Há uns 100 anos,
dominava entre os trabalhadores mais avançados um pensar global, humanista e
solidário, enquanto as burguesias nacionais de então, se mostravam
nacionalistas e em guerras constantes para se roubarem umas às outras.
Hoje, perante o
predomínio de um capitalismo globalizado que captura os estados-nação e captura
e manipula as classes políticas, a chamada esquerda regrediu ideologicamente,
clamando por soberania e patriotismo, tornando-se mais um quisto agarrado ao
pote.
O anarquismo sempre
rejeitou o capitalismo, sob qualquer das suas formas – liberal, estatal ou
fascista. Nunca aceitou a nacionalidade como separador de pessoas nem a
existência de oligarquias estatais, patronais, religiosas ou partidárias. Só o
anarquismo, nos tempos que correm, pode unificar a Humanidade contra o
capitalismo que nos encaminha para o colapso.
Sumário
1 – A
globalização e a chegada ao capitalismo
2 - A
lógica capitalista no tempo dos estados-nação soberanos
3 - A
lógica e a organização do capitalismo globalizado
4 -
Porque se globaliza o capital?
5 - O
capitalismo e as classes políticas são um estorvo
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1 – A
globalização e a chegada ao capitalismo
A
globalização das tecnologias e do comércio começou com a diversificação das
necessidades humanas, a constituição de excedentes, as deslocações e migrações
de grupos humanos, em tempos muito recuados. Essa incipiente globalização criou
redes e fluxos de gente, animais, plantas, artefactos, conhecimentos, doenças e
miscigenação, em quadros territoriais cada vez mais vastos. Essa primeira
globalização que durou milénios não foi uniforme mas, teve um foco essencial no
Médio Oriente, entre o Mediterrâneo e o vale do Indo. Esse processo teve,
naturalmente, altos e baixos, sendo de salientar a constituição de
encerramentos autárcicos na China do século XV, no Japão do século XVI ao XIX e
na Europa feudal. Ninguém pagou patentes nessas transmissões de conhecimento,
embora houvesse quem quisesse evitar a sua transmissão, em regra com resultados
apenas temporários; a propagação da tecnologia e do conhecimento sempre teve
caráter incremental, com cada criação tomada como algo adicional a uma longa
cadeia de contributos. Mas, só o capitalismo transformou o conhecimento em
patente, como uma mercadoria, que se compra e se vende.
As
fronteiras em épocas pré-capitalistas não evitavam nem pretendiam evitar o
comércio e a passagem de pessoas, excepto sob a forma de exércitos, por norma
com objetivos invasores ou de rapina; eram apenas delimitações para os poderes
senhoriais exercerem os seus tributos e montarem as suas leis, sobre uma
população de servos. Atenas, Roma, Alexandria, na Antiguidade, eram cidades
abertas e francamente cosmopolitas; como o foram as repúblicas italianas,
Bizâncio ou Bagdad nos últimos séculos da Idade Média.
O
capitalismo afirmou-se inicialmente na Europa e colonizou quase todo o resto do
planeta, para garantir a rapina de matérias-primas e a colocação dos seus
produtos, com caráter de exclusividade, sem concorrência, nas áreas que cada um
dos estados-nação podia controlar; e no seio das potências capitalistas
procedeu-se à integração e anulação dos senhorios feudais, com a homogeneização
que caraterizou a construção dos espaços
nacionais. A descolonização desenvolveu-se em duas grandes fases – a primeira,
no século XIX com as independências americanas, iniciadas ainda no século
anterior, no caso dos EUA; e a segunda, após 1945, no resto do mundo, com
Portugal a encerrar esse ciclo, embora ainda subsistam situações coloniais, em
paralelo com independências fantoches. Porém, a descolonização não cortou o
passo ao capitalismo, não trouxe mais democracia, nem reduziu os danos da
predação intensiva, causados ao planeta.
Nas
colónias, a administração colonial manifestava-se, ostensivamente, com
violência racista, para intimidar, perante a simbólica presença da bandeira.
Adquiridas as independências, o domínio pós-colonial impôs-se discretamente
através de funcionários de empresas multinacionais ou do sistema financeiro
junto da administração indígena, à qual foi dado o direito de criar bandeira
própria. As multinacionais não querem colonizar um país; é muito caro. Apenas
querem e concorrem para a exploração dos recursos interessantes, deixando o
aparelho de Estado entregue a uma classe política venal, para figurar na
fotografia, na Assembleia da ONU, para tratar da gestão doméstica da plebe, com
a brutalidade adequada à contestação popular ao statu quo. Essa situação carateriza os países com independências
mais recuadas ou mais recentes, como muitos dos que não passaram de
semicolónias.
