sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Um internacionalismo do século XXI, contra o capitalismo e o nacionalismo (1)



Carlos Taibo sintetiza a questão que se nos coloca, hoje. Ou ganhamos a consciência de que temos de sair urgentemente do capitalismo, regressando a lógicas de cooperação, solidariedade e apoio mútuo; ou entra-se num caminho de salve-se quem puder, com guerras, pobreza acentuada, desdém para com as alterações climáticas, com regimes fascistas e genocidas.
Sumário
1 - Uma (des)ordem económica e política
2  - A globalização é um processo
2.1 - Como o capitalismo vem cavalgando a globalização
2.2 - A instituição de um estado de excepção generalizado
3 - Os grandes promotores do desastre
3.1  - As ameaças vindas das classes políticas
4 – A leitura do contexto.
4.1 - As alternativas possíveis e as desejáveis
4.2 – O desenvolvimento do espirito do fascismo
4.3 – Um novo internacionalismo, precisa-se!



1 - Uma (des)ordem económica e política

Há uma trama de elementos económicos, políticos, militares e ideológicos que gere a Humanidade, fomentando o conformismo nas populações para que nada mude, excepto no capítulo das adaptações necessárias ao funcionamento do modelo neoliberal do capitalismo; admitem-se correções na velocidade e nos instrumentos mas, não de objetivos. Em todas as épocas existiram esses ordenamentos, mesmo em níveis geográficos restritos, quando o planeta se achava política e economicamente fragmentado, com áreas desconectadas umas das outras.

As mais altas esferas com poder de decisão não se encontram especificamente nas conferências Bilderberg ou Davos, como é do gosto dos amantes de teorias da conspiração. Esses poderes constituem-se e reproduzem-se no seio de redes muito flexíveis, de matrizes institucionais onde preponderam os CEO dos grandes bancos ou das multinacionais, os estratos políticos mais elevados dos países com relevância global e ainda think tanks e empresas ligadas à informação. Relacionam-se permanentemente – para além dos mediatizados conclaves regulares - trocando informações, fazendo negócios, debatendo entre si, tentando influenciar ou neutralizar interesses distintos ou adversos, decidindo guerras e acordos de paz, cooptando uns elementos, despromovendo outros, de acordo com táticas e estratégias formuladas ou reformuladas.

Essa ordem não tem uma hierarquia rígida, nem se circunscreve num elementar “nós” e “eles” que em tempos se imputava como constituinte do pensamento primário de um Ronald Reagan, em cujo discurso o maniqueísmo era peça chave como uma forma de mobilização de sentimentos de aversão e ódio contra o Outro; primarismo ampliado pelo novel Trump. Essa ordem contém a focagem no controlo biopolítico, na manipulação das multidões, nomeadamente através da televisão e de Googles ou Facebooks, mais e mais bidirecionais, como a teletela de Orwell; e define inimigos reais ou fictícios como o terrorismo, os imigrantes, os muçulmanos, os pretos, os árabes, passado que está o tempo em que esse pódio era ocupado por comunistas, sindicalistas, anarquistas.

Perante a ausência de alternativa política entendível, aceite e susceptível de entusiasmar, de lançar os povos na luta contra o capitalismo junta-se, o conformismo e o medo do desconhecido, como elementos que contribuem decisivamente para o sucesso do neoliberalismo e da forma política dominante no Ocidente, a democracia de mercado, protegida militarmente pela NATO; ou, diretamente pelo Pentágono, no Pacífico Ocidental ou na área do Golfo Pérsico.

