Sumário
1 – Como o capitalismo
criou o estado-nação
2 - O nacionalismo como
instrumento de controlo ideológico
3 - A cada nação um estado-nação?
4 - O capitalismo engrandece
o estado-nação no seu processo de consolidação
5 – A globalização capitalista reconfigura o
papel do estado-nação
5.1 –
Alguns segmentos retirados ao domínio dos estados-nação
6 – O Estado, gestor
local da estratificação do Homem
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3 - A cada nação um
estado-nação?
Se um estado-nação
surgisse apenas e “naturalmente” por ter como base uma nação -caraterizada pela
etnia, a cultura, um passado comum, a religião, a língua ou tudo isso - seria
necessário explicar porque existem apenas uns 200 estados-nação e não mais de
7000, correspondentes a cada binómio cultura/língua específica, ancorado em
territórios mais ou menos específicos. Se assim fosse, poderia perguntar-se
onde está a nação monegasca, a identidade do Liechtenstein ou, a de cada uma
das antigas colónias inglesas das Caraíbas transformadas em estados-nação para
servirem como offshores, plataformas
de estacionamento e branqueamento de capitais mafiosos?
Se esse postulado fosse
real, quantas seriam as guerras de libertação, os conflitos, massacres,
deportações e colunas de refugiados em fuga à repressão de potências (pouco)
acolhedoras de posturas independentistas? Quantos seriam os presos por
separatismo ou lutadores pela independência da sua pátria?
Os refugiados que tentam
atravessar o Mediterrâneo fogem à desestruturação económica, ao banditismo e à
pobreza e não como vítimas da luta das suas culturas e etnias pela criação de
um estado-nação. E os rohingyas que
fogem para o Bangla Desh e não o fazem por pulsões independentistas.
Muitas dessas culturas
têm poucos membros e falta de massa específica ou mesmo vontade em construir um
estado-nação próprio; e certamente contariam com a oposição do aparelho do
estado-nação hospedeiro, pouco dado a perdas territoriais, por natureza. Por
outro lado, essas culturas subalternas no seio de um estado-nação típico, com
exércitos, polícias, um aparelho de estado editor de propaganda nacionalista e
um sistema educacional totalizante, são reprimidas para que se desvaneçam; ou,
aceitam-nas como elementos geradores de atração turística.
Hoje, as guerras de
libertação nacional são escassas, passado o período áureo da descolonização nos
anos 60/70. Os tamil no Sri Lanka não conseguiram a independência após muitos
anos de guerra; as nações nativas nos EUA são objeto de uma visibilidade
turística, como peças de museu; os curdos vão garantindo alguma autonomia na
devastada Síria e no Iraque; os palestinianos continuam confinados a
verdadeiras prisões ao ar livre; a separação entre checos e eslovacos
procedeu-se pacificamente, apesar das suas muitas afinidades; a Escócia espera
melhores dias para se separar da tutela formal dos Windsor; em Espanha,
catalães, bascos e galegos continuam a ter a sua própria independência coartada
pelo regime pós-franquista; e o Sudão do Sul separou-se recentemente do Sudão,
de matriz árabe, após um período de guerra… pela partilha do petróleo.
A descolonização da
África foi, em muitos casos pacífica e, no caso das colónias portuguesas, as
guerras de libertação colonial terminaram em meados da década de 70; a que se
seguiu, pouco depois, o desmoronamento do regime de exclusão da população
originária, no Zimbabwe; ao qual o regime dava um nome que homenageava um businessman racista chamado Cecil
Rhodes. Na África do Sul, o regime de apartheid
manteve-se até aos anos 90 quando foi instituída como estado-nação
multi-étnico, com onze línguas oficiais, sob a égide da figura excepcional de
Nelson Mandela. Na mesma época, a Namíbia tornou-se um estado-nação livre da
tutela sul-africana e da longa guerra de libertação. Os conflitos que se
seguiram em África, para além dos massacres no Ruanda ou, da divisão em dois de
um artificial Sudão, não tiveram origem em questões étnico-culturais; apenas
lutas de poder, pilhagem (petróleo, ouro, urânio, terras raras…) e negócios de
transporte de migrantes até ao Mediterrâneo, com envolvimentos ocidentais, como
se está observando no Sahel.
