O
capitalismo é um sistema global e invasivo. E nenhuma contestação assente numa
temática sectorial, localizada ou num grupo de ungidos, é suficiente para o
extirpar
1 - O capitalismo é um
sistema global e invasivo
2 – Como combater os grandes
auxiliares da gestão capitalista
a)
– Áreas para articulação na luta anticapitalista
b)
- Elementos para enformar
uma rede anticapitalista
Desde há alguns anos
atrás o tema do decrescimento tem surgido com maior frequência como tema
determinante nos meios de militância ambiental. Sem contestar a sua relevância
entendemos que existe um pendor para considerar o decrescimento como a chave
para obviar à deriva neoliberal e autoritária, no âmbito da qual o capitalismo
coloca em causa não só a Humanidade como a própria sustentabilidade do planeta,
como suporte de vida.
Parece-nos que essa
leitura é muito parcial, quiçá ingénua e carecida de uma abordagem integradora
dos problemas que o capitalismo vem colocando, dia a dia com mais perigosidade.
E, sendo parcial, poderá vir a ser integrada na estratégia do capital, como
aconteceu com a abordagem ecológica em geral ou a do “crescimento sustentável”.
A defesa do
decrescimento deve juntar-se a outras vertentes centrais do capitalismo e do
seu modelo político, a democracia de mercado ou, isoladamente, não produzirá os
devidos frutos; isto é, à libertação da Humanidade face à tirania do capital.
Colocar a questão do decrescimento é necessário mas não é suficiente; e, como
abordagem parcelar arrisca a sua integração na lógica do capital, sempre
disposto a ceder em alguma coisa para que tudo se mantenha na mesma, para
prosseguir na busca da sua perpetuidade.
1 - O capitalismo é
um sistema global e invasivo
No seio dos meios
capitalistas de topo, dos que contam em termos globais – as transnacionais e o
sistema financeiro - a grande questão é a maximização da taxa de lucro, a qual
garantirá uma acrescida acumulação de capital. E aqueles utilizam como seus
principais elementos
políticos de gestão – os estados-nação, as respetivas classes políticas nacionais e as burocracias pluriestatais (como a que empesta a UE). Dito de um modo mais popular e sintético, é preciso acrescer indefinidamente o PIB.
políticos de gestão – os estados-nação, as respetivas classes políticas nacionais e as burocracias pluriestatais (como a que empesta a UE). Dito de um modo mais popular e sintético, é preciso acrescer indefinidamente o PIB.
Nem a Humanidade, as
suas necessidades ou, os recursos do planeta são infinitos. Daí logo se levanta
uma questão lógica; a de que o crescimento infinito do PIB é um disparate
economicista que se coaduna apenas com a necessidade, a gula, essa sim,
teoricamente infinita, de acumulação de capital.
Nesse sentido, as
classes políticas e, nomeadamente, os governos, nos seus jogos florais com as
oposições, com os media e seus plumitivos de serviço, todos se digladiam
constantemente sobre o crescimento do PIB, imputando responsabilidades à população,
exigindo sacrifícios no trabalho e na dimensão dos rendimentos, impondo
austeridades e digladiando-se em torno das habituais divergências de décimas
nas percentagens de crescimento do PIB, possível ou desejado. Em regra,
qualquer previsão é, por natureza imprecisa e rapidamente revista, como é bem
visível para quem tenha a paciência de acompanhar as revisões levadas a cabo
durante o ano pelo caridoso FMI.
Em termos materiais,
essas discussões têm pouco significado real; constituem show-off no seio da classe política, para mostrar serviço e
entreter a plebe, à semelhança das discussões em torno das valias desportivas
dos clubes de futebol; um show-off
levado a cabo para a intoxicação e captura da população, mormente dos
frequentadores de actos eleitorais, dos introdutores de papel nas chamadas
urnas… cujo nome evoca, de facto, que o eleitor nesse acto se fina, se prostra
perante o mandarim ou conjunto de mandarins a quem, estupidamente, entregou o
direito de decisão sobre si e a sua vida.
