segunda-feira, 28 de agosto de 2017

As transferências estatais para as autarquias e o controlo governamental



A grande dependência das autarquias face às transferências do Estado central é uma forma de controlo. A tradição centralista, mantendo o controlo financeiro da grande maioria das autarquias, evita a regionalização e mostra a sua aversão à democracia


Sumário
1 - A distribuição do produto do saque fiscal
2 - Transferências estatais substituem receitas fiscais autárquicas
3- Receitas fiscais – grandes disparidades na evolução em 2004/15
4 - As transferências da administração central
5 – A dependência das transferências do Estado
6 – Necessidade de um novo modelo de representação

O capitalismo gera, por natureza, desigualdades sociais e regionais, devido à sua paranoia pela acumulação, pela aceitação religiosa de que os mecanismos de mercado tudo resolvem, tudo equilibram, bastando para o efeito que cada pessoa inche de empreendedorismo e seja competitivo; o que só acontece com alguns, nomeadamente
desde que possuam capital já acumulado e capacidade de obter favores do Estado. 

No âmbito de uma incessante e jamais satisfeita necessidade de meios financeiros, as várias instâncias do Estado desenvolvem lutas para a repartição do dinheiro dos impostos e do poder para o gastar, reproduzindo as desigualdades sociais e regionais; em regra, com prejuízo para a população, afastada dessa repartição, decidida pela classe política através de um não-democrático modelo de representação política. As próprias políticas de desenvolvimento regional, comportam particularmente os interesses de empresas de obra pública ou de algumas empresas interessadas na exploração de recursos naturais ou humanos, surgindo os interesses da população como subproduto de adorno dos estudos. Quando os governos ou os autarcas anunciam um investimento gostam de referir o número de “postos de trabalho”, pouco referindo os níveis de qualificação e salariais ou os vínculos laborais; e, sobretudo, depois de realizado o investimento ninguém irá cotejar a propaganda ex ante com a realidade ex post.

1 – A distribuição do produto do saque fiscal

Vamos prosseguir a publicação de alguns textos sobre as finanças municipais, para que se observe a quantificação de alguns dos fluxos de fundos no seio das instituições do actual regime cleptocrático e empobrecedor da maioria. 

Toda a punção fiscal é exercida sobre a população, sempre através de uma máquina única, fechada, com uma burocracia kafkiana e centralizada junto do governo nacional; referimo-nos à Autoridade Tributária, entidade de caráter estratégico para o regime e para a vigência do típico centralismo do poder em Portugal. O produto da punção fiscal e de recursos financeiros com outras fontes, mormente provenientes da UE é objeto de uma cascata de redistribuições;

·  uma primeira redistribuição do pecúlio processa-se entre as instituições centrais, regionais e autárquicas, sob a suserania das primeiras, com elevado protagonismo do Ministério das Finanças e tendo, no seu conjunto, como agentes, as várias estirpes de membros da classe política;

·    procede-se, em seguida a uma segunda redistribuição, no seio de cada um daqueles níveis da administração estatal, no âmbito dos quais se observa uma luta acerada pelo aumento do respetivo quinhão, nomeadamente entre ministérios e também jogos de sedução exercidos por autarcas junto do poder central e das instâncias partidárias;

·   num terceiro círculo, contempla-se a satisfação dos interesses das estruturas partidárias locais, das famiglias que beneficiam de obras e serviços e ainda, no caso da administração central, dos negócios mediados por lobbys de advogados e de grandes empresas, habituais beneficiários de isenções, subvenções, contratos e despachos avulsos, a troco de corruptas transferências para os mandarins e partidos convenientes, para além de colocações em conselhos de administração a elementos das mafias. 

Todas essas movimentações de fundos colocados à disposição da classe política, têm como garantida a inexistência de qualquer real avaliação da sua distribuição e aplicação por parte das vítimas da punção fiscal, da população. Aliás, a população é institucionalmente colocada à margem porque a Constituição empurra o direito de voto na direção de instituições nada modelares como os partidos, tratando, em simultâneo, de complicar com uma pesada burocracia o aparecimento de listas fora de chapéu partidário; a não ser quando esses independentes apresentam a sua ligação partidária encoberta ou se apresentam em rotura com as suas origens partidárias mas, com o mesmo propósito de rapina e manipulação.