O binómio neoliberalismo-democracia de mercado, não enquadra soluções alternativas atrativas para os povos europeus, com o seu cortejo de empobrecimento relativo, dívida, redução da qualidade de vida, autoritarismo, corrupção…; tal como o defunto modelo socialista - de facto, capitalismo de estado + partido único – que, ao implodir em 1991, evidenciou o seu fracasso, ficando o celebrado homo sovieticus bem representado por um cinzento e corrupto burocrata. Fora da Europa, a situação é certamente, pior. A pobreza, as guerras, as ditaduras, as chacinas, os desastres ambientais, sob diversas combinações, evidenciam-se na maior parte do mundo, com altíssimas responsabilidades dos ocidentais na sua eclosão e manutenção.
2  - A globalização é um processo
A globalização não nasceu com o neoliberalismo nem, mais geralmente, com o capitalismo. Foi sempre um processo lento, gradativo, que só depois das viagens de Colombo, Gama e Magalhães assumiu uma dimensão planetária. Foi sempre um processo de descoberta do Outro, de enriquecimento comercial e cultural mútuo, um gerador de avanços civilizacionais; um processo de cruzamento de saberes, hábitos, de miscigenação. Esse processo foi mais lento, por exemplo, quando havia dificuldades técnicas de comunicação; ou após o fim do Império Romano do Ocidente, com o encerramento autárcico inerente ao feudalismo, enquanto se desenvolvia claramente na área islâmica, no Mediterrâneo Oriental, no norte de África, no Índico; assim como sofreu uma retração entre as duas grandes guerras, interagindo com as derivas identitárias inerentes ao fascismo. 
Hoje, a globalização é muito mais profunda e diversificada do que nunca; em paralelo com as trocas de mercadorias e serviços, acentuam-se trocas de conhecimentos, migrações e fusões de corpos, dando origem a mestiçagens físicas e culturais que enriquecem e unificam a Humanidade, criando condições para o atenuar de espíritos identitários nacionais, étnicos ou religiosos.

Mais recentemente, a acessibilidade de todos à informação banalizou-se, arrasando os direitos de propriedade, vulgarizando as trocas e os negócios feitos ao seu arrepio daqueles direitos, a despeito da existência de proibições e espionagens massivas para avaliação e controlo do estado de espírito dos povos; mesmo que se procurem atitudes de controlo da informação para benefício dos grandes grupos de media. Vulgarizaram-se as viagens pelo planeta, com a canibalização de preços entre os operadores, bem como as trocas interpessoais e o conhecimento in loco de culturas e povos.

Pode dizer-se que o processo de globalização insere a longa marcha da unificação da Humanidade e é incompatível com o nacionalismo e o fascismo, por natureza, fechados, excludentes, tendencialmente xenófobos, autoritários. Para que se consiga essa unificação, a solidariedade entre as pessoas e povos, a destruição dos armamentos, a dignificação do ambiente é preciso destruir o capitalismo e as classes políticas que o servem.
2.1 - Como o capitalismo vem cavalgando a globalização
O expansionismo colonial do passado que carateriza grande parte dos países chamados ocidentais deu um forte impulso para a compreensão do planeta como unidade, conhecida e inserida em relações potencialmente de todos, com todos. Essa expansão baseou-se na extrema violência da conquista, da pilhagem, da escravatura, da violação, do genocídio mas, é apontado como um orgulhoso passado civilizador, com o paternalismo, de “dar mundos ao mundo” por parte dos colonizadores ou dos que beneficiaram do colonialismo. Essa gesta é apresentada como virtuosa, protagonizada por países autoproclamados como magnânimos dadores de civilização ao resto do planeta; mas, de facto, assente no domínio militar e tecnológico que impôs trocas desiguais, desestruturação social e destruição de modos de vida. 
A descolonização que se seguiu à II Guerra pretendeu manter tudo como anteriormente, de modo mais adequado às menores capacidades financeiras e militares dos grandes colonizadores; ingleses, franceses e holandeses, arrasados com a guerra. Um pouco mais tarde, os belgas deixaram o Congo na barbárie que, aliás, foi sempre o estado em que viveu a sua população desde que ofertada ao rei Leopoldo, no final do século XIX. A Espanha, já há muito havia sido varrida da América e das Filipinas, transformadas em quintal dessa emanação coletiva da Europa, chamada EUA. Os portugueses, ao contrário da chegada à Índia pela rota do Cabo, em que foram os precursores, desta vez foram os últimos a sair da cena colonial depois de anos perdidos em guerra, visando a inviável manutenção de um mítico estado pluricontinental.