O PIB é um conceito
criado durante a Grande Depressão dos anos 30 por Kuznets, numa época em que o
paradigma liberal cedeu lugar à lógica keynesiana e, dado como impreciso e
pouco rigoroso pelo seu próprio criador. De facto, o PIB deixa de fora grandes
parcelas de rendimentos, sob o título criminalizante de economia paralela
(calculada, em Portugal, em cerca de ¼ do tal PIB), seja ela constituída pela
atividade de quantos procuram fugir, à punção fiscal – cuja dimensão é muito
superior à dos benefícios que promove; ou, pelos frutos de manobras e negócios,
mais ou menos escusos, como sejam os tráficos de drogas, seres humanos… ou
animados pelos governos, como produtos da corrupção. Finalmente, como parte dos
apuros recentes no seio da UE para aumentarem o volume do PIB, este passou a
incluir uma estimativa dos rendimentos da prostituição e a tomar como
investimento… a aquisição de equipamento militar!
O capitalismo nesta sua
fase neoliberal vem tornando o sistema financeiro como o principal contribuinte
para a acumulação; isso significa que grande parte da “produção” resulta da
especulação, da entrega pelos bancos centrais de dinheiro para ser lançado no
“mercado financeiro”, investido em ações, obrigações ou em produtos derivados,
que incorporam títulos de crédito e outros, num aglomerado imenso e em cadeia
em que ninguém tem a noção de quais serão os devedores originais e suas
respetivas solvabilidades. Trata-se de um jogo no escuro que, quando corre mal,
tem impactos imensos e imprevisíveis perante os quais se reconhece, hoje, não
haver capacidade de intervenção dos bancos centrais, dada a previsível crise
que eclodirá dentro de poucos anos, arrastando o setor imobiliário, os bancos
comuns, as empresas de produção de bens e serviços e tornando impagáveis as
cascatas de dívida aceite por pessoas e empresas, lançados no desemprego os
primeiros e, na falência as segundas.
À primeira vista, o
eclodir da próxima crise financeira, tratando-se de uma jogo de realidade
virtual, afeta o sacrossanto PIB, promove o seu decrescimento mas este, só por
si não livrará a Humanidade das sequelas reais, na vida de grande parte dos
humanos; sejam o desemprego, os despejos, a pobreza, a falência dos sistemas de
saúde e de assistência social, as migrações massivas, a guerra e que certamente
promoverão uma maior predação dos recursos do planeta. Esses problemas contarão
com a colaboração das classes políticas, defensoras do capitalismo, que saberão
reprimir adequadamente as populações afetadas pois, para as forças armadas, as
polícias e os tribunais – a área repressiva de cada estado-nação – haverá
sempre fundos.
O decrescimento oriundo
de uma grande crise do capitalismo e dos sistemas políticos não é um
decrescimento que os seres humanos aplaudirão. Ninguém pretende que o
decrescimento seja materializado por guerras, escombros, pobreza, fome e
repressão, excepto alguns sectores marginais do capital, com vocação necrófaga.
O grande objetivo da
Humanidade será o bem-estar de todos os seus elementos, a satisfação das
necessidades que só coletivamente possam ser satisfeitas – tranquilidade,
alimento, saúde, habitação, educação – tendo em conta os recursos do planeta,
mormente os não renováveis mas também a racionalidade na produção daqueles que
são susceptíveis de reprodução. Porém, hoje, muitos seres humanos vivem em
permanente contaminação pelo consumismo, ancorado na assunção de dívida, pela
captura por parte dos capitalistas dos seus rendimentos futuros; numa
escravatura. Para além da compulsão consumista e dos encargos com a dívida
pessoal, há que juntar a cada indivíduo a dívida que o “seu” Estado contrai
para impulsionar o sistema financeiro global e apoiar os capitalistas da
paróquia nacional.
