O capitalismo, para se consolidar criou o estado-nação, dotou-o
de aparelhos estatais tentaculares e repressivos e de uma ideologia
discriminatória quando não racista, o nacionalismo. Como processo, o
capitalismo globalizou-se, sem perder o uso daqueles seus instrumentos de
acumulação e gestão social; mesmo com a preponderância do sistema financeiro,
como principal elemento de criação de capital (fictício), o capitalismo é o
responsável pelas agressões ao clima. E não há solução para o planeta e para a
Humanidade dentro do capitalismo e usando os seus instrumentos de sempre –
estado-nação, Estado, nacionalismo, classes políticas.
Índice Geral
1 – Como o capitalismo criou o estado-nação
2 - O nacionalismo como instrumento de controlo ideológico
3 - A cada nação um estado-nação?
4 - O capitalismo engrandece
o estado-nação no seu processo de consolidação
5 – A globalização
capitalista reconfigura o papel do estado-nação
5.1 – Alguns segmentos retirados ao domínio dos estados-nação
6 – O Estado, gestor local da estratificação do Homem
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1 – Como o
capitalismo criou o estado-nação
A sedentarização dos
seres humanos criou vários e encadeados grupos, com relações cada vez mais
complexas. As famílias alargaram-se e os cruzamentos com outras famílias
surgiram, no âmbito de encontros próprios de uma vida errante ou de conflitos
que conduziam à integração dos derrotados; essa integração correspondia ao
apreço implícito pelo capital humano, onde e quando a hostilidade do meio a
isso obrigava. Por outro lado, evitou-se o encerramento numa mesma
consanguinidade[1] e
foi favorecido o surgimento de uma grande diversidade dos seres humanos
espalhados pelo planeta.
Em Roma, as gens eram
conjuntos de famílias que se reviam num antepassado ilustre ou tomado como
importante na vida daquelas, como elemento unificador e gerador implícito de
identidade; o que é equiparável aos clãs existentes noutras sociedades do Norte
da Europa, da Arábia, da China, do Japão, etc. Essas linhagens conduziram mais
tarde aos conceitos de nobre e de nobreza, enquanto classe social nos quais a
filiação numa mesma linhagem era essencial. É sabido que a linhagem só tinha
verdadeiro significado quando havia posse sobre terras, engenhos e escravos,
alavancas necessárias para o exercício de poder político; para quem não tivesse
essa propriedade a questão da linhagem seria irrelevante, para além da
transmissão de pais ou mães para filho(s) dos haveres, mesmo incluindo nestes
pequenas porções de terreno agrícola ou oficinas de ferreiro, carpinteiro, etc.
Num plano mais alargado
surgiu a tribo, um conceito também vindo dos romanos e que também se baseava
remotamente na consanguinidade, selada pela veneração dos mesmos deuses, os lares. A incorporação de outros
elementos, por fusão ou incorporação de grupos humanos distintos ou indivíduos,
como era prática em nativos da América do Norte, raras vezes esteve afastada; a
variedade de povos, tribos e línguas registadas na Antiguidade, entre o
Mediterrâneo e a Mesopotâmia, não tem comparação com o mosaico existente
atualmente.
O conceito de tribo, na
Europa, deixou de se usar, à medida que se constituíam os territórios
senhoriais, com uma clivagem social bem marcada entre senhores e servos; os
servos passaram a enquadrar-se como súbditos do senhor (conde, duque, rei), num
quadro de sedentariedade, de ligação à terra. A chegada de outras tribos,
movimentando-se de Norte para Sul ou, provenientes das estepes asiáticas, como
os lombardos na Itália; ou, a chegada dos godos e dos berberes à Península
Ibérica, por exemplo, redundou numa total miscigenação. Na Baixa Idade Média, à
medida que as relações comerciais se densificaram e a fuga para as cidades se
vulgarizou, a referência de origem deixou de ser a da ligação a uma casa feudal
para ser substituída pela região de proveniência, o gentílico, como referência
de identificação, até que com a constituição dos estados-nação, este passou a
ser a principal referência de identificação de origem; como hoje, continua a ser.
Essa identificação de
origem, inicialmente era uma simples referência que traduzia hábitos, costumes
e uma cultura, perante gente de outras proveniências. Se Colombo era genovês (o
que não será pacífico), a sua ida para a Península Ibérica não arrastou
direitos ou deveres face a Génova; o mesmo se passando com Magalhães, quando se
dirigiu para Espanha depois de ver o seu projeto recusado pelo rei português.