A descolonização, em geral, foi a continuidade da colonização, suavizada pela cooptação de elites locais corruptas para a manutenção da anterior exploração colonial, no seu essencial. Porém, como corruptas, essas elites, libertas da tutela política e militar do colonizador, passaram a negociar os seus favores a quem melhor pagasse, entre as multinacionais; que compravam um qualquer sargento para depor um governo recalcitrante, ou que se tornasse caro.

Em paralelo, tendo como modelo o Japão, em alguns países asiáticos com regimes autoritários, gerou-se uma ligação estreita entre os capitalistas nacionais e os aparelhos estatais que garantiam lógicas laborais de baixos salários, com parcos direitos e disciplina militar. Acolheram de braços abertos as grandes empresas ocidentais, multinacionais que, em disputa por recursos e mercados, pretendiam produção a baixos custos; entretanto, com o tempo, os hospedeiros adoptaram as tecnologias ocidentais e fortaleceram os seus próprios conglomerados, os zaibatsu (Japão) ou os chaebol (Coreia do Sul).

Seguiu-se um sucesso de maior dimensão, na China, onde vive 1/5 da população mundial. O seu partido único, com um enorme aparelho que procede à direção política e estratégica da economia e monitoriza a multidão, integra os mais importantes magnatas, num género de capitalismo de estado onde os capitais podem ser privados mas, com supervisão estatal. Em poucas décadas passou de grande exportador de bens baratos e de baixa qualidade, de destino de investimentos estrangeiros, para grande investidor global no exterior, com capacidade para investimentos de enorme significado estratégico, como as vias terrestre e marítima da Rota da Seda ou da construção de linhas internas de TGV, referindo-se, a propósito, que os 19000 Km já existentes, ultrapassam essas infraestruturas ao serviço em todos os outros países.

                                      Exportações mundiais de mercadorias (% do total)

1948
1953
1963
1973
1983
1993
2003
2014
$ 1000 M
59
84
157
579
1838
3688
7380
18494
América do N
28,1
24,8
19,9
17,3
16,8
17,9
15,8
13,5
E U A
21,7
18,8
14,9
12,3
11,2
12,6
9,8
8,8
América Sul e Central
11,3
9,7
6,4
4,3
4,5
3,0
3,0
3,8
Europa
35,1
39,4
47,8
50,9
43,5
45,3
45,9
36,8
Alemanha  
1,4
5,3
9,3
11,7
9,2
10,3
10,2
8,2
URSS/CEI
2,2
3,5
4,6
3,7
5,0
1,5
2,6
4,0
África
7,3
6,5
5,7
4,8
4,5
2,5
2,4
3,0
Médio Oriente
2,0
2,7
3,2
4,1
6,7
3,5
4,1
7,0
Ásia
14,0
13,4
12,5
14,9
19,1
26,0
26,1
32,0
China
0,9
1,2
1,3
1,0
1,2
2,5
5,9
12,7
Japão
0,4
1,5
3,5
6,4
8,0
9,8
6,4
3,7
                                                                                                   Fonte: OMC

É interessante notar-se no quadro, o evidente declínio do peso dos EUA nas exportações mundiais, no período considerado, perdendo em 2003 o primeiro posto, para a Alemanha e, mais recentemente, em 2014, para a China que, ultrapassou também as posições da Alemanha e do Japão. 

No dealbar do século XX, a antiga colonia americana da Grã-Bretanha (os EUA) veio a suplantar a velha metrópole; o Brasil, veio a assumir, um século atrás, uma relevância global que Portugal, enquanto protetorado inglês, não possuía; mais recentemente, os capitais ocidentais investidos nos seus antigos domínios coloniais foram suplantados pelas dinâmicas próprias de algumas das nações antes subalternizadas (China, Taiwan, Coreia do Sul, Singapura) embora, na sua maioria, as restantes nações se mantenham como fornecedores de mão-de-obra barata e servil (Vietnam, Marrocos, Bangla Desh…) ou de recursos naturais (a maioria dos países africanos) com destino ao Ocidente mas, cada vez mais para a China e outros países seus vizinhos[1]. O mapa que se insere abaixo é um indicador irrecusável das mudanças em curso na geopolítica global.