Para o efeito, cada
Estado coloca-se acima e por cima dos indivíduos para garantir essa
escravatura, apontando para a solução individualizada de todos os problemas, a
compressão do tempo disponível, bem ao contrário das consignas de há cem anos,
quando os trabalhadores exigiam oito horas de trabalho, oito de descanso e oito
de convivência, cultura e gestão dos afetos. Hoje, os males do capitalismo
conduzem a programas de austeridade, a precariedade banaliza-se em nome da
flexibilidade, perante a ineficácia dos sindicatos ou dos partidos que se
intitulam de esquerda, bem inseridos na esfera do poder; as horas de trabalho
aumentam, incluindo aí os enormes tempos de transporte; tal como aumentam os
custos de educação e saúde que os governos gradualmente privatizam, se não de jure, de facto; para além da carga
fiscal que incide sobre o trabalho e o consumo, poupando benevolamente os
capitalistas.
Por outro lado, o
binómio consumismo-dívida captura não somente o rendimento presente e o futuro,
como gera um comportamento compulsivo de aquisição constante, de substituição
pelo mais moderno, pelo modelo na moda e que em breve, ficando subjetiva e
comercialmente obsoleto, será colocado como desperdício, no lixo, nos
recipientes de reciclagem ou num canto da despensa. Essa compulsão é uma
doença, um desequilíbrio que se manifesta numa constante insatisfação, só
satisfeita no próximo acto de consumo… que logo passa à situação de um dejá vu. E tem, naturalmente, sequelas
financeiras uma vez que parte do rendimento (ou uma nova dívida bancária) é
destinado à aquisição do novo objeto. A moda, introduzida pela asfixiante
publicidade, torna-se um acicate para o consumo, para a compulsão, para a
dependência, para a escravidão.
O capitalismo, na sua
busca por matérias-primas não recua perante os impactos ambientais, sobre a
terra, o ar e os meios aquáticos, a geração de conflitos armados, a deslocação
de populações e de uma constante drenagem de mercadorias para destinos
incluídos numa malha cada vez mais densa; tal como acontece no âmbito da
massificação do turismo e das viagens profissionais (202157 aviões voaram no dia 29/6/2018).
Perante esta incompleta
panóplia de danos e procedimentos, polarizar a ação apenas em torno do
decrescimento é muito insuficiente. Essa insuficiência é a mãe de uma muito
provável ineficácia e de desalento para muitos dos que se dediquem a essa
causa, tal como aconteceu com os movimentos ambientalistas e os partidos
ecologistas que pairam por aí. Por exemplo, os Verdes alemães, no tempo do seu
chefe Joshka Fisher, apoiaram a guerra da NATO contra a Sérvia, cedendo,
portanto aos interesses estratégicos da Alemanha. Em Portugal, um partido (?)
dito Os Verdes é conhecido por melancia, pois tem a casca verde, sendo vermelho
por dentro; e não se lhe reconhece qualquer relevância, no passado ou no futuro.
Há alguns anos, uma conhecida associação ambientalista recomendava à plebe a
poupança energética inerente… ao apagar das luzes da árvore de natal ao sair de
casa. E o PAN parece estar muito orgulhoso por se poder ter o cão a sacudir a
água da chuva dentro do restaurante…
2 – Como combater os grandes
auxiliares da gestão capitalista
Sendo o capitalismo um
sistema global, complexo, invasivo e com meios humanos, técnicos e financeiros
de enorme dimensão, há a considerar duas questões:
- Definição de algumas das áreas da luta anticapitalista que convém articular, federar, em atuações comuns e solidárias, aumentando assim a eficácia e a visibilidade dessa luta;
- Definição dos elementos que deverão enformar a rede anticapitalista a qual, incorporará, forçosamente a luta pelo decrescimento.
a)
- Áreas para articulação na luta anticapitalista
i)
Um empecilho chamado estado-nação[1]
O estado-nação é um
espaço objetivamente ultrapassado em tempo de capitalismo globalizado; o que é
ocultado pelas classes políticas que têm ali o seu quintal de atuação, mesmo
que em delegação dos grandes poderes globais. Nasceu como suporte da ascensão e
engrandecimento do capitalismo, como transformação de senhorios feudais em
entidades bem definidas, com fronteiras, um aparelho de estado centralizado
para gerir a população e garantir mansos trabalhadores para os capitalistas
locais e, para garantir soldados motivados através do patriotismo inculcado na
escola e mais baratos do que o recrutamento de mercenários, como consta nas
descrições de Aljubarrota ou Alcácer Quibir.