Naquela época, as pessoas circulavam, viajavam, sem prévio conhecimento por
parte do seu “Estado” porque nas fronteiras não se exigiam passaportes, à saída
ou à entrada; embora poucas pessoas viajassem, quedando-se toda a vida num
pequeno círculo em volta da sua comunidade, agrícola e auto-suficiente.
Com a desintegração do
Império Romano as habituais redes de comércio deixaram de funcionar e a
população urbana decresceu, como se evidencia, por exemplo, no abandono de
Conimbriga, com os mais ricos a deslocarem-se para o campo, para as suas villae, desenvolvendo uma economia muito
localizada e tendencialmente autossustentada. Assim, em toda a Idade Média
predominou uma economia agrária, autónoma, com uma gama de conhecimentos que
passava de pais para filhos, todos iletrados (excepto o padre que dava a missa…
em latim), com um baixo volume de trocas com o exterior. As referências da
população fixavam-se no local, com esparsas idas a centros urbanos; uma
sociedade autocentrada, fechada, autossuficiente quanto a alimentos (desde que
não houvesse guerras ou más colheitas) e, autónoma quanto a conhecimentos para
tratar dos campos e dos animais domésticos. O conhecimento erudito ancorava-se
na Bíblia e cingia-se aos mosteiros e às universidades, cujos professores eram
clérigos.
A dialética entre os
camponeses e os senhores feudais tinha como centro, o tributo a pagar ao nobre
para este garantir a segurança do povo, sem o arruinar; em épocas de más
colheitas isso era uma questão vital. Assim, o pêndulo oscilava entre a
tolerância das comunidades rurais e a cupidez dos senhores; e, dos abusos
destes, resultaram grandes e sangrentos levantamentos de camponeses como a
revolta dos remensas, na Catalunha,
na segunda metade do século XV, de Walt Tyler e John Ball na Inglaterra dos
finais do século XIV ou, a Jacquerie
em França, poucas décadas antes, no seguimento de muitas outras, contra os
abusos dos senhores, desde o século X. Na Alemanha, os camponeses tentaram
aproveitar as movimentações decorrentes da secessão luterana para se libertarem
dos senhores mas, Lutero preferiu ajudar a nobreza alemã no seu propósito de abandono
da suserania papal. Nestas lutas, os revoltosos não se dirigiam contra um
longínquo rei, a quem pedissem intervenção mas, contra os senhores, seus
opressores diretos.
Nas sociedades agrárias
típicas da Idade Média europeia a ideia de estado-nação era desconhecida porque
as solidariedades manifestavam-se entre classes sociais – os camponeses, entre
si contra os senhores; e, entre estes últimos, o alargamento de domínios
concretizava-se pela guerra, onde não fosse possível obtê-los através de
cruzamentos familiares.
No topo da hierarquia
senhorial numa dada área, estava um rei que muitas vezes tinha igual ou menos
relevância do que algumas casas senhoriais e, por outro lado, as lealdades
entre a nobreza eram muito volúveis[2]
como sempre acontece, em todas as épocas, quando há riquezas em disputa.
O vértice da pirâmide do
poder no cenário da Europa cristã era o Papa, “vigário de Cristo” a quem todos
deviam obediência e herdeiro das responsabilidades atribuídas à Igreja, embora
durante a passagem do século XIV para o XV tivesse havido uma concorrência
inter-papal, com um em Roma, outro em Avinhão e durante alguns anos um
terceiro, em Pisa. Durante séculos houve sérias disputas da primazia entre o
poder clerical e os poderes senhoriais – todos com o domínio sobre vastos
territórios e servos; a partir dos cismas, luterano e calvinista, nos estados
protestantes, o rei passou a ser o chefe da igreja local, acrescentando com
isso mais um elemento para a integração do território respetivo, no processo de
criação de um estado-nação. Na sequência da Revolução Francesa e da formação
dos EUA, vincou-se o princípio da liberdade religiosa. Hoje, observam-se
situações mais rigorosas de religião estatal, por exemplo na Arábia Saudita,
com o monopólio do Islão wahabita ou, no Irão, xiita, onde no entanto, existem
templos de outros cultos e o ateísmo não é punido.
Ninguém se lembraria,
nos finais da Idade Média de falar de pátria, nação e menos ainda de Estado.
