O modelo socio-economico que conduz a que se vulgarizem
os afogamentos no Mediterrâneo é o mesmo que afunda os povos em dívida, para
safar os bancos na Europa, com destaque para a Grécia e Portugal.
Sumário
1 - Um caso
particular de cinismo
2 – A África
começou mal e muito mal continua
3 – No Médio
Oriente a riqueza petrolífera é uma maldição
4 - O
policiamento de proximidade no Mediterrâneo
5 – Povos de
todos os países, uni-vos!
1 - Um caso particular de cinismo
A reunião dos ministros das polícias e dos negócios estrangeiros
da UE evidencia tratar-se APENAS de um problema de concertação internacional na
área da segurança. É uma clara demonstração de que não querem ver o problema
real das desigualdades no Mediterrâneo[1]. Cinismo
e propaganda.
Colocar o problema dos meios de salvamento, que é preciso
ajudar Malta e Itália é uma abordagem curta, miserável. Revela que os cérebros
da UE, todos juntos, apenas irão tentar apaziguar o coro do horror, antes de
voltarem ao que lhes é importante, o sistema financeiro, as dívidas soberanas,
a austeridade, a competitividade. Focar a questão nos meios é querer colocar a
solução do problema em termos economicistas, de investimento em salvadegos e boias.
Os noticiários dão a voz a Machete e a Rangel, ambos advogados
de negócios que choram lágrimas de crocodilo sobre a necessidade de atuar. Mais
parecem curandeiros propondo missas ou comprimidos de farinha para as dores
desse cancro que é o sistema político, social e económico global.
Por vezes cinismo pode ser risível; só pode produzir
gargalhadas ouvir Paulo Portas acusar… as mafias.
Esta emigração clandestina, perigosa e mesmo mortal
interessa ao capital mafioso global – os organizadores locais em África, os
transportadores, os acolhedores na Europa e os utilizadores finais da
mercadoria transportada, na mesma Europa. Com essa emigração pretende-se
alimentar bolsas de trabalho informal, mal pago e sem direitos - muito menos
dos que ainda vão existindo para os nativos europeus - perseguidos, sem papéis
e sem abrigo, proibidos do sono ao relento por obstáculos colocados por
edilidades e polícias. Para além dessa situação que encontram no eldorado
europeu, sofrem ainda o anátema de terem a pele mais ou menos escura e serem
muçulmanos.
As redes mafiosas cobram mais de 1000 euros pelo seu
“trabalho” e ainda direitos de pernada sobre mulheres e de porrada sobre os
homens que se aventuram a chegar à Europa. As redes mafiosas fornecem a
preciosa liquidez aos bancos numa ajuda fraterna ao BCE e ao plano Draghi, fornecem
trabalho escravo à agricultura ibérica[2], carne
fresca aos industriais da prostituição nas cidades europeias; e armas para as
guerras que garantem o fornecimento de novos fugitivos.
Os que se afogam no Mediterrâneo poderiam ser forçados a
acampar nos centros de refugiados à espera de repatriamento (ou de fuga); os que
se afogam em Calais falharam no desejo de se atarem sob camiões com destino a
Inglaterra; outros sofrem sevícias sob as patas dos nazis gregos. Todos são somente
danos colaterais do capitalismo ou gente com insuficiente formação em empreendedorismo.
Culpados.
Essa emigração gera pressão para o rebaixamento de
salários, das condições laborais e de vida dos europeus e é uma peça na lógica
religiosa da competitividade e do mercado.
Mas é preciso ir
mais fundo e mais longe. Não chega repisar o salmo tautológico de que a Europa
não tem capacidade para sorver todos os africanos e asiáticos que a procuram. A
Europa aceita uma torneira a pingar mas não a jorrar, o problema é quantitativo,
uma vez mais. Um desajustamento entre a oferta e a procura.
2 – A África começou mal e muito mal continua
“A Africa começa mal” é o título de um livro de René Dumont
editado nos anos 60/70. Os males de África começaram no século XVI quando os
europeus vendiam armas e álcool para os chefes africanos caçaram outros africanos
para venda a negreiros. Foi o primeiro modelo empobrecedor que os europeus
venderam em África. Três séculos depois, as potências europeias retalharam a
África a seu gosto e na ignorância da realidade. Criaram as monoculturas para
se servirem – algodão, cacau, café – e descobriram minérios, despejando africanos
a toque de chicote, em minas e plantações.
Seguiu-se o neocolonialismo e o acentuar da integração no
“mercado” global das suas riquezas, agora em parceria com as elites corruptas
adestradas nas metrópoles ou criadas pela luta armada, todos descobrindo as
vantagens de ter pele negra e usar máscara branca[3], para
usufruírem as migalhas do capital, tornando-se eles próprios capitalistas (o
eng. Eduardo dos Santos) ou meros acumuladores de dinheiro (o ex-sargento Mobutu).