                                                                         Fonte: http://www.visualcapitalist.com/

A globalização, promovida nos últimos séculos a partir da Europa, veio a ser acompanhada e depois dominada pelos EUA e agora, está num ponto de viragem, protagonizada pelo dinamismo chinês. A globalização na sua forma actual contempla uma escala de atuação que exige grandes concentrações de capital, grandes empresas, enormes recursos financeiros e tecnológicos, uma escala de mercados alargada e, simultaneamente heterogénea, ultrapassado que está o fordismo. O mundo tornou-se o campo de atuação de redes complementares ou conflituantes, de negócios, de capitais, de informação, de afetos, de ativismos, que as fronteiras não conseguem conter.

O mundo de hoje corresponde à passagem do capitalismo dos conflitos inter-imperialistas e do neocolonialismo, para o capitalismo globalizado, concentrado, imperial, protagonizado pelo sistema financeiro e pelas multinacionais. Neste contexto, o poder dos pequenos e médios estados, ainda que se intitulem de soberanos, para se oporem isoladamente a esse capitalismo concentrado e com recursos numa escala nunca vista, é uma oposição quixotesca; e, para mais, dificultada dentro de cada um deles, pela captura que o sistema financeiro e as multinacionais, bem como as suas instituições (FMI, OMC, BCE, Comissão Europeia…) procedem relativamente às amansadas classes políticas nacionais.

Todas estas mudanças têm uma contrapartida enorme em problemas, mesmo quando se manifestam apenas local ou regionalmente.

·      As distâncias médias na circulação de mercadorias – muitas destinadas a satisfazer necessidades artificialmente criadas - aumentaram substancialmente, exigindo gigantescas e caras infraestruturas logísticas; as quais, juntamente com o consumo energético em geral e aquele relacionado com os veículos de circulação local, mostram efeitos devastadores sobre o clima que, por sua vez, causam imprevisíveis desastres ditos naturais mas, onde as responsabilidades humanas são evidentes; 

·      as desigualdades no acesso a condições dignas de vida mantêm-se com níveis inaceitáveis e alastram a muitas regiões dos países tomados como ricos em termos médios, para além daqueles que sempre estiveram longe de o ser, nas periferias;

·      a decadência do poder das potências ocidentais continua a acontecer, mesmo depois do desaparecimento de um Outro, amaldiçoado, em 1991; agora com outros protagonistas de desafios, muito para além das ameaças nucleares. Uma maior equivalência de forças militares tanto poderá conduzir a uma contenção calculada, como a uma deriva perigosa de conflitos, se se vier a efetivar a concretização dos intuitos revelados por Trump;

·      as governações ocidentais, ocupadas por gangs de bufarinheiros, corruptos ou imbecis, perdem, em cada eleição votantes, descrentes de sistemas políticos que sentem como distanciados e inoperantes; e a exportação desses modelos para as periferias também não apresenta resultados frutuosos em termos de democracia;  

·      as desigualdades, sem fim à vista, com a negação de perspetivas claras de melhorias, desenvolvem taras identitárias e excludentes, desenvolvidas por seitas religiosas, grupos nacionalistas ou mesclas dessas duas demências, sempre ágeis em promover tiranetes ou iluminados gurus;

·      a informação é objeto de superficialidade, mistura-se com propaganda e casa-se com puras mentiras, influenciando milhões de pessoas submetidas a fluxos ininterruptos de lixo, sem tempo ou vocação para proceder a análises próprias e documentadas, aceitando teorias da conspiração, teses religiosas salvíticas ou escatologias políticas; 

·      a universidade, tomada pelo espírito neoliberal lança no “mercado” tecnocratas iletrados, prontos a servir o capitalismo e eleva corpos docentes de pedantes bem encadernados, desfasados da realidade para dignificar funções; um novo clero, uma nova patrística;

·      a gula do sistema financeiro, estribada na subserviência das classes políticas, aperta as finanças públicas e degrada a vida das populações através da dívida pública, das subsequentes austeridades e acrescidas cargas fiscais; 

Essas dinâmicas cruzam-se e interagem, funcionam numa escala muito superior ao observado no tempo da concorrência inter-imperialista, quando os estados-nação, com fronteiras guardadas e barreiras alfandegárias protegiam os capitalistas locais da concorrência externa, impedindo a população – entendida como sua propriedade, como sua coutada de força de trabalho, qual resquício dos tempos feudais e, com o recurso a meios repressivos - de procurar outras paragens, no exercício das imanentes pulsões de vida existentes no seio de todos os povos. 

