quarta-feira, 12 de março de 2014

A Ucrânia e a “comunidade internacional”

Sumário:

1 – A disputa da Ucrânia
2 – No quadro da Jugoslávia
3 – O cenário palestiniano
4 – A partição do Sudão
5 – Aventuras e desventuras do amigo Saddam
6 - O porta-aviões do Barhein


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A “comunidade internacional” faz-nos lembrar a bela ária de Verdi “la donna è mobile qual piuma al vento, muta d’accento e di pensiero”; só que esta “donna” não é uma mulher mas, a expressão dos volúveis interesses que espalham sofrimentos pelo planeta. E, por isso mesmo, se mantém com um contorno variável e impreciso.

A pluma agora está centrada nas planícies da Ucrânia e convém recordar a propósito, algumas das suas recentes mudanças ou duradouras atitudes.


1 – A disputa da Ucrânia

Parece claro que a Ucrânia vai mudar de configuração geográfica, pelo menos no que se refere à Crimeia, cuja secessão se concretizará muito em breve, mesmo que a “comunidade internacional” grite a várias e desafinadas vozes – Kerry, Ashton, Hollande e outras de menor audiência como o nosso Chancerelle. Algumas dessas vozes fazem-se ouvir só para cumprir calendário, pois a Crimeia não vale os negócios das cerca de 6000 grandes empresas com investimentos e bons negócios na Rússia. Certamente no jogo atual que se desenrola no cenário ucraniano vale muito mais o papel de Gerhard Schroeder, antigo chanceler alemão e atual executivo da Gazprom, do que todos os papagaios acima referidos.

Mais complicada será a situação no atual Leste ucraniano, em perfeita contiguidade geográfica com o Oeste, com populações de falas, crenças e estruturas distintas. Recordemos a propósito que a Ucrânia é uma construção estatal com apenas 23 anos e que a sua consolidação nunca passou da primeira infância. A Escócia tem previsto para setembro deste ano um referendo sobre a independência face ao reino dos Windsor e a bela “comunidade internacional” ainda não se indispôs com os escoceses.

Para além do foguetório diplomático e do alarmismo dos media que vêm a guerra como inevitável, resta o congelamento dos teres e haveres de 18 corruptos ucranianos próximos do Yanukovitch (incluindo o próprio) e o azedume revelado pela “comunidade internacional” quando enviou para o Mar Negro uma poderosa armada constituída por um destroyer para se juntar às temíveis (?) marinhas romena e búlgara, para além de dez aviões que remeteu para a Lituânia. Por comparação, recorde-se que, seis anos atrás os russos subtrairam a Abcásia e a Ossétia do Sul à Geórgia de Saakashvili que queria o seu país na NATO; e o célebre e ardente George W. Bush reconheceu que estava na área de influência da Rússia e meteu a viola no saco.

Em Kiev um governo recheado de fascistas, dirigido pelo banqueiro Yatseniuk, procurará garantir a integração na UE e na NATO, tentando convencer os ucranianos que os fundos comunitários não trazem, no final do processo a garantida inclusão numa já existente periferia leste, certamente pobre, desestruturada, não “competitiva” apesar dos baixos salários. Presume-se que o investimento estrangeiro terá alguma concentração nas boas terras negras onde a Monsanto e quejandas planeiam plantar os seus transgénicos, desalojando camponeses pobres. Esse processo está em curso na Roménia e a patente será também válida para a Ucrânia.

Aguardemos. Para quem não tem intervenção no terreno mais não é possível que analisar esses projetos de domínio e as suas consequências já observáveis noutras latitudes e tempos históricos, tendo em conta a hierarquia capitalista existente, as suas mutações e que os EUA são a única potência com capacidade e veleidades de intervenção a nível planetário. A Rússia é uma potência que também se procura impor nas suas imediações mas, que tem um caráter regional, distante do papel de superpotência que a antiga URSS detinha. Por outro lado, para os EUA, o principal adversário é a China que, convém seja dito, constitui com a Rússia a coluna vertebral da OCX – Organização de Cooperação de Xangai.

