sexta-feira, 3 de abril de 2020

Como o sistema financeiro se vem apossando da Humanidade



Sumário

  
1 – Estado e sistema financeiro, vigiam o povo e debicam o que podem
2 - O parasitismo dos mercados financeiros
3 - A crise do coronavírus e suas sequelas
4 - Como cresce uma bolha financeira?
5 - Quando o sistema financeiro encomenda os governos de se apropriarem das nossas contas bancárias?
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1 - Estado e sistema financeiro, vigiam o povo e debicam o que podem
A máquina da especulação, resultante da interação colaborativa entre o sistema financeiro e os Estados, com os seus bancos centrais e suas classes políticas, tem mantido relativamente intocável os haveres e as poupanças das pessoas comuns. Nesse campo têm-se contentado em aplicar taxas e impostos sobre o imobiliário; e, em tempos mais recentes, criando as célebres comissões bancárias sobre os depósitos e outros (chamados) serviços.
Há alguns anos todos os pagamentos salariais, passaram a ser depositados integralmente nas instituições do sistema financeiro. Certamente, se os salários fossem entregues em dinheiro aos seus titulares, estes poderiam ser assaltados na rua ou ver assaltada a sua casa e revolvido o colchão ou esvaziada a gaveta onde a família teria o dinheiro. Hoje, a haver assalto, ele será proporcionado pelo conluio entre o Estado e o sistema financeiro, como se assistiu na Grécia em 2015 e, no princípio do século, na Argentina.
Por outro lado, a intermediação do sistema financeiro na relação entre entidades pagadoras de salários e trabalhadores, inicialmente isenta de custos para os titulares, passou, gradualmente a ser onerada com taxas e comissões para pagar “custos de manutenção de conta” de utilização de cartões de débito, de crédito e outras criativas figuras. No ano corrente, os quatro maiores bancos portugueses já ganharam € 440 M com as ditas comissões, compensando taxas de juro e de inflação que têm estado muito baixas.
Depois da obrigatoriedade da conta, a sua existência tornou-se pasto da conluiada devassa promovida pelo sistema financeiro e pelo Estado que, em conjunto, recolhem e atualizam, através de cruzamentos criativos de dados, uma panóplia enorme de elementos pessoais, rendimentos, dados patrimoniais, compilando ainda, listas de entidades com as quais cada um interage; seja para pagamento de compras, de prestações, como no âmbito de relações familiares. E, não é de estranhar que empresas de consultadoria informática, utilizem o acesso e a gestão dessas bases de dados para venda a empresas de marketing comercial e político; recordemos a Cambridge Analytica.
Claro que toda essa devassa foi imposta em nome da nossa “segurança” tal como a vulgarização de cartões de débito ou crédito começou, primeiro com o não solicitado envio e a utilização gratuita até que deixou de o ser com a introdução de comissões e outros encargos.
2 - O parasitismo dos mercados financeiros
Em ligação promíscua com o sistema financeiro estão os Estados, que se financiam junto daquele sistema, contraindo dívida e que o usam na cobrança dos impostos; já ninguém vai ao balcão dos serviços fiscais para pagar impostos, taxas ou afins. Todos os impostos passam pelo sistema financeiro, por transferências de indivíduos e empresas, das suas contas próprias para a hidra estatal. E, claro, o sistema financeiro sabe utilizar essa informação para atualizar o perfil de empresas e famílias nas suas bases de dados; para acompanhar a solvabilidade, a capacidade de endividamento e o risco de todas as entidades, individuais e coletivas.
