Um deputado que se balda não é nada perante o empobrecimento da
plebe em curso e o caráter não democrático do regime
1 – A
vacuidade habitual
Os insignes
representantes da nação precisam de dar o espetáculo conveniente que convença a
plebe de que exercem uma função útil – e estão sempre dispostos a tal. É-lhes,
assim, exigida, uma prova de vida com uma frequência inaudita, comparada com a
que se exige a um reformado que, injustamente (!), só muito espaçadamente é
compelido a fornecê-la.
Para o efeito
têm uma relação estreita com a imprensa, vocacionada para os fait-divers,
necessitada de preencher os espaços mediáticos. Assim, lá surgem as vacuidades
e o wrestling verbal, com a forte
presença da classe política, todos os dias, à hora da sopa dos bravos
lusitanos, que não prescindem de ter um televisor na sala, outro na cozinha, um
terceiro no quarto, para além do smartphone
de que não se separam sequer, quando se sentam na sanita.
Interrompendo
a profunda discussão sobre umas décimas no diáfano PIB, eis que um obscuro
deputado do PSD, de nome capristano, samaritano ou algo parecido, teve um(a)
colega que lhe picou o ponto, enquanto a tal obscura figura tratava da sua
vida, algures fora do pavilhão das aves canoras, dispensando-se assim de
participar no espetáculo diário do coro.
Adelino Maltez
acha que não deve haver controlo dos deputados uma vez que isso os torna
“reduzidos a funcionariozecos”. Bonito nas intenções mas falho no objeto.
Os deputados são, na realidade, funcionariozecos, que cumprem as
ordens do chefe da bancada e, mais acima, do chefe do partido; e que procuram
garantir a continuidade de uma vida despreocupada na próxima eleição; e o
pagamento extra em algumas deslocações de serviço e senhas de presença, nos
muito profícuos inquéritos parlamentares, comissões parlamentares e afins. Os
deputados, em geral, inserem-se numa hierarquia rígida, aceitam uma autoridade
e, a sua desobediência corresponde a graves problemas de “progressão na carreira”
como acontece ao mais humilde funcionário público ao qual se exige que cumpra,
quedo e mudo.
Para um funcionário público comum, exige-se a exclusividade, sob
pena de sanções. Além do mais, cada pessoa “normal” tem (quando tem) cerca de
um mês de férias) e os ilustres deputados têm férias de verão, de natal e
eventualmente, de páscoa. Um deputado, para além de uma paga interessante à
qual a esmagadora maioria de quem trabalha não tem acesso, há ainda a
possibilidade de complementos chorudos através de um segundo emprego, de uma
consultadoria a uma empresa privada, mormente nos escritórios de advogados que
elaboram muita da legislação saída no Diário da República. Claro, que neste
contexto, falar-se de tráfico de influências ou corrupção será… desajustado… E
falar-se de “funcionariozecos” nestes casos
é, de facto, desajustado; como é curto designá-los por malandrecos, sendo
preferíveis os epítetos de parasitas e malandrões.
Entretanto, a
coisa assumiu caraterísticas de inusitado (o que, obviamente, não é); e foi
isso que permitiu o endosso da batota na picagem do ponto para uma tão
prestigiada instituição – a PGR - que irá apreciar tão complicada questão.
Admite-se, com algum optimismo que o assunto não aumentará a habitual queixa de
falta de meios das instâncias judiciais da paróquia, como acontece com os casos
Sócrates, BES, do roubo de Tancos, do conluio de dezenas de militares da Força
Aérea, etc.
Os ilustres deputados, além dos candentes assuntos em que se
envolvem, para bem da grei, lá vão tratando da vidinha:
a. No final do ano passado, enquanto a plebe comprava filhoses e
bacalhau, chefes dos partidos com ocupantes da AR elaboravam – muito
discretamente - fórmulas de aumentar as receitas das suas agremiações; e elas
foram, naturalmente, aprovadas, pois o conjunto dos partidos presentes na AR,
nos aspetos financeiros funciona num cabal consenso e, em autogestão;
b. Meses atrás, foi descoberta a malícia de muitos deputados que
declaravam residência em local afastado daquele onde efetivamente habitam, uma
vez que daí caiam do erário público para os respetivos bolsos, uns bons cobres
em subsídios de residência. Enfim, reles truques de mesquinhos “funcionariozecos”, certos da sua impunidade. A falta de ética
não sanciona ninguém, na tradição católica portuguesa;
c. Inchados da relevância que o regime dá ao biombo AR, há uns
anos, um grupo de deputados decidiu ir a Sevilha assistir à final de uma
competição de futebol e mostraram (ao que parece, em vão) a sua indignação… por
lhes terem sido marcadas faltas… num ínvio desrespeito para com tão patriótica
iniciativa.
