quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Os guetos em tempos de  pobreza

Em tempo de pobreza acrescida, a sociedade portuguesa acorda para a existência de guetos, em regra escondidos, sem acesso por autoestrada e de onde fogem os cidadãos comuns, por legítimo receio ou mero preconceito.

Exemplificamos aqui a situação a partir da exposição que os ciganos tiveram a propósito dos acontecimentos da Quinta da Fonte Santa. E para que cada um avalie bem o seu próprio quinhão de racismo, nem sempre explícito para o próprio.

1 – A diabolização do outro

Desde sempre os ciganos souberam viver nas margens do sistema formal da economia, integrando-se nela, no entanto, de acordo com o que lhes é permitido, consoante as suas conveniências e alicerçando-se num forte espírito comunitário, que lhes serve de escudo, quando necessário.

O Estado e a sociedade que o suporta sempre permitiram esse limbo,  porque daí advêm evidentes vantagens, nomeadamente para alguns extratos sociais, muito minoritários. Quando chegam situações de crise, são os primeiros a ser perseguidos e Hitler também não lhes  perdoou a diferença; e diferentes continuaram para os Aliados que não reconheceram em Nuremberga o seu carácter de vítimas do nazismo. Porquê? Porque não obtiveram, como os judeus, a dignidade que o dinheiro compra, não recolhendo, por consequência, o reconhecimento ou um estado de Israel plantado em terras alheias.

O cigano pode ser apontado como a encarnação do perigo, da violência latente, do “outro”, do diferente, onde facilmente se descobrem crimes reais ou inventados. Em Portugal, tradicionalmente, o cigano é o objecto do racismo envergonhado que por vezes salta à luz do dia, desentranhado com raiva. E, como estamos em era de globalização, o “mercado” também aqui gerou concorrência; a dos africanos, dos ucranianos, dos brasileiros, os primeiros acusados de ladrões, os segundos de mafiosos, as terceiras como desviantes de homens bem casados.

Felizmente... que a Comissão Europeia está vigilante, decidindo criminalizar a imigração em geral, para sossego das almas simples e assustadas, que nem se aperceberam que o vigarista Berlusconi manda o exército contra eles.

Empurrados para fora da respeitável sociedade dos portugueses de gema, os ciganos vão-se desenrascando como melhor sabem e podem, com a criatividade a que os pobres são obrigados a ser capazes. Veja-se como seria mais pobre a música popular europeia se não existisse a música de influência cigana, com o flamenco, com a sua predominância nos Balcãs e na Hungria, onde não é fácil de distinguir onde começa a música “nativa” e acaba a música cigana que até influenciou a própria música dita clássica (v.g. Haifetz e Kodaly).

O Estado e a sociedade, interessados na sua perpetuidade como comunidade estranha, como um quisto, polarizador de procedimentos catárticos, enfia-os em áreas próprias, isoladas do resto da população, como elementos de um zoo que o turismo ainda não aproveitou nos circuitos de cidade. E chama a essas áreas, bairros sociais.

Como o Estado e a sociedade não querem misturas com eles acham por bem juntá-los todos e acrescentar-lhes magotes de africanos igualmente pobres, para mais pretos, “todos iguais” como muitos dizem. Precisamente porque a sociedade não lhes quer admitir uma individualidade cidadã, junta todos, a esmo num mesmo “bairro social”, que toda a gente sabe ter o anátema de indesejável para as pessoas “normais”. A sociedade respeitável não lhes admite a dignidade que atribui a cães e gatos domésticos (de preferência de “raça”), com quem falam, que levam ao veterinário e metem dentro da cama.

A Câmara de Loures – decerto não é única neste comportamento de guetização – limita-se a fixar nuns ridículos 4 ou 5 euros a renda das casas do bairro e, nem sequer se importa que os habitantes não paguem. A Câmara paga, portanto para que “eles” sejam incentivados a continuar no gueto; paga para perpetuar a discriminação do “outro” e a aceitação desse facto pelo resto da população; paga para que se mantenham à margem, distantes, distraidos uns com os outros (africanos e ciganos), para que se não cruzem com as pessoas respeitáveis.

