E, por isso, foram aceites alguns bibelots... em Davos
A lógica do capitalismo apresenta a produção de bens e serviços como visando a satisfação das necessidades da Humanidade, extraindo dessa atividade um excedente para o investimento no aumento ou melhoria das suas capacidades produtivas; isso é uma mentira que consta nos manuais escolares de economia. A sua lógica não é a satisfação das necessidades da Humanidade; se isso fosse verdadeiro, não haveria milhares de milhões de pessoas com carências essenciais no âmbito da comida, da saúde, da habitação, de educação e outras, ao mesmo tempo que os capitalistas, os governos nacionais e as suas instâncias regionais ou globais se queixam e preocupam com o baixo crescimento do PIB.
Do contexto anterior
resulta que o objetivo dos capitalistas é a produção de valor, a acumulação
constante e sem limites de lucros, de capital, tomando a satisfação das necessidades
das pessoas como um instrumento para esse efeito; e não um objetivo. No fundo,
para o capital, a Humanidade e os recursos do planeta não passam de
instrumentos para a concretização da citada acumulação; e assim, os
capitalistas, pequenos, grandes, multinacionais, no âmbito das respetivas
escalas, procuram acumular dinheiro, riqueza, capital, tomando o seu negócio
como instrumento para tal e a satisfação das necessidades das pessoas um meio
para atingir aquele fim.
Se, para o capital em
geral, a produção de bens e serviços serve para acumular capital, para a
Humanidade, o que faz sentido é a produção de bens e serviços que satisfaçam as
suas necessidades; e, isso, nada tem de abstrato nem de ilimitado.
Neste contexto, o
capitalismo, como modelo económico, visa um crescimento sem limites, infinito.
Por um lado, os capitalistas precisam de gerar mercadorias, valor; e, por outro
lado, precisam de trabalhadores para produzirem bens e serviços que são todos
formas de mercadoria, de extração e acumulação de lucros. Por outro lado, essas
mercadorias e serviços têm de ser transformados em dinheiro através da venda,
exigindo portanto que haja consumidores (famílias, pessoas), empresas
compradoras e Estados, gastadores do dinheiro dos impostos subtraídos, na sua
grande maioria, aos rendimentos do trabalho.
De forma caricatural, a
uma pessoa chegará comer meia galinha por dia; o capitalista, por seu turno,
irá utilizar todos os meios para que cada pessoa consuma, não meia galinha mas,
uma galinha inteira, duas galinhas... Numa lógica humana, as necessidades de
comida inserem-se em limitados parâmetros, em termos de quantidade e variedade;
o capitalista, pretende sempre produzir mais e mais e que haja escoamento para
essa produção, induzindo nos consumidores necessidades artificiais, pulsão
consumista, se necessário através do comprometimento de rendimentos futuros,
através do crédito. Ao mesmo tempo, o capitalista procura que todos os seus
trabalhadores aceitem uma contenção dos níveis salariais em patamares tais que
não conduzam a um aumento dos custos proporcionalmente maior do que o
crescimento da faturação. Procurar atingir o infinito através da acumulação de
capital é uma lógica intrinsecamente demente e predadora de pessoas e do
planeta.
Tornou-se banal, no economês corrente, falar-se todos os
dias do crescimento (concretamente, do PIB); são os governos a querer mostrar
as suas competências, os bancos à espera de novos clientes, empresários
procurando aumentar as vendas, exércitos tentando ocupar territórios adicionais
ou adquirir novos brinquedos, empresas grandes procurando comprar outras, mais
pequenas. O crescimento tornou-se uma adição nas classes políticas e no
empresariato, com contágio evidente na plebe. E, no entanto, o PIB é uma medida
incompleta, difusa, genérica, que abarca apenas uns 70 a 75% da atividade
económica e que não mede o “valor” do trabalho doméstico e dos cuidados, no
seio das famílias, cujo relevo social é imenso; para além de não contemplar a
corrupção, o favor, as luvas, os tráficos (droga, órgãos, migrantes, mulheres,
animais selvagens…). Em contrapartida, toma como incluído no PIB um
“investimento” em … armamento!
