sábado, 2 de janeiro de 2021

O ‘mercado’, o PIB e a vida

 1 - O “mercado” condiciona a vida

2 – O Estado partner da finança

3 – O PIB e o covid

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1 - O “mercado” condiciona a vida

Recentemente, a OCDE ofereceu ao “mercado”, um panorama muito global da economia para os próximos tempos, através do tão falado – tal como pouco rigoroso, PIB. (ver gráfico no final)

Em concreto, o mercado é um local onde se encontra gente normal, vendedores e compradores de bens necessários à subsistência e à vida.

Em economês, o “mercado” é uma extrapolação tendencialmente infinita e particularmente nebulosa de um mercado. Em economês, chama-se “mercado” ao espaço etéreo onde se cruzam, interesses e poderes muito distintos - pessoas normais; pestilências nocivas, como capitalistas (individuais ou coletivos) e classes políticas; mercadorias, tudo o que se transaciona no “mercado” mesmo que tenha apenas uma existência virtual; e dinheiro, muito dinheiro (na sua esmagadora maioria sob a forma de um registo, algures, nas contas das instituições do sistema financeiro) sendo o dinheiro, claro, também ele, uma mercadoria, a principal e a mais espalhada das mercadorias, deixando… o covid-19 muito para trás.

O funcionamento do “mercado” não tem as pessoas como as beneficiárias ou como o objetivo da sua existência. O “mercado” toma os 7000 M de pessoas que habitam o planeta como instrumentos para o funcionamento do próprio “mercado”, como minas de onde se extrai a capacidade de transformação da natureza em bens e prestação de serviços, mais ou menos necessários, e que são também, mercadorias, elementos coisificados, amortizáveis até à consideração como lixo. Como essa pulsão é sempre parca para as ambições do capital as limitações próprias do planeta Terra precisam de ser superadas; e daí que um conhecido capitalista de topo (Elon Musk) leve muito a sério a colonização e o garantido conspurco de Marte!

O funcionamento do “mercado” processa-se, não em função da disponibilidade de bens e serviços essenciais para a vida e a reprodução da própria natureza (incluindo nesta os seres humanos) mas de produtos de consumo, serviços ou, os impulsos eletrónicos necessários ao engrossar do capital já acumulado. Se esse mecanismo alterar ou destruir o meio ambiente, local ou global; se promover o sofrimento e enormes carências a parte significativa da Humanidade; se envenenar ou destruir campos e cidades isso são danos colaterais, certamente superáveis por uma subida dos títulos no NYSE ou no NASDAQ, alegrando os seus detentores. E, são esses artífices que definem, no essencial, o conteúdo dos media e a criatividade dos plumitivos, por dever do ofício, pouco atentos à crescente margem de descontrolo na gestão do próprio sistema global; dedicando-se mais à coscuvilhice, aos fait-divers da política e do futebol - Their master’s voices.

O S&P 500 (Standard & Poors) é um exemplo acabado do capitalismo neste século XXI. Engloba as ações das 500 empresas mais relevantes dos EUA, cotadas na NYSE ou no NASDAQ e tem a importância de definir as tendências do “mercado”; na verdade, baseia-se muito no irreal quanto à evolução e rendabilidade de etéreos elementos, que se podem dividir em dois grandes grupos;

·         as que se relacionam com transações de terrenos, recursos naturais, imobiliário, ações, moeda ou mercadorias; isto é, elementos com uma materialidade intrínseca;

·         ou, elementos imateriais, virtuais, como patentes, valores atribuídos às marcas, a avaliação que se faz do valor da clientela de uma empresa ou do seu software.

Porém, o valor atribuído aos intangíveis tem-se mostrado mais e mais determinante na criação do valor atribuído pelo “mercado” (e de um saco roto, chamado PIB), tornando-o etéreo, frágil e, na realidade, sem relação com a vida dos seres humanos em geral. Sendo as transações baseadas em elementos meramente conceptuais, cavalgando impulsos elétricos, as suas variações, inseridas na volúpia financeira, não deixam de afetar pesadamente, milhões de seres humanos, através das atuações dos governos e das classes políticas em geral, quando algo foge aos desígnios de acumulação de capital. Mais do que nunca, o “mercado” é um jogo, um casino, uma artificialidade que tem a particularidade de fazer transitar os seus efeitos nefastos sobre milhares de milhões de seres humanos, sem deixar de engordar uma escassa elite que Manuel Castells, no princípio do século, calculava em 1% da população mundial.