Como os bancos são, em regra, instituições internacionais, os elementos de que dispõem estão incluídos em enormes bases de dados, interligadas, que contêm dados de centenas de milhões de entidades, singulares ou coletivas, incluindo estatais. A globalização encontra neste âmbito o seu mais elevado grau de desenvolvimento. O sistema financeiro unifica e gere informação sobre empresas – pequenas, grandes, tal como multinacionais - pessoas comuns, membros de classes políticas, especuladores, criminosos, num quadro global, no âmbito do qual a nacionalidade é apenas mais um parâmetro de identificação. O sistema financeiro é o aparelho circulatório do capitalismo, o elemento central que mantém o capitalismo a funcionar. No contexto da atual crise do coronavírus é o sistema financeiro que sintetiza a situação das empresas com dificuldades de escoamento de produção, de vendas ou, financeiras; bem como o retraimento das pessoas, a quebra da atividade turística e das viagens. Como se pode ver aqui.
Essa ligação promíscua Estado/sistema financeiro tem vários instrumentos de medida. A escassa vida financeira de um assalariado é escrutinada com todo o detalhe e, perante qualquer desacerto, submetida à punição através de vasta panóplia de taxas, coimas, multas e penalidades. Inversamente, a interação e interpenetração entre sociedades de advogados, e as grandes empresas internacionais de consultadoria, permite frequentes ausências de rigor e a escandalosa distração por parte dos reguladores públicos. Nessa lógica mercantil, a profundidade da peritagem depende do preço pago pelo serviço. Recordamos o caso BPN em que o Banco de Portugal mandava cartas a solicitar informação que, por acaso, nunca era fornecida... até que a inteligente nacionalização pelo governo Sócrates/Teixeira dos Santos se saldou em cerca de € 5000 M saídos do erário público, numa venda em saldo de património a Isabel dos Santos e com o despedimento de trabalhadores.
Quando se trata de ricos empresários, especuladores ou traficantes de influências; de tradicionais criminosos envolvendo elementos mais palpáveis (drogas, mulheres, armas, órgãos, migrantes, fármacos…); de gestores de topo ou políticos corruptos, há dezenas e, dezenas de locais de parqueamento de contas isentadas de intervenções de autoridades fiscais e de escrutínio. As autoridades fiscais dos estados-nação tendem a ser muito discretas em casos de envolvimentos em atividades criminosas, lavagem de dinheiro, etc. Porém, compilam, com muito zelo, informação para que esses volumosos capitais, não se desviem para locais de maior compreensão face aos “investidores”. Recorde-se a divulgação de dados sobre fuga fiscal e burla nos casos dos Panama Papers ou da “princesa” Isabel dos Santos; neste último caso, mantendo-se ainda sem seguimento o apuro das fontes de riqueza da mafia angolana de civis e ex-generais do MPLA, transformados em empresários, bem como do comprometimento de elementos da classe política portuguesa.
3 - A crise do coronavírus e suas sequelas
O sistema financeiro necessita sempre de acrescidos volumes de capital; algum será para emprestar a famílias para a compra de habitação, as quais ficarão com os seus rendimentos comprometidos durante décadas; e que ficarão sem a casa em caso de impossibilidade de pagamento. Outra parte será dirigida a empresas, para efeitos de investimento ou saneamento financeiro, para o qual a própria empresa ou os seus sócios oferecem garantias para casos de incumprimento. Porém, na realidade, o reembolso do capital emprestado durará vários ou mesmo, muitos anos; e, se os banqueiros ficassem sentados à espera da entrada dos juros e das prestações de empréstimos, compensando essas entradas com a concessão de novos empréstimos e a distribuição de lucros, morreriam de tédio. O negócio bancário seria igual a qualquer outro, uma modorra. Não é; e é bastante dinâmico e criativo.
A função típica dos bancos é o financiamento de pessoas e empresas, tão extenso no tempo quanto possível, cobrando juros, naturalmente; é assim há séculos mas hoje é muito mais do que isso. Esses direitos de crédito mantêm-se, eventualmente até ao pagamento integral pelo devedor mas o banco não fica sentado à espera, contabilizando as prestações pagas e as que restam por pagar, em contratos que podem admitir 40 ou 50 anos para a amortização total da dívida.