Sinteticamente, a
volúpia do crescimento infinito, inerente ao capitalismo, mede-se através do
nebuloso PIB; e como a produção material exige um mercado consumidor,
restringido pelo pouco crescimento dos rendimentos populares e pelas limitações
no acesso ao crédito, o capitalismo desenvolveu, de forma inaudita, a
especulação financeira, para a criação de valor através do mecanismo das
pirâmides de Ponzi; que se tornaram o elemento dominante para o aumento do PIB,
tornando este ainda mais diáfano e de evolução incerta, como se viu após 2008,
com a inundação de dinheiro através dos bancos centrais, sem qualquer relação
com a chamada “economia real” e sem ter de “sujar as mãos” com a colocação de
trabalhadores em torno de máquinas, estruturas de vendas, logística,
publicidade...
Country
|
Benchmark
|
Current Value
(in S&P 500 terms)
|
Gain since Nov 26, 1990
|
United States
|
S&P 500
|
3,168
|
901%
|
Hong Kong
|
Hang Seng Comp.
|
2,926
|
824%
|
Germany
|
DAX 30
|
2,913
|
820%
|
Canada
|
S&P/TSX Comp.
|
1,717
|
444%
|
France
|
CAC 40
|
1,16
|
268%
|
United Kingdom
|
FTSE 100
|
1,072
|
238%
|
Japan
|
Nikkei 225
|
315
|
1%
|
Note: Data has been
transformed to match the scale of the S&P 500, and is current as of
December 13, 2019
Tudo funciona a partir
de supercomputadores, muito ágeis na decisão sobre o que comprar ou vender,
mesmo quando se trata de navios carregados com combustíveis, cereais ou
oleaginosas, por exemplo, cuja carga é comprada já a bordo e revendida no
âmbito de jogos especulativos. Há alguns anos, a moda do óleo vegetal para
substituir os de origem fóssil, veio a provocar fortes subidas dos preços dos
cereais que conduziram a levantamentos populares em áreas pobres do globo, como
África[1].
Para além dos novos
“produtos financeiros” que se vão criando, a pressão para um maior consumo de
bens e serviços faz-se através da indução da moda e da deificação da novidade,
O que torna a compra e o consumo em verdadeiras adições. A dinâmica do capital
é muito forte, sendo lançados melhoramentos reais ou formais nos bens de
consumo, com a incorporação de novas funcionalidades e usos nos objetos, na
aposta no design, daí se exigindo um investimento massivo em publicidade. Por
outro lado, a incorporação de componentes mais baratos (incluindo os custos
salariais), o aumento da produtividade, a segmentação da produção e da venda
por várias empresas (por ex. através do franchise) e diversos pontos do
planeta, envolve longas e complexas redes de transporte[2]. As necessidades
de afastamento ou supressão da concorrência podem envolver a artificial redução
da vida útil dos equipamentos produtivos para que se proceda a uma substituição
mais rápida por modelos novos ou apenas mais apelativos, mais inseridos na
moda; com um subsequente acréscimo de lixo; em muitos casos, com uma reciclagem
cara e difícil, também ela, inserida em longas cadeias logísticas.
Essa longa, frequente e
diversificada destruição de bens e equipamentos, tornados obsoletos,
desatualizados, física ou comercialmente, obriga a uma constante aplicação de
novos capitais em investimentos e aplicações onde o lucro resulte maior por
unidade de tempo e por unidade de capital investido.
Todos os elementos
descritos constituem a vida do capitalismo, enquadram a concorrência existente
entre os sectores de produção, entre países e áreas geográficas, entre grupos
económicos ou financeiros, entre classes políticas; todos se incluem num
encadeado que, embora campo de ferozes disputas pela primazia, tem em comum a
essencial produção de mercadorias, a sua injeção no mercado, tendo como efeito
desejado, a acumulação de capital.