O estado-nação, na sua
génese juntou nações e territórios – por integração ou absorção - atribuindo
rótulos nacionais a cada ser humano; porém, essa figura só se aplicava, de
facto, na Europa e no final do século XVIII também nos EUA, embora na China e
no Japão também existissem estados-nação centralizados mas, no âmbito de
modelos autárcicos, alheios à dinâmica do capitalismo.
Em paralelo com o caráter
mais extensivo ou intensivo do domínio colonial europeu a presença do seu poder
começou a decair, na transição entre os séculos XVIII/XIX. Depois da criação de
uma república esclavagista e genocida pelos colonos europeus – EUA[1]
– surgiu o pioneiro Haiti – uma república de ex-escravos – e de seguida a
independência da América do Sul, onde cada estado-nação se pautava por imensa
variedade de culturas e etnias mas sob a hegemonia política e militar dos criollos, descendentes mais ou menos
diretos dos colonizadores espanhóis e portugueses. Entretanto, a doutrina
Monroe – a América para os americanos – na realidade significava a suserania
dos EUA no continente, com a conquista das últimas colónias espanholas e o
perene hábito de intervir no “quintal das traseiras” a Sul do Rio Grande – com
invasões, golpes militares, ditaduras, assassínios e, mais recentemente,
através de sanções – com o apoio, a tolerância ou a distração dos
estados-nações europeus.
Até à I Guerra, a guerra
foi o meio comum de criação ou expansão de estados-nação, em muitos casos com
fronteiras muito instáveis, mormente na Europa central onde a Confederação
Germânica e a Áustria repartiam os domínios do chamado Sacro Império (que era
então um amontoado de centenas de pequenos e grandes senhorios); e, na Europa
Oriental predominavam os impérios, russo e otomano, este em luta frequente com
os safávidas persas, pelo controlo da Mesopotâmia. Na parte ocidental da Europa
estavam as potências marítimas que controlavam o comércio colonial, com a
França numa posição de charneira; por um lado, a França tinha as suas ambições
coloniais contidas e reduzidas pelo maior poder inglês e, por outro, procurava
um grande império continental europeu, centrado em Paris, como dois Napoleões
(o original e o terceiro) procuraram erigir. A Rússia, entretanto, expulsou os
suecos da margem oriental do Báltico e veio a ser a principal beneficiária do
desmoronamento do eleitorado polaco-lituano, enquanto se estendia
territorialmente até ao Alasca… posteriormente vendido aos EUA.
A Europa destacou-se
através da conquista, da disputa e ocupação de territórios coloniais, e ainda
com as guerras inter-imperialistas ou de ocupação dos mais fracos. Perante
decadentes poderes imperiais nos finais do século XIX até à I Guerra Mundial –
Áustria-Hungria e Turquia – tendo como objetivo o desmantelamento daqueles, foi
defendido, com falso romantismo a ideia de “a cada nação o seu estado” por mais
impraticável que isso fosse nos Balcãs ou no Médio Oriente, dada a
interpenetração territorial e cultural dos povos dessas regiões. Nessa mesma
época, as potências imperiais repartiam a África entre si, traçavam fronteiras
sem preocupações de nenhuma espécie face às divisões que criavam no seio de
etnias, povos e tribos ou, em manter as estruturas políticas anteriores, na
África do Norte ou no Sahel. Os africanos eram seres inferiores, um conceito
defendido convenientemente por “cientistas” empenhados na segmentação dos
humanos em raças e na esterilização de débeis mentais ou de gente com feições
menos belas. Na América, depois de retirados pelos EUA, imensos territórios ao
México, reinava a Sul uma relativa paz entre os estados dos criollos; só faltando a expulsão final
dos enfraquecidos colonizadores espanhóis (de Cuba e Porto Rico), uma vez que
as colónias inglesas (nomeadamente o Canadá) pertenciam ao mais poderoso
estado-nação da época.
