(Para uma Constituição Democrática com
caráter de urgência – 4[1])
Um regime não é corrupto em função do número de casos que
se vão conhecendo. Um regime é corrupto quando toda a sua arquitetura política
e jurídica está feita para facilitar e legalizar a corrupção, como elemento
fulcral da acumulação de capital.
As câmaras têm sido a base para a continuidade histórica
do caciquismo, ancorado em oligarcas partidários, protagonistas do
desordenamento urbanístico, oleados pelo setor imobiliário, todos financiados
pelos bancos.
Sumário
11 – A soberania do povo é apropriada por um
novo clero
12 - O retrato desolador da gestão camarária
13 - Municípios com uma estrutura democrática
a)
Configuração das
Assembleias Municipais (AM)
11 – A soberania do povo é apropriada por
um novo clero
A CRP
evidencia uma lógica piramidal, hierárquica, que coloca no vértice da
organização do poder político as altas esferas de nível nacional, os órgãos de
soberania - o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e
os Tribunais (art. 110º). Contudo, logo no início do texto (artº 2º) a CRP
estabelece que “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático,
baseado na soberania popular…” e que (artº 3º) “A soberania, una e indivisível,
reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.” Ora,
acontece que a CRP através das ditas “formas previstas”, ao tornar, de facto,
inamovíveis pelo povo os membros dos tais órgãos de soberania, nega
precisamente a soberania popular…
Essa
soberania, como se sabe, resume-se à votação em actos eleitorais e é truncada
no que respeita à elegibilidade para funções de representação, uma vez que a
CRP estabelece a mediação dos partidos políticos para o efeito. Estando
previstas fórmulas para grupos de cidadãos a nível autárquico, elas são
colocadas fora dos procedimentos regulares da “democracia representativa” e
rodeadas de dificuldades práticas de ordem burocrática. Somente o PR é objeto
de concurso individual, sabendo-se que ninguém terá hipóteses de uma votação
apreciável sem apoios de partidos do regime, sem os seus financiamentos (e o
dos meios dos negócios) para além dos favores dos media; daí que as pessoas
comuns não tenham qualquer possibilidade de apresentar uma candidatura viável
uma vez que a disponibilidade de fortunas é o grande condicionador da expressão
que se diz democrática. Helena Roseta disse isso mesmo, dias atrás,
reconhecendo que lhe falta apoio partidário e portanto dinheiro para se
candidatar a residir perto dos pastéis de Belém.
Outro
aspeto da truncagem democrática é que os eleitos não cumprem minimamente as
obrigações inerentes a um contrato de mandato. O mandato é um contrato em que o
mandatário recebe poderes do mandante para que possa atuar e praticar actos em
função dos interesses do último. O facto da sua etimologia estar em manum datum (o aperto de mãos que
selaria o contrato), dispensando a materialização de uma procuração, significa
que o mandato relacionava gente digna de respeito, que honraria os seus
compromissos.
Numa
representação política, o potencial candidato elabora o seu programa que
apresenta ao eleitorado; ao ser eleito torna-se mandatário dos seus eleitores e
o seu programa equipara-se a uma procuração, a cumprir escrupulosamente. Se não
cumpre os termos dessa procuração, por si elaborada, por inépcia, por má
avaliação das suas possibilidades ou, por má-fé, isso deverá permitir que os
mandantes coloquem em causa o mandatário e o possam substituir, por um acto
formal, um referendo, se o faltoso não tiver a verticalidade de se demitir.
Nada
disto funciona na denominada democracia representativa ou de “mercado” e por
várias razões. Em regra, os membros da classe política não se sentem vinculados
a contrato algum, nem a compromissos, nem a responsabilidades para com os
eleitores; sentem-se membros de uma ordem superior, de uma casta e mais
propriamente se deveriam designar por ungidos, sacralizados, em vez de eleitos.