A
montagem das estruturas capitalistas a nível nacional exigiu o cumprimento de
três desígnios. Primeiro, um forte apoio do Estado em termos militares, para a
defesa das fronteiras ou para a conquista de novos territórios, no seio da
forte concorrência pela partilha do mundo, em processo de colonização. Em
segundo lugar, obrigou à produção de leis uniformizadoras dos territórios
nacionais, destruindo os direitos feudais, como as corveias, para facilitar a
disponibilidade de transferências de mão-de-obra do campo para as cidades e a
circulação de mercadorias; e, finalmente, procurando disciplinar o trabalho em
fábricas, no comércio e na navegação para além da organização das colónias de
povoamento, para onde se deslocavam quantos procuravam sobreviver, enriquecer
ou fugir a perseguições políticas ou religiosas.
A ligação entre Estado e
capitalistas forjou os estados-nação, como feudos alargados, dominados pela
nova classe burguesa e, como fortalezas, rodeadas de fronteiras militarizadas[1].
Esse encerramento visava a defesa face a burguesias concorrentes, manter um
efetivo numeroso e barato de trabalhadores, ao mesmo tempo que procurava
assegurar a incorporação da plebe nos contingentes militares, seja para as
guerras de defesa ou para as de conquista. Para que os eventuais soldados
aceitassem pacificamente a incorporação militar era preciso fazê-los sentir um
forte sentido de pertença a um território – o estado-nação - onde …nada tinham
para além do corpo, a capacidade para o trabalho e a fé na imortalidade no Além
incutida pela religião, em caso de morte em combate. Esse arregimentar forçado
tinha de ser emoldurado com a narrativa da pertença à estirpe de antepassados
ilustres[2]
que, com sacrifício e valentia haviam erigido a pátria, numa narrativa
pseudo-histórica de elevação da pátria face às pátrias dos outros, acenando-se
com as virtudes do povo e da “raça”, por axioma, mais nobres do que as dos
outros povos. Essa construção ideológica – o patriotismo - montada por uma
mescla entre a classe política (então oriunda da aristocracia) e a burguesia
foi decisiva como instrumento de luta contra a concorrência das outras
burguesias e respetivos estados-nação, como se referiu recentemente.
O
desenvolvimento capitalista, de base nacional, construiu em cada país
desenvolvido, no final do século XIX uma interpenetração entre a indústria, o
comércio e o sistema financeiro que, no seu conjunto, revelavam um forte
espírito de apropriação territorial que passava por guerras frequentes. E daí
que as fronteiras, em quase toda a parte, dividissem povos, culturas, tribos, famílias,
com traçados resultantes da mera cobiça capitalista por território e braços
para trabalhar; ou que incorporassem diversas culturas ou povos, sob a
hegemonia de uma classe política, de uma etnia, muito ciosa da sua supremacia e
intratável face a separatismos, como se vem assistindo na Espanha
pós-franquista; ou em processos conduzidos de modo mais civilizado pela
experiente City, face à Escócia.
2 - A
lógica capitalista no tempo dos estados-nação soberanos
No âmbito
dos estados-nação ditos soberanos, protegidos por fronteiras, os capitalistas
nacionais, apoiados e financiados pelos seus aparelhos estatais, procuravam
preencher e estruturar os espaços e os fluxos de mercadorias e serviços,
disponíveis ou necessários, integrando neles os fluxos de importação e
exportação, filtrados pelos direitos alfandegários e acompanhados por uma
política monetária que facilitasse a exportação e dificultasse a concorrência
externa. Procurava-se conter ao máximo, dentro do espaço nacional, a matriz das
relações intersectoriais e que os capitalistas nacionais preferissem as trocas
entre si, para evitar a saída como pagamento ao exterior, de ouro e, mais
recentemente de moeda com curso e aceitação internacional. Essa politica foi,
claramente, a seguida por Salazar, mormente no princípio dos anos 30,
procurando integrar a produção de adubos (CUF) com a de alfaias agrícolas
(Duarte Ferreira) para fornecerem os latifundiários alentejanos empenhados na
Campanha do Trigo que, depois de um fugaz êxito inicial - que o regime emoldurou
em nome da autossuficiência - conduziu ao fracasso, pois o cultivo intensivo
desprezara a prática ancestral da rotação dos terrenos agrícolas, esgotando
estes últimos.