Resta saber se os 46 milhões de ucranianos de oeste e de leste, da Galícia, da Crimeia, ou do Donbass conseguem impor os seus interesses aos da hierarquia capitalista e dos estados que lhe dão forma; ou, se se deixam envolver em narrativas identitárias, de exclusão do “outro” perante o sorriso deliciado dos capitalistas e da CDU alemã cuja Fundação Konrad Adenauer financia o ex-boxer Klitschko. Essas narrativas já têm no terreno os seus cães de fila do Svoboda e do Sector Privado, abertamente nazis.


2 – No quadro da Jugoslávia

A Jugoslávia foi uma construção estatal que durou mais de 80 anos e nela se juntaram várias línguas, grafias, religiões, o que não impediu que se misturassem no território e na cama uns com os outros. Desavindos por causa de um ditadorzeco de meia tijela – Milosevic – a intervenção da “comunidade internacional” foi, de facto, decisiva. Não para aplacar os ânimos mas, para regar o terreno com ódios, separatismos, êxodos, limpezas étnicas, sangue e bombas de urânio empobrecido, que lá continuarão enterradas durante uns 10000 anos para recordar esses tempos às próximas 400 gerações.

Das seis repúblicas então federadas saíram sete mais as duas sub-repúblicas bósnias, todas pobres, endividadas, dependentes, ainda que duas delas tenham vindo matar saudades da sua velha inclusão no espaço do defunto império dos Habsburgos (Eslovénia a Croácia), sob o alto patrocínio da Alemanha e do Wojtyla. Não se sabe se o papa Francisco alguma vez virá a pedir desculpas formais aos jugoslavos que foram vítimas do bispo Ante Pavelic e dos seus ustachas cujas sevícias aos prisioneiros arrepiavam os SS nazis, que não eram exatamente meninos de coro.

A Sérvia caminha atrás da UE e dos seus fundos, qual burro atrás da cenoura, enquanto não reconhecer a existência do Kosovo, filho legítimo da “comunidade internacional”. Para ajudar esse benevolente dador de euros chamado UE, o Kosovo trabalha arduamente no tráfego de droga e de órgãos humanos; com um filho de saúde tão problemática, sua mãe, zela pela arrumação da casa com as tropas da KFOR e a base americana de Bondsteel, conhecida por pequena Guantanamo, o guardião da lei e da ordem de que a “comunidade internacional” tanto aprecia, em todo o cenário balcânico.

A Bósnia com uma burocracia estatal diversificada, por “etnia”[1], corrupta até ao tutano como é apanágio das burocracias, apresenta uma repartição territorial entre as duas repúblicas absolutamente disparatada. As dificuldades económicas mostram como é possível mandar às urtigas as taras nacionalistas, étnicas e religiosas e combater lado a lado, como se tem visto ultimamente.

Também a “comunidade internacional” acolheu com carinho a independência do Montenegro que tem apenas 620000 pessoas apenas porque a separação da Sérvia cortava a esta uma ligação direta ao Adriático.

Finalmente, surgiu uma Macedónia que só pode ser reconhecida como FYROM – Former Yugoslavian Republic of Macedonia, porque a Grécia considera ter direitos históricos sobre o nome de Macedónia, embora tenha sido esta a conquistar a terra grega e não o contrário.

Em suma, no espaço da ex-Jugoslávia sobra desintegração espacial, nacionalismos exacerbados, pobreza, desemprego, privatizações, emigração, tudo no quadro do modelo neoliberal com instituições “democráticas” que integram gangs mafiosos intitulados partidos políticos.


3 – O cenário palestiniano

Mesmo para quem defenda a existência da entidade israelita (não é o nosso caso) os atropelos das decisões da ONU ou dos acordos bilaterais e os crimes contra a Humanidade são tantos que nada justifica a infinita tolerância da “comunidade internacional” perante as punições militares sobre a população palestiniana e que nunca conduziu políticos e generais israelitas ao banco dos réus no Tribunal de Haia. A justiça da “comunidade internacional” observou-se com o já referido Milosevic e outros patifes jugoslavos, tal com o liberiano Taylor mas, já não com israelitas porque estes têm um seguro junto dos Rotschild e afins.