Esses créditos são integrados em títulos colocados à subscrição do mercado para entrarem no circuito, em operações sucessivas de titularização, integrados e reproduzidos em cascata; os seus titulares desconhecem totalmente quem é o devedor inicial, pessoa ou empresa, cuja identidade apenas é conhecida do banco que participou na operação inicial, de empréstimo; como, no encadeado de títulos em que estão inseridos, desconhecem qual foi o banco que aceitou proceder a esse empréstimo. O banco inicial, o prestamista, recupera assim o valor emprestado que passa apenas a constituir uma base ignota em que se alicerça um extenso e volúvel encadeado de títulos em constante mudança de mãos; e cuja avaliação pelo mercado determina operações instantâneas de compra e venda. Tudo se passa no seio de circuitos eletrónicos, onde a (des)valorização dos títulos faz diminuir/aumentar o valor acumulado no momento da transação. Essa valorização é maior na proximidade do vencimento de juros e menor consoante a distância face a esse vencimento; neste caso, cada especulador estará munido de um computador poderoso com o software adequado para decidir se será melhor vender de imediato ou manter os títulos, arrecadando os juros vencidos.
Cada unidade monetária – só uma ínfima parte se traduz em algo físico como moedas ou notas - é inserta numa rede que se pretende em constante expansão para alimentar a formação de lucros através da valorização dos ativos, a valorização e expansão do capital acumulado. O problema torna-se muito sério se toda a gente tem perspetivas de desvalorização como aconteceu em 2008, com os subprimes. Estes ativos, na realidade são apenas registos eletrónicos inseridos numa vastíssima rede de circuitos onde vasculham poderosíssimos computadores em busca da valorização dos capitais detidos pelos seus donos; circuitos esses que se movem à velocidade da luz ou, perto disso e, onde a intervenção humana é quase impossível. É preciso acreditar nos algoritmos em vigor e tentar melhorá-los para posterior aplicação, para ganhar vantagem face à concorrência.
4 - Como cresce uma bolha financeira?
a.   Suponhamos que uma empresa gestora de fundos ou um especulador individual, tem para investir uns € 100 M … o que até é coisa pouca! Que irá fazer? Aplicar esse dinheiro em ativos (ações, obrigações, títulos de dívida pública, derivados, etc) sabendo-se que a distribuição de lucros (para mais, contingente) só sucederá após o apuramento de resultados trimestrais, semestrais ou anuais; se existirem lucros! Não, ninguém fica sentado sobre umas resmas (virtuais) de títulos, à espera que valorizem para serem vendidos com vantagem ou, para encolherem o seu valor de transação, na sequência de inevitáveis prejuízos.
b. Noutras eras, o tempo decorria de forma mais lenta e previsível; hoje, nos mercados especulativos, o tempo mede-se em nano-segundos, o que só poderosos computadores podem medir. Daí que o nosso especulador vai procurar ganhar dinheiro no âmbito das fugazes cotações dos títulos que detém, recolhendo informações sobre as empresas tituladas ou de outros especuladores mais ou menos (mal)informados. O ritmo de compra e venda de títulos faz-se a um ritmo muito elevado e as operações  acontecem na sequência de pequenas variações nas cotações dos títulos; por exemplo, sendo positivas produzem ganhos de valor e são mantidos se as expectativas forem de novas subidas; ou vendidas de imediato se as expectativas forem de redução da cotação.
c.   De 1933 até 1999, vigorou nos EUA a Segunda Lei Glass-Steagall,  que separava as instituições bancárias comuns, comerciais, daquelas ditas de investimento, não podendo concorrer umas com as outras porque lhes eram imputados, legalmente, mercados distintos. As primeiras recolhiam as poupanças e depósitos de pessoas ou empresas e, estas últimas procediam ao redesconto junto do FED para antecipar cobranças, para suprir a espera pelo pagamento por parte do devedor. As segundas dedicavam-se a atividades especulativas.