O capitalismo
globalizado, em torno das transnacionais, do capital financeiro e da economia
do crime, criou e serve-se de instrumentos globais de gestão dos seus
interesses – secundarizando o papel da grande maioria dos estados-nação – como
são o FMI/BM, a OCDE, a OMC, a ASEAN, a OMS, a NATO, o G7, o G20 … e a própria
UE.
Assim, a essa lógica
global, há que opor em alternativa, estratégias e planos concertados, de
caráter global ou regional, despidas de preconceitos ou hegemonismos de
conteúdo nacionalista; sem prejuízo do desenvolvimento de lutas de caráter mais
localizado - como tem sido a oposição à prospeção e exploração de
hidrocarbonetos no Algarve – as quais não deverão prescindir dos apoios e
solidariedades vindos de outras áreas geográficas ou sectoriais.
ii)
– O poder tentacular dos estados e o papel das classes políticas
Os aparelhos de estado,
com os seus governos, parlamentos, polícias, tribunais, leis e classes
políticas constituem os zeladores da boa ordem do capital no âmbito do
estado-nação, sabendo-se que este tem um grau de autonomia política
condicionado pela sua inserção geopolítica.
Havendo no seio de cada
estado-nação onde vigore a democracia de mercado várias estirpes de partidos,
uns serão verdadeiros mandatários do capital, outros, da ala esquerda do
sistema político, apresentam algumas reticências e alternativas que, obviamente
não colocam em causa a ordem capitalista; apenas constituem formulações táticas
para um maior quinhão de lugares no parlamento ou no financiamento público.
O combate ao capitalismo
exige uma oposição total e determinada contra as instituições económicas e
políticas do estado-nação.
Sempre considerámos
ingénuo e lastimável a deslocação de grupos de ativistas à AR para procurarem sensibilizar
os deputados sobre as suas causas e cujos resultados são forçosamente parcos.
Uma experiência que conhecemos de perto ocorreu numa audiência na AR perante
uma comissão qualquer. O seu presidente, um deputado (que se veio a revelar
corrupto) folheava papéis sem prestar qualquer atenção ao assunto com que o
procuravam sensibilizar; e, os outros deputados pertencentes à mesma comissão…
nem sequer se dignaram a estar presentes.
O Estado, como gestor do
capital, não é um defensor das causas alheias ou nefastas aos capitalistas. E,
os membros dos partidos, mormente os seus chefes e militantes de primeira
linha, são verdadeiros técnicos na manipulação e não são bem-vindos às
movimentações de contestação popular e alternativa; mesmo – como é mais comum –
quando são provenientes dos partidos de “esquerda”. As práticas desviantes e de
objetiva sabotagem, na paróquia lusitana são imensas e tiveram efeitos nefastos
que contribuíram para o actual estado de abulia que ali se vive, como aliás no
resto da Europa; e que chegaram ao ponto da denúncia e da colaboração com a
polícia[2].
Em suma, jamais deverão ter papéis de relevo no combate ao decrescimento, como
em todas as outras formas de combate ao mundo do capital; são dispensáveis os
cavalos de Tróia.