Vejamos, como exemplo, a génese de Portugal.
O primeiro rei português
era vassalo do seu primo, de Castela e Leão, imperador das Espanhas; e, para se
livrar dessa dependência manteve negociações com o Papa durante décadas, sobre
o número de onças de ouro a pagar, para passar apenas a dever obediência a
Roma. Quem vivia naquelas terras, do que veio a ser Portugal, eram vassalos do
rei, fossem cristãos de obediência ao Papa (o povo do Norte), muçulmanos,
moçárabes ou judeus (o povo do Sul), sem que houvesse qualquer sentimento de
nação, ou sequer uma cultura comum, mesmo que os nacionalistas atuais tenham
celebrado os 840 anos de Portugal, contados a partir da compra em ouro, do fim
da obediência do rei português ao primo de Castela e Leão. Só muito mais tarde,
no século XVI, com a expulsão ou conversão forçada de muçulmanos e judeus, os
reis ibéricos procuraram a homogeneidade cultural; o que no caso de Espanha, se
mantém ausente, como é notório, passados 500 anos.
As repúblicas italianas,
mormente Génova e Veneza, tinham uma estrutura de poder de cariz oligárquico
com uma diplomacia madura, adequada à sua lógica mercantil e financeira, com
possessões territoriais circunscritas ao Mediterrâneo, através da guerra ou do
saque; e com pouco em comum com os austeros reinos europeus, aos quais
emprestavam dinheiro. A sua decadência iniciou-se com a expansão otomana e o
desvio da coluna vertebral do comércio, do Mediterrâneo para o Atlântico, numa
primeira fase através de Espanha e Portugal. Para mais as repúblicas italianas
para concorrerem no espaço exterior ao Mediterrâneo teriam de usar novas
tecnologias de construção naval e de armamento, de bases logísticas de apoio ao
comércio e aumentar o volume de gastos militares para concorrer com os países
ibéricos já instalados nas rotas do Oriente e das Américas.
Nas repúblicas italianas,
a dinâmica económica focada em relações com o exterior, ancorava-se numa casta
de comerciantes e banqueiros, unidos pelo negócio, sem pretensões a um nível
mais elevado de integração, mormente nacional. A extensa Liga Hanseática que
unia dezenas de cidades do Báltico e do Mar do Norte constituía uma aliança
para o comércio e transporte naquela região, com a minimização de ataques
piratas. Nestes dois casos, o ordenamento económico e político nada tinha em
comum com os territórios feudais baseados na constituição de rendas extraídas a
camponeses por parte de poderes senhoriais ou na guerra; e nada tinha em comum
com os estados-nação que começavam a despontar.
A passagem da Idade
Média para a Idade Moderna estrutura-se sob vários eixos. Os prestamistas existentes
nos principais núcleos urbanos financiaram os monarcas para que estes
promovessem a exploração ou conquista dos seus territórios coloniais,
concessionados a pequenos nobres como Cortez, Pizarro, Almagro ou aos
donatários de capitanias portuguesas no Brasil[3].
A abundância de ouro e
prata nas colónias americanas de Espanha, verificadas as fragilidades dos
nativos, com o seu modo de vida destruído pelos colonizadores e acrescido pelas
doenças ofertadas pelos últimos, originou o tráfico de escravos negros até ao
século XIX, distribuídos pelo sul do que são hoje os EUA, as Caraíbas, as minas
e os engenhos de açúcar do Brasil, durante três séculos.
O ouro e a prata
entravam em Sevilha duas vezes por ano em grandes frotas protegidas por navios
de guerra; e, como senhores feudais, os reis ibéricos usavam o ouro para pagar
a guerra, a contratação de exércitos com muitos mercenários e o fausto, sem
qualquer propósito de fomento económico ou lógicas de redistribuição de
rendimentos, como hoje se diria. Agiam como verdadeiros senhores feudais, donos
de muitas terras e presos ideologicamente ao boullionismo, a avidez pela posse
de ouro e prata para a criação de moeda.
As cidades espanholas
continuavam a ser pardieiros insalubres onde acorriam fidalgos sem dinheiro
(que tinham um escudeiro a pedir esmola por eles) mas candidatos a rendas e
cargos junto do rei, da alta nobreza e do clero; também rufiões, à espera de
contrato para o uso da espada na defesa de um senhor que pagasse o serviço;
muitos comerciantes de várias origens, para a venda das suas mercadorias;
rurais sem trabalho, dado o abandono das terras pelos nobres; e muitos mendigos
e pequenos ladrões à espera de comida à porta dos conventos. O importante era
ter ouro ou prata nas mãos.