As receitas correntes das autarquias cresceram – em valor - nos últimos quatro anos quase tanto como nos sete anos anteriores, em franco contraste com os rendimentos do trabalho e do PIB do país. Esse crescimento é mais elevado no capítulo das transferências do Estado, mesmo que tenha abrandado no último quadriénio, ao contrário do que se verificou com as receitas fiscais. (ver quadro abaixo)

Quanto às receitas fiscais, o IMI é a grande mina que o regime cleptocrático descobriu para principal receita fiscal das autarquias; em 2004 correspondia a um terço daquelas receitas e em 2015 chega aos 60% do total, numa evolução que se inicia antes das exigências da troika. Como há uma evolução aproximada na taxação dos veículos, não é difícil concluir o caráter senhorial da administração autárquica, vivendo do rendimento predial de casas que foram construídas totalmente ao arrepio de uma política de habitação que nunca existiu e a despeito dos encargos camarários faraónicos[1] que oneram a construção de habitações. Com a mesma lógica, com autoestradas pagas em todo o lado, o regime participou no negócio privado das portagens e incentiva a compra de automóvel… para mais importados; não fomenta a utilização de transporte público (e onde fomenta, cobra em estacionamentos, camarários e privados); e ainda incide sobre o registo do automóvel um imposto único de circulação (IUC), com elevadas taxas de crescimento nos últimos onze anos. Toda esta azáfama tributária para munir as autarquias, não evitou o aumento da relevância das transferências vindas da administração central, nem se traduziu em melhorias substantivas nos serviços prestados.

O imposto municipal sobre as transmissões (IMT) tem um baixo crescimento no primeiro período, que aumenta claramente no segundo, precisamente no tempo em que a crise endémica na formação económica portuguesa atingiu o ponto mais baixo. Por seu turno, as derramas, com taxas de 0.5% a 1.5% sobre os lucros tributáveis das empresas, revelam um decrescimento contínuo.


M euros
var anual (%)

2.004
2.011
2.015
2004/11
2011/15
 Receitas correntes
    4.554  
    5.642  
   6.519  
3,4
3,9
 Vendas bens e serviços
       603  
       704  
      809  
2,4
3,7
 Transferências
    1.504  
    2.136  
   2.504  
6,0
4,3
     - da Admin. Central
    1.479  
    2.097  
   2.470  
6,0
4,4
 Rendimentos propriedade
       121  
       259  
      254  
16,3
-0,5
 Taxas e multas
       214  
       234  
      189  
1,3
-4,8






 Receitas fiscais
    2.253  
    2.452  
   2.847  
1,3
4,0
    - Impostos diretos 
    1.887  
    2.112  
   2.566  
1,7
5,4
      - IMI/Contrib Autárquica
       631  
    1.169  
   1.533  
12,2
7,8
      - IUC/IS Veículos
       114  
       184  
      241  
8,8
7,7
      - IMT/Sisa
       467  
       507  
      583  
1,2
3,8
      - Derrama
       380  
       251  
      208  
-4,8
-4,3
      - Abolidos
       293  
          7  
          1  
-13,9
-22,1
    - Impostos indiretos 
       366  
       134  
      122  
-
-2,2
  -Taxas

       206  
      160  
-
-5,6
                                                                                      Fonte primária – DGAL

2 - Transferências estatais substituem receitas fiscais autárquicas

No gráfico abaixo observa-se que até 2007 as receitas fiscais apresentaram um crescimento superior às transferências, sabendo-se que nestas há uma grande predominância das provenientes da administração central, como evidenciado no quadro anterior. A situação muda no ano seguinte porque, com o início da crise financeira internacional, há uma quebra significativa no IMT - ligado às transações imobiliárias - e na derrama, paga pelas empresas aos municípios mas, sem que se reduza a ascensão das transferências; o que só deixa de acontecer em 2011, ano em que o descalabro das contas públicas vem a nu, motivando a intervenção da troika