Por outro lado, o rol de promessas e futilidades chamado programa é coletivo,
elaborado pela corte do chefe partidário, sem que com isso se possa ou deva
eximir os membros individuais do partido de responsabilidades pessoais que
possam ter, por atuação própria ou por estarem incluídos num coletivo que não
cumpre os seus compromissos.
Essa
responsabilidade por um programa pode mesmo exigir à classe política atitudes
que ofereçam uma justificação aceitável para invalidar promessas eleitorais.
Recordemos Sócrates em 2005 quando pediu ao tratante Constâncio, seu confrade
partidário, então governador do Banco de Portugal, o conveniente estudo técnico
de onde emanasse a necessidade de aumentar o IVA. Por seu turno, Passos
construiu um programa eleitoral absolutamente contrário ao definido no
Memorando da troika (assinado por
ele) e, pior que isso, arranjou na intervenção da troika argumentos para justificar o seu não cumprimento do
prometido e acrescentar atitudes favoráveis à sua clientela.
O
pensamento único que enforma a realidade política, económica e mediática entra
também na cultura da multidão que acaba por não levar a sério as promessas
eleitorais, tornando-se cúmplice da classe política na ligeireza com que são
encaradas as ditas promessas e ainda para que não existam mecanismos de
colocação em causa dos eleitos durante os seus mandato. Neste contexto, a
democracia representativa deve qualificar-se como farsa ou, para o não ser, a
multidão ter-se-á de tornar exigente de uma verdadeira democracia, remetendo a
classe política para os compêndios da História.
Não
deixa de ser curioso que a classe política, tão lesta na defesa da precariedade
- laboral e na vida de todos - como da liberalização dos despedimentos, se
exclua com mandatos a termo certo e geralmente prorrogáveis, indemnizações,
subsídios de reintegração e pensões de reformas precoces e … secretas.
Outro exemplo
interessante dos entendimentos capciosos contidos na CRP evidencia-se no seu
artº 239, nº 2 onde consta que “A
assembleia (municipal ou de freguesia) é eleita por sufrágio universal, direto…”
quando compaginado com o referido no nº 4º. do mesmo artigo, onde se estatui
que “As candidaturas para as eleições dos órgãos das autarquias locais podem
ser apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação, ou por
grupos de cidadãos eleitores”. Ora, as assembleias são constituídas por pessoas
e os eleitores votam em partidos ou grupos de cidadãos que assim se tornam em
veículos para o preenchimento com pessoas das assembleias. Se existe um
intermediário entre o votante e os elementos que integrarão as assembleias, que
sentido fará dizer-se que o sufrágio é direto se quem as vai integrar só
indiretamente é votado pelo eleitor? E, por outro lado, o eleitor não controla
minimamente o efetivo preenchimento das assembleias pois frequentemente os
eleitos transitam para outras funções e são substituídos por figuras
consideradas secundárias, colocadas em lugares menos cimeiros das listas pelos
chefes partidários que procedem à sua hierarquização.
Ainda o
nº 4 do artº 239 ao referir a potencial candidatura de listas de cidadãos
estabelece uma franca desigualdade entre aquelas e os partidos políticos.
Estes, ao constituírem-se, apresentam 7500 assinaturas de subscritores e podem
concorrer em todos os âmbitos, local, regional e nacional e sem limites
temporais; as listas de cidadãos mesmo com um propósito local de intervenção
política vêem-se confrontadas com um processo burocrático, com uma recolha desproporcionada
de assinaturas e que serão apenas válidas para uma eleição.
12 – O
retrato desolador da gestão camarária
Os
municípios têm uma relevância muito superior à das freguesias, cuja
configuração democrática foi exposta no capítulo anterior destas cogitações
sobre uma Constituição alternativa.
Iniciaremos
este capítulo com alguns indicadores globais da gestão camarária em 2013,
colocando entre parêntesis valores de 2003, para comparação:
a) As câmaras dão trabalho
a 121160 pessoas a que se devem somar 5402 dos serviços municipalizados. Em
2014 aquele número ter-se-á reduzido para 116560 trabalhadores[2].