No século XVI, em Espanha
ou Portugal, continuava a não haver nem nação, nem Estado[4]
porque a ascensão do capitalismo era ainda incipiente. O poder estava em
monarcas, marcados pelo espírito de cruzada, imbuídos de uma mentalidade
feudal, no âmbito da qual o território era seu; e, onde não frutificava uma
burguesia comercial semelhante à observada nas repúblicas italianas ou nas
cidades hanseáticas. A sua incapacidade de perceber a nova dinâmica económica
foi aproveitada por comerciantes estrangeiros que chegavam a Sevilha para
vender aquilo que em Espanha não se produzia, sendo pagos em ouro. Em Portugal,
onde o cenário era semelhante, à ruina económica somou-se, em 1578, a
desastrada aventura militar do rei em Marrocos, que conduziu à união dinástica
dos dois países ibéricos, perante a indiferença do povo perante o facto de o
novo rei ser espanhol.
Os países ibéricos, não
se desenvolveram como potências capitalistas, mantiveram-se dirigidos por
monarcas com uma visão expansionista marcada por preocupações de evangelização
nos novos territórios das Américas e do Oriente. E, no caso de Espanha, com um
caro e desgastante envolvimento nas guerras políticas e religiosas que marcavam
o Sacro Império. Daí surgiu o seu declínio e a cedência do poder marítimo a
holandeses, franceses e ingleses.
A Holanda[5]
(Países Baixos do Norte) tinha nos séculos XVI e XVII caraterísticas muito
diferentes das monarquias ibéricas; tinha criado um regime republicano depois
de se libertar, após uma longa guerra, do domínio espanhol, que continuou a
exercer-se nos Países Baixos do Sul, a Bélgica. Produziu grandes trabalhos na
construção de diques e canais, modernizou a agricultura com a introdução da
rotação de culturas e aumentando a criação de gado; e, na manufatura, começou a
gerar-se a especialização dos trabalhadores no âmbito da indústria,
produzindo-se navios maiores, mais rápidos e mais rentáveis no âmbito do
comércio colonial.
O seu regime político,
republicano, correspondia ao domínio de uma burguesia empreendedora e rica, o
que favorecia a imigração, mormente de artistas, filósofos e cientistas; por
outro lado, a tolerância religiosa atraia judeus ricos ou cultos, expulsos de
Espanha, de Portugal[6]
e da Bélgica onde os espanhóis procuravam manter a unicidade religiosa.
O papel desempenhado no
desenvolvimento do comércio mundial gerou grandes movimentos de capitais e
originou a bolsa de Amesterdão, o Banco de Amesterdão, o surgimento das
sociedades por ações que vieram a originar as Companhias das Índias Orientais e
Ocidentais, às quais o Estado deu o monopólio dos produtos coloniais,
aumentando assim, as margens de lucro dos seus detentores. Quase em simultâneo
surgiram Companhias homólogas inglesas, o Banco de Inglaterra e a Carta de
Direitos que limitava os poderes reais e firmava os direitos de propriedade.
Amesterdão veio a
substituir Lisboa e Sevilha como centro do comércio global. A Holanda
aproveitou e cimentou a deslocação do comércio europeu do Mediterrâneo para o
Atlântico, tornando-se o polo das ligações marítimas e terrestres desenvolvidas
com toda a Europa do Norte ou do Sul, substituindo, por exemplo, as decadentes
repúblicas italianas no comércio com Marrocos.
O comércio colonial
complementava-se com as transações, no cenário europeu, de alimentos e
matérias-primas. O ecletismo religioso permitiu o monopólio do comércio com o
Japão, depois de expulsos dali os portugueses, sempre interessados no comércio
mas, ligado à evangelização, naturalmente tomada como ofensiva para os cultos
japoneses.
