domingo, 27 de março de 2016

NEOLIBERALISMO E KEYNESIANISMO, DOIS PRATOS DA MESMA GOROROBA



Quem tenha o mau gosto ou a infinita paciência para esperar que a palavra capitalismo saia da boca de membros da classe política ou da escolástica universitária, é porque acredita que camaleões possam cantar Verdi.
Sumário


1 - A função financeira e as suas bolhas
2 - O neoliberalismo selvagem e genocida
3 - Haverá uma alternativa keynesiana anticapitalista?
3.1 – Uma moeda própria?
3.2 – O fomento do consumo privado?
3.3 - O gasto público, o choque keynesiano?
3.4 – A aceitação da dívida não será um acto de submissão?
4 - Como arquitetar uma solução anticapitalista



O capital não é abstrato e os seus donos são gente e instituições concretas que tudo fazem para o valorizar. Por muito pouco que essa gente represente face à população mundial, são eles que montam os bailados entre governos e oposições, correspondendo isso à objetiva contratação daqueles dançarinos como funcionários zeladores dos interesses essenciais do capital – a sua acumulação, a sua valorização em busca do infinito. 

Com as classes políticas ao seu serviço, o capital apossa-se dos aparelhos de estado e das instituições pluriestatais, com particular destaque para as que enformam a burocracia da UE; através deste controlo, o capital monta os circos eleitorais, apropria-se da punção fiscal, goza do monopólio da emanação de leis convenientes e da violência, por intermédio de entes tão pouco simpáticos como polícias, tribunais e cobradores de impostos.

Nada disto teria um funcionamento sem contestação relevante por parte da plebe se não houvesse um tentacular aparelho ideológico público e privado, ou melhor, público-privado. Referimo-nos à escola em geral, à universidade em particular e aos media, verdadeiros filtros promotores de ocultação, de mentira e deturpação.

É com este plano de fundo que a realidade no contexto económico e financeiro teima em não apresentar cores alegres.

1 - A função financeira e as suas bolhas

A função de crédito baseia-se na captação de poupanças de pessoas e empresas para empréstimo a quem dele precise, mormente para investimento produtivo. Tradicionalmente são os bancos que desempenham essa função, tendo como remuneração o diferencial entre os juros pagos aos depositantes e os que cobram aos mutuários. Claramente, os bancos e instituições a eles ligadas evoluíram, de um caráter nacional para uma lógica global, formando um sistema financeiro em que milhares de milhões de registos, beneficiando das tecnologias de informação e comunicação, mudam de titular e de localização, numa cadência assombrosa e de modo instantâneo. 

Os bancos e o sistema financeiro em geral rodearam-se de capacidades únicas e desligadas da realidade social, atuando diretamente ou através de galáxias de entidades, com nomes obscuros para a maioria, tais como fundos de investimento, hedge funds, fundos abutres, imobiliários ou de pensões, bancos de investimento, seguradoras, empresas de locação financeira, de factoring, de aquisição de crédito e outras. E ainda de instrumentos parasitários ou com funções especulativas como ações, obrigações, títulos de dívida pública, certificados de depósito, contratos diferenciais, de futuros, forward ou de opção, swaps (… o que nos traz à memória a Maria Luís) derivados sobre divisas, instrumentos financeiros, opções, papel comercial (onde se enrolaram clientes do BES) e outros, cujas definições se podem encontrar, por exemplo, na página da CMVM[1].

Toda aquela vasta gama de “produtos” constitui uma cadeia de interpenetrações, em que uns dependem da evolução de outros, todos ignorando ou esquecendo a base real – um crédito efetivo, relacionado com a realidade económica e social. A compra, venda e recompra desses “produtos” faz-se através de decisões instantâneas, tomadas por supercomputadores, que se desenrolam em todos os momentos, promovendo escaladas geradoras de valorizações e ganhos; a que se seguem, inevitavelmente, períodos de queda, de desvalorizações e perdas em que os “papéis” parecem queimar as mãos dos seus detentores.

Sublinha-se que nada mais há do que esses registos informáticos que se interpenetram uns nos outros, numa matriz de direitos e obrigações, que protagonizam transferências e mudanças nos valores, sem qualquer correspondência com a criação de bens ou serviços com destino à satisfação de necessidades humanas. No entanto, todos os intervenientes necessitam de fundos (próprios ou alheios) crescentes para essas transações cuja valorização alimenta uma bolha; e é aí, para evitar o rebentamento dessa bolha por falta de liquidez que Draghi interveio recentemente para aumentar, de € 60000 M para € 80000 M mensais, o financiamento pelo BCE do sistema financeiro, com uma taxa de 0%. 