O volume dos trabalhadores torna muitos municípios como
os principais empregadores locais. Esse facto deve-se, por um lado, à necessidade
da prestação de serviços à população e por outro, à fragilidade das estruturas
económicas presentes em cerca de 80% do território, à abundância de negociantes
encostados aos erários e favores públicos com a ausência de verdadeiros
empresários.
Neste contexto de subdesenvolvimento económico crónico,
mantém-se uma cultura histórica de fatalismo, tanto maior quanto mais
envelhecidas e dependentes ficam as populações. Ali encastra-se uma estrutura
política hierárquica e autoritária alicerçada em mafias partidárias locais, que
têm no topo oligarcas - os presidentes de câmara - com influência direta na
vida dos trabalhadores municipais e suas famílias, com o fomento de um
acentuado clientelismo que atinge quase toda a população e as atividades locais.
b) Os executivos camarários
(vereações) envolviam 2086 indivíduos[3]
e 6487 eleitos para as assembleias municipais; em média, cada município tem 9
vereadores e 21 deputados municipais.
O presidente é, em regra, uma figura mediática,
permanentemente rodeado de séquito, como um senhor feudal. Os seus principais
acólitos são o vereador do urbanismo, sobretudo pelo papel que desempenha no
licenciamento de obras; e o da área financeira, por razões evidentes. É aliás
comum, haver na vereação empresários da construção civil e no “empreendedorismo”
imobiliário, indivíduos que tirocinaram em vereações, conformados na falta de
gabarito para deputados, secretários de estado ou ministros.
Pode aquilatar-se a relevância do “mercado” do
licenciamento de obras através do seu número a nível nacional em 2013 (16253) o
que é uma pálida imagem dos bons tempos da orgia imobiliária (em 2003 aqueles
licenciamentos foram de 55209). Todos sabemos como terrenos rústicos se tornam
urbanos por licenciamento camarário, com uma valorização enorme; essa
valorização garantida, transformada em casas, enriquecia o requerente e poderia
alegrar autarcas e/ou os seus partidos.
c)
O volume de impostos e
taxas foi de € 2547 M (€ 2031 M) sobressaindo ali a cobrança de IMI, na ordem
dos € 1306 M (€ 695 M)
As receitas fiscais dos municípios representam apenas
cerca de 38% das entradas de fundos (36%) embora tenham crescido 25,4% em dez
anos, revelando-se assim a escassa capacidade da base tributária local para o
financiamento das despesas municipais, mantendo-se, portanto, os municípios
dependentes financeiramente do governo, como já acontecia no tempo do fascismo,
quando não existiam impostos autárquicos. Acrescente-se que os impostos
autárquicos são cobrados pela Autoridade Tributária, dependente dos governos.
Nessas receitas pesa particularmente o IMI que passou a
representar 51.3% do seu total, contra apenas 34.2% em 2003 e enquanto as
outras receitas fiscais que não o IMI cresceram apenas 7.7%, contra os 88% de
crescimento da receita do IMI. A quebra das receitas do IMT, associadas às
transações imobiliárias, em declínio com a crise financeira, foi o motivo para
o enorme aumento do IMI. Este é o principal imposto que se paga pela posse de
um bem (como o IUC, batizado de “circulação” mas que qualquer veículo paga,
mesmo que não circule); assemelha-se ao imposto francês sobre as grandes
fortunas embora, em Portugal sejam as camadas populares os verdadeiros
contribuintes. O IMI é um imposto de total ilegitimidade quando se refere às
casas de habitação que as famílias foram obrigadas a adquirir, com
endividamento bancário, com os riscos conhecidos em caso de desemprego, porque
o regime cleptocrático nunca (governos ou câmaras) cumpriram a prescrição
constitucional de materialização do direito à habitação. O partido-estado
PSD/PS deixou a habitação ao sabor do “mercado”, alimentado por crédito
bancário de modo suicida, como se vê pelas dificuldades do sistema bancário
português. Colocando a habitação como vulgar mercadoria, para lucrativo
benefício da especulação imobiliária, da corrupção camarária e dos bancos. Um
novelo de desastres, como se vai observando e que desenvolvemos há pouco tempo[4].