A nova escala dos conflitos, integra os povos uns com os outros, não se contém nas fronteiras e torna impossíveis soluções dentro dos estritos quadros nacionais; sobretudo quando se trata de pequenas ou mesmo médias potências. A situação que se tem vivido este século no Médio Oriente mostra a fragilidade dos estados; aliás, com uma curta e discutível profundidade histórica. Dificilmente se observam as clássicas guerras entre dois países ou coligações de países, com declarações formais de guerra, de acordo com o cavalheirismo típico do século XIX.
2.2 - A instituição de um estado de excepção generalizado
Os conflitos generalizam-se e criam um tempo de “guerra civil global” tendo como protagonistas, exércitos, locais ou estrangeiros e povos, grupos de civis armados ou milícias em luta entre si, num quadro sem constitucionalidades definidas; estas, continuando a ser sobretudo nacionais, tornam-se inoperacionais e constituem mais um elemento para o relativo apagamento dos estados-nação como partes em conflitos. A intervenção direta das grandes potências, mostra-se igualmente ineficaz, mesmo com a enorme assimetria face aos seus adversários (Afeganistão, Iraque, Yémen), admitindo que se não repetem as guerras de extermínio (dos nativos norte-americanos ou dos hereros) para resolver situações “delicadas”; assim como ao recurso massivo a técnicas de internamento em campos de concentração, de tortura ou execução sumária. Finalmente, a ONU, em muitas situações, mostra-se sem apoios políticos ou financeiros para resolver ou evitar esses conflitos, que se eternizam, esquecidos, na sombra, sem que a adaptação dos povos a essa situação deixe de acontecer, com imensos sacrifícios e sofrimentos. 
Mesmo na ausência de situações de guerra, banalizou-se a aplicação informal de estados de excepção, sobretudo no seio de cada país. O arrastamento de baixos “crescimentos”, de grandes pressões orçamentais para cumprimento das consignas financeiras ou a aplicação de medidas de austeridade, tornam os povos prisioneiros desses estados de excepção, não expressos dentro dos trâmites definidos nas constituições nacionais mas provenientes de estruturas “técnicas” como o FMI ou a OMC, a Comissão Europeia e quejandos, inscritas na própria ideologia neoliberal. A sua continuada ação contra os povos deslegitima as classes políticas que aplicam os estados de excepção, obriga à destruição da própria ordem neoliberal, justifica a subversão. 

Os atentados que se vão observando na Europa, à semelhança do que aconteceu nos EUA depois de 11 de setembro de 2001, vão justificando estados de excepção sucessivos, com enormes incómodos para a população, geram desconfiança e medo, promovem uma insegurança exacerbada, muito para além das reais ameaças, largamente empoladas. Esse clima enquista, crispa as populações nativas e torna suspeito qualquer emigrante, estudante, viajante com certas caraterísticas físicas ou culturais; nesse clima, logo surgem os defensores do encerramento autárcico, os nacionalistas, os xenófobos, os propagandistas das medidas securitárias, da invasão da privacidade, das buscas e atropelos, do aumento das prerrogativas das polícias, das detenções e prisões arbitrárias, dos guantanamos, da lógica do dispara primeiro e averigua depois, componentes típicas do fascismo. Essa deriva entronizou Hitler, décadas atrás.

Neste contexto não se coloca em causa a legitimidade das intervenções militares e a desestabilização política no Médio Oriente por parte dos ocidentais; nem se questiona o interesse das multinacionais nos conflitos, os interesses das corporações militares e o seu transbordar para as rivalidades geopolíticas ou os impactos nas subjetividades dos povos que olham os seus vizinhos, como inimigos ou concorrentes num campeonato em que nenhum leva a taça.