Assim, até 1998 os bem conhecidos e voláteis subprimes correspondiam a cerca de 5% dos empréstimos hipotecários, tendo atingido 30% em 2008, quando do início da crise. Isso, porque, em 1999, Clinton revogou a tal lei Glass-Steagall, permitindo a mistura do crédito normal com as invenções especulativas, comuns nos dias de hoje; e que foi secundado na Europa porque o mercado financeiro é um grado exemplo da globalização.
d.    A explosão da criação de crédito, gerou o crescimento da bolha imobiliária, valorizando as casas hipotecadas e serviu como argumento para agentes imobiliários induzirem os proprietários de classe média baixa a estenderem a sua dívida imobiliária para outros gastos, como automóveis. Com a viragem de finais de 2007, o imobiliário perdeu valor mas os valores da dívida mantiveram-se; o que juntamente com uma crise de desemprego lançou na ruina muita gente nos EUA. No seu seguimento faliu o Lehman Brothers, com o devido contágio na Europa, cujas sequelas são conhecidas.
e.     Os países da UE, entraram na pista com a mesma dança, com a brutal concessão de crédito pelos bancos centrais a bancos descapitalizados e com as intervenções da troika para sanear as contas públicas através da venda de bens públicos (Portugal e Grécia); com uma enorme reestruturação bancária em Espanha e, com o arrastar durante vários anos da capitalização de bancos italianos tradicionais. No caso português assistiu-se à chegada de um fundo abutre (Lone Star) ao Novo Banco, em condições leoninas aceites pelo Estado; e, também, de um abutre sem fundos (Neelleman) na TAP. Em ambos os casos, no âmbito de processos escabrosos protagonizados pelas duas alas do corrupto partido-estado português, o PS-PSD; e com uma integração total de dinheiro público, na ordem dos € 18300 M.
As poupanças dos emigrantes depositadas no BES acabaram por ser delapidadas com a falência do banco, com o Estado e o Banco de Portugal (regulador) a colocarem-se de fora, como estipulado pela revogação avançada por Clinton: e com os ex-administradores do banco, em preparos para mais uma primavera de sol e… não à sombra, desde 2014.
f.    Continuando. É habitual que empresas cotadas, para indiciarem boa saúde económica, recorram a empréstimos volumosos, durante poucos dias, junto da banca para compor os balanços semestrais ou trimestrais que têm de publicar; e isso, para mostrarem indicadores que façam subir as cotações e que propiciarão ganhos aos detentores das suas ações, no caso de venda. Claro que ganham mais com a subida das cotações do que em juros pagos por poucos dias de empréstimo. Um truque fácil e que rende milhões.
g.   Para animar a atividade especulativa, um dos instrumentos utilizados é o “quantitative easing” (QE); um género de soro com que o BCE tem mantido vivo o sistema bancário europeu. O QE consiste em os Estados emitirem títulos de dívida que os especuladores irão comprar, como dívida segura, uma vez que cada Estado tem como executivo um qualquer gang governamental que saberá “honrar” os seus compromissos através da delegação do seu pagamento, na população. Claro que não haverá responsáveis pelo dispalfarro ou pelo boondoggle[1]; primeiro, porque a sua presença com responsabilidades governamentais é precária (haverá eleições e é comum a alternância entre duponds e duponts no governo); e depois, porque cada Estado tem na sua base uma população, institucionalmente constituída por pagadores de impostos, tomados como garantes dessas dívidas, cuja existência foi decidida pela classe política; população essa, despojada de meios de evitar as leviandades mas não isentada de arcar com as suas nefastas sequelas.
h.     Esses títulos de dívida pública, emitidos pelos Estados, serão comprados pelos especuladores que rapidamente os apresentarão junto de bancos centrais - BCE, Fed, Banco de Inglaterra, Banco do Japão… - como garantias (chamadas colaterais) para o financiamento, por aqueles bancos centrais, dos meios necessários que incrementam o carrossel dos mercados especulativos. Os bancos centrais, para dinamizar o crédito e as economias (…ao que dizem) até emprestam dinheiro para especulação a taxas negativas! Isto é, quem empresta dinheiro paga por isso, e não o mutuário… uma verdadeira aberração, inventada em tempos neoliberais.