 

1975

1985

1995

2005

2018

 $ Biliões *

0.122

0.428

3.12

9.28

21.03

% dos intangíveis no total do S&P- 500

17%

32%

68%

80%

90% **

                     * 1 B = 10^12   (Europa)     ** 2020  

            Fonte: https://www.visualcapitalist.com/the-soaring-value-of-intangible-assets-in-the-sp-500/

A entrada em cena do coronavírus veio tornar evidente a incapacidade das instituições do capital (multinacionais e instituições, como a OMS, capturadas por interesses privados), sem esquecer as enormes responsabilidades dos governos, sempre lestos no empobrecimento e na retirada de direitos e, em evidente desnorte para superar as sequelas da invasão virótica. Assim, o número de infetados continua a crescer (mais de 84 M de pessoas entre as quais se destacam 1.8 M de vitimas mortais, quando se aproxima o final do período de um ano decorrido desde o surgimento do covid-19. Somente uma mudança coperniciana que, criando democracia, anule os nacionalismos, os poderes de estado, as classes políticas e torne a economia como o instrumento de harmónico encontro entre a Humanidade e o planeta.

Perante protestos e rebeliões, há sempre disponível, pelos poderes políticos, uma cuidada panóplia de recursos repressivos ou destruidores, que vão das várias estirpes de polícias, hierarquizadas em função da bestialidade, aos bombardeamentos de cidades, com a geração de milhões de refugiados, para além da utilização dos instrumentos de guerra eletrónica, “limpa”, capazes de liquidar pessoas específicas ou, arrasar cidades. Saddam Hussein, mesmo tendo vários sósias - que nem os seus guardas reconheciam como tal - acabou por não escapar à execução ordenada pelo ocupante; e o general Suleimani foi abatido sem uma vetusta e protocolar declaração de guerra ou invasão. Trump é um símbolo maior da modernidade pós-fascista.

O que no século XVIII se veio a designar por economia, consistia na adequação do esforço humano à satisfação das necessidades. Com o capitalismo passou a estar associada à acumulação de capital, no âmbito de uma compulsão demente pela procura de um crescimento infinito do PIB, mesmo que este só tenha nome desde 1932. Apesar dessa pulsão na direção do infinito, a satisfação das necessidades humanas reais – comida, habitação, saúde, paz e educação – é sistematicamente prejudicada em detrimento da acumulação de capital, hoje, maioritariamente sob a forma de registos eletrónicos que se multiplicam incessantemente, sem gerar uma migalha de pão; mas, surripiando muitas migalhas a quem não vive na volúpia da especulação financeira.

2 – O Estado partner da finança

Essa loucura desenvolvida pelo sistema financeiro, com a criação constante e acelerada de dinheiro, tem como contrapartida a criação de crédito, de dívida, junto de empresas, famílias e Estados, uma criação não correspondente à concomitante aplicação de poupanças; corresponde a uma antecipação do futuro, mormente dos rendimentos futuros que, dentro da prática vigente (económica e política) poderão não existir. Pelo contrário, a formação de cascatas de créditos por parte do sistema financeiro, processa-se sem ter na base qualquer volume significativo de poupanças. Assim, as poupanças ou simples depósitos colocados pelas pessoas, como forma de pecúlio que lhes dê alguma segurança no futuro, não estão minimamente garantidas… mesmo que os Estados garantam (… com ar sério…) € 100000 em caso de falência bancária!

É sabido que jamais o sistema financeiro terá capacidade de devolver os valores depositados pelos seus clientes tal como se sabe que as dívidas públicas têm um reembolso impossível; embora alguns economistas lusos, por ignorância ou reacionarismo, tenham apontado, há alguns anos, para uma reestruturação da dívida pública portuguesa, que na devida altura, considerámos (como hoje) tão impagável como ilegítima[1].

Assim, o PIB pretende representar tudo, representando, na realidade, pouco. Quando alguém prepara uma refeição para si, ela não conta para o PIB mas, se for a um restaurante passa a integrar-se no mercado e logo, contribui para o PIB! A ajuda a um jovem nos trabalhos escolares só entra no PIB se produzida numa empresa de explicações, numa base comercial. O PIB só considera o que é transacionado no “mercado”, sabendo-se que as transações efetuadas no mercado são, em grande parte exteriores e, portanto, insusceptíveis de integrar o santificado PIB. Um grande elemento de integração no PIB é o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) que incide sobre quase todas as aquisições de bens ou serviços[2]; um delator ao serviço do Estado, esse capitalista coletivo. No que diz respeito ao trabalho, ao esforço laboral, essa integração é assegurada pela retenção do imposto sobre a remuneração do trabalho (IRS). Finalmente, há uma interligação entre bens registados (e pagos) pelas empresas como necessários à sua atividade (sobretudo automóveis), mas cujo usufruto é permitido aos capitalistas e quadros superiores para o seu uso na sua vida privada, fugindo, portanto à taxação de um rendimento do trabalho.

