantes, o primeiro ser humano em quem os outros acreditaram ser capaz de
prever as tempestades e curar os doentes, ganhou autoridade sobre os restantes,
pois era-lhe atribuído o poder de comunicar com o ignoto, com seres poderosos
que mandavam na chuva e na seca, na vida e na morte, no que se passava na Terra
e nas estrelas. Esses predestinados, em comunicação com o ignoto, mereceriam o
respeito dos restantes que, por sua vez, entendiam precisar do apoio sacerdotal[11]
para intervir junto do Além para lhes dar chuva, boas colheitas e boa saúde;
que, seriam objeto de sacrifícios humanos ou de animais, para dignificar o
poder dos deuses e dos seus intermediários, afastando-se, portanto o recurso à
intervenção divina para questões pueris.
Estava assim achada a
casta sacerdotal, cuja entrega à revelação dos humores divinos era um difícil
labor que a comunidade não saberia executar, nem poderia dispensar; e daí que
fosse aceite a sua isenção do duro labor de garantir o sustento próprio.
Para garantir uma vida
boa, com boas ou más colheitas, estivessem os deuses bem dispostos ou, de má
catadura, as castas sacerdotais exigiam o contributo material (cereal, gado,
trabalho ou moeda). Como nem sempre as pessoas comuns queriam ou podiam dar os
seus contributos, a casta sacerdotal criou um poder coercivo e os meios para o
garantir – indivíduos armados para exercerem funções de cobrança de impostos,
defenderem as suas riquezas da cobiça de invasores e garantirem mão-de-obra
para a concretização dos “investimentos” adequados à visibilidade da grandeza
dos reis-sacerdotes, para a eternidade.
Dessa fusão resultou o
início da legitimação, em exclusividade, da exação fiscal, do exercício da
coerção e da violência em que se fundiram os poderes reais e sacerdotais, desde
tempos imemoriais; e para que essa legitimação aconteça é essencial que seja
aceite por quantos vão ficar subalternizados no âmbito dessas estruturas
hierárquicas. Através dos séculos e em qualquer forma de sociedade, o
surgimento de hierarquias foi concomitante com relações de domínio; e a
endogeneização dessas estruturas sociais e mentais nos diversos povos e em
todas as épocas históricas que se seguiram à “especialização” de funções acima
referida. Sedimentou-se, através dos séculos, um estado de espírito de longo
prazo – um império – em que alguns, em cada geração, se colocam como
dominantes, decidindo por todos os outros e em que esse domínio é tomado
natural, uma inerência da espécie; ou, que, aceitam essa preponderância, esse
poder, por comodismo ou medo e, integram em si aquele estado de espírito,
reproduzindo-o, aceitando essa divisão entre dominantes e dominados, como
fazendo parte da natureza humana. Esse espírito imperial é transversal, no
tempo e no espaço, revelando-se no momento em que alguém surgiu como dotado de
poderes de comunicação com o ignoto e em que isso foi aceite pelos restantes,
surgindo assim a primordial divisão social entre os seres humanos.
Começou assim a criação
de um poder estruturado de grupos humanos, elevado a um estatuto de domínio
sobre o resto da população, através da sacralização das suas funções de onde
decorria a imposição de deveres fiscais e a obrigação de cumprir funções
militares, num contexto de aceitação de um dever geral de obediência e
submissão a essa elite; com maior ou menor utilização do sagrado. Quem não
pertencesse à casta era segmentado por aquela, como trabalhador, contribuinte,
soldado, espectador ou coisa, se fosse escravo; uma classificação que foi
mudando as designações – mas não as funções - de acordo com as épocas
históricas.
Inversamente, no século
XX, de acordo com René Dumont, no contexto da África colonizada, havia três
entidades estruturantes da vida dos povos – le
militaire, le missionnaire, le marchand; o primeiro agredia, o segundo
gerava a domesticação e o terceiro pilhava.