Há quem aponte para ciclos de oito anos os períodos em que as bolhas especulativas incham até rebentarem, voltando a iniciar-se um novo ciclo. Entretanto, ficam pelo caminho, os mais imprudentes, com ativos desvalorizados, obrigados a vendas com perdas elevadas, insuficientes para o reembolso dos capitais tomados de empréstimo e destinados à especulação, na perspetiva gulosa e demente de que a valorização dos títulos atinja o céu. 

Não chegará. E como nas bebedeiras, a ressaca não é agradável. Em três semanas de junho de 2015 a bolsa de Xangai perdeu 30% da sua valorização, no equivalente a € 3 biliões, afetando drasticamente sete milhões de novos ditos investidores atraídos pelas grandes subidas das cotações que se verificaram nos poucos dias anteriores à queda. 

Como se sabe, na lógica das pirâmides de Ponzi, o seu fim é um dado certo, sendo incerto apenas o momento do fim da festa; e os jogadores pretendem sempre explorar ao máximo a fase ascendente do ciclo, tentando adivinhar o ponto de inflexão. Estamos, dentro dessa métrica, em ano de rebentamento de bolha, depois da crise derivada dos subprimes em 2008; credenciados analistas do mercado já previam, um ano atrás, que esse rebentamento ocorreria em outubro de 2015. Na Europa, Draghi trava uma luta desesperada contra ao tempo, tentando adiar o rebentamento da bolha, emitindo mais moeda, esperando que uma retoma (improvável) coloque o “mercado” a caminhar em cima dos próprios pés.

                                                                       A onda Draghi

Se o jogo especulativo permite lucros, valorização dos capitais aplicados, é para lá que os “investidores” se dirigem, pouco interessados nos verdadeiros investimentos, na criação de capacidades de produção de bens e serviços, na satisfação de necessidades. E não consta que as evidentes manchas de pobreza e a carência de estruturas nos capítulos da educação, da saúde, da ação social, ou a degradação do parque habitacional, comovam os tais “investidores”; excepto, quando a beneficência com a criação de fundações, sejam fontes de benefícios fiscais. Aliás, esses “investidores” bem integrados na racionalidade capitalista do curto prazo e da rendabilidade máxima, não se mostram interessados em comprar equipamentos, terrenos agrícolas, contratar trabalhadores, promover as vendas, etc., onde se evidenciam ciclos diferentes entre a contabilização de custos de capital e a recuperação ou a eventual remuneração dos mesmos, onde há que gerir trabalhadores, pagar impostos, cumprir regulamentos ambientais, elementos esses que não existem ou são muito aligeirados nos mercados financeiros globais. 

Quando procedem a compras de empresas produtoras de bens ou serviços, os tais “investidores” visam, desde o princípio, segmentá-las, proceder ao “emagrecimento de estruturas”, deslocalizar atividades e proceder a despedimentos, para em seguida realizarem mais-valias através da venda da empresa adquirida, no seu todo ou em parcelas. A estas criativas práticas o mercado designa por “downsizing”.

2 -  O neoliberalismo selvagem e genocida

Neste contexto, em que a especulação, a integração nas pirâmides de Ponzi constituem o fulcro do destino dos capitais, estes não ficam disponíveis para o investimento real, de onde resultaria a melhoria da produtividade e do emprego, a criação de acréscimos de consumo que iriam interagir com a oferta de bens e serviços, como consta nos manuais de cariz keynesiano. 