A construção do muro de separação entre o território palestiniano ocupado e o que vai sobrando como integrando a Autoridade Palestiniana é condenado em todas as instâncias sem que a “comunidade internacional” se digne ao mais ligeiro boicote, à mais leve das sanções sobre os genocidas israelitas. Prosseguem actos de desestruturação do território palestiniano, de apropriação da água, de policiamento sistemático e armado daquele território teoricamente sob os auspícios da tal Autoridade, que torna esta um simples ornamento político. A recusa dos direitos de pesca nas águas de Gaza, o controlo das fronteiras palestinianas, são outras tantas atitudes que mereceriam atitudes firmes da “comunidade internacional”.

A autoridade israelita detém – sem subscrever os termos do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares – umas 150 bombas atómicas, num cenário regional onde nenhum estado as têm. E nem se compreendem os receios da entidade israelita, quando se sabe os seus mísseis Jericó terem um alcance de 15000 km… o que permitirá aos sionistas atingir, por exemplo, o Rio de Janeiro. Este arsenal atómico inicialmente construído com apoio francês não é objeto de contestação nem sanções por parte da “comunidade internacional”; porém, o Irão não se demonstrando que possua armas atómicas, tem sido vítima de pesadas sanções decretadas pela “comunidade internacional” à qual convém manter a ilusão da sua existência, para criar dificuldades ao país tendencialmente pivot na área do Golfo Pérsico.

A “comunidade internacional” revela-se na sua forma mais esquelética e ridícula quando, nas votações condenatórias da entidade israelita na ONU, os sionistas só têm o apoio dos EUA e das Ilhas Marshall.

A UE, tropa indisciplinada que incorpora a “comunidade internacional” sem determinar as suas decisões, assume também a sua benevolência para com a entidade israelita quando limpa a sua consciência entregando uns milhões de euros à Autoridade Palestiniana para a recuperação dos estragos provocados pelos bombardeamentos sionistas, sem os incriminar e mantendo as relações diplomáticas, económicas e desportivas com aquele quisto genocida.


4 – A partição do Sudão

Há muitos anos que o tutor da “comunidade internacional”, os EUA, não gostam do regime sudanês, embora este em nada se distinga de outros no cenário africano ou asiático, no capítulo da democracia e dos direitos. Nos anos  noventa, Clinton ordenou a heróica acção de bombardear uma fábrica de medicamentos no Sudão.

Com a descoberta de petróleo – explorado por várias companhias, mormente asiáticas – avivou-se no sul uma pulsão separatista e a “comunidade internacional” logo se apressou a criar um novo estado em 2011 – o Sudão do Sul - com uma população muito pobre e sem estruturas políticas ou sociais. A “comunidade internacional” ajudou a separação entre os sudaneses do sul (pretos bons) e os do norte (árabes maus). Entretanto, a guerra civil diversificou-se; no Sudão, há dois movimentos de guerrilha contra o governo de Cartum, perto da fronteira sul, nas regiões de Kordofan e Nilo Azul enquanto no Sudão do Sul se digladiam duas facções, em luta pelo poder.

Na separação ficou por definir a jurisdição da zona de Abyei, rica em petróleo e as refinarias ficam no Sudão (norte) tal como o terminal de Port Sudan, no mar Vermelho, pelo qual se escoam forçosamente as exportações do Sudão do Sul.


5 – Aventuras e desventuras do amigo Saddam

A tutoria da “comunidade internacional” forneceu armamento ao Iraque de Saddam para que este favorecesse a derrota da nova governação iraniana, condenada por ter eliminado a monarquia que funcionava como o gendarme dos EUA na área do Golfo Pérsico.

Após oito anos de sangrenta guerra e de massiva e comprovada utilização de armas químicas por Saddam, este não conseguiu derrotar o Irão, ficou endividado e, claro, a “comunidade internacional”, não se preocupou com os crimes de guerra do ditador.

Num tremendo erro estratégico, Saddam invadiu em 1991 o Kuwait, antiga parcela de território iraquiana, desanexada pelos ingleses por razões estratégicas no século XIX, precisamente para equilibrar as suas depauperadas finanças após tantos anos de guerra. Numa breve guerra levada a cabo pela “comunidade internacional”, esta derrotou Saddam, reentregou o Kuwait à família al-Sabah e o Iraque foi submetido a um plano de sanções e controlo financeiro e comercial que provocou centenas de milhar de mortos na população, dada a subnutrição e a falta de medicamentos.