Neste
modelo de tentativa de encerramento autárcico, os capitalistas nacionais, para
satisfazerem as suas necessidades reprodutivas de capital, procuravam capturar
os trabalhadores dentro das fronteiras, protegidas por polícias, leis e
regulamentos que limitavam a entrada de capitais e empresas vindos do exterior,
susceptíveis de estabelecer concorrência aos capitalistas nacionais.
Nos
países com maiores excedentes económicos ou maior organização dos
trabalhadores, vivia-se o que designamos por democracia de mercado; se o nível
da produção de excedentes baixasse ou os trabalhadores se “excedessem” em
reivindicações, logo surgia um regime… musculado, para assegurar a repartição
conveniente à acumulação de capital. Os regimes fascistas, bem como os seus
arautos de hoje, revestem-se do nacionalismo adequado à proteção dos seus
capitalistas; a proteção destes é travestida de defesa dos interesses
nacionais, defesa da soberania nacional, do “nosso” povo e outras frases ocas
ou mistificadoras, ao mesmo tempo que ostracizam, perseguem ou violentam quem
for estrangeiro ou não for “patriota”. A divisão essencial do capitalismo,
enquanto modo de produção, deixa de ser – para a “esquerda” - o antagonismo
entre capital e trabalho para passar a ser definir-se entre o caráter nacional
e o não nacional.
Neste
modelo de estados-nação ditos soberanos, a soberania é o principal instrumento
ideológico e prático que, na maior parte das situações, tende a alicerçar uma
estratégia de sobrevivência de estruturas económicas pouco diversificadas,
ancoradas em baixa incorporação tecnológica, baixos salários e no apoio
estatal, em benefício de um empresariato pouco qualificado e bastante
reacionário, indutor de uma gestão política autoritária e corrupta. Essa
estratégia é de todo contrária ao fluxo natural da História e ao pulsar dos
povos, no sentido da convivência e para a troca, como se observa através do
espaço Schengen e do Erasmus; o que se designa por globalização, um conceito
que vai muito para além da sua formulação enquanto capitalista.
Em
grandes espaços nacionais ou plurinacionais, a maior diversidade de recursos,
de volume de capital acumulado, bem como a dimensão da população, podem gerar
uma maior articulação intersectorial, maior geração de rendimento e, alicerçar
um relativo grau de autonomia a um estado-nação.
Nesse
ambiente nacional imobilista e defensivo, o desemprego é um instrumento
tradicional de contenção do preço do trabalho, tradicionalmente associado a
entraves à emigração. Mais importante nesse capítulo é a inflação, resultante
da desvalorização da moeda própria como instrumento de conquista de mercados
externos; uma forma artificial, uma habilidade dos capitalistas locais para se
mostrarem competitivos.
A subida
dos preços internos reduzirá o valor aquisitivo dos salários se não for
acompanhada de uma forte reivindicação dos trabalhadores para um aumento que,
no mínimo, compense a taxa de inflação. Assim, sendo a inflação mais um
instrumento de redução do valor efetivo dos salários, a desvalorização da moeda
torna-se uma forma indireta para transferir rendimento para os capitalistas. Por
outro lado, as compras e vendas ao exterior levadas a cabo pelos capitalistas
permitem manobras fraudulentas de subfacturação das exportações - ficando parte
do valor efetivo retido, à ordem de capitalistas nacionais, no exterior,
mormente em offshores; e no caso das importações, o instrumento adequado para
colocar capitais fora do país é a sobrefaturação. Como se sabe, no capitalismo
globalizado, os capitais movimentam-se livremente, sem subterfúgios, saindo das
regiões do planeta onde a rendabilidade é menor ou onde carga fiscal é mais
pesada, para aqueles países onde a rendabilidade é maior ou os impostos mais
leves, penalizando as áreas menos “competitivas”; como aliás tem acontecido
desde os alvores do capitalismo.
Por outro
lado, uma vez que o acesso a moeda estrangeira, para a compra de bens
importados é controlado, ou mesmo punido pelo poder, isso serve para fidelizar
a população à compra junto dos capitalistas nacionais, seja de bens produzidos
localmente ou importados; podendo aqueles, assim, constituir margens mais
elevadas de lucro, promover artes especulativas, protegidos da concorrência
externa, através do acesso privilegiado a moedas de aceitação global.
Neste
contexto traça-se um caminho para a pobreza e para a eternização de uma camada
de capitalistas ineptos e parasitários, amparados corporativamente nos favores
da burocracia política e estatal, na contenção da contestação, com domesticação
das organizações sindicais. O Estado e os capitalistas nacionais constituem a
população e os trabalhadores em particular, como seus servos, como um rebanho
ao seu serviço, contido num redil fronteiriço, separado de rebanhos homólogos
aprisionados em outros estados-nação. Este é o modelo autárcico das burguesias
nacionais subalternas, periféricas, menos inseridas no capitalismo global; com
pendor fascista ou patriótico, mesmo quando os seus regimes políticos são
qualificados de “esquerda”.