iii)
– A intensa pressão sobre os recursos do planeta
Os recursos do planeta
são limitados e, no caso dos minerais, nomeadamente os mais raros, hoje
utilizados em baterias e écrans, que são objeto de acerbas disputas, sobretudo
com a procura chinesa dirigida aos mesmos. No caso dos hidrocarbonetos, para
além da já tradicional libertação de gases como produto da sua combustão, a
fraturação hidráulica instalou-se com danos desastrosos sobre os níveis
freáticos e a estabilidade dos solos. A industrialização da agricultura exige a
desmatação de imensas áreas, com prejuízo para os seus habitantes, desalojados
e refugiados em áreas menos adequadas à sua reprodução enquanto comunidades
(Bornéu, Brasil, por exemplo). A seca avança no Sahel e outras partes de
África, contribuindo para as guerras no Mali ou na Nigéria e empurra milhões de
pessoas para os subúrbios insalubres das grandes cidades africanas. Os mares
mostram a sua infestação com lixos vulgares, descargas de poluentes com efeitos
devastadores sobre a flora e a fauna, contaminando ainda as populações
consumidoras de peixe; a que se acresce a produção aquícola em que os animais
são alimentados com rações e produzem imensos detritos orgânicos pejados de
antibióticos. Na Antártida e no Ártico a massa gelada vai derretendo com o
aumento da temperatura provocando o aumento do nível das águas marinhas com a
inerente ameaça das zonas ribeirinhas, para além das alterações nas correntes;
e na Sibéria assiste-se a fundas alterações no permafrost. As enormes conurbações geram capacetes de gases tóxicos
que impedem a circulação do ar, já dificultada pela densidade e a altitude dos
edifícios, entre os quais se concentram os gases da circulação automóvel,
bastas vezes entupida.
Finalmente, em Portugal, a desertificação de grande
parte do território, acompanhada do plantio de eucalipto e a não limpeza dos
matos, promove incêndios devastadores como em Pedrógão Grande ou Monchique,
perante a incapacidade ou inoperância dos governos. Para culminar, um indivíduo
tão ignorante e arrogante, como Trump, decide que não há problema de alterações
climáticas.
Poucas ou nenhumas
destas evidências têm uma resolução no seio de qualquer estado-nação e nem
sequer é fácil que as várias classes políticas se congracem para obviar a estes
problemas, cada vez mais complicados, à medida que o tempo decorre.
Somente a constituição
de redes de coletivos, afetados ou não diretamente por algum dos problemas
referidos, dentro da escala geográfica adequada, podem constituir ações
susceptíveis de desafiar os poderes e inverter os processos; quiçá obrigando os
governos a agir. Recordamos, por exemplo nas ações mediáticas de desobediência
e de desafio dos poderes, como aconteceu, em tempos, a propósito dos aeroportos
de Frankfurt ou das Landes; ou do corte de eucaliptos, anos atrás numa aldeia
trasmontana.
iv)
– Contra o consumismo e a dívida
O consumismo, como
dissemos atrás é um distúrbio do comportamento que se reproduz por indução da
publicidade e por mimetismo, para se estar na moda, de se pretender ser um
elemento promotor da modernidade.
Para o fomentar de forma
continuada, as empresas dominantes constroem de modo constante e criativo a
pulsão consumidora, capturando as mentes, levando-as a comprar compulsivamente
mais e mais bens, a utilizar mais e mais serviços, como se vê nos últimos anos
nas caras concentradas e absorvidas por jogos no telemóvel.
Consumir é um acto
facilitado ao máximo desde que se tenha dinheiro ou se desenvolvam passos para
o adquirir através do crédito; e o sistema financeiro não se faz rogado, uma
vez que, com as devidas garantias – hipotecas ou fianças – pode captar as
pessoas para uma vida inteira de pagamentos prestacionais, onde se incluem
juros, naturalmente. Nessa compulsão, muita gente passa à categoria de
sobre-endividado, dividida entre a ânsia face ao próximo acto de consumo e a
preocupação com o pagamento das prestações da dívida. E, as coisas tornam-se
particularmente graves, perante a facilidade com que surgem os despedimentos e
a precariedade dos parcos subsídios de desemprego, tornando as prestações da
divida impagáveis.
Está aberto o caminho
que o sistema financeiro mais gosta; a dependência perante tais volumes de
crédito que tornem o pagamento das prestações como uma renda vitalícia, a
transitar para os herdeiros. Para as empresas a situação não é muito distinta.
E, daí que o sistema financeiro, através do crédito, condicione ou controle a
vida das famílias e das empresas.