A Constituição portuguesa reconhece - no artº 19º - o estado de sítio e o de emergência, para situações de invasão estrangeira, perturbação da ordem constitucional ou de calamidade pública; podendo, nesse contexto, ser suspenso o exercício dos direitos, liberdades e garantias. Inversamente, a generalizada retirada ou redução de rendimentos e direitos à sombra da intervenção da troika (2011/14) ou do seu factual prolongamento sine die aconteceu, mesmo que não abrangida pelo referido artº 19º, nem por qualquer outro normativo constitucional. Essa perda de rendimentos e direitos instituiu um estado de excepção que, para mais se apresenta como banalizado e por tempo indeterminado.

A dívida pública é uma renda a favor do capital financeiro na sua globalidade e constitui um elemento que condiciona toda a vida da população, direta ou indiretamente, que acentua desigualdades profundas entre os vários estratos sociais e que impulsiona medidas lesivas dos direitos com um cariz, visivelmente permanente. Trata-se de mais um elemento que eterniza uma situação de excepção, criada pela classe política e, portanto, sem qualquer real controlo democrático. A dívida vai aumentando ano após ano, com sérios riscos de agravamento, com o rotineiro aval parlamentar, atingindo níveis de total ilegitimidade e insustentabilidade de onde resulta o actual e implícito estado de excepção. O nível de degradação e fragilidade política e económica é tal que só se resolve com modificações fundas no sistema económico e no modelo de representação.

O recurso a dinheiros públicos para salvaguardar a viabilidade de empresas privadas (bancos e participantes de parcerias público-privadas) começou em 2008 com o BPN e vem-se prolongando, como sequela da irresponsável interação entre os bancos instalados em Portugal e os grupos económicos portugueses, todos tomados como “too big to fail”. Esse empenho tem tido impactos na carga fiscal, inchada pela criatividade dos governos, menos atentos, por exemplo, às dificuldades alimentares que tocam 20% da população, aos custos da emigração de centenas de milhares de pessoas e à precarização da vida de trabalhadores e pensionistas. 

Se a intervenção no BPN em 2008 aconteceu para “para evitar o risco sistémico”, passados todos estes anos, o que se verifica é que esse risco evoluiu para uma situação em que a própria existência do sistema constitui um risco efetivo que assegura uma situação de desastre periférico para dez milhões de pessoas. Tudo isso acontece no âmbito de um discurso onde consta, implicitamente um estado de excepção cujo fim se aponta, todos os anos, sempre para o ano seguinte. A continuidade destes elementos corresponde a uma suspensão continuada do exercício de direitos, contidos na própria Constituição. 

Os estados de excepção, nem sempre declarados mas factuais, do ponto de vista jurídico são antagónicos com a democracia, com os chamados “estados de direito” e a sua existência legitima toda a resistência e a revolta por parte dos povos contra as suas classes políticas e instituições globais. A sua banalização institui situações em que, acima da força da lei está a lei da força, sendo esta última, saída de uma imposição ditatorial tão do agrado de Carl Schmitt, o grão-jurista do nazismo; registe-se, que o regime nazi, instaurando um estado de excepção por doze anos, com a atribuição ao führer de enormes poderes de decisão, não precisou de se dar ao trabalho de revogar a constituição de Weimar.

(continua)
Este e outros textos em:

http://grazia-tanta.blogspot.com/                               
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents




[1] A lógica neoliberal, na sequência da dominância financeira facilita a estratégia global dos países da Ásia Oriental. Citamos os casos, da compra chinesa do porto do Pireu, na Grécia e da exploração de Sines por uma empresa estatal de Singapura.