O que se disse nos últimos parágrafos expressa a lógica interna do modelo capitalista, que a procura da maximização da acumulação de capital é o grande objetivo do capitalismo e, nesse contexto, há uma coerência total no procedimento da especulação financeira. Subsequentemente, a penúria do investimento interage com o aumento do desemprego e a repressão salarial que, por sua vez, impedem o aumento da procura de bens e serviços por parte das populações, tornando anémico o célebre crescimento do PIB[2], a formação de rendimento. Para mascarar essa anemia, o Eurostat procedeu, em 2010, a uma alteração na contabilização do PIB que torna esta medida com um acrescido conteúdo surrealista, manipulável, quando, por exemplo, inclui uma estimativa dos serviços de prostituição, considera investimento os gastos militares ou, como um rendimento, os voláteis lucros resultantes das valorizações de ativos nos balanços, embora lhes seja totalmente ausente, a montante, uma infraestrutura produtiva ou uma componente em trabalho. Esta criatividade não inclui os fluxos de capital, relacionados com a corrupção ou o crime que, a nível global valem uns 10/15 % do PIB; enquanto em Portugal a chamada economia paralela se aproxima dos 27% do PIB[3] formal. 

Se o capital financeiro domina a economia global e as classes políticas, é de considerar que os quantitative easings procurem em primeira instância alimentar a bolha especulativa, empurrar o próximo estoiro com a barriga e proceder a orações para que possam gerar impulsos positivos no bem-estar dos povos, enquanto facilitadores do investimento, atendendo às baixíssimas taxas de juro. Como os fundos distribuídos através de quantitative easing pelo BCE, com contrapartidas como garantia em títulos de dívida pública entregues pelos bancos, são os povos que acabam por assumir um endividamento perpétuo, custos enormes com juros, que exigem taxas de crescimento do PIB estratosféricas no âmbito dos contornos do neoliberalismo vigente[4].

À anemia da economia juntou-se em anos recentes a deriva da dívida. A solução neoliberal tem um guião. Como o mercado interno é (sempre) curto, é preciso ser competitivo para aumentar as exportações; para ser competitivo é preciso baixar os custos o que, na lógica neoliberal, só pode significar redução do preço do trabalho; para fazer face aos encargos com a dívida pública - e porque é limitada (comparativamente) a progressão dos impostos - há que reduzir o deficit, abater as “gorduras do Estado” e proceder a reformas estruturais, algo que nunca se sabe bem o que seja; estas últimas conduzem, em regra, a despedimentos e cortes nos custos sociais, sobretudo na saúde e na educação mas, também adjudicações e parcerias com privados; para evitar maiores acréscimos da dívida, concretizam-se apressadamente privatizações e montam-se todas as facilidades para uma (baldada) atração do investimento estrangeiro. Como todas as classes políticas nacionais atuam da mesma maneira e o planeta é finito, concorrem todas para o mesmo, pelo que a solução não existe; qualquer resultado, em termos globais é uma soma nula.

Hoje, como sempre, o capitalismo, nunca recusou o recurso à guerra e à morte de milhões de pessoas para satisfazer os seus interesses globais, para resolver antagonismos entre grupos de capitalistas em disputa por recursos materiais e humanos. Nunca o capitalismo levou completamente a sério as várias manifestações das alterações climáticas e, pelo contrário, procura a partir delas, criar novas oportunidades de negócio, sujo. Neste contexto, de vistas curtas e absoluta falta de ética, o capitalismo desinteressa-se completamente com a sorte de milhões de pessoas desde que os territórios destes possam ser objeto de devastação, numa lógica extrativista dos seus recursos ou, que sejam maltratados pelas oligarquias indígenas que garantem ao capitalismo o acesso a esses recursos. 

No seguimento dessa estratégia de “desenvolvimento” marcadamente neoliberal, escasseiam os empregos, abundam planos de reestruturação com downsizings, o desemprego estaciona em níveis elevados, os salários estagnam, as condições laborais deterioram-se e a precariedade vulgariza-se; os direitos à saúde, à habitação e à educação são tendencialmente apontados para se integrarem em soluções de mercado, enquanto a carga fiscal sobrecarrega essencialmente as famílias, pois as empresas terão de ser aliviadas em nome da sagrada competitividade[5]. Esta é a política de pobreza que se enquadra na estratégia de “desenvolvimento” neoliberal e que colocará em breve, em causa, o próprio direito à vida, tornada variável instrumental dos humores do mercado.

A pressão para o empobrecimento e a ausência de perspetivas reais de crescimento económico que a disfarcem, levantam às classes políticas, no seu conjunto, a necessidade de reduzir a população, impulsionando a emigração e limitando os custos com os estruturalmente excluídos do “mercado de trabalho”[6] ou com os que se encontram na reforma. As políticas de limitação de possibilidades de uma vida condigna e os cortes orçamentais conduzem a formas ocultas, porque lentas, de atrofia demográfica, social e de genocídio[7].

