terça-feira, 21 de abril de 2015

Os naufrágios no Mediterrâneo e da UE

O modelo socio-economico que conduz a que se vulgarizem os afogamentos no Mediterrâneo é o mesmo que afunda os povos em dívida, para safar os bancos na Europa, com destaque para a Grécia e Portugal.

Sumário
1 - Um caso particular de cinismo
2 – A África começou mal e muito mal continua
3 – No Médio Oriente a riqueza petrolífera é uma maldição
4 - O policiamento de proximidade no Mediterrâneo
5 – Povos de todos os países, uni-vos!



1 - Um caso particular de cinismo

A reunião dos ministros das polícias e dos negócios estrangeiros da UE evidencia tratar-se APENAS de um problema de concertação internacional na área da segurança. É uma clara demonstração de que não querem ver o problema real das desigualdades no Mediterrâneo[1]. Cinismo e propaganda.

Colocar o problema dos meios de salvamento, que é preciso ajudar Malta e Itália é uma abordagem curta, miserável. Revela que os cérebros da UE, todos juntos, apenas irão tentar apaziguar o coro do horror, antes de voltarem ao que lhes é importante, o sistema financeiro, as dívidas soberanas, a austeridade, a competitividade. Focar a questão nos meios é querer colocar a solução do problema em termos economicistas, de investimento em salvadegos e boias.

Os noticiários dão a voz a Machete e a Rangel, ambos advogados de negócios que choram lágrimas de crocodilo sobre a necessidade de atuar. Mais parecem curandeiros propondo missas ou comprimidos de farinha para as dores desse cancro que é o sistema político, social e económico global.

Por vezes cinismo pode ser risível; só pode produzir gargalhadas ouvir Paulo Portas acusar… as mafias.

Esta emigração clandestina, perigosa e mesmo mortal interessa ao capital mafioso global – os organizadores locais em África, os transportadores, os acolhedores na Europa e os utilizadores finais da mercadoria transportada, na mesma Europa. Com essa emigração pretende-se alimentar bolsas de trabalho informal, mal pago e sem direitos - muito menos dos que ainda vão existindo para os nativos europeus - perseguidos, sem papéis e sem abrigo, proibidos do sono ao relento por obstáculos colocados por edilidades e polícias. Para além dessa situação que encontram no eldorado europeu, sofrem ainda o anátema de terem a pele mais ou menos escura e serem muçulmanos.

As redes mafiosas cobram mais de 1000 euros pelo seu “trabalho” e ainda direitos de pernada sobre mulheres e de porrada sobre os homens que se aventuram a chegar à Europa. As redes mafiosas fornecem a preciosa liquidez aos bancos numa ajuda fraterna ao BCE e ao plano Draghi, fornecem trabalho escravo à agricultura ibérica[2], carne fresca aos industriais da prostituição nas cidades europeias; e armas para as guerras que garantem o fornecimento de novos fugitivos.

Os que se afogam no Mediterrâneo poderiam ser forçados a acampar nos centros de refugiados à espera de repatriamento (ou de fuga); os que se afogam em Calais falharam no desejo de se atarem sob camiões com destino a Inglaterra; outros sofrem sevícias sob as patas dos nazis gregos. Todos são somente danos colaterais do capitalismo ou gente com insuficiente formação em empreendedorismo. Culpados.

Essa emigração gera pressão para o rebaixamento de salários, das condições laborais e de vida dos europeus e é uma peça na lógica religiosa da competitividade e do mercado.

Mas é preciso ir mais fundo e mais longe. Não chega repisar o salmo tautológico de que a Europa não tem capacidade para sorver todos os africanos e asiáticos que a procuram. A Europa aceita uma torneira a pingar mas não a jorrar, o problema é quantitativo, uma vez mais. Um desajustamento entre a oferta e a procura.

2 – A África começou mal e muito mal continua

“A Africa começa mal” é o título de um livro de René Dumont editado nos anos 60/70. Os males de África começaram no século XVI quando os europeus vendiam armas e álcool para os chefes africanos caçaram outros africanos para venda a negreiros. Foi o primeiro modelo empobrecedor que os europeus venderam em África. Três séculos depois, as potências europeias retalharam a África a seu gosto e na ignorância da realidade. Criaram as monoculturas para se servirem – algodão, cacau, café – e descobriram minérios, despejando africanos a toque de chicote, em minas e plantações.