Neste modelo
socioeconómico surgem grandes dificuldades de perpetuação:
·
A primeira, refere-se às necessidades da Humanidade em bens e
serviços que é, naturalmente, finita, tal como os recursos oferecidos pelo
planeta em termos de água, minérios, energias fósseis, florestas…; porém, essas
necessidades, o seu volume e a sua manipulação são um instrumento essencial
como alicerce da acumulação capitalista;
·
Essa basilar finitude confronta-se, obviamente com o patamar em
que se encontra o consumo ou, mais genericamente, o gasto dos seres humanos,
diretos ou indiretos. Convém que esse patamar se mantenha num nível estável,
compaginando o volume do rebanho humano e as necessidades da sua existência,
com os níveis de bem-estar que se pretendam sejam alimentados através de
aumentos de produtividade, da reciclagem, de novas invenções e não através da
pressão desastrada sobre os finitos recursos do planeta.
·
A acumulação de capital resulta de três grandes fatores:
o Primeiro, existe uma
pressão sobre os povos para a redução dos salários reais, para a esterilização
através do desemprego e da inanição, ao mesmo tempo que se acentua a punção
fiscal; dessa compressão dos rendimentos resulta um maior quinhão à disposição
dos capitalistas, nas suas várias estirpes, sem prejuízo das diferenças entre
eles.
o Segundo, a maximização
da acumulação, inerente à lógica da produção mercantil, com a criação de valor,
não se satisfaz apenas com o esmagamento dos rendimentos dirigidos à multidão
humana; e tende a expandir essa criação de valor, incluindo nesta a predação
dos recursos do planeta, para fins só lateralmente dirigidos à produção de bens
de consumo e de capital.
o Em terceiro lugar, as
disputas entre os grupos e empresas capitalistas obrigam os Estados a manter
forças armadas, pesados sistemas judiciais e policiais, a desenvolver
constantes desenvolvimentos na produção de armamento - uma área particularmente
lesiva do planeta - para além da mobilização dos povos para, através de
folclóricas jornadas eleitorais ou fascizantes derivas nacionalistas,
defenderem um grupo de capitalistas contra outro, incluindo sacrificando vidas
humanas, de modo escandalosamente inútil, porque esse sacrifício não beneficia
os povos e segmenta, estupidamente, a Humanidade[3].
·
Dos três pontos anteriores, resulta uma pressão constante para a
acumulação de capital, nas multinacionais e no sistema financeiro,
particularmente; e, ao mesmo tempo, um pendor para a predação do planeta e o
sacrifício de milhares de milhões de pessoas, vítimas da guerra, conflitos
sectários, desertificação, pobreza, doença, fome... de onde resultam fenómenos
de xenofobia, racismo, nacionalismo, antagonismos religiosos e étnicos, de
defesa contra as ameaças provenientes do Outro, em geral; e que, em regra,
revelam medo, menoridade ética ou inocuidade estratégica.
·
A produção de bens e serviços como atrás definida está longe de
satisfazer a gula da criação de valor. Mesmo a satisfação das necessidades de
toda a população mundial – que está longe de acontecer – não conduziria ao
sagrado objetivo da criação de valor, que se pretende acumulativa, até alcançar
o infinito. Por isso, o capitalismo não pode evitar os conflitos, as falências,
a concentração de meios em grandes empórios e não pode satisfazer-se com nenhum
nível de produção de bens e serviços, de consumo ou de endividamento para esse
efeito. A procura do infinito exige luta e destruição, destruição e luta,
inovação e abandono de tecnologias, da produção de novos bens e serviços e o
convencimento dos consumidores para escoarem essa produção – muitas vezes fonte
de consumos nefastos - para nisso comprometerem os seus rendimentos (mesmo
precários, como se torna evidente) atuais e futuros, com um elevado nível de
endividamento que, no caso das habitações, pode passar para a geração seguinte,
sem que os Estados percam a oportunidade de cobrar impostos no âmbito da posse
e da sucessão.