9 comentários:

  1. Faz falta uma nova filosofia política!
    Durante anos o comunismo foi impingido, e ainda hoje o é, como solução para todos os problemas políticos das sociedades mas infelizmente em todos os países onde foi implantado redundou em ditaduras tirânicas e na abolição das garantias, direitos e liberdades.
    Tal como nos rios caudalosos onde a melhor maneira de nadar é fazê-lo a favor das correntes e lentamente braçar para as camadas menos tumultuosas até chegar à margem onde a velocidade das águas é mínima também na vida as mudanças nas políticas devem ser lentas e sempre a favor dos justos interesses presentes e futuros da generalidade dos povos.
    Nova filosofia política precisa-se!

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    1. Sem dúvida
      A deriva autoritária do dito "comunismo" resultou numa forma igualmente totalitária de privilegiar uns poucos em detrimento dos outros todos. Foi uma negação total do que foi ensaiado na Comuna de Paris e nos primeiros tempos da guerra civil espanhola. A essas derivas chama-se capitalismo de estado
      Nenhuma solução será possível se não partir da multidão, consensualizada e construida como síntese da opinião de todos, sem imposição, nem decisões tomadas por grupos fechados de tipos armados em predestinados condutores das massas (embora pensem mais nas outras ma$$as . O espírito do capitalismo, nos aspetos económicos, para ser extirpado precisa que pensemos com racionalidade; que o que faz falta é a satisfação das necessidades e não essa coisa abstrata, enganadora, imbecil, do crescimento do PIB, com endividamento escravizador e gerador de uma pulsão demente para a competição com os nossos iguais. Ciao

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    2. O vosso grande equívoco é pensar que os grandes movimentos de multidões 'consensualizadas'se operam por geração espontânea como se essa consciencialização consensual se operasse por milagre na mente de cada um.
      É como se cada um de repente fosse dono duma sabedoria sem primeiro ter que a estudar exaustivamente e no mínimo com a ajuda de um mestre.
      As multidões não se movimentam sem líderes esclarecidos, quer se queira quer não. Faz parte da natureza dos seres. Até as abelhas sabem disso. Tudo o resto é pura utopia.
      Quanto à "deriva autoritária do dito "comunismo"" que "resultou numa forma igualmente totalitária de privilegiar uns poucos em detrimento dos outros todos", suponho que tem por referência a "União Soviética". Compare-me a cultura geral e cívica dos povos da URSS com a dos portugueses, ou até mesmo dos franceses, espanhóis ingleses ou alemães. Não me refiro às elites desses países, porque essas são os privilegiados do capitalismo. Refiro-me às multidões, (para usar o seu termo) ficaria estupefacto com o que descobriria. Uma diferença abissal em saberes e sobretudo uma cultura cidadã que os povos do Ocidente estão muito longe. E olhe que não estou a afirmar isto porque leio muitos livros. Eu sou dos que dá primazia ao conhecimento experimental adquirido por via empírica.
      Seria exaustivo mencionar aqui os grandes avanços históricos da humanidade liderados por 'iluminados' que conduziram os seus povos à liberdade, mas sugiro que pense ao menos num que é uma lenda: Mohandas Gandi.
      Diga-me, por fim, alguns nomes de privilegiados, em termos de fortuna capitalista feita sob regime soviético.
      A busca da verdade é tarefa árdua, exaustiva, que não está ao alcance de todos, se não se tiver um mestre sábio que nos ensine que devemos ler o mais possível tudo de todos e depois usar a nossa mente para especular, sobre todas as vias possíveis, para dela ficarmos mais próximos.

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    3. A Comuna de Paris e mais recentemente no 15 M espanhol mostrou-se que é possível a discussão igualitária e a decisão democrática, sem guros, chefes e autoridade. A existência destes resultam num caudal de desgraças cujo exemplo exige criatividade. quanto aos países de Leste, sim tinham um bom nível de conhecimentos ... desde que não criticassem o poder. Ghandi era um símbolo, por detrás dele estavam os políticos, Nehru e Ali Jinna, por ex. Os privilegiados eram os gestores que dominaram o partido, os apparatchiks que aldrabavam os dados da produção e que alinharam logo com Ieltsin para se agarrarem aos despojos, virando dedicados neoliberais. Essa de que a hierarquia é necessária não tem bons resultados históricos; e bem se viu nos países de Leste