3 - A
lógica e a organização do capitalismo globalizado
Hoje, na
maior parte das situações de pequenos e médios países a realidade é distinta da
observada atrás, ao tempo em que as fronteiras, de facto, existiam, com todo o
seu peso institucional e excludente.
Como
dissemos, o capitalismo, desde os seus alvores até à II Guerra dedicou-se à
construção e homogeneização dos espaços nacionais, com a destruição dos
senhorios condais e ducais, com a diluição (nem sempre conseguida) de culturas
menos vincadas ou entidades tribais mais frágeis, num todo homogéneo, dito
nacional. Precisou de aligeirar e fluidificar a circulação de mercadorias,
capitais e pessoas no espaço nacional assimilando ou destruindo as nobrezas e
os improdutivos terratenentes.
Hoje, não
são os capitalistas nacionais que estruturam os territórios nacionais, mesmo
que continuem com um papel, muito variável, caso a caso, nessas funções; são as
multinacionais e o sistema financeiro que procedem a essa estruturação, em
ligação com a economia do crime, local e global. Em estados-nação mais
poderosos ou ricos, como a China, a Rússia ou os EUA, por exemplo, os capitalistas
nacionais têm um papel variável que é dominante ou muito significativo; até
porque detêm um papel relevante através de multinacionais ou do capital
financeiro deles oriundos. Esse papel é reduzido na grande maioria dos outros,
uma vez que não detêm poder económico ou político para ombrear com as
multinacionais ou o sistema financeiro global; e as classes políticas
indígenas, elas próprias, encontram-se bastante inseridas nas redes globais de
negócio, ainda que em posições subalternas, embora desenvolvendo as suas
próprias redes locais de crime e corrupção.
As elites
globais dos negócios mesclam-se, assumem também funções de intervenção política
e constituem, simbolicamente, o 1% da população mundial (70 M de pessoas) como
apontado nas movimentações populares do início da década.
O
trabalho deixou de ser um quintal vedado para uso exclusivo dentro de courelas
nacionais, com a saída em massa de gente em busca de uma vida melhor, a fuga
para a emigração, dos países pobres assolados pela fome, pelos desastres
ambientais e climáticos e pela guerra, para os países ricos da Europa, da
América do Norte, para as petromonarquias e outras áreas menos apelativas. E
são os próprios capitalistas nacionais que recorrem à imigração em épocas e
sectores específicos, apesar das medidas propostas por Trump que certamente não
irão acabar com imigrantes indocumentados, dispostos a aceitar baixos preços
pelo seu trabalho. Globalizados pelas multinacionais, todos os espaços
nacionais se integraram – mesmo com a bandeira nacional a flutuar nos mastros
da fronteira – como pontos de cruzamento das redes das multinacionais, como
pontos de venda ou de obtenção de recursos competitivos, sejam eles
matérias-primas, produtos agrícolas ou industriais, serviços ou trabalho.
Os
capitais, cujos movimentos estão liberalizados, entram num país para nele serem
investidos ou, saem dele para investimento externo; o que acontece com poucos
entraves, de acordo com as instruções de entidades globais, como a OCDE, a OMC
ou no seu âmbito próprio, a UE. Esses investimentos vindos do exterior (muitos
com capitais de residentes, previamente colocados em offshores) dirigem-se, obviamente e como sempre, aos sectores onde
os seus titulares entendam beneficiar em ganhos de capital ou, em termos mais
gerais, no contexto das suas próprias cadeias de produção, onde quer que estas
se localizem. E, no caso dos capitais especulativos, com enorme fluidez e
imprevisibilidade.
Os fluxos
do capital em geral – seja de bens, serviços, capitais ou gente – configuram a geografia
de hoje e constituem uma rede cada vez mais densa que estabelece novas
hierarquias e poderes. Há três tipos de resistência perante isto.