·
Essa pulsão para cavalgar ciclos de
produção-destruição-produção… típica do capitalismo reconstrói em todo o tempo
hierarquias, entre estados-nação, no seio das classes políticas, entre grupos
de capitalistas, segmentando também, os trabalhadores e articulando-os, num
género de porta giratória, com a massa de desempregados; empurrando para um
canto, como estorvo, como não produtivos, fracos consumidores e outros, pouco
interessantes para se endividarem junto dos bancos – desempregados, doentes e
reformados - cujos rendimentos… oneram as contas públicas e contribuem para os
deficits, como se queixam os governos; e ainda povos inteiros das periferias do
capitalismo, em África, América do Sul, Ásia e mesmo, Europa.
·
A lógica consumista, a destruição constante de capital, a pulsão
produtivista - no âmbito da qual a produção de bens e serviços é um fim em si e
não destinada à satisfação de necessidades - tem impactos bem visíveis no
planeta, ultrapassando em muito, as transformações e os danos provocados pelo
Homem nos últimos milénios. Embora nos pareça que o Homem tem preferido causar
danos ao próprio Homem.
·
Quando se identifica um dano, um problema, em qualquer âmbito –
doméstico, social, económico ou planetário – a lógica humana coloca a questão,
de imediato, sobre as suas causas. Na lógica do capital, o sistema é o
perfeito; e como perfeito deve ser eterno. Daí, na lógica da indigência
intelectual de Reagan ou Trump, há apenas que eliminar o Mal, isto é eliminar
al-Bagdadhi ou bin Laden (antigos amigos desavindos…), distribuir sanções
económicas pelo planeta, fazer os bancos centrais emitirem crédito sem limites,
alimentar actuações militares, alargar áreas de conflito e de fuga de
populações, oferecendo como entretenimento soldados com o timbre ONU/UN.
Estendem ou intensificam os sacrifícios a impor às populações, como se vem
observando na América Latina, na Europa ou nos EUA, no Médio Oriente, na Índia
ou em África, onde os governos tendem a ser cada vez mais autoritários e
repressivos, mesmo quando usam processos eleitorais (em regra nada
democráticos) para legitimarem as respetivas oligarquias.
Sendo - a lógica do capital - sinónima de perfeição, os
conflitos entre capitalistas, pelo acesso aos mercados consumidores ou de
matérias-primas, fariam parte da dinâmica do próprio sistema, da sã
concorrência, em que o novo substitui o velho, tendo a evolução tecnológica
como motor da construção do futuro e, também a esperteza, como elementos
construtores do progresso. A concorrência, no contexto da sólida moral
protestante dos tempos de Adam Smith deveria afastar a corrupção dos mecanismos
do mercado; porém, … essa concorrência, livre e leal, nunca foi generalizada. E
tem sido mais comum e determinante a intervenção dos Estados e seus governos
para enviesar a concorrência, através de leis discriminatórias, pela predação
colonial e pela guerra, pela posse de terras e mercados, junto dos
estados-nação tomados inimigos nessa ocasião; e ainda pela guerra interna pelo
baixo preço do trabalho, como celebrizado no pioneiro massacre de Peterloo.
·
Hoje, a despeito dos avanços tecnológicos, continua por
demonstrar que essa putativa perfeição da lógica do capital generalize o
bem-estar, o qual parece cada vez mais restringir-se a segmentos sociais
minoritários (e numa minoria de países) de onde precedem os brilhantes cérebros
que cruzam ideias em Davos ou Bilderberg. Em verdadeiros actos conspirativos de
um ente resultante da clonagem de Gates, Hitler e Al Capone, contra a
Humanidade.