                                                                                 Fonte primária – DGAL

Assim, o ano de 2012 apresenta o ponto mais baixo dos últimos anos, quer para as receitas fiscais, quer para as transferências estatais destinadas às autarquias; esse ano, em contrapartida, foi o ponto alto do governo Passos e do magarefe Vítor Gaspar. Porém, em 2013, há um reforço significativo das transferências e um crescimento anémico da parcela da punção fiscal de que as câmaras são beneficiárias. E isso, uma vez que alicerçada na atividade económica e nos rendimentos da população, aquela punção ficou submetida às agruras da grande onda de redistribuição de rendimentos levada a cabo para beneficiar a competitividade das empresas em solo português; isto é, a intervenção da troika. Nos dois últimos anos, as receitas fiscais recuperam e atingem o nível observado em 2007, acompanhadas, em compensação, de alguma estagnação das transferências.

No âmbito destas mudanças, as transferências iniciam o período considerado com um valor correspondente a 70% das receitas fiscais, atingem o seu mais baixo nível comparativo em 2006 (63%), crescendo daí em diante até quase atingirem a paridade (98%) em 2013; decaem, desde então, para atingirem 86.8% em 2015, com a recuperação das receitas fiscais que, só em 2015 igualam os valores de 2007. 

É evidente uma solidariedade do Estado central para as autarquias, provavelmente com assimetrias entre as últimas mas, reveladora de uma grande dependência daquelas face ao orçamento do Estado. Isso foi, certamente, validado pela troika e, simultaneamente, aproveitado pelos governos para promoverem um maior controlo financeiro sobre as autarquias, discriminando, obviamente, entre os vários segmentos da classe política autárquica, os amigos e os adversários do partido reinante em S. Bento. 

Por outro lado, nenhum mecanismo, órgão administrativo ou político atua preventivamente ou com eficácia nos casos de autarquias sobre-endividadas ou com práticas nocivas ou danosas de gestão; e menos ainda se se observam actos de responsabilização material e criminal de autarcas corruptos, incompetentes ou levianos. Por exemplo, a criação de empresas municipais, constitui uma forma de instituição de áreas fora das regras da administração pública e que podem funcionar como “saco azul”, sede de endividamento, ou colocação de familiares e amigos, contratações a esmo, fora das contas municipais, privatização de facto de certas áreas da competência das câmaras, como o abastecimento de água, gestão de parques, pavilhões desportivos ou espaços dedicados à cultura. Na novilíngua neoliberal replicada por autarcas e economicistas, trata-se da empresarialização, a adopção da filosofia do mercado para a satisfação de necessidades coletivas, contra a burocracia, o despesismo e epítetos depreciativos afins, contemplados no dicionário neoliberal.

As Assembleias Municipais, seriam um órgão vocacionado para essa fiscalização mas, na realidade, funcionam como tribunas de jogos florais entre grupos políticos, nas quais a população é colocada de lado, sem poderes decisórios e com escassa possibilidade de intervenção; ou, mesmo sem direitos de presenciar os referidos jogos que, por norma, são palhaçadas de mandarins locais com a pretensão de imitar os de maior gabarito. A oligarquia pós-fascista em pleno, manifesta-se também através do burlesco.

A grande fatia de transferências do Orçamento de Estado torna as autarquias grandes dependentes dos humores políticos e financeiros do gang governamental com a chave do pote, cujo enraizado centralismo se manifesta em querer transferir funções para as autarquias mantendo o garrote financeiro apertado… em nome de uma chamada descentralização que mais não é que a transformação das autarquias em serviços locais do governo. Colocar no terreno autarquias de nível superior, de caráter supraconcelhio é coisa que ficou perdida na Constituição e que nem a “esquerda” parlamentar reclama apesar da sua veneração pelo documento fundamental, por muito oligárquico que seja.

Muitas autarquias não estão particularmente endividadas e a sua situação como devedoras, globalmente, reduziu-se significativamente nos últimos anos, ao contrário do que aconteceu com a dívida pública nacional. 