A compra de material de guerra conta como… investimento nas contas nacionais! Ora, se um investimento é uma aplicação de rendimento em algo que permita a satisfação de uma necessidade individualizada ou coletiva, é bem claro que o equipamento militar é uma inutilidade e é artificial que conte para o PIB (na UE, no plano de contas de 2010, o SEC10). Note-se que o gasto militar compreende uma forte importação para a maioria dos países uma vez que a produção se acha muito concentrada em poucos o que, pela sua sofisticação, torna os compradores (a grande maioria dos países) dependentes de componentes ou do municiamento vindo do exterior; uma fragilidade inerente às respetivas geopolíticas mas que redundam, em regra, na incapacidade para o envolvimento em guerras, a não ser que as grandes potências produtoras ou as redes de contrabando alimentem a logística.

Em Portugal, calcula-se que um rendimento correspondente a cerca do 25 a 29% do PIB não é contabilizado no seio deste último. E isso desgosta bastante todos os governos, sempre prontos e ansiosos para reduzir nos custos sociais e aumentar a receita de impostos, taxas, coimas… como desgosta os economicistas, com uma verdadeira fixação no crescimento infinito do PIB…

Há uma luta constante do binómio Estados/classes políticas para enquadrar sob o seu conhecimento e a sua enorme capacidade de predação, toda a produção de bens e serviços, sem excepções, como se todas as transações entre os humanos tenham ou devam integrar uma lógica mercantil. Entre as poucas situações em que os Estados e as classes políticas são tolerantes face a uma não contabilização no PIB, a principal é a corrupção; e, por motivos óbvios, uma vez que pugnam por uma vida desafogada e feliz, conseguida através da mentira e do roubo, com a conivência distraída da juizaria.

Para que toda essa maquinaria opressiva e cleptocrática funcione são precisos governos onde pululem mandarins encartados no tráfico de influências, jovens tecnocratas ansiosos de promoção e bastantes imbecis de que a História não fará menção e que procuram a glória financeira como resultado de favores a empresários.

Assim, não admira que a casta governamental cresça, cresça substancialmente. Em Portugal, o primeiro governo constitucional, em 1976, tinha 18 ministros e 37 secretários de estado; o atual tem 27 ministros e 68 secretários de estado, sem esquecer toneladas de secretários e assessores, todos pagos pelo erário público.

3 – O PIB e o covid

De acordo com a OCDE as perspetivas de crescimento do PIB apresentam-se muito auspiciosas para os próximos dois anos. É possível que depois deste annus horribilis (2020) a situação económica se mostre menos desastrosa, embora isso se não deva repercutir nos desempregados em espera de melhores dias e, menos ainda, em quantos transitaram de depósitos de velhos (cinicamente designados por lares) para o cemitério. A produção e venda de vacinas terá, certamente efeitos no crescimento do PIB.

O equilíbrio entre as poupanças disponíveis e o investimento financiado por aquelas deixou de ter qualquer significado, a partir do momento em que o sistema financeiro corre em pista própria, separado do mundo real; os bancos centrais emitem circuitos eletrónicos que vão inchar as disponibilidades dos bancos tendo, em contrapartida, direitos creditícios sobre aqueles, cujo retorno provavelmente nunca acontecerá.

Assim, o FED dos EUA disponibilizou até ao fim de 2020 aos grandes bancos um bilião (nos EUA é um trilião) de dólares, como créditos de muito curto prazo, numa ação concertada com os outros bancos centrais (BCE, e bancos do Canadá, Japão e Suíça) para que não faltem dólares no mercado, numa altura em que vai ser distribuído pela população uma verba destinada a compensar danos resultantes do vírus e da desastrada forma como aquele tem sido combatido pela administração Trump.

A dívida pública dos EUA manteve-se estável entre 1994 e 2008, entre 54 e 63% do PIB; em 2009, com a crise dos subprimes passou a 74%, com 84% no ano seguinte e a 92% em 2011; o crescimento, ainda que mais lento, atingiu 107% em 2020 e 122% em abril último. Em dólares isso significa a passagem de 4 5 triliões (biliões na Europa) em 1994, para 9.2 em 2008, 14 em 2011 e 23.7 em abril último. Uma chuva de dinheiro, um sucesso… que deixou de fora a grande faixa de população pobre.