Será muito instrutivo que se aquilate a harmonia existente entre as direitas e as ditas esquerdas, as escassas diferenças estratégicas entre neoliberais e keynesianos, harmonia essa arquitetada nos grandes centros financeiros - Frankfurt, Londres, Wall Street, Tóquio ou Xangai.

3 - Haverá uma alternativa keynesiana anticapitalista?

Não há um capitalismo bom, apenas nuances entre o mau e o pior. E é entre essas nuances que se posicionam, efetivamente os neoliberais assumidos, próximos dos partidos do lado direito dos regimes cleptocráticos e os defensores de um mítico keynesianismo, com um repertório mais enquadrado nas esquerdas daqueles mesmos regimes. Trata-se de máscaras para uma mesma cara. Todos sabemos que é normal esvoaçarem moscas de várias cores em torno do esterco.

Combater uma forma de gestão capitalista contra a outra não acelera o seu fim, dá-lhe novo fôlego e condena mais algumas gerações ao sacrifício. A luta entre neoliberais e keynesianos não é apenas ideológica; é uma luta pela chave do pote, com ambas as facções disputando as boas graças da rua ou a neutralidade da multidão face às suas disputas. 


Discussão entre neoliberais e keynesianos ou entre as direitas e as esquerdas dos regimes cleptocráticos
Quer uns quer outros partilham a mesma fixação: o crescimento do PIB, forma tecnocrática de referir acumulação capitalista. Nessa narrativa, a produção de bens e serviços deve aumentar para todo o sempre, por muito desajustada que seja a sua composição, por muito desigual que seja a sua distribuição enquanto rendimento, por muito demente que seja a consideração de um crescimento em abstrato, desligado das necessidades humanas e da sustentação do planeta. Na lógica do capital, se hipoteticamente o PIB for representado pela produção de batatas e coubesse a cada pessoa um quinhão médio de um quilo por dia, a exigência de crescimento do PIB (que apenas simboliza e encobre a necessidade de reprodução do capital) teria de se cifrar em dois quilos por dia, três quilos por dia… Na lógica do capital, as necessidades humanas não são o objetivo mas o meio de perpetuar a acumulação capitalista, o que se manifesta claramente na sua inviabilidade, no exemplo atrás exposto.


Normalmente, os keynesianos procuram apresentar-se como defensores dos interesses do povo, como restauradores da bem-aventurança, através de um capitalismo de face humana, dulcificando o neoliberalismo; propõem o pagamento da dívida pública, a concorrência e a competitividade, diferenciando-se da direita neoliberal por colocarem o poder político (leia-se, eles, ocupando a burocracia estatal) a comandar o poder económico; e subscrevem, muitos deles através de uma visão soberanista e nacionalista, a saída da UE e do euro, uma visão que compartilham com a extrema-direita fascizante europeia. Alguns, mais toscos intelectualmente, criticam a evidente ausência de democracia nas instituições europeias, onde dominam os burocratas da matriz PPE/S&D, os funcionários designados pelo sistema financeiro ou em relação promíscua com os lobbies pagos pelas multinacionais, considerando que as classes políticas nacionais integram democratas impolutos defensores do povo, mesmo que sejam componentes do mesmo cartel PPE/S&D atribuindo àquelas maior legitimidade pela razão que os seus mandarins emanam dos circos eleitorais nacionais.

Os keynesianos apostam sobretudo em intervenção estatal, são burocratas estatólatras e daí que incorporem várias estirpes de sócios e simpatizantes do trotsko-estalinismo. Estes, disfarçam a saudade do capitalismo de estado de recorte soviético e reagem com incómodo perante a existência da ridícula monarquia norte-coreana; mas não conseguem evitar a apetência pela sua assunção como vanguardas iluminadas para o controlo das massas, mesmo quando se enroscam no PS, para fazer pela vida. Cruzam-se, também, no caminho para o pote, com universitários bem-falantes prontos a adornar o poder – são os intelectuais orgânicos, de boas famílias, empenhados na afirmação hegemónica do capitalismo, como disse Gramsci.

Abordemos, então, algumas das propostas de política económica que compõem o arsenal keynesiano:

3.1 – Uma moeda própria?