                       Dívida autárquica e estatal per capita (em euros)

2004
2011
2015
Débitos de m/l prazo - autarquias[2]
402.6
436.9
369.7
      Dívida pública estatal
8642
16978
21895*
                                                                                     ‘*  24464 em junho/2017

O quadro atrás revela a centralização no Estado central da captação de fundos. Mesmo que não esgotada a capacidade de aumento da carga fiscal, com o baixo nível da atividade económica no período e a despeito da perda de significado dos rendimentos do trabalho, a dívida pública nacional mantém-se em nível muito elevado não havendo reestruturação que lhe valha, por razões políticas e financeiras. O Estado, como último elemento com capacidade de financiamento no exterior, depois da falência do sistema financeiro português, tornou-se o grande distribuidor de dinheiro para os ditos empresários, para o abastecimento da classe política e, no caso das autarquias, através das já referidas transferências. Uma vez mais, ocorre à memória um género de mutualização de dívida e da sua gestão, através da criação de regiões administrativas, ao invés de tudo ficar dependente de um aparelho concentracionário que tudo controla a partir de Lisboa.

A debilidade das finanças da grande maioria das autarquias, enquadrando populações envelhecidas e pobres, necessitadas de apoios públicos e com as baixas receitas inerentes ao seu tecido económico formal, não facilita o recurso ao crédito bancário direto mas, quanto muito, alguma margem de manobra para esticar os prazos de pagamento a fornecedores.

3- Receitas fiscais – grandes disparidades na evolução em 2004/15

As receitas fiscais no período 2004/15 tiveram um crescimento de 26.4%, muito aquém das transferências feitas pelo Estado, 67%; e para isso contribuiu a sua quebra no período inicial e a lenta recuperação a partir de 2007, como atrás se referiu.

Há mesmo 17 autarquias cujo montante de receitas fiscais se reduziu e, nessas preponderam câmaras PS e, em segundo plano, algumas dirigidas pelo PCP, Nos restantes escalões construídos com intervalos construídos a partir de valores múltiplos da média nacional de evolução das receitas fiscais há a registar a preponderância do PS – natural dado o seu maior peso autárquico – seguido pelo PSD que, juntamente com as situações de aliança com o CDS, domina claramente no número de casos onde as receitas fiscais aumentaram mais de 105.6%; isto é, mais de quatro vezes a média de crescimento nacional em 2004/15. É notória, também a fraca representação relativa do PCP nos dois escalões onde os aumentos foram mais acentuados, (ver quadro abaixo)

O facto de haver apenas 85 câmaras com um indicador inferior à média nacional, refere-se ao baixo crescimento ou mesmo redução das receitas fiscais em autarquias de grande relevância em termos demográficos e financeiros, como por exemplo, Oeiras, Porto, Matosinhos, Loures, Almada, Faro ou Braga, situando-se Lisboa com valores pouco acima da média global (30.8%).

Receitas Fiscais - variação 2004/15(%)
Presidências
Câmaras
< 0
0-26,3%
26,4-52,7 %
52,8-105,6 %
> 105,6 %
CDS
5


2
1
2
LISTAS
13
1
4
1
4
3
PCP
34
5
9
14
2
4
PSD-CDS-PPM/ MPT
3

2
1


PS
149
10
32
35
39
33
PS-BE-PND-MPT-PTP-PAN
1


1


PSD
87
1
16
17
23
30
PSD-CDS
16

5
1
6
4
Total
308
17
68
72
75
76
Média  nacional - 26,4 %

Na identificação das situações de maior aumento da receita fiscal, assinala-se a presença de cinco autarquias açorianas nas cinco primeiras posições, seguidas de câmaras do interior norte. Predominam naquele conjunto, as geridas pelo PS, com o PSD no lugar seguinte tratando-se, em todos os casos, de concelhos com pouca população. No que se refere aos dez decrescimentos mais notórios, eles recaem em concelhos da Área Metropolitana de Lisboa e na área do Ribatejo; são, na sua maioria geridas pelo PS e o PCP surge em segundo lugar, embora a sua representatividade na totalidade seja bem inferior à do PSD, só presente em Óbidos no contexto dos dez casos de maior redução das receitas fiscais.