Claro que o desenho de
Dumont repercutia o comportamento racista dos europeus, a lidarem com
“selvagens”, sem especialização, necessitados de domesticação, de se integrarem
na maravilhosa sociedade do trabalho. A raça valia sobretudo como forma de
atribuição das tarefas mais duras e por baixíssimo preço a uma população, para
esse efeito, subalternizada, infantilizada.
No que chamamos
democracias de mercado, o poder exerce-se de modo menos brutal e mais melífluo
na domesticação dos povos. A eleição regular de oligarcas como representantes
do povo é a seleção de zeladores do cumprimento dos múltiplos deveres
atribuídos ao povo; pretende-se seja feita pacificamente, de modo consentido,
em regra, pela alternância entre dois partidos pouco diferenciados. “É
preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma” (Giuseppe
Tomaso di Lampedusa).
No âmbito da visão das
estruturas políticas e económicas dominantes, os seres humanos são, numa
primeira instância, classificados pela sua nacionalidade, pelo estado-nação que
lhes foi atribuído, normalmente, à nascença. A ausência desse registo
primordial terá como consequências uma não-existência real e é complementado
durante a vida por muitos outros enquadramentos, atribuídos pelo Estado, nas
suas várias facetas, como pelas empresas, pelo sistema financeiro e mesmo,
instâncias de outros estados-nação. Daí decorre a valorização (positiva ou
negativa) que é dada a cada pessoa que assim é controlada e condicionada,
durante toda a vida, sobrando mesmo deveres post
mortem para os seus herdeiros.
No entanto, há várias
situações de dupla, tripla… nacionalidade, sobretudo para quem for abastado. E
também há situações de recusa absoluta, dirigidas a pobres ou refugiados, em
casos de acolhimento humanitário; e aí, a nacionalidade pouco importa ou é
mesmo um anátema.
Esse condicionamento dos
seres humanos é multifacetado. Numa primeira instância, mostra a segmentação
dos indivíduos em função da sua relevância na escala da rendabilidade
capitalista em geral;
·
no topo situam-se os indivíduos que gerem a reprodução do
capital, quer diretamente como participantes do processo produtivo ou através
da intervenção na circulação de mercadorias e de capitais;
·
seguem-se os indivíduos que - não desempenhando quaisquer
funções produtivas - são essenciais para a manutenção do sistema capitalista e
das suas estruturas políticas. Neste âmbito incluem-se as classes políticas e
os membros dos aparelhos com funções repressivas, de controlo ideológico ou
social, bem como as estirpes judiciais. São, no seu conjunto, um simples custo
mas, rentáveis do ponto de vista sistémico;
·
colocam-se a seguir, os executantes das funções laborais, os
trabalhadores por conta de outrem, integrados nas hierarquias empresariais ou
do aparelho de estado; e que, por sua vez, se escalonam, em função das suas
especializações e vínculos laborais, colocando-se no final, os mais
indiferenciados ou precários;
·
num plano inferior, colocam-se os indivíduos desnecessários ou
excedentários para o sistema mas que marginalmente permitem a viabilidade de
sectores menos nobres do empresariato, com menores taxas de lucro como, por
exemplo, a “economia social”; ou os desempregados subsidiados com a
obrigatoriedade de exercer “trabalho social”;
·
no final, no plano da hierarquia construída pelo capital, estão
os excedentários tout court –
desempregados, mormente de longa duração ou pensionistas - para os quais o
sistema reserva a emigração, as privações, o encurtamento da vida, a
invisibilidade e a desaparição.