Seguiu-se o neocolonialismo e o acentuar da integração no “mercado” global das suas riquezas, agora em parceria com as elites corruptas adestradas nas metrópoles ou criadas pela luta armada, todos descobrindo as vantagens de ter pele negra e usar máscara branca[3], para usufruírem as migalhas do capital, tornando-se eles próprios capitalistas (o eng. Eduardo dos Santos) ou meros acumuladores de dinheiro (o ex-sargento Mobutu).

Nesse contexto de monoculturas, expulsões de terras. desertificação, lutas tribais, genocídios e guerras, desastre ambiental e da construção de enormes e insalubres cidades, dominam os regimes corruptos apoiados pelo Ocidente (e mais recentemente também pela China).

A África tem sido palco das intervenções dos bombeiros da ONU, demasiadas vezes marcadas por violações e corrupção. Uma das suas instituições, o Banco Mundial, como agente das multinacionais, financia projetos que acentuam a integração subalterna da África no “mercado” global, com elevados custos para os africanos[4]

3 – No Médio Oriente, a riqueza petrolífera é uma maldição

No Médio Oriente, o o império otomano desmantelado, foi dividido entre ingleses e franceses, com alguns regimes vassalos formalmente independentes – a Pérsia, a Arábia Saudita e a Jordânia, atribuídas as últimas a chefes tribais amigos. Com o Suez, o petróleo e depois o gás como elementos estratégicos, os impérios europeus cederam o lugar à hegemonia norte-americana, semeando previamente a inimizade turco-síria a propósito do sandjak de Alexandretta, a entidade genocida israelita em terras palestinianas e pequenos territórios entregues a dinastias de emires, sheiks ou sultões.

Guerras e invasões, quase sempre por procuração ou sopradas pelas potências em disputa por hidrocarbonetos e suas rotas, foram-se sucedendo com ondas de refugiados circulando em toda aquela vasta área, acumulando-se ora aqui, ora ali, com apoios humanitários da ONU ou, provenientes da UE, de consciência pesada. Chegou-se, primeiro, aos talibans ou à al-Qaeda e, mais recentemente, ao Estado Islâmico como procuradores dos interesses estratégicos dos EUA, tornados a única potência com capacidade de intervenção global, mais empenhados em dificultar os regimes laicos, iraquiano ou sírio, do que em remover o fanatismo wahabita e aqueles que por este são financiados.

Na presença de economias inviabilizadas pelas guerras ou pelo despotismo extractivista surgem como cogumelos muitos milhares de refugiados, fugidos da barbaridade demente do Estado Islâmico, da repressão e da pobreza. Uma das vias de emigração é a servidão e a exclusão nas monarquias do Golfo; a outra é a servidão e os riscos de chegar à Europa que, no seio de tanta desgraça, é aceite como um eldorado.

4 - O policiamento de proximidade no Mediterrâneo

De algum modo, os ocidentais têm procurado alçar peneiras para que o sol fique menos forte; o problema é quando as peneiras derretem.

De há uns anos, o Africom, comando estratégico dos EUA com sede em Estugarda (!) tem comprado generais, colocado armas e instrutores militares em África, numa tentativa de criar uma força local capaz de combater revoltas e grupos de desperadoes, de manter a pax americana e o funcionamento do mercado. Em casos menos graves (Mali, República Centro Africana) o Pentágono deixa a reinstalação da “lei e da ordem” aos irmãos Sarkozy/Hollande que gostam de apresentar a França como grande potência e convencerem-se de que mandam no seu antigo quintal africano. Nos casos mais graves, é o Pentágono que surge diretamente, como na Líbia, a monitorar os seus aliados locais (na típica ignorância portuguesa sobre a política além de Badajoz, houve quem os tomasse como protagonistas da … Primavera Árabe) e as aviações francesa e italiana. Em outras situações (Boko Haram) pairam para ver os morticínios à distância até porque os nigerianos são muitos, são 172 M.

Como é evidente, de toda a África Ocidental, ocorre gente fugida das guerras, do banditismo, da seca e da pobreza com destino à Europa. Uns embarcam na Mauritânia, outros atravessam o deserto de camião e tentam entrar em Ceuta ou Melilla, acampando junto das redes de separação e outros ainda, procuram alcançar praias líbias ou tunisinas, almejando chegar sãos e salvos a Itália.

Para este efeito, a UE criou em 2004 o Frontex, cujo nome pretende abreviar a peregrina designação de “Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia”.  Tem acordos de cooperação com muitos países do Leste europeu e dos Balcãs sendo a Nigéria e Cabo Verde os únicos africanos e a Turquia o solitário representante da Ásia Ocidental. Estão em negociações (abril/2013[5]), acordos com a Líbia, Marrocos, Senegal, Mauritânia, Egipto, Brasil e Tunísia.