Quanto à dívida pública,
o processo é mais fácil do ponto de vista do sistema financeiro e o reembolso
garantido uma vez que os Estados não vão à falência… enquanto houver uma
população para espoliar. E, existindo uma classe política, ancorada ou
pressionada por instituições globais (UE, FMI, por exemplo) haverá uma
acrescida punção fiscal, a redução da disponibilidade de serviços,
privatizações e austeridade.
Há pois, um campo enorme
de educação cívica e de mobilização contra a dívida, seja particular seja,
sobretudo, a pública. De facto, sendo a dívida um instrumento de captura[3]
por parte do sistema financeiro; que a sua constituição é generalizada a quase
todos os países e famílias; que a sua existência é um instrumento essencial
para a reprodução do capital, com a preciosa ajuda dos bancos centrais, a
questão da dívida é um elemento estrutural, de caráter político e que compete a
uma cidadania informada e atuante colocá-la com um conteúdo político, como uma
via de perpetuação da acumulação capitalista. E, portanto é não globalmente
reestruturável ou reduzível como é propagado pelos governos e classes políticas
em geral[4],
que pretendem apresentar a dívida como uma transação comercial e jamais como um
instrumento de dominação e reprodução do capital que só politicamente pode e
deve ser encarado.
A dívida global, em 2017 era $ 215 000 000 000 000,
correspondentes a 325% do PIB mundial, algo que jamais poderá ser pago mas cuja
remuneração exige uma enorme pressão sobre os povos e a produção de perigosos
expedientes para a continuidade da acumulação de capital, como os produtos
derivados cujo montante, no ano passado era de $ 544 biliões… 822% do mesmo
PIB!
Falar das espirais de
dívida é apontar ao sistema financeiro e às classes políticas, aos famosos
reguladores. Pretende-se anular a especulação financeira e tornar o
investimento dirigido apenas a algo dedicado ao bem-estar dos humanos e do
planeta no seu todo; e dependente das decisões e das poupanças das várias
comunidades humanas, de maior ou menor abrangência territorial.
v)
– O militarismo e a guerra
Como se sabe, a guerra é
uma forma de fazer política, com outros meios que não o debate político. A
guerra sempre foi algo de destruidor, de vidas e bens e, no seguimento das
guerras que acompanharam a colonização por parte dos europeus, surgiram as
guerras imperiais entre capitalismos nacionais rivais. Hoje, com a globalização
do capital, as guerras tendem a ser localizadas ou praticadas no seio da
assimetria – forças armadas poderosas e bem munidas de meios e tecnologias
contra grupos armados (por definição terroristas na gíria mediática ou das
classes políticas); e mais escassamente sob a forma de invasões declaradas,
como a dos EUA e seus subalternos ocidentais, no Iraque.
A profusão de armas, a
sua incorporação de tecnologia, torna-as mais caras, mais destrutivas e fonte
de grandes negócios, enormes lucros que, na lógica capitalista são parcialmente
gastos na pesquisa de novas formas de destruição ou áreas de atuação, como a
criação do “Corpo do Espaço”[5]
pelos EUA, com o qual se pretende acrescentar uma nova área como arena de
guerra. A presença recente de Trump na
Arábia Saudita, munido de catálogos de armas para venda, simboliza a habitual
relação entre as classes políticas e os negócios de armas. Cameron, pelo
contrário, foi surpreendido pela guerra na Líbia, quando se aprestava a vender
armas a Kadhafi… provavelmente afetando o crescimento do PIB inglês nesse ano…
Na Europa, a criação da
UE foi um instrumento de diluição das rivalidades entre as várias potências,
após um vasto historial de guerras; que contudo, se verificaram na
ex-Jugoslávia, num processo de partilha de influências e através da NATO. Por
outro lado, na maioria dos casos, os países europeus são pequenos, isoladamente
sem defesa possível numa guerra moderna; e é muito duvidoso que os europeus se
entusiasmem com guerras.