Ponto forte dos keynesianos nacionalistas é a posse de moeda própria. Nas antigas economias keynesianas a emissão de moeda era um recurso típico para aumentar o crédito à economia. Na UE não há soberania nacional sobre a política monetária, os governos não podem fixar taxas de juro, de câmbio ou colocar as rotativas a imprimir notas; só o Draghi é que decide a dimensão da moeda emitida, a política de crédito e que orienta as taxas de juro, com os parcos efeitos que se conhecem, para além de servirem de carburante para a especulação. 

Essas políticas monetárias eram garantia de escaladas inflacionistas (antes do euro a inflação em Portugal chegou aos 28%, para não falar na híper-inflação alemã dos anos 20, ultrapassada recentemente pela registada no Zimbabwe); a inflação tem sempre como reverso uma conveniente repressão salarial, para garantir a competitividade das exportações e retrair as importações, tendencialmente mais caras. Hoje, pelo contrário, no economês reinante, há queixas pela falta de uma inflaçãozinha que estimule a procura de bens e serviços, o que é de todo, o oposto ao objeto estatutário do BCE. 

Para obviar aos inconvenientes da inflação no poder de compra dos trabalhadores instituíam-se cabazes de bens com preços fixados administrativamente e subsidiados pelo erário público, contribuindo para o deficit público. Não é uma hipótese real nem conveniente[8] uma vez que o encerramento soberanista de um país periférico, pobre e que nem sequer tem empresários ou sector financeiro para alicerçar um verdadeiro desenvolvimento capitalista, não auguraria nada de bom para a esmagadora maioria dos portugueses.

Na discussão sobre o euro, há a considerar três hipóteses. Uma, é a zona euro se desmoronar e, nesse caso, haveria de pensar na conveniência de uma moeda ibérica, dadas as ligações económicas, financeiras e o comércio entre as duas margens do Caia, do Minho ou do Guadiana. Um segundo cenário é a oligarquia comunitária decidir afastar Portugal (como a Grécia) para fora da zona euro, tomado como um caso perdido de sustentabilidade financeira e, apesar de os tratados não preverem expulsões nem saídas sequer. A terceira situação, ardentemente defendida por ferrenhos nacionalistas de tradição trotsko-estalinista ou alguns saudosos de um mítico Viriato, é a orgulhosa fuga soberanista, sem perceberem que abririam a porta ao fascismo. O economicismo surge sempre associado à miopia.

3.2 – O fomento do consumo privado?

Uma forma de executar o choque keynesiano é promover o gasto privado e desencorajar a poupança - admitindo que esta ainda exista - sem alterações da política salarial. Se aquela existir, num volume significativo, oriundo das classes médias e baixas, isso significa uma redução dos depósitos bancários, que os bancos terão de suprir com acréscimos de capitais próprios ou com o recurso a crédito externo; o que aliás aconteceu em Portugal durante o boom do imobiliário iniciado nos anos 80, depois de muito diminuídas, numa primeira fase, as elevadas poupanças dos portugueses. 

Por outro lado, a promoção do gasto só terá um efeito positivo no crescimento do PIB se houver capacidade de produção disponível nas empresas, se estas aumentarem as suas capacidades produtivas, se apresentarem preços que desencorajem a importação ou ainda, se voltarem a existir controlos nas fronteiras, com sobretaxas que onerem as importações, etc. Trata-se de muitas variáveis independentes para uma só equação.

Como as classes médias e baixas estão reduzidas e esmagadas pelo desemprego, pelos salários estagnados ou precários, pelos cortes, pela carga fiscal regressiva e ainda porque o sistema bancário sofre de uma grave osteoporose, não é compaginável um aumento significativo e sustentado do PIB por essa via.

Por seu turno, o turismo – até ver a coqueluche do (fraco) crescimento luso - gera, obviamente consumo no país mas, esses gastos envolvem uma forte componente importada, como se pode observar na origem geográfica dos bens expostos nos supermercados; por outro lado, os salários auferidos no setor, associados a uma forte sazonalidade não parecem promover um gasto em consumo, com efeitos que expandam o célebre PIB.

3.3 - O gasto público, o choque keynesiano?