d)
As vendas e os serviços
prestados corresponderam a € 738 M (€ 511 M)
O seu crescimento no período considerado foi de 44.4% e
foi mais um dos elementos de compensação das quebras em algumas receitas
fiscais – mormente o IMT – bem como das transferências. Uma das suas vantagens
para os executivos camarários é que não dependem de prévias decisões dos
governos, só havendo a ponderar a não concretização de aumentos na prestação de
serviços, nas proximidades de campanhas eleitorais autárquicas.
e)
As receitas de
transferências computam-se em € 3383 M (€ 3008 M)
As transferências, com origem essencial no Estado mas, também
na UE, apresentam um acréscimo muito moderado no decénio (12.5%). Esse fraco
crescimento resultou dos apertos da troika
dos últimos anos em que o governo fez as autarquias participar e por isso, a parcela
das transferências no total das receitas municipais passaram para 50.7% (eram
54.2% em 2003).
Esta situação de dependência face ao governo de turno
mantém uma subalternidade financeira que não corresponde a uma desejável
autonomia política. Nas atuais disputas entre o poder autárquico e o governo a
propósito da privatização da água e da gestão dos resíduos é bem clara essa
subalternidade, que inquina na realidade o significado da autonomia autárquica.
Em ambos os assuntos somente a população de cada autarquia deveria escrutinar,
de acordo com o princípio da subsidiariedade. A tradição centralista em
Portugal, temerosa de perda de controlo sobre a população mais não revela (e
induz) a continuidade do atraso português. Nenhum dos clubes instalados em S.
Bento prescinde de monitorar a alta corrupção nem de cobrar a sua parcela na
corrupção a nível autárquico, através das suas antenas locais.
f)
O montante de
empréstimos a médio/longo prazo era de € 4273 M (€ 4016 M)
O endividamento a
médio/longo prazo das câmaras não cresce particularmente entre os dois anos
considerados. Isso não se deverá tanto a uma viragem dos oligarcas para uma
gestão pública cuidada mas, às imposições da troika, empenhada em reduzir o nível de endividamento das
administrações públicas, em geral. Em 2011 este tipo de endividamento era de €
4517 M e reduziu-se por evidente retração dos bancos, impossibilitados de
refinanciamento no exterior, em conjunto com a aplicação do PAEL - Programa de
Apoio à Economia Local, (Lei nº43/2012 de 28/8) no âmbito do qual já terão sido
concedidos a título de empréstimo, € 810 M a 110 municípios, num total previsto
de € 1000 M[5].
Neste campo, a
relevância deste endividamento mede-se melhor com a sua relação com as suas
receitas fiscais ou de vendas e prestações de serviços. Assim, a dívida
financeira correspondia em 2013 a 130% das receitas referidas, contra 158% em
2003. Para colmatar parte desta incúria na gestão, os oligarcas nada melhor encontraram
do que aumentar o IMI que, como vimos atrás, corresponde em 2013 a 30.6% das
dívidas de médio/longo prazo (17.3% dez anos antes).
Este grande
endividamento tornou-se estrutural e, na classe política que se arroga ao
monopólio da ação política local e nacional, nada surgiu que viesse a evitar
este endividamento; para o efeito é preciso que a população se mantenha
afastada e mesmo na ignorância do que se passa na sua autarquia.
g)
Os outros débitos para
além dos empréstimos a médio/longo prazo equivaliam a € 6437M (€ 1367 M)
Este tipo de débitos, de
curto prazo, em princípio, serve para resolver problemas transitórios ligados
ao funcionamento corrente e cresceu 4.7 vezes nos dez anos considerados; um
verdadeira lição de gestão ao nível rasteiro que carateriza a classe política.