. Para que o stock de capital acumulado cresça é preciso
alimentar, em permanência, o ciclo da criação de novos produtos e serviços de
forma a superar a destruição de capital resultante de conflitos, com colunas de
migrantes e refugiados em fuga, com casas e infraestruturas destruídas por
bombardeamentos, resultantes do recurso à guerra e ao banditismo. Essa
constante situação de destruição e criação é inerente à lógica do capital,
constitui um criminoso meio de renovação dos stocks de capital, em interação
com novas tecnologias de produção, de marketing, de manipulação e controlo de
gente, de acordo com as diversas faces do poliedro humano – trabalhadores,
estudantes, aposentados, militares, consumidores, contribuintes, capitalistas,
membros de classes políticas, homens/mulheres, eleitores…; uma vida tranquila e
digna para todos, com aproveitamento dos conhecimentos existentes, com aumento
do bem-estar coletivo sem perdas para a qualidade do ambiente, por muito
evidentes que sejam para o senso comum, por incontestáveis que sejam para a
racionalidade humana, não podem ser subscritos pelos capitalistas na sua
globalidade[4].
·
Essa destruição criativa de capital em simultâneo com a criação
de valor, correspondem ao início de um novo ciclo de crescimento da produção de
bens, da criação de lucros, duma retoma do consumo… até à próxima crise. De
modo mais vulgar, importa é que o PIB cresça… cresça…
·
O modelo de crescimento infinito é inseparável do capitalismo. A
criação de valor é o seu pulsar, a sua respiração. O Golem soltou-se no século
XVII, ocupou o planeta em três séculos e as resistências foram esmagadas ou
cooptadas, enquanto as alternativas soçobraram perante a força do capitalismo,
como também porque os vencidos não souberam ou não puderam aprofundar
estratégias e proceder às práticas de o conter e encaminhar para o suicídio.
Hoje, teme-se que esse suicídio possa arrastar a Humanidade para uma guerra
total, para uma contaminação devastadora, para a destruição das condições de
vida no planeta, para uma redução brutal no número de efetivos humanos, uma vez
que no capítulo das extinções de espécies animais e vegetais, há muito se
perdeu a conta.
·
O capitalismo nunca teve como primeira prioridade a satisfação
das necessidades humanas; os seres humanos são apenas os elementos vivos
essenciais à produção de valor, ao consumo, ao endividamento, constituindo este
uma amarração, uma captura do devedor pelo sistema financeiro, da sua vida
futura. A Humanidade é principalmente um instrumento para a acumulação de
capital.
·
Nos tempos que correm, é
a especulação financeira o elemento mais dinâmico para a acumulação de capital,
com as vantagens de requerer pouca intervenção humana e apenas leves
infraestruturas produtivas, quando se compara com tempos, poucas décadas atrás,
quando a indústria polarizava a parte substantiva e politicamente activa das
populações. Aparentemente, o próximo rebentamento da bolha financeira (tal como
o anterior) irá ser amortecido pelos governos que intermediarão a transferência
dos danos para as pessoas comuns, através das finanças públicas (a doutrina
Draghi), com forte intervenção dos Estados e das classes políticas; estas que
intervindo de modo cada vez mais empenhado veem nisso a sua continuidade como
agentes executores. Só assim não será se os povos recusarem essa intermediação,
ao contrário do que aconteceu na sequência da crise iniciada em 2008; se
recusarem a atuação desviante e provocatória dos partidos ditos de esquerda que
cumpriram cabalmente a sua função em Portugal, Espanha e Grécia em 2011/15.
·
Os danos ambientais, como muitos outros, são elementos
provenientes do funcionamento do capitalismo, são danos colaterais que os
capitalistas procuram não endogeneizar para não afetarem os seus níveis e
ritmos de acumulação de capital; deixando, como é evidente, que esses danos
atinjam populações de várias dimensões e que sejam os Estados (e as classes
politicas de turno) a colmatar ou remediar esses danos… com o dinheiro dos
impostos pagos por quantos têm dificuldade em deles se isentarem.
·
Como é óbvio, clamar contra os danos sem proceder a uma atitude
fortemente crítica face às causas e seus causadores, é ser benevolente com o
capitalismo; constitui uma aceitação do capitalismo como fatalidade, uma
endogeneização conivente com o capitalismo, estendendo, respeitosamente, a mão
à esmola de uma menor agressividade ambiental, junto das classes políticas.