Evolução das receitas fiscais (%) – 2004/15
Os 10 mais elevados crescimentos
Os 10 maiores decrescimentos
NORDESTE
PS
447,7
CONSTÂNCIA
PCP
-35,9
CORVO
PS
400,4
VILA FRANCA DE XIRA
PS
-30,3
LAJES DAS FLORES
PS
386,9
PALMELA
PCP
-28,6
LAJES DO PICO
PS
360,9
CARTAXO
PS
-24,1
CALHETA (SÃO JORGE)
L
352,3
AVIS
PCP
-16,3
RIBEIRA DE PENA
PS
316,0
ENTRONCAMENTO
PS
-16,1
VILA POUCA DE AGUIAR
PSD
300,9
ÓBIDOS
PSD
-15,8
PENEDONO
PSD
275,4
SINES
PS
-13,5
FREIXO DE ESPADA À CINTA
PSD
273,5
TOMAR
PS
-11,5
ALJUSTREL
PS
263,4
MONTIJO
PS
-10,7
Média nacional – 26,4

4 - As transferências da administração central

A evolução das transferências da administração central entre 2004 e 2015 é muito distinta entre os municípios portugueses. Globalmente e repetindo o que dissemos atrás, as transferências correntes cresceram substancialmente, enquanto as receitas fiscais tiveram um período de quebra partir de 2007, só recuperando o valor deste último ano, em 2015.

A média nacional da variação das transferências da administração central para as câmaras, no período 2004/15 foi de 67% mas, a desigualdade entre as várias autarquias é muito grande. No quadro seguinte, observa-se que em cerca de 60% das câmaras, a evolução dessas transferências foi inferior à média nacional, sendo essa situação mais evidente nas autarquias de presidência PSD e PCP; inversamente, as câmaras PS ou detidas por Listas apresentam maior representatividade das situações em que o indicador é superior à média nacional.

Transferências da  Adm. Central - variação 2004/15(%)
Presidências
Câmaras
< 0
0-33,5%
33,6-67,0 %
67,1-102 %
> 102,1 %
CDS
5


4
1

LISTAS
13

1
6
4
2
PCP
34

1
21
11
1
PSD-CDS-PPM/ MPT
3


1
1
1
PS
149
4
4
70
57
14
PS-BE-PND-MPT-PTP-PAN
1


1


PSD
87
3
6
52
24
2
PSD-CDS
16


11
4
1
Total
308
7
12
166
102
21
Média  nacional - 67 %

No seio da situação global, refletem-se as profundas desigualdades na afetação de recursos estatais ao funcionamento das câmaras; e vamos proceder, em seguida, à personalização das situações mais extremas. Nos casos cimeiros de elevado crescimento das transferências, quase todos os municípios têm um volume significativo de população e pertencem às áreas metropolitanas de Lisboa e Porto; inversamente, os casos de maior redução dessas transferências recaem sobre autarquias com pouca população, na sua maioria do interior ou das Regiões Autónomas, com a notória excepção de Lisboa.


Evolução das transferências estatais (%) – 2004/15
Os 10 mais elevados crescimentos
Os 10 mais baixos crescimentos
VILA NOVA DE GAIA
PS
812,6
VILA NOVA DE PAIVA
PS
-77,7
VILA NOVA DE FAMALICÃO
PSD/CDS
487,3
VILA FRANCA DO CAMPO
PS
-60,4
VILA DO CONDE
PS
384,2
VILA NOVA DE FOZ CÔA
PSD
-46,7
VILA FRANCA DE XIRA
PS
347,7
VILA DO PORTO
PSD
-45,5
PRAIA DA VITÓRIA
PS
231,7
LISBOA
PS
-4,4
VILA FLOR
PS
164,4
PORTO SANTO
PS
-4,1
MAFRA
PSD
147,3
VILA DE REI
PSD
0,1
ODIVELAS
PS
143,8
CASTRO MARIM
PSD
3,7
LOURES
PCP
137,4
ALJEZUR
PS
4,4
PAREDES
PSD
132,5
ANSIÃO
PSD
12,9
Média nacional – 67 %

Como cada autarquia é um caso específico, só com uma análise mais detalhada se poderia aferir se é verdade ou não, que as transferências do Estado para as autarquias tendem a acentuar as conhecidas clivagens territoriais; se os acrescidos fluxos para concelhos populosos da faixa litoral atendem a necessidades específicas e se a sua redução ou estagnação corresponde a regressão populacional e/ou económica.