i.     Na teoria, uma taxa de juros baixa é um elemento favorável ao devedor e oferece pouco rendimento ao mutuante. Sabe-se ainda que uma taxa de juros, para compensar de algum modo o mutuante, deverá ser superior à taxa de inflação. Porém, a teoria foi mandada para o lixo e inventada a norma das taxas de juro negativas nos empréstimos concedidos pelos bancos centrais; o que é uma aberração económica pois nenhuma mente saudável empresta dinheiro sabendo de antemão que o não vai recuperar na íntegra; e, com a agravante de a inflação, baixa nos tempos que correm corresponder a outra forma de desvalorização do capital para o mutuante. Os neoliberais são uns verdadeiros ginastas; conseguem fazer um pino e uma espargata em simultâneo. A economia - que não é uma ciência respeitável - tornou-se um campo de experimentações empíricas e anti-sociais para dotar de valor os haveres dos ricos em registos electrónicos e que inflam o baço conceito de PIB.
j.   Assim, todos ficam contentes. Os especuladores porque são pagos para contraírem empréstimos junto dos bancos centrais. Os bancos centrais porque se tornam credores dos respetivos Estados, facilitando o aumento da dívida pública, com implicações óbvias sobre a população que paga impostos e na exata medida da habitual exação por parte das classes políticas. As últimas, na sua típica e promíscua relação com o sistema financeiro, cativam os habitantes dos estados-nação para pagarem os serviços de dívida, aceitando o seu papel de intermediários na alimentação do sistema financeiro, mormente dos capitais especulativos. As classes políticas, sabendo que podem recorrer, com caráter de normalidade a emissões de dívida (os especuladores, no seu recato, agradecem), ao mesmo tempo acenam aos povos com os impactos do investimento e promessas de crescimento do PIB, de redução do desemprego e outros contos de embalar. Em contrapartida, os bancos centrais não utilizam as mesmas ferramentas para melhorar o bem-estar da população. Torna-se muito clara, a concertação entre o sistema financeiro, os bancos centrais e as classes políticas, por um lado; e, por outro, as medidas de austeridade, de compressão de rendimentos da generalidade dos povos, obrigados a arcar com acréscimos de dívida pública, aplicados, em primeira instância, no financiamento dos especuladores financeiros.
k.    Tradicionalmente, os bancos comerciais recorrem aos bancos centrais para se financiarem, destinando-se esses fundos para o empréstimo a empresas e particulares. Na volúpia financeira que se vive, as instituições financeiras e as suas associadas gestoras de fundos e afins, não têm solidez alguma. A sua existência depende do movimento, em espiral crescente. Parar é morrer; uma espiral em regressão conduz a algo de infinitesimal, próximo da inexistência, é um simples e abstrato conceito matemático.
São os bancos comerciais que (ainda) têm balcões abertos ao público. São eles que financiam empresas e famílias, sobretudo quando se trata de investimento, com reembolso ajustado a médio ou longo prazo, em regra; e, forçosamente, os empréstimos são garantidos por hipotecas.
Durante a fase aguda dos tempos da troika, em Portugal e Espanha, famílias atingidas pelo desemprego ficaram impossibilitadas de pagar as prestações dos empréstimos concedidos para a compra de habitação; o mesmo acontecendo com empresas imobiliárias e de construção, confrontadas com uma redução substancial de clientes. Como se tratou de uma verdadeira epidemia, os bancos faziam avaliações caso a caso, reformulando planos de amortização ou apropriando-se dos imóveis, após despejo dos moradores. Se os valores em dívida eram baixos, a apropriação pelos bancos era apelativa, pois permitiria uma revenda lucrativa; se ainda eram elevados, as famílias ficavam sem a casa mas com dívida pois os bancos teriam de os revender por valores muito inferiores aos vigentes no auge da volúpia imobiliária especulativa. Não espanta ninguém que muitos bancos tenham falido, outros “emagrecido”, desfazendo-se de ativos e trabalhadores e, recorrendo a nacionalizações salvadoras, como é tanto do agrado das “esquerdas”[2].