Assim, tudo se resumirá, à construção de um mundo de felicidade comendo soja
transgénica e não carne? Ou a substituir o carro a gasóleo por outro elétrico,
incorporando energia fóssil produzida algures? E o desemprego, a precariedade, o
militarismo, o nacionalismo, os jogos em torno da idade da reforma, a carga
fiscal asfixiante, a ausência de democracia, a mercantilização da satisfação de
todas as necessidades humanas, resolvem-se na sequência de uma ação centrada no
ambiente? Nesse contexto, essa benevolência e aceitação do statu quo, somadas,
designam-se por cumplicidade.
·
É notória uma incapacidade generalizada de construção de
alternativas à perigosa situação actual, depois do fracasso dos socialismos;
que nunca passaram de capitalismos de Estado, com um partido único repartido em
várias tendências rivais em vez de vários partidos rivais, como acontece nas
dominantes democracias de mercado. Todos, porém, muito hábeis em práticas
corruptas, de lobbying, de
assenhoreamento de uma massa fiscal que nunca se reduz.
·
Faz parte dessa incapacidade qualquer focagem sectorial do
capitalismo, sempre insuficiente. É metodologicamente estúpido pensar que é
possível combater os efeitos sem ter as causas como objetivo central; tal como
é infantil ou reacionário defender melhorias no âmbito do capitalismo,
admitindo o surgimento de um capitalismo piedoso, compreensivo, domesticado,
respeitador do ambiente e empenhado na contenção da deriva climática; ou ainda,
mantendo um capitalismo que usa o consumismo e a dívida como formas de captura
de pessoas e povos, cada vez mais precarizados pelos capitalistas e pelos seus
Estados e acarretando ainda com os custos dos desvarios climáticos na saúde,
nas faturas do supermercado ou, numa carga fiscal acrescida, incluída nas
folhas salariais.
·
O que faz a multidão aceitar a canga capitalista? A aceitação do
capitalista, do despedimento e do desemprego, do baixo salário e da pensão
miserável, do aumento do tempo de vida no trabalho a despeito das capacidades
derivadas de novas tecnologias, constituem uma humilhação para todos os que
necessitam de se submeter para sobreviver. No entanto, não é difícil verificar
que os ganhos de produtividade só marginalmente conduzem a acréscimos de
rendimentos para os assalariados e, ainda mais raramente, à redução do tempo de
trabalho; em contrapartida, é fácil verificar a expansão de tarefas inúteis,
burocráticas, de controlo, entediantes e, cuja finalidade consiste precisamente
na ocupação do tempo de vida do ser humano, travestido de trabalhador ou
colaborador[5].
Este, se estiver muitas horas ocupado, submetido a métricas para a aferição do
seu desempenho - que, em grande parte se integram com a medida do desempenho
dos seus congéneres - vulgarmente diz-se que está a… trabalhar. Se cada
assalariado, antes e depois da sua jornada, tem de se enfiar em transportes
apinhados, filas de trânsito e eventual despejo/recolha de filhos em escolas ou
infantários, para além de tarefas domésticas, esse assalariado terá ainda
algumas horas para, exausto, se entregar às vacuidades televisivas ou das redes
sociais; é um autómato integrado numa sociedade de controlo.