Esta rede de interesses
entre comerciantes, transportadores e banqueiros, funcionando numa base mundial
e a ausência de um poder central despótico e impositivo, bem como a liberdade
religiosa, foram elementos que alargaram muito o capitalismo comercial e
financeiro desenhado nas repúblicas italianas, num quadro essencialmente
mediterrânico. Essa rede, agregava também os vários estratos sociais
dependentes, interessados na prosperidade vigente e na sua continuidade. A
densidade das relações sociais e económicas, para mais num espaço territorial
pequeno, unificou os seus habitantes numa cultura comum e interessados num
Estado que desse cobertura à iniciativa privada. Como havia a concorrência de
outras regiões – Inglaterra, França, Espanha, Portugal e países escandinavos -
convinha erigir uma delimitação de fronteiras, a existência de um exército e,
sobretudo, uma poderosa marinha de guerra – a cargo de um aparelho de Estado,
financeiramente ancorado em impostos alfandegários, sisas, dízimas.
Esse projeto global em
desenvolvimento que envolveu os holandeses, para mais como povo homogéneo do
ponto de vista cultural e linguístico (uma nação) e avesso ao domínio de uma
monarquia estrangeira (Espanha), designa-se por capitalismo. Para garantir a
paz social internamente e defender-se da concorrência, esse projeto político
criou uma etiqueta nacional[7]
(Holanda) que unificasse a população em torno de certos desígnios económicos e
políticos no quadro global e, europeu em particular – esse projeto
materializou-se num estado-nação. Na mesma época e na medida em que se foi
processando o desenvolvimento económico europeu, num quadro global de competição
e guerra, era essencial para os capitalistas dos vários países, a criação de
estados-nação, com território e uma população afeta, mormente daquela sua
parcela mobilizada para o trabalho e para a guerra.
2 – O nacionalismo
como instrumento de controlo ideológico
Cada estado-nação
circunscrevia-se a um espaço vedado por fronteiras que o separavam de outros
estados-nação concorrentes, quanto à posse de territórios e respetivas
riquezas; e que hoje, compreende outras estruturas e distintos enquadramentos.
Entre essas riquezas destacavam-se grupos populacionais relevantes, aos quais
era exigido, em cada estado-nação, se crispassem e antagonizassem o necessário
e conveniente face a idênticos grupos, do outro lado da fronteira, como
potenciais ameaças. Como são “os meus capitalistas” que me dão trabalho e “o
meu aparelho de Estado” que me dá a segurança face a agressões externas “eu
aceito uma narrativa que nos una a todos” – o nacionalismo; e contra vizinhos e
intrusos que queiram empobrecer ou violar “a minha pátria”.
Os capitalistas locais,
com os quais se foi integrando uma nova aristocracia (já não apenas
especialistas no uso da espada como os seus antepassados feudais mas, também
letrados, precisavam de ter a seu lado a massa da população contra um inimigo
potencial ou efetivo. O nacionalismo é um sentimento arraigado de pertença que
transforma qualquer pobre diabo vivendo num estado-nação, em inimigo declarado
de outro pobre diabo, pela única razão de o último ter nascido do outro lado da
fronteira; cada qual na defesa dos interesses dos “seus” capitalistas contra os
capitalistas do outro. O que se poderá considerar como uma forma de captura
ideológica e material – uma nova servidão - do trabalho pelo capital.
Na realidade, em termos
objetivos, um trabalhador dos estaleiros, um produtor de couraças, armas, trigo
ou, um marinheiro, em pouco alterariam a sua posição social e económica se, no
desenlace de uma guerra, passassem a incluir-se num outro estado-nação, após
uma perda territorial do estado-nação derrotado. As imensas alterações nas
fronteiras políticas da Europa desde o século XVI, poucas vezes tiveram
correspondência em movimentos massivos de população. Citamos duas excepções; as
trocas entre gregos e turcos nas margens do Egeu há cem anos e a re-arrumação
da população germânica na sequência da reformulação das fronteiras na Europa de
Leste, após a II Guerra, num quadro de grande animosidade anti-germânica.
Inversamente, as nações africanas, mantiveram, no essencial, as fronteiras
coloniais, sem grandes migrações, porque o trabalho, forçado ou não, era nas
plantações ou numa agricultura de subsistência, num contexto de integração
étnica tradicional, em que a autoridade colonial era distanciada e o seu poder
económico muito concentrado nas commodities.
Para os povos, em geral,
o poder e as classes políticas são coisas estranhas e distantes que se aceitam,
melhor ou pior, por muitas e gradas razões, nomeadamente porque detêm o poder
coercivo do Estado nas suas mãos, pouco importando a cor da bandeira. Na UE, a
bandeira azul da União passou a ombrear com as bandeiras nacionais nos
edifícios públicos, sem qualquer problema; excepto, na Grã-Bretanha onde isso
não foi replicado desde muito antes de se falar em Brexit.