Cada
indivíduo, a partir do seu registo de nascimento apresenta-se como uma mónada
una e indivisível; porém, essa mónada tem a forma de um poliedro, com várias
faces, a utilizar, essencialmente em função dos interesses da acumulação de
capital e dos seus gestores, a nível estatal ou outras instâncias, políticas,
económicas, sociais ou ideológicas. Assim, cada pessoa é considerada de modo
fragmentado, de acordo com as funções em que o capitalismo o integra e utiliza (ou
não quer utilizar). Essa utilização pode ser feita sob um ponto de vista
estritamente económico, como produtor, consumidor ou devedor; como ente
político, com direitos e deveres; como ser pensante – no desenvolvimento de
capacidades imanentes; ou, como dejeto a reciclar, mais lentamente num
cemitério, ou diluindo-se num forno crematório, só dele sobrando uma caixa de
cinza e o registo fiscal.
Materialmente,
cada pessoa está presente numa grande diversidade de bases de dados, e
parametrizada sob vários ângulos, relevando-se uns aspetos aqui, outros acolá,
de acordo com análises específicas efectuadas em imensas massas de informação.
Essa informação é detida pelo Estado, por consultores privados e, cada vez
mais, pelos compiladores globais de big
data que a vendem para fins comerciais, de aferição de tendências, de
manipulação política, militar ou mediática.
Observemos, de seguida,
as principais faces do referido poliedro que espelham a fragmentação dos
indivíduos, de acordo com os interesses do capitalismo no seu conjunto e de
certos segmentos das suas estruturas económicas, políticas ou ideológicas, em
particular:
·
O consumidor é um indivíduo cortejado, olhado através das
potencialidades do seu rendimento ou dos cartões bancários que possua.
Rico ou pobre, o consumidor é um filão a explorar, a acenar com
a satisfação de necessidades óbvias ou outras, resultantes da exibição, da
satisfação das pequenas invejas, da ocupação com atividades mais ou menos
culturais, como de distrações idiotas ou bárbaras, onde os protagonistas se
revelam nos seus mais bestiais recalcamentos. O mercado é vasto, criativo,
abrangente, insinuante, melífluo e amoral; adula o consumidor apenas enquanto este tiver meios atuais
ou futuros para utilizar no consumo.
·
O colaborador é a designação do assalariado, na
novilíngua do neoliberalismo. Deixou de ser o trabalhador, o assalariado, a mão-de-obra,
o operário, ou outro epíteto revelador da subalternidade e do antagonismo face
ao patrão, também ele metamorfoseado, hoje, em “empregador”. Estas designações
consubstanciam a intenção de aplanar as contradições sociais e apontar o
“empregador” como um caso bem sucedido de esforçado criador de valor e emprego,
usando como recurso o “colaborador”, num feliz casamento que, com o
empreendedorismo de ambas as partes promoverá a criação de riqueza e de
emprego, per omnia secula seculorum.
O empregador é um benfeitor porque cria emprego e o colaborador será o devotado
e o eterno agradecido pela mercê do emprego… enquanto o despedimento não
surgir.
A designação de colaborador é uma figura que consta na
“literatura” dos negócios, nos documentos e nos sites das empresas e também sob a designação de recurso, sabendo-se
que é descartável, um género de insuflável, que tanto se enche como se pode
esvaziar. O colaborador passa frequentemente à categoria de despedido, de
desempregado, como resultado de reestruturação interna, enquanto não se
transforma em desperdício.
·
O devedor é uma habitual consequência das situações de
colaborador e consumidor pois é o rendimento associado à primeira categoria que
torna os bancos abertos à concessão de crédito para o consumo. Quem não for
colaborador não obtém a colaboração dos bancos, por mais que justifique a sua
necessidade de crédito; nem terá acesso a cartão de crédito, com aquelas
designações grandiosas como “gold”, “dourado”, “platina, “premium”, que servem
para elevar o ego do cliente e convencê-lo da sua grande importância para a
instituição.
Os bancos acenam sempre facilidades - crédito para casas,
carros, viagens, mobiliário, computadores, tudo o que possa permitir uma
ancoragem do rendimento de qualquer incauto ao pagamento de prestações
bancárias, durante décadas. Qualquer banco ficará feliz por ter, durante várias
décadas, um rendimento garantido, uma hipoteca e um seguro a seu favor, pagos
pelo devedor, feliz pelo acesso à propriedade.