·
A resistência do planeta, da dimensão limitada dos seus recursos
(pese embora a procura desenfreada em criar novos materiais) ou resultante das
alterações climáticas (aquecimento global, derretimento das calotes polares…
com prejuízos para as seguradoras) ou ainda, da infeção de águas, solos e ar
com produtos químicos nocivos e monstruosas acumulações de lixo não
biodegradável;
·
A resistência do passado de quantos se servem das tecnologias
globais, do consumo diversificado e compulsivo mas que defendem um nacionalismo
fora de tempo, que pode ser arraigado com patriotismo, xenofobia e fascismo,
mesmo quando se intitulam de “esquerda”. E que acham que se pode voltar atrás,
ao estado-soberano fortaleza, com os seus senhores e servos, separado e
resistente ao poder das multinacionais, do capital financeiro e aos danos
inerentes à sua existência. Não se pode voltar atrás, como se não voltou na
Europa ao feudalismo, depois da ascensão do capitalismo;
·
O terceiro grupo, muito minoritário aceita a globalização como
âmbito de universalização da espécie humana recusando as guerras de conquista e
apropriação, de imposição do outro e ao outro, as inerentes taras nacionalistas
e xenófobas, como recusam o capitalismo e o poder das multinacionais, do
sistema financeiro, o poder dos contidos no 1%, ou das classes políticas.
Jamais os
capitalistas tomam como determinante se um dado investimento é benéfico para o
país hospedeiro, se melhora a vida dos residentes, se gera ou não uma maior
densidade na matriz das relações intersectoriais do país hospedeiro; e isso, no
contexto dos capitalismos nacionais como no do capitalismo globalizado, de
hoje. A diferença é que antes da actual fase de acelerada globalização, os
capitalistas com dado emblema nacional tinham entraves em investir noutros
locais e, ao mesmo tempo, influenciavam o seu governo a dificultar a entrada de
empresas com outros emblemas. O que conta é a reprodução do capital e a sua
livre disponibilidade, com pouca ou nenhuma carga fiscal; seja no modelo de
capitalismo de base nacional, seja no modelo actual, de capitalismo
globalizado. Convém que se tenha em consideração que capitalismo
globalizado não é a mesma coisa que globalização, ao contrário do que
acintosa ou estupidamente muita gente diz por aí.
4 - Porque
se globaliza o capital?
Em
qualquer forma de capitalismo, a reprodução do capital exige a permanente
redução da parcela de custos com o trabalho; exige também o constante
investimento em equipamentos mais eficazes que aumentem a produtividade; e
obriga ainda a uma luta permanente pela conquista de novos mercados, em termos
geográficos e de necessidades humanas, reais ou induzidas. Como a pressão para
a compressão de custos com o trabalho colide e limita o crescimento que se
pretende para o consumo, o sistema financeiro promove a captura de pessoas,
empresas e estados através da dívida[3],
com a criação de capitais fictícios no sistema financeiro global. Para as
pessoas, a dívida consiste numa utilização imediata que arrasta o compromisso
de entrega ao sistema financeiro de rendimentos futuros. Esse reembolso pode
mesmo nunca existir, dada a ameaça permanente de instabilidade económica
(recordemos o efeito da crise dos subprimes),
social (os impactos das intervenções da troika
são um bom exemplo), política (as
guerras nos Balcãs, no Médio Oriente, em África…) e individual (desemprego,
precariedade, reforma antecipada, alteração das regras respetivas). E quando
isso acontece, forma-se o célebre malparado que acaba por ser, em grande parte,
imputado a toda uma população, através do Estado. No que se refere à dívida
pública, uma vez que há uma população a espoliar por detrás de cada Estado,
isso garante a reciclagem permanente da dívida e o pagamento perpétuo de juros.
Taylor há
um século percebeu que a segmentação da produção em várias parcelas
tecnicamente separáveis, com a afetação de cada um dos trabalhadores ao
desempenho exclusivo de cada uma dessas parcelas, aumentava a produtividade; e
que isso, por outro lado, prejudicava, no conjunto dos trabalhadores, a
compreensão do processo produtivo e da realidade social, facilitando o seu
controlo por parte dos capitalistas. Cada trabalhador ficava circunscrito a
tarefas simples, enfadonhas e estupidificantes, tão bem representadas nos
“Tempos Modernos” por Charlie Chaplin.