Não são as mudanças de
delimitações fronteiriças que mais conduzem a migrações. As guerras, as
perseguições étnicas e religiosas e, sobretudo a procura de vida melhor, são os
motores das migrações, mesmo num mundo construído pelo capitalismo, por
natureza obreiro de enormes destruições e convenientes (para si) desigualdades.
Os seres humanos procuram fixar-se onde possam viver em paz, sem falta de
comida, trabalho, alojamento, educação ou cuidados de saúde; e, para isso,
desligam-se dos seus locais de origem, encaixam-se em culturas distintas das
suas, acarretam discriminações várias e, acabam por se integrar, incorporando
até, o nacionalismo vigente e mesmo a repulsa, face a quem acabou de fazer o
mesmo percurso de emigrante.
Os vínculos nacionais
originários perdem-se, no espaço de duas ou três gerações, à medida que se
procede à sua inserção na nova sociedade, à adaptação a uma nova cultura. Por
exemplo, na II Guerra, nos EUA, muitos milhares de soldados, com ascendências
recentes na Alemanha, Itália ou Japão, combateram contra os países dessa sua
origem próxima, sem constrangimentos[8].
Esta base material de
criação do nacionalismo é profundamente oposta às narrativas infantis, falsas,
metafísicas e reacionárias construídas pelas classes políticas, que justificam
o estado-nação como simples organização de uma nação, pura, diferente, com o
seu passado invariavelmente glorioso, com os seus heróis míticos e feitos
espetaculares, com o apoio ocasional dos deuses... O nacionalismo constitui um
desvio cultural e psicológico com provas dadas como carburante de guerras,
perseguições, violações, saques, destruições, expulsões, massacres,
barbaridades, discriminações…
O estado-nação é uma
mescla de interesses comuns, com um ou vários povos presentes no seu
território; com uma mística, mais ou menos intensa, inventada para enformar o
nacionalismo, para exorcizar a diferenciação face ao Outro, em regra com base
em elementos fantasistas ou infantis, utilizados para marcar essa diferença.
Sendo o estado-nação uma construção política do capitalismo, o nacionalismo é
um instrumento ideológico do último cuja utilização é desempenhada pelas
instituições do estado-nação; e serve para estabelecer separação, diferença e
antagonismo entre os habitantes de um estado-nação, face aos de outros
estados-nação, no âmbito de uma concorrência global e generalizada. É por isso,
um elemento de consolidação do estado-nação, favorecedor do domínio dos seus
capitalistas e da administração, levada a cabo pela sua classe política, numa
base de diferenciação, discriminação, de racismo; embora não procure a
homogeneidade, uma vez que a existência de várias culturas pode ser útil para
manter alguma tensão e divisão no seio da pátria, gerar faixas populacionais
discriminadas, uma vez que a acumulação de capital, para acontecer, exige
divergências, hierarquias sociais, raciais ou religiosas e, luta, dinamismo. No
alto, estará um governo para gerir divergências e conflitos entre os vários
interesses capitalistas, que saberão compensar os seus mandatários.
O nacionalismo é uma
arma pronta a ser arremessada, instilado junto da plebe, por parte das camadas
possidentes contra outros estados-nação e seus povos. No que respeita a grupos
culturais específicos inseridos intramuros, distinguem-se os casos em que esses
grupos pretendem criar o seu próprio estado-nação, como é o caso dos curdos,
dos catalães, dos bascos… ou dos fascistas da Lega que clamaram por uma Padânia
independente, antes de se tornarem um partido nacional; outros, em que esses
grupos ou culturas se inserem no estado-nação onde são minoria mas sem
pretensões independentistas (os berberes ou os coptas, por exemplo); e casos,
em que essas culturas são expelidas e perseguidas como párias, indesejáveis
(palestinianos, ciganos, rohingyas…). Assim, uns podem viver com as suas
culturas, de modo pacífico; e outros são tomados como ameaças à unidade e ao
bom viver da pátria que, não recuará, se conveniente, em praticar genocídios,
perseguições ou, promover colunas de refugiados em fuga.