2 - O mito do RSI

É uma ideia feita junto das camadas populares, não desmentida pelo mandarinato ou pela superficialidade dos media, que os ciganos vivem do RSI, que este corresponde a uma pequena fortuna e que os seus beneficiários vivem como nababos, sem incentivos para trabalhar.

Os factos desmentem esse mito, pelo menos no que se refere ao valor do subsídio. De acordo com o publicado na imprensa em Julho último, havia 334 865 pessoas a receber RSI com um encargo público de um milhão de euros por dia, o que corresponde, se não nos enganamos a 3 euros diários por pessoa ou 90 euros por mês.


Curiosamente, provoca mais indignação do que a banca ao arrecadar 8,7 milhões de lucro por dia e que o Estado atribua aos bancos 700 milhões de euros de benefícios fiscais; ou que no folhetim BCP haja quem tenha manejado fraudulentamente muitos milhões de euros, recebendo milhões de reforma e indemnizações sujeitando-se em contrapartida à dura penalização de não poder exercer cargos num banco durante dez anos. E aceita-se com bonoma que, em 2007, a sisuda e programadamente ineficaz DGCI permita a evasão de centenas de mihões de euros em fugas de impostos ou prescrições de direitos de cobrança.

“A rica teve um menino, a pobre pariu um moço” diz a canção, interpretando o pensamento dos miseráveis em relação aos mais pobres e a deferência para com o rico ou o patrão.

A diabolização do “outro” serve para justificar a mania securitária expressa por um ministro com cara de parvo que gosta de exibir a sua autoridade citando a lei e o estado de direito, abrindo bem os sons do seu grasnado para melhor se ouvir. Os ciganos, os imigrantes ajudam os socratóides a justificar contratos de segurança, aquisição de equipamento de vigilância, etc; são pois equiparados a custos de promoção de vendas.

A sequência do ciclo inicia-se previamente na discriminação, social, no emprego e na habitação. Em que condições e onde conseguem ciganos ou imigrantes, por exemplo, alugar casas para não falar em adquirir?

A essa marginalização segue-se a inscrição no RSI como uma das poucas opções para a obtenção de rendimentos legais e apoios acessórios, como a utilização do SNS ou o acesso a casas nos bairros sociais.

Na  fase seguinte  há várias opções. A da resignação à miséria dum subsídio estatal; a da venda de roupas e cópias clandestinas de DVD's nas feiras; ou a integração em circuitos marginais.

3 - A integração nos circuitos económicos

Uma breve referência ao colonialismo português e ao modo como acentuou o subdesenvolvimento em Portugal e nas suas colónias permitirá elucidar alguns aspectos da relação entre a sociedade portuguesa respeitável e as comunidades ciganas.

A existência de colónias, com os seus mercados de consumo ainda que limitados, fidelizados ao abastecimento da “metrópole” faoreceu no capitalismo português uma aversão ao risco, à concorrência, ao investimento. Se as colónias eram obrigadas a consumir têxteis, vinho e bens de consumo produzidos em Portugal porque razão os capitalistas portugueses iriam investir em qualidade ou sofisticação? Recordamos que até o transporte era coutada dos bravos armadores portugueses e por isso, no princípio da década de 80 o governo do bloco central, sem colonias para administrar, conduziu a marinha mercante ao seu carácter residual de hoje.

Passados mais de 30 anos da descolonização os bravos capitalistas portugueses passaram a dedicar-se prioritariamente a actividades fora da concorrência externa; o imobiliário, a distribuição, as comunicações, Mas, a indústria continua a precisar de escoar os produtos de menor valia – têxteis lar, por exemplo – roupa de marca contrafeita ou DVD's piratas para além de produtos defeituosos não exportáveis.