Para evitar essa dependência de muitos fatores, relativamente incontroláveis por parte do consumo privado, sobretudo em economias de mercado, as primeiras aplicações keynesianas centraram-se no gasto público de que foram pioneiras as experiências de Roosevelt, com os empreendimentos do vale do Tennessee e o New Deal; e também as infraestruturas e os gastos militares conduzidos por Hitler, para consolidar a retoma vinda da anterior República de Weimar e preparar os horrores que se conhecem. No entanto, quer nos EUA, como na Alemanha nazi, foram os gastos militares que alicerçaram o crescimento económico, mais do que os gastos em infraestruturas úteis para as pessoas.

Nos anos 40 foram inventados na Suécia planos de construção de infraestruturas para contrabalançar tendências de quebra na atividade, tendo em conta o impacto da construção e obras públicas (o chamado efeito multiplicador). Recentemente, nos primeiros tempos depois da abertura da actual crise, a Comissão Europeia ainda optou por esse tipo de estratégia mas, logo se arrependeu. Isso teve uma expressão nos planos do governo Sócrates que incluíam um novo aeroporto em Alcochete, nova ponte sobre o Tejo, a plataforma logística do Poceirão, entre outros, o que exigiria uma capacidade financeira do Estado que não havia.

Por um lado, havia uma grande dúvida sobre a utilidade desses investimentos relativamente aos custos. O deficit já era elevado e havia de dar prioridade à capitalização dos bancos, cessado o habitual refinanciamento no exterior e uma vez interrompida a volúpia imobiliária. Uma política de betão não teve cabimento a despeito de um contexto de anemia económica devido à fragilidade financeira do Estado, à canalização da punção fiscal para pagamento de dívida e aos elevados constrangimentos de endividamento externo. 

Um programa estatal de cariz keynesiano, de fomento de trabalhos de construção civil, exigiria uma capacidade financeira assinalável, uma perspetiva, durante muitos anos, de receita fiscal sustentada e empréstimos, sobretudo externos, a longo prazo e com juros baixos (a alternativa, no caso de moeda própria, seria um quantitative easing doméstico). Planos dessa natureza só têm impacto alargado se incidem sobre um tecido produtivo com uma matriz densa de relações inter-sectoriais, caso contrário, promovem avultadas compras ao exterior, perdendo-se grande parte do impacto em benefício de empresas estrangeiras e em prejuízo do equilíbrio externo.

As polÍticas de aumento do poder de compra da população em geral podem promover subida de preços onde houver situações de cartel (e há muitas) indo aqueles aumentos desaguar nos cofres dos capitalistas. Têm o mesmo efeito se não houver capacidade produtiva capaz de corresponder a essa maior procura e na dificuldade de recurso à importação. Não havendo essa dificuldade, com entraves à importação (não admissíveis na UE) a compra no exterior dos bens desejados tem efeitos nefastos na balança externa. 

Em tempos de longo aperto sobre as despesas públicas e pressão fiscal global elevada a níveis de intolerabilidade não é fácil uma política de estímulos. Que áreas seriam sacrificadas? Os gastos militares não, porque há muito nacionalismo e militarismo entre os keynesianos e a NATO não deixaria, no âmbito da guerra contra o terrorismo instaurada depois de setembro de 2001; na saúde e na educação, as privatizações diretas ou indiretas vão-se fazendo sem resultados visíveis na redução dos deficits; a burocracia, tende sempre a aumentar, por manias de controlo, desconfianças sobre descentralizações administrativas e da sua relevância para a colocação de mandarins e clientelas partidárias ou ainda para animar compadrios e corrupção. Reduzir ainda mais a tributação sobre as empresas e onerar em alternativa as famílias é politicamente suicida e só iria aumentar a fuga dos rendimentos dos ricos.

3.4 – A aceitação da dívida não será um acto de submissão?

Os keynesianos não vão além da consideração da dívida como um adiantamento de capital alheio ao qual corresponderá uma taxa de juro; têm uma visão tecnocrática, economicista, aparentemente acéptica do ponto de vista político, tal como os neoliberais. Na realidade revelam a sua obediente inclusão nos desígnios do capitalismo, a subjugação de famílias, empresas e estados face ao capital financeiro através de uma dívida que preenche o tempo de vida das pessoas e que arrasta na sua dependência eterna empresas e estados; estes, procedem depois à imputação dos custos junto das famílias, com cortes sociais e punção fiscal, uma vez que poupam as empresas, especialmente as grandes, para não coartar o… crescimento (sempre ele). 