Neste contexto, a massa monetária em circulação, na sua diversidade, soma valores assombrosos e sempre crescentes, tornando-se cada vez mais virtual; e, na minguante parte contemplada nas transações da população global, mais e mais controlada. A parcela mais volumosa e dinâmica, a que é incrementada com maior rapidez e também maior susceptibilidade de bruscas variações, é aquela que está sob controlo da especulação financeira, totalmente desligada da produção de bens e serviços para consumo dos 7300 M de habitantes da Terra; enforma, globalmente uma atividade de casino.

      Ver aqui;http://money.visualcapitalist.com/all-of-the-worlds-money-and-markets-in-one-visualization/
l.         Tradicionalmente, os bancos comerciais recorrem aos bancos centrais para se refinanciarem. Entretanto, os últimos enchem os seus ativos com títulos de dívida pública dados como garantia pelas instituições financeiras especulativas; como estas são muito voláteis, num caso de crise desvanecem-se, o mesmo não sucedendo com as garantias colocadas junto dos bancos centrais sob a forma de títulos de dívida pública. Isto é, os especuladores esfumam-se no ar e são os bancos centrais que ficam acumulando dívida pública de Estados altamente endividados e fazendo face a crises económicas, financeiras, sociais e políticas. Serão chegados tempos de jubileus ou de write-off para evitar o sufoco de povos assoberbados com dívidas, desemprego, etc? Se, numa escala suficientemente generalizada, o capitalismo falece e poderá recorrer a uma santa aliança entre gangs de direita e de “esquerda”, numa rebobinagem do sistema, como aconteceu na Grécia do Syriza? Ou, numa escala menos gravosa, no Portugal de 2015/19 com a social-democracia (BE/PCP) atrelada ao carro mais potente do partido-estado, o PS, no âmbito da dita geringonça? Ou ainda, como está acontecendo em Espanha, com a coligação entre o PSOE e a sua muleta, Unidas Podemos?
5 - Quando o sistema financeiro encomendará os governos de se apropriarem das nossas contas bancárias?
A grande reserva do sistema financeiro, para situações de grande crise não são, obviamente, os voláteis mercados especulativos, repletos de registos electrónicos em forma de pirâmides de Ponzi; são as contas bancárias pessoais e familiares, os seus depósitos de poupança e fundos de pensões. Estes, constituem de facto, haveres, poupanças de gente normal que vive ou viveu do seu trabalho.
No caso da UE registamos o Regulamento UE 2017/1131 do PE Conselho, de 14/6/2017 relativo aos fundos do mercado monetário; e, nos EUA, o Dodd-Frank Act. Em ambos os casos, documentos enormes, numa linguagem própria para iniciados, repletos de subtilezas.
O Regulamento da UE diz: (16) O objetivo de preservar o valor do investimento não pode ser entendido como uma promessa de garantia de capital por FMM (fundos do mercado monetário), mas apenas como um objetivo que um OICVM (organismos de investimento colectivo em valores mobiliários) e um FIA (fundos de investimento alternativos) procurem alcançar[3]. Em suma, falamos de abnegados gestores do dinheiro alheio… que podem não ser capazes de uma gestão séria e eficiente do ponto de vista dos depositantes.