Porque se terá constituído tamanho volume de responsabilidades, de débitos que
se renovam, sucessivamente? A que custos correntes se referirão? Fornecimento
de bens e serviços e quais? Crédito bancário de curto prazo?
O que se sabe é que em
2003 estas dívidas equivaliam a 53.8% das receitas fiscais adicionadas das
vendas e serviços prestados, relação essa que evoluiu para 196% (!) em 2013.
Os vereadores das
oposições mesmo que denunciem estas situações, estando em minoria, pouco podem
fazer e nem sequer têm o poder de demitir o executivo camarário. As Assembleias
Municipais são, em regra, réplicas ainda mais cinzentas que a Assembleia da
República, uma vez que são constituídas por segundas linhas da classe política.
Por seu turno, o Tribunal de Contas prende-se com o cumprimento das normas
legais e não intervem na gestão financeira dos municípios.
A população, mantida à
margem da gestão pública, remetida para o exercício do voto nas romarias
eleitorais, está longe da realidade. Finalmente, a imprensa local, muitas vezes
dependente politica ou financeiramente dos poderes locais representados no
executivo camarário prefere outros temas; e a imprensa nacional perde todo o
seu tempo a recolher futilidades dos governantes ou dos chefes da oposição, não
se envolvendo nas minudências da gestão de 308 câmaras.
Em suma, as maiorias no
executivo, têm um poder quase absoluto até às eleições seguintes, embora o mais
comum seja a continuidade, se não do partido dominante, das práticas que são
transversais aquele e à oposição. Neste contexto, falar de responsabilidade
financeira e criminal, por gestão danosa, dos causadores desta situação
apresenta-se como totalmente deslocado dado o caráter cleptocrático do atual
regime político que legaliza, de facto, os desmandos e a corrupção.
h)
Os juros e outros
encargos financeiros pagos foram de € 1282 M (€ 105 M)
Como lógico corolário do que se disse atrás, o volume dos
juros e outros encargos com o financiamento cresceu 12 vezes (!) nos dez anos
terminados em 2013.
Assim, os juros absorveram, em 2013, 39% das receitas
fiscais e das vendas e serviços prestados pelas autarquias quando essa
proporção era apenas de 4.1% em 2003. Em 2013 os juros e encargos financeiros
pagos absorviam toda a receita de IMI evidenciando-se assim que o aumento do
imposto foi concebido para que toda essa receita transite para os cofres do
sistema financeiro.
A
situação calamitosa que a síntese anterior deixa aflorar evidencia o modo
leviano ou criminoso como tem sido, em regra, efetuada a gestão autárquica por
parte da classe política, que localmente se alicerça e se funde com um
caciquismo tradicional o qual, por seu turno, radica no subdesenvolvimento
económico, nos baixos níveis de instrução e na pouca ou nula democraticidade do
sistema político e do modelo de representação.
As
autarquias locais surgem na CRP depois de todas as várias formas de poder
(artºs 235º a 254º) perto, portanto, do final do documento que termina no artº
296º; a sua relevância na organização política revela a lógica piramidal da
mesma. Ainda que se caraterizem pela presença de órgãos eleitos pelas pessoas,
pela maior proximidade face a estas, com responsabilidades administrativas e
financeiras, com relevância evidente na vida das comunidades, são relegados
para o final. Note-se, por comparação, que o Conselho de Estado, apenas um
órgão consultivo e com vários membros de escolha pessoal do Presidente da
República, está colocado numa área muito mais relevante para os constituintes
(artºs 141º a 146º).
A Lei
das Autarquias Locais (Lei n.º 75/2013 de 12/9) no seu artº 23º n.º 2 consagra
dezasseis atribuições dos municípios no natural âmbito da salvaguarda dos
interesses da população. Porém, uma análise ligeira do que se passa na
realidade revela que a lei aponta para atribuições esquecidas ou remetidas para
outras instâncias.