Na realidade, embora se chame juro à remuneração de capitais emprestados, a perpetuação da situação de devedor transforma essa remuneração numa renda, num tributo com cheiro feudal, de caráter político, totalmente fora de uma relação normal entre devedor e credor, na qual o tempo de reembolso é bem definido e se pressupõe a capacidade desse reembolso por parte do mutuário. Uma dívida eterna inclui uma relação de submissão.

No caso da dívida pública, a sua constituição é feita por acordo ou conluio entre classe política e grandes instituições financeiras, fundos e outros entes especulativos, sem que os pagadores (os povos) sejam consultados em caso algum. Os credores contam com a conivência das classes políticas para impor à plebe o pagamento, por convencimento moralista (não somos caloteiros!), pela coação fiscal (ou outra ainda mais punitiva), no âmbito do monopólio da violência que é apanágio dos estados. 

De modo muito ligeiro, alguém poderá aceitar que um governo, a parte dominante da classe política, como representante do povo, da nação ou outra denominação afim, contraia uma dívida junto do sistema financeiro e mesmo no exterior. Essa mesma pessoa, se de seu perfeito juízo porém, nunca iria contrair uma dívida sem um objetivo concreto, por capricho, moda ou para agradar ao banqueiro. Uma dívida pública, sobretudo de médio ou longo prazo, não está associada a um fim específico, a uma aplicação que constitua um benefício para o povo, seja um hospital, uma escola, uma estrada, uma barragem; e todos percebem que é para isso que servem os impostos.

Sucede que nos 840 euros que cada português, em média irá pagar de juros de dívida pública, em 2016, ninguém consegue almejar que benefícios sociais foram conseguidos com os capitais mutuados e pelos quais se pagam juros. Para mais, sobram situações de falcatrua, corrupção, compadrio, negligência, por parte das governações; de forma não fortuita mas, continuada, sistemática e sem fim à vista.

Para quem goste de quantificações, estimativa por nós elaborada em 2014, com três variantes[9], apontava para um esforço necessário para o pagamento de juros e cumprimento do plano de amortizações então conhecido, até 2021, correspondente a 5.8 e 12.4% do PIB, por ano, tendo sido considerado entre essas variantes, uma que contempla a frouxa proposta da esquerda eleitoral, keynesiana, de renegociação da dívida.

Essa postura de consideração como pagável de uma dívida que o não é e que representa uma forma de cativação, escravização[10], de um povo revê,la que a esquerda keynesiana está do lado do capital financeiro, a despeito da sua fraseologia populista. Para cúmulo do que se poderá considerar tontice é que há quem aceite a dívida, renegociada em prestações suaves com banqueiros bonzinhos – e até da forma politicamente mais imbecil [11] - e simultaneamente seja nacionalista, como se fronteiras e moeda própria fossem formas expeditas de sair do torniquete montado pelo capital financeiro globalizado.

Hoje, existem duas estratégias para a manutenção do capitalismo – o neoliberalismo dominante e o keynesianismo, como challenger e que se mesclam no âmbito da grande capacidade de adaptação que o capitalismo tem apresentado[12]. São a mesma gororoba servida em pratos de cores diversas para manter a multidão anestesiada.

4 - Como arquitetar uma solução anticapitalista

Do ponto de vista tático há uma questão essencial a colocar entre os anticapitalistas. Até onde ir na colaboração com as esquerdas eleitorais e keynesianas contra os governos neoliberais? 

Aquelas esquerdas eleitorais são defensoras do capitalismo ao qual admitem a necessidade de brandas reformas, do mesmo modo que são de um imenso situacionismo no capítulo da democracia de mercado, que, de facto, nada tem de democrática. Por outro lado, são firmes defensores duma pouco virtuosa autoridade estatal, da estratificação hierárquica a nível social, da necessidade de uma classe política, de uma burocracia para a gestão das necessidades coletivas, de estados-nação para dividir a Humanidade em pátrias e, last but not the least, defendem a propriedade dos meios de produção nas mãos de patrões, para disciplinar a plebe, como instrumento de segmentação social, fonte de privilégios, de perpetuação de exploradores e explorados. E porque são defensores do capitalismo, o regime cleptocrático é simpático para com eles dando visibilidade televisiva a keynesianos e trotsko-estalinistas, oferecendo-lhes até, lugares à mesa do majestático conselho de estado onde Draghi estará como convidado especial[13]