Ataturk, depois do
desmembramento do Império Otomano levou tanto quanto possível à letra a ideia
da uniformidade nacional no seio da Turquia; procedeu a uma troca de populações
gregas na Ásia Menor por turcos habitantes da Grécia e ao genocídio dos
arménios, cristãos, susceptíveis de serem … adoptados pelo czar da Rússia a
expensas da Turquia. Ainda assim, para perturbar a “identidade” turca, sobrou o
nacionalismo curdo, até hoje sem reconhecimento para a constituição de um
estado-nação.
Logo na sequência do
desmantelamento dos impérios turco e austro-húngaro surgiu a Jugoslávia, como
mosaico de povos com várias religiões e línguas (estas, próximas, o que não
acontecia com as religiões), com comunidades diversas muito misturadas e
fronteiras muito difíceis de demarcar; no entanto, desta vez as grandes
potências pretenderam dar ao conjunto uma dimensão racional e viável. Para
evitar a “balcanização” ficava para trás a ideia de, “a cada nação, o seu
estado”. Apesar dessa diversidade, os jugoslavos resistiram fortemente à
ocupação nazi, apesar do apoio dos ustachas
(basicamente católicos croatas) ao ocupante, numa postura ferozmente anti-sérvia,
herdada da memória austríaca.
Cerca de oitenta anos
depois, de novo aquele princípio de acentuação e exacerbamento do espírito
nacionalista voltou à Jugoslávia como produto de vários interesses de entes
estranhos ao seu povo. A Alemanha pretendia alargar o campo de expansão
comercial, beneficiando do desmembramento do Comecon; o papa Wojtyla queria
integrar as antigas províncias austríacas de tradição católica (Eslovénia e
Croácia) no seu espírito ultramontano de cruzada, contra Belgrado e os sérvios,
com tradicionais boas relações com a Rússia; e finalmente, os EUA (arrastando
consigo a UE) incentivaram de novo a “balcanização” com a criação da tripartida
Bósnia-Herzegovina, da FYROM (agora Macedónia do Norte), do Montenegro e de um
território (Kosovo) promovido a estado-nação para acolher a grande base militar
de Boldsteen, onde os EUA podem supervisionar toda a Península Balcânica,
prevenindo-se contra influências russas sobre os povos eslavos da região.
O mesmo princípio de “a
cada nação o seu estado” não foi, evidentemente, seguido na descolonização de
África perante a qual as fronteiras coloniais foram mantidas, encerrando-se em
cada um, muitas etnias e línguas que aliás, em regra, tinham séculos de
partilha em comum do mesmo espaço, como por exemplo no vale do Níger, onde
coabitam centenas de etnias e línguas. A criação de estados-nação pelas
potências coloniais não acabou com essa coabitação, sedimentada com algumas
línguas de comunicação entre comunidades distintas; a estranheza foi a
existência de fronteiras e a presença de classes políticas autóctones como
delegados dos antigos colonizadores – os tais “pele negra, máscara branca”[2].
O mesmo sucedeu com a língua quechua, falada da Colômbia à Argentina pelos
povos indígenas, a par da língua espanhola introduzida pelo colonizador.
Seria insano aplicar a
África o princípio identitário. Primeiro, porque resultaria numa redefinição,
confusa e discutível de espaços e povos; depois porque as nações coloniais
pretenderam manter as suas preferenciais influências e negócios nos territórios
tornados independentes, bem como a continuidade da exploração mineira e dos
regimes de plantação. Por outro lado, as pequenas elites ocidentalizadas,
herdeiras da administração colonial não quiseram abrir o dossier das etnias
pré-coloniais o que restringiria os seus poderes aos núcleos culturais e
étnicos de onde provinham; nem perder o seu peso como intermediários face aos
capitais ocidentais num espaço alargado, supra-tribal. Acima de tudo, era-lhes
exigida a estabilidade do funcionamento dos… mercados e do saque. Assim, os
únicos casos de futuras partições viriam a observar-se – após longos e
violentos conflitos – com as separações Etiópia/Eritreia, Sudão/Sudão do Sul e,
de modo não reconhecido pela “comunidade internacional”, no caso Somália/Somalilândia.