· No domínio da energia, a
distribuição de eletricidade ou gás procede-se a partir de empresas privadas
que pouco recorrerão às instâncias municipais. Os municípios intervêm nas
situações em que famílias insolventes são objeto de cortes pelas empresas? Por
outro lado, qual a intervenção dos órgãos municipais no fomento da utilização de
energias renováveis para autoconsumo, cuja presença em Portugal é muito
inferior a países como a Turquia ou a Grécia?
·
Na área dos transportes
e comunicações prepondera a existência de empresas privadas, intervindo, os
municípios, na garantia dos transportes escolares, alugados a empresas
rodoviárias. Em regra, os transportes são caros, com escassas frequências ou
nem sequer existem, não se conhecendo a existência de muitos casos de empresas
municipais, (Barreiro…). Na sequência da austeridade exigida pela troika em 2011, as empresas públicas de
transporte em Lisboa e Porto encareceram e reduziram o seu serviço, sem que os
municípios o possam ter obviado; e da mesma forma, não são considerados no
âmbito das privatizações iniciadas pelo governo.
· No contexto da educação,
a intervenção municipal é também reduzida, convivendo com a proliferação de
negócios privados em creches ou escolas infantis e assistindo passivas aos
compadrios entre o Estado e grupos económicos na área da educação, como por
exemplo o grupo GPS[6].
Assiste-se atualmente a uma transferência de competências do Estado para as
autarquias no âmbito da educação, cujas divergências sobre a repartição de
custos certamente reverterão em prejuízo das populações. Por outro lado, se a
colocação de professores constitui um drama constante para os docentes, em
particular, a sua gestão a nível municipal não será um poder discricionário
para os oligarcas locais estenderem a sua influência?
· No campo da cultura e
desporto, para além de algum trabalho meritório haverá um mérito especial em
eventos estivais de duvidosa qualidade ou nas facilidades a clubes de futebol,
mesmo que se utilize o argumento de que atraem turistas e receitas para as áreas
da restauração e hotelaria?
·
Na área da saúde, o SNS
acossado com cortes e disfunções orquestradas por Paulo Macedo reparte com
serviços privados (recolha de análises, clinicas, consultórios e hospitais),
com a intermediação de seguradoras, do SNS e da ADSE, os recursos na área da
saúde, não se descortinando onde está a intervenção dos municípios.
· No campo da ação social,
sem prejuízo de alguns apoios a indigentes nas maiores cidades, as creches, os centros
de dia e os lares de idosos são explorados por entidades privadas ou IPSS mais
ou menos próximas da Igreja Católica, com o suporte financeiro das famílias e
da Segurança Social.
· Na habitação, há em
alguns municípios casas com rendas sociais nem sempre tão sociais como seria
natural ou, em mau estado de conservação. Não é tradição dos entes públicos
portugueses promoverem habitação social, deixando o tema habitação ao sabor do idolatrado
mercado. A intervenção municipal tem-se feito no âmbito do licenciamento de
construção, palco de muita arbitrariedade, de pouca qualidade e de corrupção.
A desastrosa política global de habitação mostra-se em
centenas de milhar de casas arruinadas, abandonadas ou encerradas sem que os
municípios intervenham para exigir obras, utilização e menos ainda, com
expropriações (… horror dos horrores face ao amor pelo capitalismo que
carateriza a classe política!).
No caso do ordenamento do território e do urbanismo a
promoção do turismo tornou-se o grande desígnio nacional e justifica fenómenos
de gentrificação, desde que sirvam de âncora a um duvidoso desenvolvimento
local.
· E, para terminar, no
capítulo da água e do saneamento vai-se estendendo gradualmente a intervenção
privada com a introdução de contratos leoninos que depauperam as finanças
locais.