O nacionalismo não exige
a homogeneidade cultural e aceita a heterogeneidade desde que não constitua uma
ameaça, um prejuízo para a marcha dos negócios ou a unidade da pátria. A
construção do estado-nação gerou a predominância da língua falada na zona onde
estivesse centrado o poder e a vulgarização dessa língua nos documentos
administrativos, através da escrita; mais tarde, com as redes escolares e o
ensino obrigatório, geraram a generalização da adopção da(s) língua(s) usadas
pelo poder com o retrocesso ou extinção das línguas, entretanto, tornadas
regionais ou locais. A imprensa e mais tarde a rádio e a televisão vieram
acentuar esse predomínio da língua falada pelo poder político. E, finalmente, a
supremacia dos EUA, na política, nos negócios e na internet tornaram o inglês a grande língua de comunicação global.
Na Itália toda a gente
fala italiano (o toscano) mas há milhões de pessoas que usam as suas línguas
tradicionais, regionais; o mesmo sucede em França mas em menor escala (basco,
bretão, occitano, corso, catalão…). Mais escabroso foi a proibição da língua
catalã, do euzkera ou do galego, pelo regime fascista de Franco, durante
quarenta anos; e cujo efeito foi exatamente o oposto, quando restabelecida a
liberdade de expressão, com a natural crispação dos partidos herdeiros do
franquismo.
Pela sua
irracionalidade, o nacionalismo tende a impor-se sobre outras ideologias ou
culturas quando tem por base o medo perante uma ameaça tomada e mantida como
latente, embora muitas vezes apenas imaginária; serve também para unir um povo
na produção do isolamento ou da punição dos “traidores” que vivem intramuros.
O nacionalismo funde-se,
articula-se com a religião dominante na produção de atuações persecutórias e
excludentes, como na Espanha franquista. Idêntica repressão nacionalista
aconteceu no Portugal de Salazar, criador de uma “nação multicontinental” para
legitimar a posse de colónias. E, nas monarquias protestantes, o rei, como
chefe da igreja nacional, representa a unidade nacional.
O nacionalismo pode ser
um excelente meio de elevar a uma liderança incontestável, um ditador, um
demagogo, um tratante chefe de gang,
como dirigente da nação, a qual se sentirá em dívida perante tanta capacidade
política, tanto amor à pátria; e que será um dos merecedores de estátuas e de
que o seu nome figure em muitas avenidas por todos os cantos do país.
Em suma, o estado-nação
não é a resultante lógica e inapelável da existência de um povo, de uma
cultura, da partilha de uma língua comum. A ideia oitocentista de “a cada nação
o seu estado-nação” foi um conceito com fins específicos e oportunistas, num
contexto histórico, posteriormente utilizado de acordo com conveniências
políticas e que nunca foi desejado ou aplicado pela grande maioria dos povos e culturas
específicas.
O estado-nação depois de
se firmar com um poder político (Estado), integrador dos grupos e das
hierarquias do capital, instala símbolos unificadores para veneração do povo –
o hino e a bandeira[9],
nomeadamente; e, nos tempos modernos, também com a seleção nacional de futebol,
tomada como uma esquadra cuja missão é derrotar o inimigo.
Através da escola em
geral, mormente nos escalões onde participam os mais jovens, é incutido o
nacionalismo através do agigantar dos heróis, dos feitos do passado que, por
regra, são grandiosos face aos da concorrência próxima. Essa doutrinação serve
para criar um espírito coletivo e de desconfiança face aos outros povos da
vizinhança. É um indutor de desconfiança, de desqualificação e exclusão de um
abstrato Outro e que deve tornar cada pessoa num patriota, defensor objetivo
dos interesses da pátria ou melhor, dos “seus” capitalistas; pelo verbo e pela
espingarda.
Outro elemento histórico
na indução do nacionalismo é o serviço militar obrigatório (SMO) ao qual eram
chamados todos os jovens varões[10]
para receberem a instrução devida para a defesa da pátria, a qualquer
momento, sem limite para o sacrifício, que poderá representar um final glorioso
enrolado na bandeira pátria[11]…
mesmo que nessa pátria possam não ter mais do que as ruas livres para andar. A
presença no SMO significa também um adestramento da obediência a uma hierarquia
estrita, no âmbito da subordinação integral, quando não na humilhação dos
subordinados; uma obediência induzida nos jovens e que os levaria a aceitar a
hierarquia no trabalho, a obedecer à autoridade patronal, estatal, policial; e,
no caso das mulheres, também à subalternidade face aos homens – em casa, no
trabalho, no salário, nos direitos…
Hoje, por razões
técnicas, o SMO foi abandonado[12]
e as forças armadas[13]
passaram a ser uma guarda pretoriana, sem qualquer vínculo à população que,
para muitos é tomada como um bando de paisanos indisciplinados. Os militares de
hoje são voluntários, contratados a prazo, qualificados para o manuseio de
equipamentos sofisticados, gente que procura uma remuneração condigna (difícil
de encontrar como civis) e um certo respeito por parte da plebe. Nos escalões
mais baixos, são gente ignorante, facilmente doutrinável e de uso fácil da
violência[14].