No princípio do século, na Argentina, uma sequência desastrosa de medidas neoliberais, com enormes dívidas, inflação, desvalorização da moeda, falências, desemprego e pobreza, levou o governo de La Rua, para evitar a corrida aos bancos, a inventar o corralito; isto é, as contas bancárias ficaram congeladas, primeiro por 90 dias e depois com a possibilidade de levantamentos de 250 e depois 300 pesos, após conversão cada vez mais desfavorável do dólar. Para além dos cacerolazos da classe média, surgiu o movimento dos piqueteros, trabalhadores que tomaram conta das empresas, adoptando a autogestão. De todo esse processo vieram a beneficiar os fundos abutres, em conluio com tribunais internacionais, estabelecidos como zeladores da ordem neoliberal e em prejuízo dos argentinos, como é evidente.
Em 2015 exerceu-se grande pressão sobre a Grécia, por parte das instituições da troika e, na proximidade do referendo, houve uma corrida aos bancos. Em resposta, o governo limitou a € 60/dia e por conta, os levantamentos em multibanco.
De qualquer dos modos, a grande maioria de pessoas e empresas têm o dinheiro em contas bancárias e, há sempre limitações para o volume a retirar das máquinas; os bancos, mesmo imperceptivelmente, podem sempre reduzir o volume de dinheiro com que carregam as máquinas; ou ainda, o número de máquinas com dinheiro. Sinteticamente, mesmo fora de um contexto de crise grave, o sistema financeiro pode limitar o levantamento de dinheiro ou a utilização das máquinas para transferências de dinheiro, pagamentos, etc. No âmbito individual, não há qualquer ação que seja eficaz; só ações, radicais e envolvendo grandes massas de gente, espalhadas por vastos territórios continentais.
A questão do dinheiro e seu controlo mostra à evidência não só a sua importância para a circulação do valor e das mercadorias, elementos fulcrais para o capitalismo como também a ligação uterina ou gemelar entre o Estado e o capitalismo, hoje dominado pelo seu elemento dominante – o sistema financeiro - cuja relativa imaterialidade lhe dá uma mobilidade imensa e total. Essa imaterialidade, já evidente no divórcio entre o valor nominal do papel-moeda e o seu valor intrínseco, enquanto pedaço de papel, aumentou substancialmente com a sua transformação em circuitos eletrónicos, multiplicáveis quantas vezes se quiser e com uma mobilidade que se confunde com a velocidade da luz.
As pessoas comuns estão, por seu turno, sob o controlo da parceria sistema financeiro/Estado como marionetas, sem qualquer poder sobre as suas vidas. E, enjauladas, nos tempos presentes, pelos aparelhos de estado, brutais monitores da vigente crise humanitária derivada da incúria inserta no laissez-faire inerente ao capitalismo globalizado, empenhado numa acumulação que o planeta não comporta.
No último dia 17, o BCE colocou à disposição de 110 bancos  € 109130.5 M com vencimento a três meses e com a taxa negativa ( -0.5%) para dar liquidez ao sistema bancário; o que terá uma repercussão nula no combate ao coronavírus. Dois dias depois, o mesmo BCE foi mais longe e criou o PEPP (Programa de Compra de Emergência Pandémica) no valor de € 750000 M gerados pelo BCE e para compra de dívida pública incluindo a grega até agora, proscrita; e passou a incluir nesse programa dívida de empresas não financeiras. Perante uma crise anormal… business as usual!
Ainda mais recentemente, a Comissão Europeia perante esta enorme crise indicou que vai “esquecer-se” dos limites aos deficits estatais. E, que irá (se houver unanimidade) inovar com a criação de “eurobonds” títulos de dívida da UE, sem a atual fórmula discriminatória que permite apenas dívidas nacionais, acentuando, portanto, as clivagens entre os estados-membros; terá sido uma forma de evitar o isolamento regressivo da Itália, assolada pelo vírus. Tudo isto, mais as medidas estatais de adiamento para as empresas do cumprimento das obrigações fiscais; os encargos acrescidos com a saúde; a paragem ou redução da atividade de empresas durante três meses e a quarentena, não deixarão de ter impacto na vida e no rendimento das pessoas. E trarão os governos sem margem para falhar, num intenso stress.