Mais
recentemente, o capitalismo elevou essa segmentação do nível local para o
nacional e depois para um patamar global, no âmbito do qual a produção dos
elementos integrantes de bens compósitos pode ser feita em diversos pontos do
planeta, com os capitalistas a beneficiar, simultaneamente, das diferenças de
qualificação, dos vários níveis salariais, nos hábitos quanto a jornadas de
trabalho e de culturas. Qualquer aparelho relativamente simples ou mais
complexo que utilizamos na nossa vida habitual é composto por um número
variável de peças, produzidas em vários pontos do mundo, de acordo com os
aspetos acima referidos e mais alguns parâmetros, mais políticos do que
técnicos:
·
Uma dessas formas de deslocalização, a mais primária, centra-se
na produção de bens finais não complexos, como o vestuário, baseada no baixo
salário, em instalações onde trabalham centenas ou milhares de trabalhadores,
mormente mulheres, num regime militarizado e repressivo, na ausência de
direitos laborais numa configuração produtiva dirigida por um capitalista
local, em regra contratado por marcas globais que apenas se interessam pelo
produto final. Recorde-se a catástrofe no Bangla Desh, em 2013, na qual
morreram 1134 pessoas vítimas das más condições de trabalho, numa fábrica
abastecedora de grandes retalhistas globais de vestuário; e ainda o perfil das
fábricas têxteis do Norte de Portugal que trabalham para a Inditex (Zara), entre
outras;
·
A separação geográfica dificulta sobremaneira a concertação
entre os trabalhadores contra o capitalista global e até mesmo a sua
compreensão do processo técnico global, nos casos em que a função de cada
fábrica é a de produzir elementos isolados de um produto final. Por outro lado,
as multinacionais conhecem bem a lógica nacional, estreita, das burocracias
sindicais e sabem que estas em regra, não têm capacidade ou desejo por lutas
fora do quadro nacional... ou mesmo no quadro doméstico. Os sindicatos, em
regra, no capítulo dos setores com muitos trabalhadores, cingem-se às áreas dos
serviços públicos ou dos transportes – fora das cadeias das multinacionais – ou
à defesa de interesses de segmentos específicos, na defesa dos seus interesses
corporativos, sem qualquer visão ou preocupação sistémica, mesmo que no quadro
nacional.
·
Essa separação fragiliza qualquer luta isolada dos trabalhadores
porque no âmbito da segmentação da produção, um mesmo componente é fabricado em
vários locais distanciados, o que inviabiliza uma pressão laboral susceptível
de provocar qualquer rotura de stocks;
·
Uma multinacional acossada com uma greve localizada pode fechar
essa unidade sem prejuízos incomportáveis, porque não perturba a cadeia
logística montada. Pelo contrário, o mais habitual é que essa unidade tenha
grande importância no contexto da região ou do país onde está instalada, em
termos do emprego e da massa salarial inerente; e sabendo disso, não é difícil
a multinacional convencer o governo local ou nacional a agir com a subtileza
própria do cacete para jugular o protesto;
·
Quanto mais elaborado tecnicamente for o produto, maior é a sua
segmentação em peças e fases de fabrico, a sua repartição por vários locais e
países; e maior é a necessidade de uma elaborada logística onde se inserem
plataformas portuárias, centros de grupagem, cadeias de transportes, pontos de
armazenagem e venda, num circuito que funciona em densas redes onde a
velocidade e a fiabilidade são elementos essenciais;
·
Finalmente, note-se que toda esta meticulosa arquitetura montada
pelos capitalistas de topo envolve um elevado volume de capitais, capacidades
técnicas de ponta e uma gestão profissionalizada que não existe em países menos
desenvolvidos, parcos de infraestruturas, de conhecimentos avançados e capitais
autóctones para estabelecer e colocar em funcionamento estruturas produtivas
desta envergadura. Assim, os capitalistas nacionais não são competitivos, não
podem ombrear com as multinacionais no contexto global, só sobrevivendo em áreas
ou segmentos de mercadorias de baixas tecnologias, com potencial de venda nas
proximidades e nas quais seja essencial um baixo preço para o trabalho. Note-se
que em Portugal a fábrica da Volkswagen em Palmela tem uma relevância de
primeira grandeza como âncora setorial, pelo volume de trabalhadores
qualificados que enquadra, pelos níveis salariais que vigoram; porém, é apenas
uma fábrica da Volkswagen entre muitas outras, cuja direção de topo está na
Alemanha. O encerramento dessa fábrica teria efeitos catastróficos na economia
regional e nacional mas, certamente faria parte de um rearranjo na logística
global de Volkswagen que não afetaria a Alemanha. E, como é óbvio, nenhum
capitalista português terá, alguma vez capacidade para erigir uma marca de
automóvel, em competição com alemães, japoneses, franceses…; mesmo com o apoio
garantido dos arautos das políticas patrióticas de esquerda ou de direita, de
cima ou de baixo.
A
localização segmentada da produção torna-a geograficamente dispersa, difusa; os
seus componentes são produzidos em vários locais, tal como o produto acabado,
que é colocado em dispersos pontos de distribuição e de venda, para além de uma
parte móvel – constituída por componentes e produtos acabados - constantemente
contida nas cadeias logísticas. No seu conjunto, essa rede constitui uma
infraestrutura global e o seu funcionamento obriga à inexistência de
fronteiras, enquanto locais de paragem, de verificação burocrática das
mercadorias ou de origem ao pagamento de impostos.