Apesar dessa situação calamitosa, em 2003 o Iraque foi acusado por George W. Bush de conluio com a al-Qaeda - que na realidade se tem demonstrado um auxiliar estratégico dos EUA – e de ter escondidas armas de destruição massiva. As tais armas serviram apenas como argumento de intoxicação mediática.

Na guerra lançada em 2003, todo o território iraquiano foi ocupado pela “comunidade internacional” que, para além de uma redistribuição das fontes petrolíferas – como anos depois aconteceria na Líbia – pensou dividir o país em três, no âmbito de disparatada e criminosa tese do Pentágono, o nation-building. Propunha-se então, uma separação entre o sul iraquiano de maioria xiita, o centro onde predominam sunitas e o norte, maioritariamente ocupado por curdos. Na realidade, só na área curda se gerou alguma autonomia, na sequência do estabelecimento de zonas excluídas da autoridade de Saddam, depois da primeira guerra, em 1991; e o Iraque a despeito das suas muitas dificuldades, continua a ser um só país.

A “comunidade internacional” cria independências e separatismos ou força unidades de acordo com as conveniências do momento ou, melhor, em função dos interesses das multinacionais, do capital financeiro ou das conveniências estratégicas das potências que dirigem e treinam a “comunidade internacional”.


6 - O porta-aviões do Barhein

Em 2011 a população do Bahrein manifestou-se contra o poder absoluto da família reinante dos al-Khalifa. Porém, contra o povo, estava garantida a hostilidade da “comunidade internacional”, neste caso restrita ao CCG – Conselho de Cooperação do Golfo, que une todas as monarquias, sultanatos e emiratos do Golfo Pérsico. E isso, por duas razões. Uma, porque as camadas mais exploradas e reprimidas do povo barheini são xiitas, ao contrário dos al-Khalifa que são sunitas; e o outro motivo é que no Bahrein se situa o quartel-general da Quinta Armada dos EUA, cuja função é o controlo do tráfego no Golfo Pérsico e do estreito de Ormuz. Aos povos nem sempre é atribuído o direito a ter a sua própria posição geográfica, sem interferências alheias.

Como as forças repressivas do monarca local estavam com dificuldade em conter os protestos, a referida sentinela local da “comunidade internacional” avançou com tropas para o Bahrein, não fossem os barheinis imitar os tunisinos ou os egípcios. Importava acima de tudo garantir a tranquilidade da presença norte-americana na região, evitar que a revolta se propagasse e fizesse tremer os sultões e emires das imediações e ainda garantir o devido respeito por parte do inimigo iraniano e xiita, logo ali em frente.

Na mesma época, iniciou-se também a revolta na Síria, exigindo democracia e o fim da dinastia dos al-Assad; o governo reagiu como reagem todos os poderes – com a brutalidade necessária e conveniente. Sabe-se que a “comunidade internacional” logo começou a apoiar com dinheiro e armas os rebeldes, entre eles fanáticos integristas que acabaram por estar ao nível da brutalidade do regime. Sabe-se do envolvimento dos países da região que integram a “comunidade internacional” no combate a al-Assad, incluindo com ameaças de ações de guerra.

No Bahrein o regime é virtuoso e os protestos porque ilegítimos são reprimidos por forças importadas da vizinhança. Na Síria a virtude de Allah está com os rebeldes, a merecer todo o apoio dos estados da vizinhança, da tutela norte-americana e do desdentado Hollande enquanto al-Assad é objeto de toda a oposição e de ameaças.

A “comunidade internacional” relembra-nos que “la donna è mobile qual piuma al vento, muta d’accento e di pensiero”.


Este e outros textos em:




[1] Não sabemos se uma pessoa de origem sérvia e muçulmana é uma ou outra coisa na classificação da “comunidade internacional”, o mesmo sucedendo a um croata igualmente islâmico. E se alguém tem pai sérvio e mãe croata, o que será? Poderá ser muçulmano? Recordamos a tara da importância da raça para a classificação de gente nos EUA, o que permite as mais ridículas opções, como resposta à natural misceginação que as migrações vêm aumentando.

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