O império britânico das
Índias foi repartido inicialmente em quatro estados-nação, todos longe da
unicidade étnica, cultural ou linguística. Com as notórias excepções do Japão e
da Coreia o mesmo acontece em quase todos os países da Ásia. A Indonésia é
outro grande mosaico de línguas e etnias mas aí, o colonizador holandês nunca
sequer procurou instalar o uso da sua língua, aceitando a continuidade do
malaio, tradicional língua de comunicação naquela região; resguardou para o
círculo mais alto da administração colonial o uso do holandês.
A geopolítica é um jogo
de interesses económicos, financeiros e logísticos e torna povos e
estados-nação como instrumentos de disputa, tanto ou mais intensa e destrutiva,
conforme as classes políticas conseguem - ou não - instilar o veneno do
nacionalismo e da exclusão do Outro, para benefício de um capitalismo indígena
ou globalizado.
A maioria das culturas
ou línguas não aspira à constituição de um estado-nação e, por várias razões:
·
Muitas, acham-se dispersas por vários estados-nação e, cada um
destes, pouco disposto a ceder parte do seu território a uma das suas minorias
para que esta se junte a um conjunto de gente com a mesma cultura, vivendo num
segundo estado-nação e surgindo dessa aglutinação um terceiro estado-nação. A
partilha, de facto, de Jammu-Caxemira, entre a Índia e o Paquistão revela que
nenhum daqueles países cederá um milímetro de território, nem ao outro, nem
para a criação de uma nova soberania estatal.
·
Em regra, um estado-nação tem as suas estruturas estatais
ocupadas por etnias, culturas únicas ou fortemente maioritárias, com o
monopólio do aparelho policial, militar e judicial; e, tendencialmente, é no
âmbito dessa cultura dominante que também se situa o poder económico local ou
nacional. As minorias só se rebelam se discriminadas, coartadas nos seus
desejos de melhoria de vida, de promoção social ou de repressão cultural,
linguística, religiosa, como a comunidade dita católica na Irlanda do Norte;
mas já não nas comunidades húngaras (católicas) na Sérvia ou na Roménia (ambas,
ortodoxas), como na comunidade turca na Bulgária, minoritárias, em todos esses
casos.
·
Há também casos em que o poder político assenta em minorias.
Podem citar-se os maronitas no Líbano, utilizados pelos franceses para criar
uma entidade política separada da Síria, no seguimento da I Guerra e entretanto
tornados minoria, em benefício dos xiitas; ou a Síria actual cujo poder
político tem cabido aos minoritários alauitas. No caso dos maronitas ou dos
alauitas há uma identidade baseada na religião (presente ou herdada dos
ancestrais) mas, no caso dos negros americanos a identificação e segregação
baseia-se na origem africana, mais ou menos presente, na cor da pele; o mesmo
sucedendo no Brasil.
A relevância dos
imigrantes, sobretudo na Europa e nos EUA tem crescido e é marcada por
discriminações, exclusões e perseguições; a sua aceitação é tanto mais
problemática quanto mais diferenciada for a tipologia física ou cultural dos
imigrantes. Ser imigrante sul-americano nos EUA tem condições de aceitação social
e política distinta face a imigrantes vindos da própria Europa; e na Europa há
diferenças evidentes se o imigrante é africano, islâmico ou proveniente do
Leste europeu. A discriminação dos imigrantes é sempre construída por uma
narrativa recheada de preconceitos como o de serem oportunistas, de explorarem
os sistemas de segurança social, de serem ladrões, javardos, violadores,
terroristas, perturbadores da boa paz celestial havida no seu local de adopção.