Acontece que a multidão vai observando o comportamento destas “esquerdas” não lhes dando possibilidade de grandes subidas eleitorais ao mesmo tempo que, com grandes níveis de abstenção, a multidão se recusa também a votar nas direitas tradicionais insertas na amálgama europeia PPE/S&D que, gradualmente, vem incluindo na sua prática, derivas autoritárias e excludentes para impedir maiores danos eleitorais vindos de partidos xenófobos (UKIP, AfD) ou fascistas como o PiS de Kaczynski, o Fidesz de Orban, a FN de LePen); longínquos estão os tempos em que a UE rejeitou a Áustria onde um fascista – Haider – chegara ao poder.

Entendemos que pontualmente, num ou outro protesto, numa ou outra ação concreta, é possível algumas pontes, dos anticapitalistas com a esquerda eleitoral e keynesiana mas, jamais uma concertação estratégica. Mesmo numa ação contra a direita neoliberal, contra o militarismo, quando menos se espera, os grupos da esquerda do regime, podem mudar de campo, por motivos estratégicos de defesa do capital ou por um maior quinhão do pote[14].

O fulcro da atuação deve estar com as pessoas comuns, que não têm filiações partidárias, que sofrem isoladas a agressão do capitalismo, dos seus governos, dos restantes serventes das classes políticas e que são humilhados no trabalho ou na falta dele, com subsídios miseráveis e precários, trabalho compulsivo e gratuito e apresentações regulares, como criminosos; pessoas a quem é necessário fazer brotar a autoconfiança e a auto-organização para mudar o actual estado de coisas, sem divisões quanto à nacionalidade, religião ou “raça”, contrariando a onda xenófoba que grassa na Europa.


Este e outros textos:
http://grazia-tanta.blogspot.com/                               
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents


[1]  http://www.cmvm.pt/pt/SDI/ProdutosFinanceirosComplexos/Pages/Gloss%C3%A1riodetermosrelativosaInstrumentosFinanceiros.aspx
[2] O PIB é uma medida da riqueza criada, da produção de bens e serviços gerada pelo trabalho embora seja tomado geralmente como um objetivo social, sem ter em conta se resulta de lucros de especulação ou em salários (na lógica do rendimento) ou, se resultou de uma aumento do consumo ou de gastos públicos em equipamentos militares (lógica da despesa); para além e ainda, sem ter em conta o que se inclui sobre o termo consumo.
[3]   https://www.publico.pt/economia/noticia/a-economia-paralela-em-portugal-1694348
[4]  http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/03/porque-nao-e-pagavel-divida-publica.html
[5]  http://grazia-tanta.blogspot.pt/2016/01/os-apoios-fiscais-as-empresas-favorecem.html
[6] Esta expressão reveladora de que há, de um lado empregadores e do outro, colaboradores é de um cinismo aviltante, pois esconde o antagonismo criado pela profunda desigualdade existente nessa relação mercantil. A sua utilização pelos próprios trabalhadores e mesmo, sindicalistas, revela a assunção, por cada um, da condição de máquina produtora dessa mercadoria especial chamada força de trabalho e que o esforço físico, o intelecto e ainda - com o pós-fordismo - o afeto, são mercadoria.
[10]  Sobre este tema nada melhor do que ler “Debt: the first 5,000 years” de David Graeber de que existe edição em castelhano ou ainda “A maneira mais simples de desobedecer ao mundo financeiro é recusar pagar as dívidas”


1 comentário:

  1. Antes de mais devo dizer que consegui ler o artigo até ao fim e creio não ter perdido o fio à meada, apesar de muitos dos termos usados me serem desconhecidos. Estão de tal modo contextualizados que não precisei de voltar atrás para retomar o raciocínio do autor. Capacidade brilhante a do autor, não a minha. Ou seja, em jeito de conclusão, a bolha vai rebentar, salve-se quem puder, que venha o diabo e escolha. Ou estoiramos com todos eles, ou eles acabam de estoirar connosco. "Da Ditadura à Democracia" era o livro que os 17 estavam a ler aquando da sua detenção. Vou ficar tentando descortinar com os 'meus botões' se há salvação para o Mundo, ou se deva começar a construir uma "arca de Noé". Muito obrigada pelo excelente artigo. Quando a bolha rebentar, se é que me servirá de alívio, sentir-me-ei mais esclarecida.

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