Nesse contexto de monoculturas, expulsões de terras. desertificação,
lutas tribais, genocídios e guerras, desastre ambiental e da construção de
enormes e insalubres cidades, dominam os regimes corruptos apoiados pelo
Ocidente (e mais recentemente também pela China).
A África tem sido palco das intervenções dos bombeiros da
ONU, demasiadas vezes marcadas por violações e corrupção. Uma das suas
instituições, o Banco Mundial, como agente das multinacionais, financia
projetos que acentuam a integração subalterna da África no “mercado” global,
com elevados custos para os africanos[4]
3 – No Médio Oriente, a riqueza petrolífera é uma
maldição
No Médio Oriente, o o império otomano desmantelado, foi
dividido entre ingleses e franceses, com alguns regimes vassalos formalmente
independentes – a Pérsia, a Arábia Saudita e a Jordânia, atribuídas as últimas
a chefes tribais amigos. Com o Suez, o petróleo e depois o gás como elementos
estratégicos, os impérios europeus cederam o lugar à hegemonia norte-americana,
semeando previamente a inimizade turco-síria a propósito do sandjak de Alexandretta, a entidade
genocida israelita em terras palestinianas e pequenos territórios entregues a
dinastias de emires, sheiks ou sultões.
Guerras e invasões, quase sempre por procuração ou sopradas
pelas potências em disputa por hidrocarbonetos e suas rotas, foram-se sucedendo
com ondas de refugiados circulando em toda aquela vasta área, acumulando-se ora
aqui, ora ali, com apoios humanitários da ONU ou, provenientes da UE, de
consciência pesada. Chegou-se, primeiro, aos talibans ou à al-Qaeda e, mais
recentemente, ao Estado Islâmico como procuradores dos interesses estratégicos
dos EUA, tornados a única potência com capacidade de intervenção global, mais
empenhados em dificultar os regimes laicos, iraquiano ou sírio, do que em
remover o fanatismo wahabita e aqueles que por este são financiados.
Na presença de
economias inviabilizadas pelas guerras ou pelo despotismo extractivista surgem
como cogumelos muitos milhares de refugiados, fugidos da barbaridade demente do
Estado Islâmico, da repressão e da pobreza. Uma das vias de emigração é a
servidão e a exclusão nas monarquias do Golfo; a outra é a servidão e os riscos
de chegar à Europa que, no seio de tanta desgraça, é aceite como um eldorado.
4 - O policiamento de proximidade no Mediterrâneo
De algum modo, os ocidentais têm procurado alçar peneiras
para que o sol fique menos forte; o problema é quando as peneiras derretem.
De há uns anos, o Africom, comando estratégico dos EUA com
sede em Estugarda (!) tem comprado generais, colocado armas e instrutores
militares em África, numa tentativa de criar uma força local capaz de combater
revoltas e grupos de desperadoes, de
manter a pax americana e o
funcionamento do mercado. Em casos menos graves (Mali, República Centro
Africana) o Pentágono deixa a reinstalação da “lei e da ordem” aos irmãos
Sarkozy/Hollande que gostam de apresentar a França como grande potência e
convencerem-se de que mandam no seu antigo quintal africano. Nos casos mais
graves, é o Pentágono que surge diretamente, como na Líbia, a monitorar os seus
aliados locais (na típica ignorância portuguesa sobre a política além de
Badajoz, houve quem os tomasse como protagonistas da … Primavera Árabe) e as
aviações francesa e italiana. Em outras situações (Boko Haram) pairam para ver
os morticínios à distância até porque os nigerianos são muitos, são 172 M.
Como é evidente, de toda a África Ocidental, ocorre gente
fugida das guerras, do banditismo, da seca e da pobreza com destino à Europa.
Uns embarcam na Mauritânia, outros atravessam o deserto de camião e tentam
entrar em Ceuta ou Melilla, acampando junto das redes de separação e outros
ainda, procuram alcançar praias líbias ou tunisinas, almejando chegar sãos e
salvos a Itália.
Para este efeito, a UE criou em 2004 o Frontex, cujo nome
pretende abreviar a peregrina designação de “Agência Europeia de Gestão da
Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União
Europeia”. Tem acordos de cooperação com
muitos países do Leste europeu e dos Balcãs sendo a Nigéria e Cabo Verde os
únicos africanos e a Turquia o solitário representante da Ásia Ocidental. Estão
em negociações (abril/2013[5]), acordos
com a Líbia, Marrocos, Senegal, Mauritânia, Egipto, Brasil e Tunísia.