Sinteticamente, chama-se a esse conjunto de preconceitos, racismo; e, por um
acaso da História, o racismo teve origem na Península Ibérica[3].
Os judeus durante cerca
de dois milénios – e a despeito das suas divisões étnicas e sociais – viveram
em comunidades bem identificadas, sem um estado-nação, autossegregando-se para
se manterem como comunidade ou, sendo segregados e perseguidos por razões
políticas, religiosas ou invejas populares, ou ainda, como bodes expiatórios
dos descontentamentos populares nos estados-nação onde viviam. Durante séculos
nunca procuraram constituir um estado-nação até que aproveitaram essa moda, nos
finais do século XIX, para lançarem esse projeto, emigrando, alguns milhares
para a Palestina, onde há muitos séculos havia apenas uma pequena comunidade
judaica, em harmonia com a maioria islâmica. O sionismo, a doutrina racista de
defesa dos israelitas como povo ungido, advogou uma ocupação da Palestina como
sua terra ancestral de origem e, com o apoio inglês, firmou-se naquele
território, expulsando ou segregando os seus ancestrais ocupantes, vítimas de
brutalidades que se podem comparar com as dos nazis. Trata-se pois de um
nacionalismo “científico”, excludente e fascista, ancorado no apoio dos EUA e
do poder político e financeiro de oligarcas de origem judaica. Só o dinheiro e
a influência dali resultante, permite tal excrescência “nacional”.
Inversamente, os ciganos
sempre constituíram comunidades pobres, segregadas e errantes, empurradas para
o ostracismo, com uma presença particular nos Balcãs, onde desenvolveram uma
cultura musical deveras interessante. Obviamente, nenhum poder financeiro ou
político lhes ofertou um território para construírem um estado-nação.
O que é, de facto, o
estado-nação? É uma contingência onde desembocaram outras contingências, com um
aparelho chamado Estado, com direitos totalitários de repressão e saque sobre
os “seus” habitantes, segmentados em função dos
vários desempenhos definidos pelo Estado[4].
O Estado, é preenchido por uma hierarquia mais ou menos mafiosa – a classe
política, em permanente articulação com o topo da gama do capital; nacional e
global. Para colorir e alegrar esse quadro sinistro, juntaram a esse
estado-nação, um hino e uma bandeira.
4 – O capitalismo
engrandece o estado-nação no processo de consolidação
A globalização, na sua
forma primeira, começou quando os filhos de Lucy abandonaram o Vale do Rift e
partiram para destinos incertos; porém, perdendo, temporariamente (milhares de
anos) as referências uns dos outros[5].
E foi alargando o seu âmbito geográfico, incluindo mais e mais comunidades
humanas, mormente através da formação de impérios que criavam as condições de
segurança para as trocas. Alexandre da Macedónia queria conquistar o mundo mas
foi contrariado pelas florestas da Índia, pelas alturas do Pamir e pelo cansaço
das suas tropas. Mais tarde, os romanos tornaram o Mediterrâneo um Mare Nostrum estacando à beira do
tempestuoso Atlântico, atrás do muro de defesa contra os pictos a Oeste, do
Sahara a sul, do Reno e do Danúbio a norte e no confronto com os partos a
Leste. Ainda mais tarde, os impérios muçulmanos constituíram pontes marítimas e
terrestres com a Índia e a China, com Marco Polo, Veneza e Génova a fazerem a
ligação entre a Ásia e o resto da Europa feudal. Este comércio longínquo
incidia sobre bens de luxo cujo elevado preço resultava, em parte, da dimensão
da viagem total e dos riscos durante a mesma.