Os
elementos provenientes dessa segmentação e a sua organização são monitorados
através de redes de comunicação que envolvem todo o processo produtivo, nos
capítulos da pesquisa e do aperfeiçoamento, da concepção, da moldagem ou da
montagem robotizada, bem como da comercialização e da contabilidade. Essa rede
é tanto mais rica e “competitiva” quanto mais densa e rápida for a integração e
a articulação dos seus fluxos; essa informação circula entre nós espalhados
pelo planeta, onde se situam seres humanos, trabalhadores, cuja intervenção se
materializa em validações sob a forma de micro-decisões, integradas num todo
articulado e interdependente, num complexo encadeado.
No seu
conjunto, mesmo separados pela geografia e pela cultura, esses trabalhadores
são os elementos centrais que conhecem e enformam todo o processo produtivo.
Porém, existem elementos que distorcem esse processo, com objetivos próprios
que não são os dos trabalhadores, dos consumidores, dos utilizadores dos bens
ou serviços produzidos; e que estão longe, na sua avidez, de ter em conta o
equilíbrio do planeta.
No cimo
da hierarquia do capital, nas grandes empresas, mormente multinacionais,
situam-se os gestores de topo e os acionistas. Estes últimos, em regra,
consideram a empresa como um meio para a valorização dos seus títulos nos
mercados de capitais. Para tal, exigem lucros elevados e uma generosa política
de distribuição de dividendos, condicionando os investimentos e procurando
aumentar as cotações das suas ações para uma eventual venda. Assim, transmitem os
seus desígnios aos gestores de topo, interessados na elevada apreciação do seu
labor, através das suas remunerações, mormente em stock options e seguros milionários. Recentemente, em Portugal, uma
empresa (CTT) decidiu distribuir
dividendos mesmo tendo… prejuízos o que no
mínimo é aberrante.
5 - O
capitalismo e as classes políticas são um estorvo
Depois da
dispersão inicial que se seguiu à saída das imediações do Lago Turkana, o
género humano protagonizou lógicas de integração cada vez mais alargadas,
embora muitas vezes de forma brutal. Hoje, a despeito da existência de várias
culturas, as relações entre elas são multifacetadas, a interdependência entre
os povos é crescente e as tecnologias existentes suplantam claramente as
tradicionais barreiras nacionais.
O
capitalismo vem construindo uma infraestrutura que abole as fronteiras e, sem
qualquer preocupação humanista, abre caminho à partilha dos povos na construção
de um futuro comum; o mau software
vigente é o da acumulação de capital, com os seus danos e crises, crescentes em
frequência e profundidade. Falta um outro software,
um que liberte a Humanidade do capitalismo e dos sentimentos de pertença
nacional que aquele inventou para dividir e antagonizar os grupos humanos.
Marx
percebeu bem o sistema capitalista, as rivalidades entre as potências de então,
mormente no capítulo da partilha das riquezas coloniais; como percebeu o papel
reacionário das nobrezas e do atraso daquilo a que chamou “a estupidez da vida
rural” por comparação com o dinamismo que observava na indústria e no comércio,
como construtores de uma nova era. Mesmo nesse tempo de consolidação dos
estados-nação, Marx e Bakhunin perceberam que os trabalhadores teriam de superar
as amarras das burguesias nacionais, a brutalidade da exploração capitalista,
as taras patrióticas introduzidas nos trabalhadores e avançar no sentido
contido em “L’International sera le genre humain!”.
A I
Guerra não permitiu a constituição da Internacional, apesar de várias
tentativas de não beligerância entre os trabalhadores-soldados dos dois lados
da barricada. A Revolução Russa de 1917 rapidamente passou de uma grande
esperança, para a construção de um capitalismo de estado, em que o poder económico
e o poder político se concentraram numa nova casta – o Partido; um poder
iniciado por Lenin e prosseguido por Trotsky e Stalin, num processo
degenerativo que se desmoronou em 1991. Em todo esse período, o
internacionalismo foi substituído pela subalternidade dos partidos nacionais às
conveniências estratégicas da URSS, enquanto “pátria do socialismo”.