 A dívida pública na Europa tem uma distribuição muito desigual e taxas de juro também desiguais, em nada correspondendo à tão falada coesão económica, social e política. No âmbito dessas diferenças, Conte, o primeiro ministro italiano exigiu uma solução dentro de dez dias. Nem perante esta ameaça, os autocratas europeus perdem o que resta do seu bacoco nacionalismo.
Em contrapartida, os EUA decidiram-se por um plano de estímulos no valor de $ 2 biliões (triliões na contagem usada nos EUA). Neste contexto, nenhuma empresa que beneficie deste empréstimo pode pagar dividendos; $ 500000 M destinam-se a grandes empresas, estados e cidades; o comércio de retalho e a hotelaria beneficiam de empréstimos, subsídios e auxílios no desemprego; institui-se às pessoas de baixos ou médios rendimentos, pagamentos e $ 1200 por adulto e $ 500 por criança; o seguro de desemprego passa para quatro meses; as companhias aéreas podem participar num programa de $ 25000 M se permitirem uma participação acionista do Estado; empresas ferroviárias e de transporte público podem receber subsídios para cobrir perdas relacionadas com o coronavírus; entre outras medidas, as empresas de transporte aéreo não podem despedir nem fazer cortes nos salários dos trabalhadores; para as pequenas empresas destinam-se $ 350000 M de empréstimos; são destinados a vacinas, terapias, diagnósticos e outras necessidades médicas, US $ 11000 M; quem tiver dificuldades financeiras para pagamento das prestações da habitação pode ter 60 dias de tolerância, prazo que pode ser estendido por 30 dias, quatro vezes, etc.
Um particular significado político tem o facto de empresas de Trump, Pence, e suas famílias ou, membros do Congresso e secretários de estado, não poderem recorrer a empréstimos públicos.[4]
Claro que dos dois lados do Atlântico a fanática aceitação do capitalismo afasta qualquer acto inteligente no sentido de uma outra sociedade. Na margem esquerda paira o autoritarismo de um ignorante; e, na margem direita, um magote de cinzentos burocratas que se rasteiram uns aos outros.
 Este e outros textos em: 

http://grazia-tanta.blogspot.com/                           

http://www.slideshare.net/durgarrai/documents





[1]  Curiosos vocábulos em castelhano e inglês, respetivamente, para designar leviandade financeira, gastos desnecessários e fraudulentos

[2] Quando da falência do “sólido” BES em 2014, fizemos parte ativa da contestação a qualquer envolvimento de dinheiros públicos, com o silêncio da chamada esquerda portuguesa. Explicadas as nossas ideias sobre o assunto, os presentes reunidos em assembleia aberta junto da sede do banco não encontraram nada mais inteligente do que clamar pela tradicional ladainha do trotsko-estalinismo, a “nacionalização”. Os governos fizeram-lhes a vontade criaram o Novo Banco e entregaram-no ao Lone Star, continuando a abastece-lo, mesmo depois disso. Claro que também estavam esquecidos do BPN nacionalizado pelo governo Sócrates em 2008, vendido mais tarde com preço de salvado a Isabel dos Santos; e de quanto custou ao erário público a capitalização de empresas nacionalizadas em 1975, vendidas limpas e reestruturadas a capitais privados (agradecidos pela recapitalização com dinheiro público) a partir do primeiro consulado de Cavaco (1985). Casos que demonstram à saciedade o papel dos Estados como protetores e benfeitores dos capitalistas nacionais, desde a constituição dos estados-nação.

[3] Em Portugal em março/2019 havia 13 entidades gestoras, 152 fundos e os valores sob gestão eram de € 11687 M
[4]  https://www.zerohedge.com/political/coronavirus-bill-may-suffer-further-delay-after-gop-senators-demand-fix-massive-drafting?utm_campaign=&utm_content=ZeroHedge%3A+The+Durden+Dispatch&utm_medium=email&utm_source=zh_newsletter

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