Assim, voltou-se aos
tempos iniciais do capitalismo, ao século XVI, quando os exércitos europeus
eram constituídos por mercenários. Hoje, nos EUA, o recrutamento dos jovens,
sobretudo pobres, consegue-se com a contrapartida de uma entrada na
universidade, algo que no país só é acessível a famílias com posses ou, à custa
de níveis brutais de endividamento
pessoal. Desta forma, os EUA, criando uma tropa de mercenários,
evitam a contestação da juventude obrigada, no passado, a ir para a desastrada
e impopular guerra do Vietnam; um mercenário é pago para correr todos os riscos
e, se algo correr mal na sua saúde… é um risco profissional.
Continua em:
Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (2/3)
Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (3/3)
Este e outros textos em:
[1] O
que não preocupou durante séculos, as famílias reais europeias, produzindo
amiudadas vezes débeis físicos ou mentais
[2] Recorde-se, a propósito, que a maioria da nobreza
portuguesa, no âmbito da crise dinástica de 1383/85 apoiou a entrega do poder
ao rei de Castela; o que não aconteceu com os filhos não primogénitos ou
bastardos que viram no conflito uma oportunidade de se apossarem das terras dos
nobres apoiantes de Castela.
[3] Esses donatários, tinham direito hereditário sobre o
território e, em contrapartida, dar ao rei 20% do ouro ou pedras preciosas
encontradas ou, 10% se se tratasse de produtos da exploração agrícola.
[4] Somente no
final do século XV, com o rei João II se gerou, de facto um aparelho
administrativo nacional, um esboço de Estado… com a chegada à Índia num horizonte
muito próximo.
[5] Não tendo este trabalho o objetivo de
proceder a um resumo da História do surgimento do capitalismo e das rivalidades
entre os primeiros países capitalistas, cingimo-nos particularmente ao caso da
Holanda, não procedendo a um desenvolvimento do mesmo processo na Inglaterra ou
em França, a não ser quando tal seja particularmente útil para enquadrar este
ensaio sobre a ascensão e queda do estado-nação.
[6] Spinoza tinha ascendentes ibéricos muito
próximos. O mesmo sucedeu com David Ricardo, cujo pai era um judeu holandês,
com uma ascendência portuguesa mais remota.
[7] Uma marca, como
se diria hoje, na linguagem neoliberal
[8] Inversamente, soldados guineenses, da Guiné-Bissau, que
combateram no exército colonial português e que não conseguiram sair do país,
foram justiçados por essa sua opção; opção tomada, muitas vezes para evitar a
fome e não por amor ao colonizador
[9] Quando não se
trata de um nome inventado tendo por base, por exemplo, o nome da capital
(Argélia, Tunísia, Kuwait, Djibouti); algo tão artificial como República Centro
Africana (antes Ubangui-Chari); ou Paquistão que parece uma sopa de letras.
[10] Entretanto, as mulheres passaram também a integrar as
forças armadas, num espírito de geração de igualdade entre os dois sexos; como
se uma igualdade entre os dois géneros num contexto de estruturas fortemente
autoritárias e até amesquinhantes, possa constituir a elevação de alguém.
[12] O nacionalismo, muito presente em formações políticas de
direita como de “esquerda”, gera a ideia da importância de um SMO, porventura
porque pensam replicar a situação pré-revolucionária vivida na Rússia de 1917,
com os seus comités de “operários, soldados e marinheiros”. Se ser-se de
esquerda significa necessariamente ser antimilitarista, recusar hierarquias e
classificações de seres humanos em função da “nacionalidade”, é evidente que
não há uma Esquerda visível na Europa
[14] Muitos transitam
posteriormente para as polícias ou para empresas de segurança, para
intervenção, mormente onde a violência física é “aceitável”, como as
discotecas.
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