Como se percebe, o Frontex apenas pode contar com o
controlo das praias da margem norte do Mediterrâneo. Pela sua dimensão, este
território tem todas as condições para ser um verdadeiro passador como
resultado da conjugação da rotina das guardas costeiras e fronteiriças
europeias, com a habilidade dos passadores que não querem perder o negócio e o
desespero dos pobres para entrarem na Europa. Em 2012 havia na Grécia 1.5 M de
migrantes dos quais 600000 sem papéis[6], o
que denota as facilidades conseguidas pelos barcos carregados de pessoas, no
labirinto das ilhas gregas; para desespero de nazis e xenófobos gregos.
No caso da Somália criaram-se há poucos anos patrulhas de
navios de guerra ocidentais (incluindo portugueses) para garantir a segurança
no Bab el Mandeb em luta heroica contra barcos de borracha de somalis dispostos
a fazer a vida cara aos saqueadores das suas águas ricas em peixe.
A Somália só constituiu alguma unidade como estado-nação com
o ditador Siad Barre voltando depois à sua situação ancestral de clans nómadas e
rivais que nunca precisaram de um Estado, para grande arrelia das teologias
ocidentais, para as quais ou há Estado ou barbárie… embora quase sempre os dois
constituam um casamento feliz. Nos anos 90, os marines do Pentágono
desembarcaram na costa somali, com cobertura televisiva em direto, para que o
povo visse a bravura dos seus rapazes. Pouco depois havia soldados
norte-americanos mortos arrastados como troféus de caça em Mogadiscio e então o
Pentágono decidiu enviar para lá soldados etíopes, esquecendo ou ignorando que
entre somalis e etíopes há rivalidades ancestrais que se prendem com as
pastagens no Ogaden. Como o resultado foi decepcionante o Pentágono lembrou-se
dos vizinhos da Somália a sul, os quenianos, que responderam à chamada para
manter a ordem no país, com tão maus resultados que não conseguem destruir o al-Shabab
(entretanto integrado na constelação Estado Islâmico) nem evitar o massacre na
universidade de Garissa, dentro do próprio Quénia.
Neste contexto, há um nutrido fluxo de gente que foge
sobretudo da miséria, da Etiópia, da Eritreia e das regiões somalis, em direção
à Líbia para saltarem depois para Itália, como potenciais abastecedores da
Europa em servos ou prostitutas.
A Operação Active
Endeavour foi definida no âmbito da NATO, depois de 11/9/2001 para exercer
funções contra o terrorismo, de acordo com a doutrina Bush de que “quem não
está conosco, está com os terroristas”, a que se uniram outros países por
razões oportunistas (Israel, como suporte anti-árabe), a Rússia (então com a
Tchechénia em brasas). Como sempre acontece, com atividades de polícia há
sempre objetivos colaterais e sujos – emigração “ilegal” - que se podem cumprir
à sombra de um objetivo central e formal.
5 – Povos de todos os países, uni-vos!
A posição das classes políticas europeias, unânime, é a de
verberarem contra os intermediários do tráfico de migrantes “ilegais”, a demência
assassina do Boko Haram e do Estado Islâmico. Essas pragas emanam de um mundo criado pela Europa dos mercados e
dos burocratas, sem referências éticas nem solidárias, onde vale apenas a
produtividade, a competitividade, o consumo inveterado e a precariedade na vida.
A demência e a barbaridade observadas a Sul não constituirão
a imagem refletida da barbaridade e da demência do BCE, do FMI, da Comissão
Europeia e de toda a classe política europeia que giram como satélites do
sistema financeiro?
O modelo socio-economico que conduz a que se vulgarizem os
afogamentos no Mediterrâneo é o mesmo que afunda os povos em dívida, para safar
os bancos na Europa, com destaque para a Grécia e Portugal. Esse modelo chama-se
e capitalismo que será palavra ausente no vocabulário dos ranchos folclóricos
que se apresentarão para a outonal romaria eleitoral.
Este e outros textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
[1] Abordagem global
sobre a geopolítica do Mediterrâneo e o papel de Portugal
[2] Os latifundiários e os traficantes de
escravos romenos aprisionados no Alentejo já foram presos?
[3] “Pele Negra, Máscara
Branca” obra de Frantz Fanon
[4]
http://www.noticiasaominuto.com/mundo/376430/projetos-do-banco-mundial-estao-a-provocar-rasto-de-miseria
[5]
http://frontex.europa.eu/partners/third-countries/
[6]
http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=2901254&seccao=Europa&page=-1
Texto muito interessante, como aliás todos os textos deste autor.
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