O
abandono efetivo do internacionalismo, da unidade social e política dos
trabalhadores de todos os países (como consta do Manifesto Comunista) e a
insistência em lógicas nacionalistas não acompanhou a internacionalização do
capital que se acelerou depois da II Guerra. A subjetividade contida nas
organizações de trabalhadores não se adequou à objetiva construção de um
capitalismo globalizado. E, por outro lado, a lógica burocrática imanente a um
capitalismo de estado, agravada pela competição militar face aos EUA conduziu à
estagnação e ao desmoronar do modelo soviético. Essa realidade foi estudada
devidamente no seio do PC chinês que, mantendo o controlo político, social e
económico do país através de uma cuidada planificação estratégica, soube
recolher conhecimentos no exterior, aplicá-los à realidade chinesa e avançar
com um projeto capitalista que encaminha a China para o retorno à posição de
principal potência mundial que tinha tido até ao século XVI. Simbolicamente, Xi
Jiping e Trump representam bem a ascensão da China e decadência dos EUA,
mascarada pelo seu ineficaz militarismo.
Esses
alinhamentos nacionalistas foram acentuados durante a II Guerra e, posteriormente
através das lutas de libertação nacional ou das meras independências face às
potências coloniais. As lutas de libertação nacional que empolgaram muitos na
Europa e nos EUA (com relevo para o Vietnam) conduziram demasiadas vezes a
regimes despóticos e oligárquicos, entronizaram generais como ricos empresários
(José Eduardo dos Santos), predadores primários (Mobutu, Nguema), brutais
opressores (Suharto, Mugabe), idiotas (Bokassa) e muitas outras pouco
recomendáveis figuras de aliados das multinacionais na predação dos recursos
ou, do sistema financeiro, assumindo dívidas públicas … para proveitos
privados.
Nos
tempos que correm, o capitalismo globalizado e financiarizado mostra-se em
crise permanente mas, dorme todas as noites descansado perante a ausência de
uma real contestação social e política por parte dos milhões de trabalhadores
precarizados, com direitos minguantes, sobrecarregados com os efeitos da deriva
climática, das guerras, inchados de consumismo, acometidos pela fome e pela
doença, com a ingestão de porcarias e com muita dívida para pagar; dívida
própria ou previamente transferida para os Estados pelos capitalistas.
Neste
contexto, o que nas últimas décadas se vem chamando “esquerda” é um conjunto de
partidos e grupos, erigidos sob fórmulas hierárquicas e autoritárias (tal como
as empresas), num plano nacional, daí resultando fossilização ideológica,
incapacidade estratégica, conservadorismo tático, oportunismo político, tiques
reacionários em termos de costumes. Tornou-se vulgar chamar esquerda a quem se
senta do lado esquerdo nos parlamentos como se a posição relativa fosse
indutora de progressismo, contestação ou radicalidade; pior é que essa
confusão, encenada ad nauseam pelos media, enquadra a multidão num quadro de
alternativas políticas fechado e objetivamente conservador, num there is no alternative.
A tarefa
essencial de hoje é como organizar a contestação e qual a sociedade que queremos
construir. Abordaremos essa questão em breve.
Recordamos
abaixo, os sumários dos textos que precederam o aqui presente e que lhe
serviram de base,
ÍNDICE GLOBAL
A - Notas para o nascimento do estado-nação
1 - A expansão colonial conduziu à
construção do Estado moderno
2 - O Estado, elemento essencial para a
acumulação
3 - Nações e estados-nação
4 – O engrandecimento de um aparelho de
estado envolve sempre violência
5 - L’Etat, c’est moi!
6 – A importância do patriotismo
7 - O início do capitalismo industrial
B – O imperialismo e os seus limites
8 - Revolução Industrial
9 – A construção do imperialismo
10 – O imperialismo maduro
11 - As duas Grandes Guerras e os alvores
do keynesianismo
12 - O capitalismo de estado e o fascismo
C - Os trinta gloriosos anos do capitalismo
13 - A reformulação do pensamento político
e o esplendor keynesiano
14 - A reconstrução das infraestruturas e o
início da integração europeia
15- Instituições supra-nacionais configuram
a globalização
16 – A descolonização e o declínio das
nações colonizadoras
17 - A aceitação pelos trabalhadores da
ordem capitalista
D – A chegada ao sufoco neoliberal
18 - A mudança para o paradigma neoliberal
19 – O acelerar da globalização
capitalista; o encurtamento do tempo
19.1 – A transição portuguesa
20 - O caráter global da formatação ideológica
21 - O pós-crise de 2008
Este
e outros textos em:
[2] A canonização de Nuno Álvares Pereira é um exemplo da ligação
entre a religião e os feitos militares: http://www.rtp.pt/play/p2055/e328891/radicais-livres
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