5 – A dependência das transferências do Estado 

Se a evolução das transferências da Administração central foi muito mais notória do que a das receitas fiscais, isso significa que em 2004 as primeiras representavam 65.6% das segundas, tendo passado para 86.8% em 2015. Isto é, a autonomia financeira das autarquias representada pelas receitas fiscais que lhes são afetas reduziu-se, assumindo, com maior relevância, a componente de transferências estatais, no total das receitas correntes dos municípios.

Vejamos, relativamente a 2015 o número de câmaras que mantinham um volume de transferências inferior a 86.8% das receitas fiscais e aquelas que apresentaram indicadores superiores, com limites baseados em múltiplos daquele valor nacional. (ver quadro seguinte)

Somente 55 câmaras mantêm indicadores inferiores à média nacional sendo de assinalar a forte presença relativa de autarquias com presidências PCP nesse conjunto; são essas as menos dependentes de transferências estatais. É significativo que o maior subconjunto de câmaras (118), seja o das situações de mais elevado grau de dependência face às transferências, em que estas correspondem a mais de quatro vezes o indicador calculado para o total do país (a vermelho no mapa mais abaixo).

Relação entre transferências e receitas fiscais (%) - 2015
Presidências
Câmaras
< 86,8
86,8-173,6%
173,7-260,3 %
260,4-347,2 %
> 347,3 %
CDS
5

2
1

2
LISTAS
13
4
1
2
3
3
PCP
34
10
5
2
3
14
PSD-CDS-PPM/ MPT
3
3




PS
149
22
32
23
13
59
PS-BE-PND-MPT-PTP-PAN
1
1




PSD
87
12
16
13
11
35
PSD-CDS
16
3
5
3

5
Total
308
55
61
44
30
118
Média nacional - 86,8 %

Apresentam-se nos quadros seguintes os valores das transferências provenientes da Administração Central em percentagem do total das receitas fiscais, para os casos mais extremos, de menor e maior dependência das receitas correntes face às transferências; e para os anos de 2004 e 2015.

Os 10 casos de menor dependência de transferências
2004
2015
VILA NOVA DE GAIA
PS
6,4
LISBOA
PS
8,8
VILA FRANCA DE XIRA
PS
9,2
CASCAIS
PSD/CDS
14,4
VILA DO CONDE
PS
10,8
ALBUFEIRA
PSD
14,5
LISBOA
PS
12,0
LAGOS
PS
17,3
OEIRAS
L
14,4
LOULÉ
PS
18,5
LOULÉ
PS
15,3
LAGOA
PS
19,3
CASCAIS
PSD/CDS
15,9
PORTIMÃO
PS
24,2
VILA NOVA DE FAMALICÃO
PSD/CDS
16,7
OEIRAS
L
27,1
LAGOS
PS
17,7
SEIXAL
PCP
27,6
PALMELA
PCP
17,8
SETÚBAL
PCP
27,8

As dez câmaras com menores índices de dependência em 2004 apresentam valores algo abaixo das que se situam nessas posições em 2015. Isso significa que mesmo nos casos de continuidade de baixos níveis de transferências, relativos às receitas fiscais, em 2015 eles surgem com valores mais elevados do que onze anos atrás.

Há vários casos de continuidade nas listas dos menos dependentes de transferências em 2004 e 2015 – Lisboa, Cascais, Lagos, Loulé e Oeiras. Porém, Loulé e Oeiras aumentam o seu grau de dependência no período, enquanto Lisboa e Cascais o reduzem. Quanto ao leque partidário representado, as alterações têm pouco significado.

Em qualquer dos momentos retratados, os concelhos destacados são áreas com uma população muito significativa, com excepção de Lagos e Lagoa que se situam em patamares demográficos mais modestos.

Observando os principais casos de maior dependência face a transferências observa-se que os níveis se reduziram claramente entre os dois momentos em comparação; o oposto aconteceu, como dissemos atrás para os concelhos de menor dependência, tornando-se claro que o intervalo de dispersão dos indicadores, que era de (6.4 - 16103) em 2004 se cingiu, onze anos depois, a (8.8 – 5148).