·
Para que seja diminuta a possibilidade de revolta, o capitalismo
vem desenvolvendo os aparelhos de Estado para um nível de complexidade e de
recursos, sem comparação com o proto-estado pré-capitalista, que se confundia
com a propriedade privada de um rei ou imperador[6]. O Estado capitalista, nos
primeiros estádios do seu desenvolvimento tinha um aparelho administrativo e um
outro, repressivo, ambos suficientemente frágeis para que uma revolta popular
ou um golpe de estado pudesse proceder a mudanças no poder. Hoje, tendo em
conta a extensão do aparelho administrativo e dos circuitos de informação, há
um entrosamento muito forte entre a classe política e os meios económicos que,
no caso europeu, funcionam de modo integrado e tendencialmente uniforme. Essa
cooperação europeia (e no campo da NATO) observa-se também no capítulo das
forças armadas, desligadas de intervenções na política interna, mormente
através dos pronunciamentos como em tempos passados; mesmo na base, são
constituídas por elementos contratados e não no âmbito de um serviço militar
obrigatório, obsoleto perante a tecnicidade do armamento moderno. Quanto aos
diversos corpos policiais, são altamente armados e treinados para jugular
manifestações populares com a brutalidade adequada, como se tem visto,
recentemente, no caso dos coletes amarelos. E não se deve esquecer o papel das
seguranças privadas, das suas ligações com a polícia ou como contratados para
ações de apoio às forças armadas para o desempenho de ações de “guerra suja”.
·
Nos modelos políticos de democracia de mercado, as oligarquias
económicas, o patronato que “conta”, isto é, os poderosos interesses das
multinacionais ou do sistema financeiro não organizam golpes de estado… somente
porque não é preciso; os golpes ficam reservados para cenários neocoloniais
onde antagonismos tribais ou raciais coexistem com uma tropa que constitui uma
forma precária de ter salário e de onde emanam, frequentemente, “chefes de
estado” corrompidos por empresas mineiras ou empórios de plantações extensivas
e predadoras.
·
Nas democracias de mercado há um naipe de partidos, entre os
quais uns, muito poucos, são os grandes destinatários e beneficiários das
encomendas legislativas, de subsídios ou, dos contratos prontos a assinar,
emanados dos grandes grupos económicos locais ou globais. Como não há almoços
grátis, esses grandes interesses económicos financiam discretamente os partidos
e colocam nos seus quadros gente daqueles, bem pagos, que funcionarão como elos
de tráfico de influências. O povo, embalado por eleições, fraudulentas na sua
própria configuração e, ignorando o referido conluio, irá manter-se manso,
aceitando e pagando a fatura de um capitalismo decrépito ligado à máquina
estatal.
·
Regularmente quem trabalha pagará impostos sobre o consumo de
bens ou serviços, sobre o rendimento ou a propriedade, para que o Estado possa
funcionar como o garante da sociedade de controlo, mantenha a competitividade
da economia ou, mais precisamente, mantendo a classe política e os capitalistas
aquela ligados, irmanados na sucção do “pote”.
·
A aceitação com elevado grau de passividade, de resignação, do
poder estatal e das oligarquias empresariais por parte da multidão, tem uma
origem muito antiga, na constituição de hierarquias ancoradas no poder das
armas e/ou nas ligações ao divino. Por uma ou ambas as razões, foi-se
vulgarizando e considerando, como da própria natureza das coisas, a obediência
a hierarquias, a naturalidade da existência de pequenos grupos de gente que dá
ordens à restante comunidade. A aceitação dessa permanente e renovada coerção
estrutural por parte das camadas laboriosas das populações estende-se e
aprofunda-se, de modo avassalador, com o capitalismo, no âmbito do qual o
aparelho coercivo do Estado chega a alcançar perto de metade da riqueza criada,
medida pelo célebre PIB.
Este e outros textos em:
[1] Uns anos mais
atrás, em 1973, na sequência da guerra entre árabes e sionistas, uma empresa
portuguesa de transporte de combustíveis e ramas de petróleo viu subir de modo
astronómico a cotação da carga de um dos seus grandes navios, o que lhe deu,
nesse ano, um lucro fabuloso.
[2] Sabemos que as trotinetas que se tornaram
moda nas cidades europeias são fabricadas na China, depois enviadas para os EUA
e dali para a Europa por… via aérea! A sua produção, exploração e duração está
longe de trazer benefícios ambientais substanciais, mas… deixa os autarcas
orgulhosos e os grupos ambientalistas a pular de contentes, ocultando os custos
energéticos de funcionamento, de recolha e reparação dos veículos que não duram
mais que dois meses. Os cães ladram e a caravana passa…
Sem comentários:
Enviar um comentário