Por especial deferência da classe política os colaboradores e
consumidores acarretam ainda com os ónus da dívida estatal, contraída pela
classe política e socializada de imediato no âmbito de uma frase tão estúpida
como comum e falsa “o Estado somos todos
nós”.
·
O acesso à gloriosa categoria de contribuinte assume-se à
nascença; sobre a primeira fralda incide IVA; e isso é apenas um suave e
inconsciente começo das obrigações pecuniárias para com o Estado, o gestor do
estado-nação. O célebre NIF é o pivot
que irá acompanhar a vida de cada um e mesmo a onerar as vidas de filhos ou
herdeiros. A sombra extingue-se com a morte mas, o NIF não.
Por detrás do NIF está sempre o Estado, sedento de aumentar o
volume de impostos para colmatar o deficit, para investir e contribuir para a
competitividade dos capitalistas; uma vez que sem estes, a figura do
colaborador não existiria. Dito de outro modo, Deus depois de ter criado o
capitalista, decidiu criar o colaborador para servir aquele.
No seu papel de patriótico contribuinte, o indivíduo irá
municiar o Estado para que a classe política possa distribuir bem-estar,
tranquilidade… a todos. Para o analfabeto político o pagamento dos impostos é
uma mudança do bolso das calças para o bolso do casaco pois o Estado é uma casa
comum. E pagar impostos é apoiar os governos para que ajudem os bancos
nacionais e garantam a… independência nacional.
·
No mau espetáculo que é o que designamos por democracia de mercado,
é oferecida a qualidade de eleitor à população adulta, que assim decide
quem se vai apropriar do produto da cobrança dos impostos; sabendo-se que, em
regra, o eleitor não tem, em geral, o direito de se candidatar. Para se tornar
elegível, terá de pertencer a uma oligarquia partidária, gozar da simpatia do
seu chefe ou encher com donativos importantes a tesouraria do partido.
·
Para além das funções acima referidas, o mercado oferece
elementos para o preenchimento do tempo, fixando o indivíduo em actividades
como espectador. Atento, o mercado oferece muitas alternativas para o
espectador, todas elas incentivadoras de uma atividade consumidora, de
apropriação de mercadorias. Está montado em torno de cada pessoa um espetáculo
que integra e qualifica todos os momentos como actos de consumo; um consumo que
não satisfaz outras necessidades que não a captura do tempo disponível,
sobretudo através da imagem e de um hedonismo primário, parco de reflexão; um
consumo que abrange o espetáculo de wrestling
gratuito fornecido pela classe política.
O sistema capitalista é
invasivo e não se contentaria em deixar livres as pessoas depois de um dia de
trabalho; apropria-se dos seus tempos não dedicados à produção de bens ou
serviços e, para o efeito, tem aumentado a relevância da parte dedicada a
conteúdos ideológicos, de aplanamento das capacidades dedutivas, do desvio de
atividades de protagonismo social ou político, de geração do entorpecimento
social. O capitalismo apossa-se do espaço-tempo, reconstruindo-o, incessantemente;
é um sistema de controlo biopolítico. O mercado oferece tudo, disponibiliza
tudo, é um sistema completo que, como uma ameba, não precisa do outro para se
reproduzir. O mercado é o sistema e o sistema é o mercado.
Como qualquer elemento
necessário para a produção mercantil, o Homem tem um período de amadurecimento
como instrumento para a reprodução do capital; outro, em que é francamente
produtivo; e um terceiro no qual se aplica a teoria dos rendimentos
decrescentes, em que um acréscimo na idade corresponde a uma menor
produtividade para o sistema, na sua globalidade.