Em Portugal, nos primeiros dez meses do ano, o impacto das medidas adoptadas no âmbito do Covid-19 reproduzia um valor de € 7692.5 M repartidos entre quebras de receita e aumentos de despesa (um valor equivalente a 3.6% do PIB de 2019). Os mais relevantes contributos para essas quebras são os seguintes:

·         Medidas com impacto na receita - € 1508.3 M (893.9 M e 611.1 M, respetivamente no âmbito da Administração Central e da Segurança Social[3]) e, no seu essencial, constituídas por suspensões de pagamentos de IRC (€ 791 M) e de isenção de pagamentos da TSU (€ 477 M); e ainda, suspensões de execuções fiscais (€ 68.5 M) ou contributivas (€ 71.8 M), beneficiando certamente uma boa parcela de empresários tipicamente relapsos e fraudulentos.

·         Medidas com impacto na despesa - € 2356.2 M, destacando-se € 819 M relativos aos layoffs, € 201.3 M de apoio as trabalhadores independentes, € 368.4 M quanto a equipamentos de saúde e € 248.4 M de subsídios diversos.

E, claro, ainda não estão contabilizados a compra das vacinas e os gastos correlacionados…

Se observarmos a evolução da dívida pública nos períodos janeiro/outubro em 2019 e 2020, facilmente se denota que o acréscimo da dívida em 2020 é cerca de dez vezes superior ao registado no ano anterior (em € milhões). Muito além, por conseguinte da soma dos acréscimos de despesa e de redução das receitas.

2019   (jan/out)

  + 1225 M

2020   (jan/out)

 + 12896  M


O aumento da dívida é sempre fácil, dado o baixíssimo nível das taxas de juro (até mesmo negativas) e, principalmente porque o sistema financeiro necessita de captar dívida dos Estados, para entregar ao BCE, como garantia dos fundos que o banco central emite, com o objetivo de ser aplicado na volúpia do capital financeiro. O enriquecimento deste, pouco ou nada tem a ver com a vida dos povos, aumenta as desigualdades mas… reflete-se positivamente no conhecido PIB!

A UE tem encarado a pandemia através do seu habitual e estreito economicismo, recordando que no início, era apenas um “mercado comum”; e, assim, tudo pensa resolver com uma focagem na mobilização de dinheiro, de um Quadro Financeiro Plurianual (QFP) vigente até 2027, a repartir pelos estados-membros, cabendo a Portugal € 30000 M, a contemplar nos orçamentos e ainda, € 15300 M de subvenções, sem prejuízo do recurso a mais empréstimos.

Os burocratas, de pendor economicista ou meros mandarins, especialistas no tráfico de influências, praticando um reles malabarismo político, apenas se baseiam na pressão sobre as pessoas, na redução do seu bem-estar, no isolamento, no estreitamento das distâncias e das frequências nos seus movimentos, no uso de máscaras e frequente uso de álcool-gel que, como se vê, de pouco têm servido. Até que descobriram a vasta panóplia de vacinas para espetar na população, com preços variáveis[4] mas excluindo as criadas pelos adversários geopolíticos, chineses e russos. E olham com culposa indiferença as principais vítimas do vírus, os velhos, sobretudo se confinados em lares, indefesos perante a peste que lhes entra pela porta; e, que compõem a esmagadora maioria dos casos de morte por covid-19.

O gráfico que se segue espelha as perspetivas de crescimento avançadas pela OCDE, para os próximos dois anos. Talvez seja, sobretudo, a formulação de algo que console os povos submetidos ao medo do covid-19 e da sua recente variante; e que, amedrontados, restringidos e confinados, despedidos ou colocados em layoff, assistem, amedrontados ou embalados pela verborreia das classes políticas, à engorda do capital financeiro.

                             https://stats.oecd.org/viewhtml.aspx?datasetcode=EO108_INTERNET&lang=en



Este e outros textos em

http://grazia-tanta.blogspot.com/

http://www.slideshare.net/durgarrai/documents

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[2] Para além de outros impostos com uma incidência específica a certos consumos (cerveja, tabaco, combustíveis); inerentes à propriedade (IS  Veículos, IUC  ou IMI) ou aquisições (automóveis, embarcações de recreio…) e outros, sempre na mira do gang governamental de turno, com uma incidência mais genérica, como o imposto do selo.

[4]  Oxford/AstraZeneca - €1.78;  Johnson & Johnson - €6.9;  Sanofi/GlaxoSmithKline - 7.56

Pfizer/BioNTech - €12; CureVac - €10; Moderna - €14.70, por dose

 

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