O maior problema é a
NATO, a grande máquina de guerra, totalmente dominada pelos estrategas do
Pentágono e que utiliza uma muito improvável ameaça russa para demonstrar
objetivos, que na realidade se cingem à permanência de tropa dos EUA, em vários
países europeus, ao aproveitar da proximidade europeia face ao Médio Oriente e
à África (o Africom tem sede… em Estugarda); em suma, à presença militar na
margem oriental do Atlântico, sabendo-se que na margem ocidental, os EUA não
permitem tropas que não com a sua bandeira. A menoridade política na UE
contribui para a estratégia global dos decadentes EUA, que dividem a Europa e
empurram a Rússia para a constituição de um grande bloco euro-asiático, onde a
China prepondera e que terá como adversário principal os países da NATO.
Na maioria dos países,
terminadas as guerras de conquista colonial no caso dos europeus, as forças
armadas têm pouca utilidade e escassa utilização. Primeiro, porque a sua
manutenção em termos operacionais é demasiado cara e daí que em geral as forças
armadas sejam apenas um repositório de gente desocupada ou inutilmente ocupada,
que se mantém por tradição e como resquício do tempo de afirmação dos
estados-nação, para orgulho dos patriotas.
O surgimento da ideia do
regresso ao serviço militar obrigatório em Portugal constitui um gasto inútil,
sem efeitos reais sobre a operacionalidade das forças armadas que, hoje se
reduz ao envio de meios para o Báltico… para dissuadir uma invasão russa, claro
está, inseridos na lógica imperial da NATO. Por outro lado, não nos parece que
uma presença nas fileiras seja um contributo para algo que não o acirrar o
nacionalismo e o patriotismo, os “valores” da autoridade e da hierarquia,
costumeiras plataformas que apontam para o racismo e o fascismo.
A extinção da NATO e a
emancipação estratégica da Europa, passa pela renúncia expressa à guerra,
ancorada na transformação das FA’s em forças integradas na proteção civil, na
vigilância das águas territoriais e dos seus recursos. A indústria de armamento
pode dar bons lucros mas não traz saúde nem segurança ao planeta ou à vida.
vi)
– Factores organizativos e psicológicos – autoridade,
hierarquia, democracia de mercado
O combate ao
capitalismo, nas suas diversas vertentes e componentes, deverá contemplar,
entre outros objetivos, os já referidos estados-nação, os aparelhos de estado,
as classes políticas, a destruição ambiental, o consumismo e a dívida, o
militarismo e a demente dependência face crescimento.
O grande objetivo desse
combate deverá ser a prossecução da satisfação das necessidades da população
humana – alimentação, saúde, paz, educação, habitação – enquanto agregado de
comunidades e de forma cooperativa e solidária, tendo em conta o essencial
respeito por um ambiente saudável, uma gestão racional dos recursos necessários
à vida humana, animal e vegetal; isto é, procurando a minimização da pegada
humana.
Esse combate representa
ou deve representar o combate da Humanidade contra o capitalismo, os seus promotores
e beneficiários; mas esse combate não pode reproduzir táticas ultrapassadas e
pouco eficazes, como contestações localizadas e individualizadas, restritas ao
quadro de um estado-nação; não pode reproduzir oportunismos ou infantilidades
como o entendimento de que as mudanças podem acontecer no quadro de um
capitalismo “progressista” ou benevolente; nem considerar que as instituições
políticas, elitistas e excludentes das multidões de prejudicados e feridos pela
existência do capitalismo sejam fontes de soluções; nem que essa mudança - que
mais será uma revolução - possa ocorrer com a reprodução do quadro ideológico
do relacionamento social, baseado na autoridade, na hierarquia e na tomada de
decisão concentrada em elites ou grupos de ungidos, como no quadro das atuais
democracias musculadas ou de mercado.
A autoridade, hoje,
manifesta-se nas nossas vidas em quase todas as situações - através do Estado e da sua burocracia,
protagonizada pelos governos; nas empresas, através dos seus donos, acionistas
e chefes menores; na família, onde o patriarcado continua a impor-se; na escola
e, nas formas mais agudas, nos quartéis e nas prisões.