2 – Quem paga a festa?
O actual regime político mantém a AR como um biombo que oculta
negócios que empobrecem a maioria e enriquecem uns quantos; que aprova uma
enorme carga fiscal para trabalhadores e pensionistas, presenteando empresários
manhosos, especuladores imobiliários, vistos gold, com isenções, subsídios (comunitários ou não) e truques
fiscais vários.
O binómio constituído pelo
conluio entre o empresariato e a classe política faz aprovar na AR, todos os
anos, quem paga, de facto, os impostos; e através da distribuição destes
mostra-se o caráter cleptocrático e empobrecedor do actual pseudo-democrático regime:
(milhões de
euros)
|
2010
|
2019
(orç)
|
Var %
|
IRS
|
8937
|
12905
|
+44%
|
IRC
|
4592
|
6336
|
+38%
|
ISP
|
2406
|
3643
|
+51%
|
IVA
|
12146
|
17499
|
+44%
|
Selo
|
1539
|
1684
|
+9%
|
Taxas e multas
|
590
|
1136
|
+92%
|
Remuner. dos empregados
|
84850
|
*86241
|
+1.6%
|
Remuner. média dos trab. (€)
|
899
|
**925
|
+2.9%
|
Ganho médio dos trabalh. (€)
|
1075
|
**1108
|
+3.1%
|
*Dados de 2017 **
Dados de 2016
3 – Regime democrático, a sua construção é premente
O regime dito de democracia de mercado, na realidade nada tem de
democrático. E isso, entre outras razões, porque:
a. Os eleitores votam em listas, preenchidas pelos partidos e não
têm ninguém a quem possam apontar como o seu representante para apresentar
propostas ou críticas – os eleitos de um distrito[1] pertencem a vários partidos e nenhum desses eleitos pode ser
designado individualmente como representante de um cidadão;
b. As candidaturas a deputado na AR estão vedadas a pessoas
singulares. Apenas listas partidárias podem concorrer. O que significa que um
eleitor só pode ser candidato – sine qua non - se pertencer a um partido ou
tiver o aval de um chefe partidário, que lhe permita a inclusão nessa lista
como “independente”[2]. Neste contexto, não se podem candidatar mais de 90% dos
eleitores; um exemplo claro de que o povo (demos)
não tem o poder (kratos). Isocracia é
um vocábulo ignorado;
c. Como a eleição é grupal, a representação é coletiva e, em regra
por quatro anos, está afastada a possibilidade de os eleitores poderem
referendar o afastamento de um deputado, por mais mentiroso e nocivo ele seja;
enfim, mais um entorse da democracia que vulgarmente se designa por …
“representativa”;
d. Um deputado na AR pode ter um número teoricamente ilimitado de
mandatos; apenas depende do superior hierárquico, do chefe do partido. Como se
disse no ponto anterior, não há democracia onde não existe a possibilidade de
uma votação revogatória. A saúde de uma democracia consiste precisamente no
envolvimento do maior número possível de pessoas quer na decisão, quer na
representação.
Este e outros textos em:
[1] A bagunça é tanta que desde 1975 se prevê
que “Enquanto as regiões administrativas não estiverem concretamente
instituídas, subsistirá a divisão distrital no espaço por elas não abrangido”
(artº 291º nº 1 da CRP). Entretanto, foram criadas em 2013 (Lei 75/2013), as
Áreas Metropolitanas e as Comunidades Intermunicipais, com gente dos partidos,
sem qualquer escrutínio democrático por parte da população. O governo Costa deu
seguimento à iniciativa de Passos Coelho ao promover uma burla antidemocrática
- “descentralização”- que não passa da infestação do território de competências
e mandarins, às ordens e sob controlo do governo, sediado em Lisboa.
[2] Os
independentes, na realidade, habituam-se tanto à boa vida de “funcionariozeco” que rapidamente se incluem no partido promotor
como membros de corpo inteiro. A regra é a da obediência, a ausência de
iniciativas fora do quadro da disciplina do partido e a de participar no coro
de “apoiados”, na gritaria dos que não apoiam uma qualquer afirmação e,
eventualmente, como participante em pateadas.
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