13 - Municípios
com uma estrutura democrática
Em termos médios de população e área, os municípios
portugueses são superiores aos correspondentes alemão, espanhol e francês, pelo
que, em geral; a sua dimensão e mesmo a ancoragem na História, afirmam os
municípios portugueses com uma grau de consolidação aceitável. Porém, a
desertificação do interior permite que se diga que Portugal está inclinado para
o mar, ainda que de modo irregular e que a sua população escorrega para o mar
ou para o exterior. Por outro lado, o envelhecimento da população que,
certamente irá acentuar a referida desertificação, poderá contribuir para que
seja aconselhável a consideração de casos de revisão da realidade concelhia.
Esclareça-se que a CRP considera como uma das competências exclusivas da
Assembleia da República a “Criação, extinção e modificação de autarquias
locais” (artº 164 al. n) não admitindo, portanto iniciativas locais ou sequer
qualquer tipo de audição vinculativa das populações, no sentido da alteração do
mapa concelhio.
a.
Configuração das Assembleias
Municipais (AM)
Como dissemos no segundo texto deste conjunto sobre a
revisão da CRP[7] “os elementos centrais
da expressão democrática, no contexto dos vários círculos de agregação
territorial das pessoas, são as assembleias”. Neste texto, dedicado aos
municípios, essa pedra base das instituições autárquicas é a Assembleia
Municipal e não o executivo, como na prática se verifica.
Na terceira parcela destes textos subordinados ao tema
“Para uma Constituição Democrática com Caráter de Urgência” apresentámos uma
configuração para os órgãos das freguesias relativamente próxima da existente
atualmente, embora com conteúdos e, sobretudo, por um modelo de representação
distanciado do actual. Defendeu-se ali a existência de Assembleias de Freguesia
(AF) e Juntas de Freguesia (JF), com membros distintos, todos eleitos e, com a
atribuição à AF de um forte poder deliberativo e fiscalizador, com um papel
essencialmente executivo para a JF.
O número actual de membros das AM[8]
resultantes das eleições de 2013 é de 6487 a que se devem somar os 3094
presidentes de Juntas de Freguesia. No que respeita aos deputados diretamente
eleitos, o seu número varia entre 51 (Lisboa) e 15 para os concelhos com menos de 10000 eleitores, embora, na totalidade haja
demasiadas excepções resultantes do modo displicente como a classe política
organiza o recenseamento eleitoral, revelando assim o seu apreço pela
democracia; ao contrário do rigor que coloca no que concerne ao NIF, essencial
para o exercício da punção fiscal.
Uma maior maturação permite a apresentação de dois
modelos organizativos, alternativos, para as estruturas dos municípios e que
poderá, até mais facilmente, ser adoptada para as freguesias. Esses modelos,
sinteticamente são:
A - Eleição pela população, em separado, dos
membros da Assembleia Municipal (AM) e da Câmara Municipal (CM) com o já
referido reforçado papel deliberativo e fiscalizador da AM e um desempenho
principalmente executivo da CM.
Nesta hipótese, estarão presentes os vereadores e os representantes
das Juntas de Freguesia do concelho, os últimos sem direito de voto[9],
pelo menos nas situações de gestão corrente do município.
B - Eleição pela população dos membros da
Assembleia Municipal (AM) que escolherão entre si um elenco de três a nove
vereadores (consoante o número de eleitores) para proceder à gestão da Câmara
(CM).
Nesta fórmula, os vereadores terão todos os direitos como
membros da AM para a qual foram eleitos enquanto os representantes das Juntas
de Freguesia do concelho estarão presentes mas, sem direito de voto, pelo menos
nas situações de gestão corrente do município.
As AM serão
os órgãos basilares do exercício da democracia a nível municipal e onde se
tomam as decisões mais relevantes da autarquia. E daqui que sejamos totalmente
adversos a alterações ao modelo vigente que visem a redução ou mesmo a extinção
das AM, com o argumento de que a relação entre AM e CM nem sempre é pacífica[10].