Se se pensar na
globalização em simples termos geográficos, ela consumou-se com os feitos de
Colombo, Vasco da Gama e Magalhães, a que se seguiu o desvendar de alguns
recantos, até ao século XVIII com Cook e, já no século XX, com os exploradores
das zonas polares. Ancorada em cinco países da faixa atlântica da Europa –
Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra – a globalização desenvolveu a
guerra, o comércio, a conquista, a escravatura, desenvolvimentos tecnológicos e
uma imensa troca de conhecimentos. Dessa evolução, caótica, não programada,
resultou um modo novo de gerar riqueza - o capitalismo - que teve como
instrumentos essenciais:
·
o estado-nação, enquanto modelo organizativo de pessoas, bens e
capitais, ancorado num espaço bem delimitado;
·
o nacionalismo, como ideologia, forma aglutinadora para uma
população específica e multifacetada mas excludente ou desconfiada para com os
de fora;
·
e, finalmente o Estado, como aparelho gestor dessa criação de
riqueza mantendo a população pacificada, por força das leis ou da repressão.
Sendo o mundo um espaço
aberto, o comércio longínquo de bens de luxo ou especiarias desejadas pelas
camadas abastadas – agora, mais numerosas - era altamente rentável. A produção
artesanal de bens, destinada a uma área próxima, típica dos tempos medievais
cedeu o lugar à produção para destinos longínquos, desconhecidos dos seus
produtores e numa escala que não caberia nas capacidades dos artesãos
medievais, agrupados em confrarias[6].
Não havendo qualquer elo
entre produtor e consumidor tudo se torna dependente do comerciante que define
os preços, as quantidades, as (elevadas) margens de lucro que permitem grande
acumulação de dinheiro e a criação de um setor bancário e financeiro. Os
comerciantes e armadores de um dado país procedem a uma defesa coletiva, como
cartel (avant la lettre) face à
concorrência externa, com o apoio real às Companhias das Índias, detentoras de
monopólios “nacionais” (leia-se, dos mais ricos comerciantes), alargando as
funções administrativas do reino, com o rei a cobrar direitos sobre as
importações, para defesa da concorrência externa e da produção… nacional. O
termo nacional vulgarizou-se, precisamente com a consolidação do estado-nação,
como atributo de tudo o que é pertença ou atributo daquele. E cada estado-nação
era como uma fortaleza que, através dos canhões e do comércio, tomava o mundo
como mercado, sem jamais perder a sua individualidade.
Esse espaço protegido,
com um aparelho administrativo e militar com um rei no topo, ganha uniformidade
e coesão face ao exterior, de onde podem surgir ameaças; a relevância das
fronteiras e a guerra para conquistas territoriais, para a captura de terra,
pessoas e mercados. Os reis aumentam o seu poder com uma área administrativa
alargada – tesouro, alfândegas, exército e marinha, polícia, tribunais e
legislação de enquadramento administrativo e de controlo do trabalho – muito
para além do exigido nos feudos senhoriais. Grandes impulsionadores dessas
transformações eram os ricos comerciantes das transações globais, com as Índias
Orientais, Ocidentais ou envolvidos no comércio de escravos africanos,
nomeadamente a partir do século XVII.
A demarcação das
fronteiras, a vigência de uma estrutura administrativa e financeira, através de
um aparelho – Estado - num espaço bem definido e bem defendido, materializa o
estado-nação, um estado-fortaleza. Por exemplo, em França com as ordenações de
Villiers-Cotterêts (1539) procede-se a um registo nacional de nascimentos e
óbitos a partir dos registos das estruturas religiosas; e, adoptou-se a par do
latim habitual, a língua francesa, que só passaria a ser a única utilizada
depois da Revolução Francesa (ainda que houvesse muitas versões da mesma). Por
outro lado, essas ordenações continham a proibição das confrarias de artes e
ofícios, estruturas típicas da época feudal, tomadas como ultrapassadas pela
globalização, em consolidação e, pela implícita lógica do mercado.
O que se veio a chamar
burguesia nacional institui uma relação íntima com o Estado, personalizado num
rei ou num equiparado (Cromwell) como liderança do estado-nação; um conjunto
coeso face ao exterior ou na repressão de camadas sociais descontentes. A
presença do aparelho de Estado é condição essencial para o aumento da riqueza e
do poder dos ricos comerciantes a que se pode chamar capitalistas – são
detentores de capitais móveis, armam navios, procedem ao comércio e encomendam
tecidos, armas… sobretudo, para venda no exterior, mais próximo ou longínquo.