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  2. A idade média ocidental não foi um retrocesso no processo de globalização. Pelo contrário, vários povos da Europa Central e meridional passaram a se estabelecer e a governar as antigas terras romanas ocidentais, levando a romanidade e a cristandade para áreas que elas nunca alcançaram antes como a Escandinávia, o leste europeu, os territórios da atual Russia. Os povos escandinavos exploraram e comerciaram com toda a Europa, traçando rotas pelos rios entre o Báltico e o Mar Negro, além de explorarem o extremo norte do Atlântico, chegando à Islândia, à Groelandia e a América do Norte. A partir do meio da Idade Média, as cruzadas e o comércio marítimo integraram ainda mais as culturas ocidentais e orientais, fundando as bases para o que seriam as grandes navegações.

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  3. Completamente de acordo. Tudo isso foi uma globalização regional de ligação entre o Mediterrâneo e o Báltico incluindo a ligação terrestre pelas estepes aquem dos Urais. Por exemplo, a exploração do Atlântico Norte até sofreu um retrocesso, com o abandono da Groenlândia e a marginalização da Islândia onde a população de Reikyavik chegou a ser levada como escrava por uma incursão muçulmana. E nos finais do século XVI ainda se temia passar o Bojador, embora a viagem se pudesse fazer perto da costa
    Para os objetivos do texto centrámo-nos na globalização mundializada, aberta com as grandes navegações

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  4. A questão da terminologia: o termo «globalização» é importante, porque debaixo dele se escondem conceitos totalmente diferentes. A «globalização» é sempre um fenómeno capitalista, pode ser atribuído ao período da financiarização da economia (a partir dos anos 80 em diante). Outro fenómeno diferente é o que eu chamaria de «internacionalização das trocas e comércio». Embora tenha a ver com a ascenção de imperialismos comerciais, podemos também verificar que as burguesias em ascenção estavam a avançar sob a protecção dos Estados. Os Estados eram o elemento dinâmico essencial dessa expansão... de ~1500 até ~1914, pelo menos.
    A ideologia globalista é um exacerbar da imperialista. O globalismo é o capitalismo predador. Não se deve cair no erro de que há uma globalização «boa» e outra «má». Confunde as pessoas, e não traz nenhuma visão teórica...

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  5. Globalização é um processo histórico; capitalismo um modo de produção que surgiu e acelerou a globalização que vai além da economia e das trocas comerciais. Os Estados foram os tais elementos dinâmicos - enquanto capitalistas - mais tarde, através de ingleses e horlandeses; a exploração da América como o tráfico da Índia era controlado pela Coroa, não havia o conceito de estado mas um suserano feudal. A ligação entre Estado e as burguesias foi muito para além de 1914, esteve no New Deal, no rearmamento alemão e continua a ser, no plano Marshall depois e até numa época se falava de capitalismo monopolista de estado, tal era a ligação entre multinacionais e estados; hoje pode falar-se de fusão, naquilo que possa ser resolvido numa escala nacional - distribuição do fruto da punção fiscal, a regulação em geral, o suporte do sistema financeiro, no caso português, por exemplo. Confunde-se as pessoas quando se misturam processo histórico com modo de produção e nessa confusão o nacionalismo, os patriotismos, as exclusões, a xenofobia agradecem, pois surgem como única "alternativa"; é a "alternativa" colocada pela Le Pen e seus amigos e pelos "patriotas de esquerda" e suas metástases

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  6. Ao problematizar o conceito de globalização, pretendo reflectir sobre o capitalismo. Hoje em dia usa-se o termo para ENCOBRIR os avanços do «capitalismo monopolista de estado», ou seja, da fusão entre o Estado e as Corporações (a definição de regime fascista, segundo Mussolini). Assim como se confundem as pessoas com o termo «neo-liberalismo» pois o dito cujo não tem nada de liberal, é anti-liberal. A confusão terminológica só aproveita a quem quer relegar a discussão para o plano meramente ideológico, ou seja, não é boa para pessoas que -embora com pontos de vista diferentes - querem debater e aprofundar genuinamente algo.

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