·
A inclusão de pessoas como desperdício tem várias
proveniências. São os mais idosos, com uma entrada na reforma cada vez mais
próxima da longevidade biológica e com rendimentos de substituição cada vez
mais curtos; uma faixa dos mais jovens, pouco qualificados ou com qualificações
pouco valorizadas pelo “mercado”, com ocupações ocasionais ou afastadas das
suas especializações… pouco competitivos, portanto; e ainda os que engrossam os
fluxos de refugiados, de guerras, da fome ou dos impactos ambientais das
desestruturações contidas no funcionamento dos “mercados” e submetidos a
humilhações, violações, a trabalho mal pago e precário, sempre perante o risco
da violência racista ou da expulsão.
No tempo actual de
predominância do capital financeiro, a geração de valor através da produção de
bens e serviços conduz a vários problemas nos quais os seres humanos são
parâmetros e não objetivos. As tecnologias da informação e a robotização
reduzem a incorporação de trabalho na produção de bens e serviços e o que é
incorporado é portador de maiores qualificações; daí resulta aumento da
produtividade, acrescida concorrência e a existência de grandes faixas
populacionais no desemprego, no subemprego, para além do abandono de populações
sediadas no exterior do capitalismo avançado e globalizado, vivendo no âmbito
de todas as carências, da insegurança e dos problemas ecológicos e climáticos.
Os problemas ecológicos[12]
crescem e popularizam-se mas, no seio de alguma passividade ou de abordagens
tecnocráticas, contidas dentro dos parâmetros de funcionamento do sistema
capitalista como na ingénua crença numa mais empenhada atuação das classes
políticas. Se assim continuar a ser, o capitalismo saberá agir, de algum modo,
para evitar catástrofes ambientais, danos no sector segurador (e financeiro),
tendo em conta a rendabilidade do capital investido e as expectativas dos
investidores. Irá colocando em cena tecnologias e medidas com impactos
ambientalmente menos lesivos, tendo em conta vários pressupostos, como a devida
amortização financeira dos investimentos presentes no terreno e com impactos
negativos; a oportunidade de aplicação de volumosos capitais em novas
tecnologias, “amigas do ambiente” como é muito referido pelo ecologismo de
pendor tecnocrático, tolerante para com o capitalismo; e procurará externalizar
para países e regiões mais pobres, da periferia capitalista, as atividades mais
ambientalmente lesivas, contando encontrar ali a tolerância, os elementos de
desestruturação política e económica ou, a presença de classes políticas
claramente venais.
Prefiguram-se soluções
que se podem denominar como de ecofascismo, com uma população mundial diminuída
do seu “excesso” actual para 1000/2000 milhões de seres humanos, no final do
século[13];
ou mesmo para 600 milhões, uma cifra que terá sido apontada numa reunião de
Bilderberg[14],
onde o segredo é regra.
Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (1/3)
https://www.slideshare.net/durgarrai/nationstate-nationalism-instruments-of-capitalism-1-part
(english)
Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (2/3)
Este e outros textos em:
[3] O elevado número de filhos gerou a
designação de proletários aos trabalhadores fabris, mesmo que a mortalidade
infantil fosse muito elevada, ao contrário da esperança de vida que era baixa
[4] Ao
ponto de se terem inventado relógios que padronizam dias de 28 horas, de marca
Montu e produzidos pela empresa japonesa Sports Train (citado em El Absurdo
Mercado de los Hombres Sin Cualidades, de Anselm Jappe e outros)
[7] Projeto Democracia de David Graeber
[9] Obama tentou durante vários meses conter
as repercussões da crise dos subprime
ao ambiente financeiro mas acabou por não resistir e decidiu impedir uma recessão
mais catastrófica com um aumento substancial da dívida pública
[10] “Empregos de Merda – Uma Teoria” – David Graeber
[11] Durante muitos séculos, no cristianismo, as missas eram
ditas em latim que, certamente o Altíssimo conheceria mas os crentes comuns
não; daí resultava como essencial, a intervenção dos sacerdotes
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