Os 10 casos de maior dependência de transferências
2004
2015
CORVO
PS
16103,3
CORVO
PS
5147,1
LAJES DAS FLORES
PS
4550,2
BARRANCOS
PCP
2001,7
VILA NOVA DE PAIVA
PS
3551,1
ALCOUTIM
PS
1551,6
BARRANCOS
PCP
3314,9
LAJES DAS FLORES
PS
1477,5
VILA DO PORTO
PSD
3286,8
CRATO
PS
1255,4
VILA NOVA DE FOZ CÔA
PSD
2745,9
MÉRTOLA
PS
1192,1
PENEDONO
PSD
2490,9
ARRONCHES
PSD
1120,4
LAJES DO PICO
PS
2150,6
VINHAIS
PS
1083,8
NORDESTE
PS
2020,4
AVIS
PCP
1082,8
FREIXO DE ESPADA À CINTA
PSD
1914,2
MONFORTE
PCP
1067,3

Também aqui há casos de concelhos que se mantêm entre os dez mais elevados níveis de dependência, ainda que mais atenuados do que em 2004 – Corvo, Lages das Flores e Barrancos; estes e os restantes encontram-se em áreas periféricas ou em processo de desertificação, com destaque para os Açores em 2004 e para o Alentejo em 2015. Esta situação, que abrange muitos mais concelhos revela que as transferências são um elemento de solidariedade no contexto nacional, muito marcado pelas assimetrias mas, não evita a continuação da concentração de gente numa faixa estreita, próxima do mar, a par com a maior parte do território, com populações envelhecidas e evanescentes, já sem capacidade sequer para manter a floresta. Um processo acelerado de desertificação que abordámos no texto anterior
A observação do mapa evidencia que as situações de maior dependência das transferências estatais se manifestam em toda a faixa interior e ainda nas Regiões Autónomas. Inversamente, os mais baixos níveis de transferências, comparativamente às receitas fiscais, encontram-se em áreas bem definidas, nas faixas litorais, ocidental e sul.

Essa situação, retratada no mapa, evidencia não só as conhecidas e grandes desigualdades mas também a debilidade da atividade económica na grande maioria do território, incapaz de gerar, através de carga fiscal, as receitas adequadas à gestão das necessidades comuns a cargo das autarquias. E daí a sua falta de autonomia, uma vez que se tornam dependentes da afetação de meios transferidos pela administração central, para que se garanta uma qualidade mínima de vida da população local, para além do desperdício com a cara mediação das antenas locais dos gangs partidários, suas redes de subornos, compadrios e de colocação de familiares e amigos na burocracia autárquica.

6 – Necessidade de um novo modelo de representação

O controlo do território pelos governos, do ponto de vista financeiro não é caro. As transferências estatais para as câmaras - € 2470 M em 2015 – ou mesmo as receitas fiscais - € 2850 M no mesmo ano – são, como se vê, ninharias no contexto das contas do Estado central que, em 2016, só de impostos diretos e indiretos arrecadou cerca de € 41000 M. Esse mesmo Estado, em contrapartida, com o pagamento de juros de dívida, beneficia o capital financeiro com um valor que é mais de três vezes superior ao transferido para as autarquias. As suseranias cobram sempre dos vassalos.

As autarquias deveriam e poderiam ter um papel mais relevante na vida das pessoas e isso deveria ser feito com uma intervenção muito mais extensa e profunda da população; em detrimento de uma administração central, enorme e tentacular, quiçá com saudade dos tempos do fascismo em que as câmaras eram meras delegações locais do governo. Essa propensão centralista e totalitária revela-se também no desinteresse em criar as regiões administrativas, como previsto na Constituição, havendo uma verdadeira unanimidade de facto no seio da classe política e que se revela no seu silêncio sobre o assunto. E mostra-se também pelo papel decisivo que tem o Ministério das Finanças no controlo de todos os níveis da administração, incluindo a Segurança Social, cuja inserção no aparelho de estado constitui de per si um abuso de confiança; os fundos daquela instituição não pertencem ao Estado mas aos que descontam ou descontaram para esse fundo coletivo dos trabalhadores.