A produção capitalista
exige um aparelho (Estado) ao seu serviço, uma delimitação territorial e uma
catalogação da população como nacionais, mantendo de fora, como estrangeiros,
gente com qualquer distinção face às pessoas que pertençam à nação. Note-se que
a China, com uma organização administrativa, tecnologia e riqueza muito
superiores, inicialmente, às dos europeus, nunca demonstrou interesse em
desenvolver comércio com os esses “bárbaros”. E, pela sua dimensão, entendeu
prescindir de transações com o exterior desde o século XIV, zombando dos
objetos que os Ocidentais, mais tarde lhe apresentavam, para efeitos de troca.
O grande problema surgiu no século XIX quando os “bárbaros” obrigaram a China,
perante a ameaça dos seus canhões, a colaborar no enriquecimento dos
estrangeiros, comprando ópio.
A Holanda sobressai como
herdeira de uma tradição comercial e manufatureira com raízes na Idade Média e
com a liberdade de pensamento que conseguiu, após uma longa guerra contra as
pretensões da Espanha; esta, ancorada nos poderes de transmissão típicos do
feudalismo afunda-se financeiramente em guerras constantes na defesa de possessões
muito fracionadas na Europa e enquista como guardiã do tradicionalismo
católico, combatendo as ideias humanistas[7].
Ao tratado de Westfália segue-se um longo período de rivalidade entre a França
e a Inglaterra até que esta assume uma clara liderança mundial com a derrota de
Napoleão e o Tratado de Viena em 1815. Depois da guerra franco-prussiana (1870)
a Inglaterra reparte a hegemonia global com a Alemanha e os EUA, um equilíbrio
que se irá romper com a I Guerra, quando a Alemanha perde todas as suas colónias
e os EUA superam a Inglaterra como principal potência. Depois da II Guerra, os
EUA reforçam a sua liderança no mundo ocidental e na primeira configuração de
um sistema mundial - financeiro (Bretton Woods, FMI…), comercial (GATT/OMC) e
militar (NATO); mas, tendo a URSS como a potência rival, nomeadamente no campo
militar. A ONU surge, como descendente da defunta Sociedade das Nações, como
denominador comum entre os estados-nação, reforçando o papel destes como
elementos soberanos de enquadramento das populações; porém, com um diretório de
grandes potências – EUA, França, Grã-Bretanha, URSS e China (primeiro como
aliada do Ocidente e depois sob a forma actual de República Popular,
posicionada ao lado da URSS).
Já publicado:
Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (1/3)
https://grazia-tanta.blogspot.com/2019/12/estado-nacao-nacionalismo-instrumentos.html
Continua em:
Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (3/3)
Este e outros textos em:
[1] Simbolicamente, o primeiro presidente dos EUA, George
Washington era um abastado dono de imenso número de escravos.
[2] Título de um livro de Franz Fanon
[3] Racismos –
Francisco de Bethencourt
[4] O Homem, ser
social e fragmentado http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/02/o-homem-ser-social-e-fragmentado.html
[5] A hecatombe de 20 milhões de pessoas,
provocada no México, nomeadamente, pela chegada, com os espanhóis, do sarampo e
da varíola (para além da superioridade bélica dos primeiros) resultou,
essencialmente de os mexicanos não terem contactos com outros humanos desde que
o estreito de Bering voltou a ficar inundado após a última era glaciária.
[6] Curiosamente, certas categorias
profissionais, relativamente privilegiadas voltam a assumir-se como verdadeiras
confrarias, ao arrepio da lógica de mercado
aberto e livre que consta no discurso neoliberal
[7] Na
mais prestigiada universidade ibérica – Salamanca - agostinhos e trinitários, no século XVII,
envolvem-se à pancada porque uns consideravam Adão imperfeito após Deus lhe ter
retirado uma costela (para criar a mulher) e outros entendiam que o mesmo Deus
teria preenchido o buraco com carne (!)
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