As hierarquias segmentam
os humanos e materializam relações de poder de uns sobre os outros; e
ancoram-se na autoridade que, por hábito, se apresenta como um princípio
fundador nas relações humanas, firmemente apresentado (e aceite) como algo de
biológico, contido nos genes.
Designamos os actuais
regimes políticos presentes na maior parte dos estados-nação por democracias de
mercado, por mais que os meios políticos digam que a democracia (subentenda-se
a sua degenerescência, de mercado) é o pior dos regimes políticos, se se
excluírem todos os outros, numa já gasta formulação de Churchill.
- Na realidade, a designação de democracia de mercado emana do facto de se estabelecer uma concorrência entre gangs partidários para a posse da autoridade estatal/autárquica e last but not least, para o controlo do pote. Em tudo idêntica à concorrência entre marcas de cerveja ou canais de televisão, na captação de audiência. Tal como nestes casos, os consumidores não decidem sobre a qualidade dos produtos, também nas eleições, a escolha é feita sobre os partidos em concorrência, não havendo cabimento à formulação das propostas apresentadas, por parte dos consumidores/eleitores;
- Estes regimes tornam os membros da classe política como verdadeiros ungidos pelos deuses, apresentados e que se apresentam eles próprios, como um escol de gente de gabarito superior à população em geral, como sacrificados lutadores pelo bem-estar do povo;
- Ao povo compete escolher como seus representantes gente integrada naquele escol, com a inelegibilidade de facto de quantos não pertencem a partidos políticos, sobretudo os de maior dimensão, uma vez que os de menor gabarito ficam relegados ao papel de animadores das feiras eleitorais;
- As decisões da classe política não são passíveis de anulação ou alteração por parte do eleitorado; nem este pode diretamente colocar questões à votação mas, quanto muito, sensibilizar os membros da classe política para essas questões, com o seu acolhimento dependente da exclusiva e soberana vontade dos mandarins;
- Nas designadas eleições, as propostas são elaboradas pela classe política, com a divina e exclusiva missão de interpretar os desígnios populares… desde que não coloquem em causa a manutenção do regime; este, em regra, petrificado em constituições que fixam autoridades, hierarquias, oligarquias, limitações e ameaças;
- A administração pública, teórica executora das medidas conducentes à satisfação das necessidades coletivas, de caráter nacional ou autárquico, está domesticada, privatizada pelo governo de turno, que a infestará de elementos da casta ou dóceis imbecis, estabelecendo uma hierarquia, em regra ineficaz, ineficiente e atravessada por compadrios e actos corruptos de utilização de dinheiros públicos para benefícios privados;
b)
Elementos para enformar uma rede anticapitalista
Qualquer alternativa ao
capitalismo, passa pela recusa da democracia de mercado e, no contexto da
organização da contestação com a paciente e pedagógica construção de coletivos,
na base, com uma verdadeira democracia, sem lideranças, hierarquias, com as
tomadas de decisão no seio de cada coletivo.
Assim, considera-se
essencial:
- A constituição de grupos, locais, regionais, sectoriais ou temáticos, de contestação do sistema capitalista e das suas instituições;
- A constituição de redes rizomáticas, articuladas, de grupos solidários, para além dos planos nacionais e, forçosamente, numa perspetiva global de actuação;
- A total recusa de posições nacionalistas, racistas, sexistas, patriarcais ou discriminatórias por qualquer outro motivo;
- A recusa da colaboração ou da conciliação com as instituições do capitalismo, seus governos e classes políticas;
- A prática de ações mediáticas ou mediatizadas de esclarecimento, de propaganda e desobediência civil;
- Os grupos são abertos à participação de todos mas, deverão excluir dirigentes e membros proeminentes da classe política, como forma de obviar às suas práticas de manipulação, diversão ou sabotagem;
- Internamente esses grupos deverão funcionar na base da decisão coletiva, tanto quanto possível com caráter presencial, consensualizada, sem fórmulas autoritárias e hierárquicas;
- Quando necessária uma representação do grupo, a escolha compete ao grupo, é temporária, rotativa e terminada a qualquer momento por decisão do próprio grupo.
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