Como se percebe, o Frontex apenas pode contar com o controlo das praias da margem norte do Mediterrâneo. Pela sua dimensão, este território tem todas as condições para ser um verdadeiro passador como resultado da conjugação da rotina das guardas costeiras e fronteiriças europeias, com a habilidade dos passadores que não querem perder o negócio e o desespero dos pobres para entrarem na Europa. Em 2012 havia na Grécia 1.5 M de migrantes dos quais 600000 sem papéis[6], o que denota as facilidades conseguidas pelos barcos carregados de pessoas, no labirinto das ilhas gregas; para desespero de nazis e xenófobos gregos.

No caso da Somália criaram-se há poucos anos patrulhas de navios de guerra ocidentais (incluindo portugueses) para garantir a segurança no Bab el Mandeb em luta heroica contra barcos de borracha de somalis dispostos a fazer a vida cara aos saqueadores das suas águas ricas em peixe. 

A Somália só constituiu alguma unidade como estado-nação com o ditador Siad Barre voltando depois à sua situação ancestral de clans nómadas e rivais que nunca precisaram de um Estado, para grande arrelia das teologias ocidentais, para as quais ou há Estado ou barbárie… embora quase sempre os dois constituam um casamento feliz. Nos anos 90, os marines do Pentágono desembarcaram na costa somali, com cobertura televisiva em direto, para que o povo visse a bravura dos seus rapazes. Pouco depois havia soldados norte-americanos mortos arrastados como troféus de caça em Mogadiscio e então o Pentágono decidiu enviar para lá soldados etíopes, esquecendo ou ignorando que entre somalis e etíopes há rivalidades ancestrais que se prendem com as pastagens no Ogaden. Como o resultado foi decepcionante o Pentágono lembrou-se dos vizinhos da Somália a sul, os quenianos, que responderam à chamada para manter a ordem no país, com tão maus resultados que não conseguem destruir o al-Shabab (entretanto integrado na constelação Estado Islâmico) nem evitar o massacre na universidade de Garissa, dentro do próprio Quénia.

Neste contexto, há um nutrido fluxo de gente que foge sobretudo da miséria, da Etiópia, da Eritreia e das regiões somalis, em direção à Líbia para saltarem depois para Itália, como potenciais abastecedores da Europa em servos ou prostitutas.

A Operação Active Endeavour foi definida no âmbito da NATO, depois de 11/9/2001 para exercer funções contra o terrorismo, de acordo com a doutrina Bush de que “quem não está conosco, está com os terroristas”, a que se uniram outros países por razões oportunistas (Israel, como suporte anti-árabe), a Rússia (então com a Tchechénia em brasas). Como sempre acontece, com atividades de polícia há sempre objetivos colaterais e sujos – emigração “ilegal” - que se podem cumprir à sombra de um objetivo central e formal.

5 – Povos de todos os países, uni-vos!

A posição das classes políticas europeias, unânime, é a de verberarem contra os intermediários do tráfico de migrantes “ilegais”, a demência assassina do Boko Haram e do Estado Islâmico. Essas pragas emanam de  um mundo criado pela Europa dos mercados e dos burocratas, sem referências éticas nem solidárias, onde vale apenas a produtividade, a competitividade, o consumo inveterado e a precariedade na vida.

A demência e a barbaridade observadas a Sul não constituirão a imagem refletida da barbaridade e da demência do BCE, do FMI, da Comissão Europeia e de toda a classe política europeia que giram como satélites do sistema financeiro?

O modelo socio-economico que conduz a que se vulgarizem os afogamentos no Mediterrâneo é o mesmo que afunda os povos em dívida, para safar os bancos na Europa, com destaque para a Grécia e Portugal. Esse modelo chama-se e capitalismo que será palavra ausente no vocabulário dos ranchos folclóricos que se apresentarão para a outonal romaria eleitoral.

Este e outros textos em:





[2]  Os latifundiários e os traficantes de escravos romenos aprisionados no Alentejo já foram presos?
[3]  “Pele Negra, Máscara Branca” obra de Frantz Fanon
[4]  http://www.noticiasaominuto.com/mundo/376430/projetos-do-banco-mundial-estao-a-provocar-rasto-de-miseria
[5]  http://frontex.europa.eu/partners/third-countries/
[6]   http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=2901254&seccao=Europa&page=-1

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