E então, quem melhor poderá comercializar esses produtos produzidos por respeitáveis industriais lusos? Quem mais se arrisca a estar nas ruas de olho na polícia, nas chamadas “Boutique Alcofa” a vender esses produtos? Quem costuma estar presente em feiras e mercados apregoando camisolas da moda aos passantes? Os ciganos  protagonizam assim um negócio P2P à moda portuguesa, de pobre para pobre.

Este exemplo, evidencia a complementaridade entre capitalistas portugueses e a comunidade cigana. A polícia persegue ou faz que persegue os vendedores (nas feiras e nas ruas), enquanto o poder se distrai de intervir junto dos produtores, conivente óbvio de uma economia paralela que junta  “empresários”, políticos e funcionários. O mesmo sucede para os DVD's. Mesmo mediatizando apreensões volumosas para mostrar serviço, a verdade é que o abastecimento nunca falhou.

As fábricas têxteis que abastecem este mercado não se situam nos bairros sociais, tal como os locais onde se produzem os milhares de CD's e DVD's que reproduzem os produtos pimba que estão na berra. Essas indústrias encontram-se por aí, em locais recônditos, esquecidos pelos fiscais das finanças, sem anúncios luminosos e geram toda uma economia paralela de que os ciganos arrecadam a parte menor do lucro e a maior do risco.

E quanto às drogas? Os barcos que anunciam com foguetes a chegada à praia com material pertencem a ciganos com veia marinheira? Os reputados “industriais da noite” que contratam policias  de folga para seguranças, serão ciganos? Quanto do dinheiro que oleia o imobiliário ou a hotelaria/restauração, previamente lavado no discreto sistema bancário, resulta do tráfego de drogas?

Todos sabemos que a economia paralela é florescente e que nela se inclui, ainda mais florescente, a economia do crime. Sabe-se também, que quanto mais lucrativa é uma actividade, mais poderosos são os que a ela se dedicam e beneficiam; e, aí encontraremos sem dúvida, os bancos, muitos dos “empresários” e “investidores”, os partidos do poder, muitos autarcas, os donos do futebol. Qual a relevância de ciganos ou africanos neste mundo?

4 – Os preconceitos e a estupidez na sociedade respeitável

Em todo este contexto, a sociedade respeitável não pensa demasiado.

Vê, como recentemente, gente a pagar rendas ridículas e a receber o RSI com plasmas e playstations em casa. Talvez gostassem mais de os ver nas esquinas, andrajosos, de mão estendida à caridade pública, pois assim sentir-se-iam mais afastados da indigência. O que move muitos elementos respeitáveis de pura cepa lusitana é a inveja. Uma inveja tão pura, tão disfarçavel como um elefante num centro comercial.

Muitos, trabalhadores por conta de outrém, com o IRS retido pelo patrão, com o salário estagnado e os juros da casa a subir, ou a aposentação adiada têm, de facto, pouca margem para arrecadar uns cobres suplementares não tributados pela sanguessuga fiscal. E, têm dificuldades.

Pagam, porém, o seu preço pela total submissão a uma cidadania madrasta, a um Estado predador que muito exige e lhes devolve apenas um NIF gratuito e domicílio no país mais pobre da Europa ocidental. Custa-lhes ver elementos da comunidade cigana, que consideram de segunda classe, apenas com as pontes indispensáveis com a economia formal, viverem sem dificuldades que não o anátema e o risco da sua marginalização, da sua informalidade. O que não é pouco.

Como convém aos miseráveis, toleram tanto as golpadas dos ricos e dos corruptos como se sentem roubados pelos apoios aos pobres ou quando estes melhoram a sua vida. Em todos os casos um só sentimento: a inveja que consta no decálogo de Moisés e que grangeou tanto apoio popular nas cruzadas de Hitler contra os judeus. Em Portugal, Sócrates agradece-lhes, do fundo do coração, a sua distração.

Agosto 2008

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