Porém, esse processo de aproximação entre a gestão autárquica e a população está perturbado, infetado pela presença de uma classe política – nacional e local - que se insere ou submete, claramente, na lógica centralista.

Consideramos que só há democracia se cada comunidade gere diretamente a satisfação das suas necessidades coletivas prioritariamente a partir dos rendimentos gerados no seu seio; e que a deliberação sobre as prioridades quanto a bens coletivos e serviços comuns, disponíveis ou a disponibilizar, pertence à própria comunidade, possuidora do poder de decisão absolutamente democrática tomada pelos seus membros. Usando as designações surgidas na antiga democracia ateniense devem vigorar: a isonomia (igualdade quanto a direitos, perante as leis), a isocracia (igualdade na capacidade de indicar um representante da comunidade e de ser o próprio a ser escolhido como tal), a isegoria (igualdade na expressão de opinião), para além da parrésia (capacidade de emitir opinião sem represálias ou sanções).

Como é evidente, a autossuficiência é muito difícil de se conseguir e, cada comunidade – freguesia, município, região - terá de se articular com outra ou outras e desenvolver com elas uma matriz de relações para adquirir uma dimensão útil e adequada para a satisfação das necessidades dessa comunidade. 

  • Isso significa que deverá vigorar uma lógica de solidariedade e ajuda mútua, entre as comunidades com mais recursos e as menos providas daqueles; fora dos paradigmas capitalistas de despersonalização das relações entre pessoas ou comunidades, em favor do deus Mercado que tudo (dizem) equilibra e despidas da pulsão destrutiva pelo enriquecimento a todo o custo. 

  • Significa ainda que uma comunidade terá de afetar uma parte dos seus recursos para investimentos ou manutenção de serviços de âmbito multicomunitário, de impossível ou inconveniente execução num plano meramente local. 

  • Por outro lado, haverá necessidade de ocorrer a situações extraordinárias – desastres naturais, por exemplo – que possam afetar a comunidade ou comunidades vizinhas, no âmbito de solidariedades despidas do espírito capitalista.
Toda esta arquitetura se baseia no princípio da subsidiariedade que confere ao âmbito local, à decisão coletiva tomada diretamente pelos seus habitantes e beneficiários, a prioridade na resolução dos seus próprios problemas, com os seus próprios recursos, sem a interferência e, menos ainda de imposição, de estruturas autoritárias, hierárquicas, provenientes de uma classe política.

Qual a dimensão demográfica adequada para um município, por exemplo. Sem se cair num comunitarismo identitário e excludente, nem no gigantismo das grandes metrópoles cujo (dis)funcionamento levanta enormes problemas de circulação, ambientais, etc. considera-se, em geral, que um município que vá além dos 40/50000 habitantes coloca necessidades de infraestruturas muito além do que é proporcionalmente exigível dentro daqueles limites.
Quanto ao funcionamento, em geral, das instituições políticas e, em consonância com o que há uns anos dissemos, a decisão coletiva deveria alicerçar-se em algo deste tipo:

·   Órgãos de carater executivo constituídos por indivíduos residentes há mais de um      ano, votados pela população;
·    Eleição de indivíduos, não de listas e, com limitação do número de mandatos
·    Possibilidade de cessação de mandatos por iniciativa dos eleitores
·    Abertura e facilitação de referendos com caráter, obviamente, de resultados vinculativos
·   Total ausência de mordomias e imunidades para quem exerça funções de representação
·    Administração pública e aparelho judicial independentes do governo
·    Acesso gratuito e facilitado a todos os arquivos e decisões dos órgãos públicos
·     Moldura penal agravada e sem prescrição para casos de corrupção


Este e outros textos em:
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents


[1]  Um caso concreto que conhecemos contempla uma vivenda modesta, avaliada em € 46000, numa rua com mau asfalto e sem passeios, tendo a câmara local onerado aquela casa com € 11000 de “encargos de urbanização”


[2]  Abordámos a evolução da dívida autárquica de médio ou longo prazo entre 2004 e 2011, aqui

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