As divergências confrontam-se abertamente e não devem ser anuladas ab initio para que vingue a paz
celestial de que tanto gostam os apreciadores do pensamento único. Na mesma
lógica, discordamos da promoção de vereações “homogéneas” tão do agrado dos
defensores da gestão empresarial e da transformação das autarquias em meras concessões
a gangs partidários para agilizar o pasto
corrupto do erário público.
· As AM serão constituídas
por um número variável de membros eleitos, de acordo com o volume de eleitores,
como no exercício que se segue:
Exercício - Membros de Assembleias e Câmaras
Municipais
|
|||||
AM
|
CM
|
||||
Nº
eleitores
|
Municípios
|
cada
|
total
|
cada
|
total
|
<
10000
|
113
|
20
|
2260
|
3
|
339
|
10000-50000
|
145
|
30
|
4350
|
5
|
725
|
50000 -
100000
|
26
|
50
|
1300
|
7
|
182
|
>
100000
|
24
|
70
|
1680
|
9
|
216
|
soma
|
308
|
9590
|
1462
|
Como se observa, o total dos membros das AM não difere
muito do actual, salientando-se que na hipótese B - acima referida - desse
total, 1462 estarão a desempenhar também funções executivas nas CM. No modelo A
os membros serão eleitos diretamente, tal como hoje acontece;
·
Todos os residentes com
idade superior a 16 anos[11] serão eleitores;
·
Todos os eleitores
residentes há mais de um ano, poderão candidatar-se pessoalmente a membros da
AM, não havendo lugar a quaisquer candidaturas coletivas. A propósito da
redução da idade eleitoral pode levantar-se a questão de se considerar se os
menores de 18 anos deverão ser elegíveis para funções de representação;
·
São eleitos os mais
votados dos candidatos até ao preenchimento dos lugares estipulados e desde
que, cada um, detenha, pelo menos 5% dos votos expressos;
o Se não houver candidatos
em número suficiente, depois de aplicado o atrás exposto, os restantes serão
escolhidos por sorteio entre os eleitores;
o
Ao eleito mais votado
cabem as funções de representação externa da autarquia.
· Nenhum eleito poderá
cumprir mais de dois mandatos seguidos e só poderá voltar a candidatar-se
depois de duas legislaturas sem mandato;
· Qualquer eleito poderá
ter o mandato retirado por referendo onde votem mais de 50% dos eleitores;
· As decisões da AM serão
tomadas por maioria, podendo encarar-se um leque de decisões que exijam maioria
qualificada dos seus membros;
· Todas as AM são
públicas, tendo os residentes um período prévio à realização da AM para a
colocação de questões à discussão e que deverão ser divulgadas com antecedência
face à data de realização da AM;
· Fica estipulado um
calendário mensal para a realização mínima de sessões das AM onde a vereação
apresentará contas, propostas e um relato da sua atividade. As sessões da AM
podem também ser objeto de convocação extraordinária através de petição que
reúna mais de 10% dos residentes (num máximo de 5000), por solicitação da CM ou
por decisão da maioria dos membros da AM;
Competirá
à AM, particularmente:
· escolher entre os seus
membros, o executivo camarário (válido apenas para o modelo B), podendo ainda, por
maioria absoluta exonerar qualquer ou mesmo todos os membros daquele executivo[12];
· acompanhar o desempenho
da Câmara Municipal, discutir e aprovar medidas corretivas da atuação da
vereação;
· a aprovação das opções
do plano e do orçamento municipal e dos respetivos relatórios de execução,
elaborados pela CM;
· aprovar acordos, parcerias
ou transferências de serviços de/para outras autarquias ou o Estado, bem como
contratos de concessão;
· a aprovação de projetos
de investimento ou melhoramento das infraestruturas físicas ou dos equipamentos
sociais, bem como de alterações patrimoniais ou obrigações correlacionadas e
ainda, a assunção de responsabilidades financeiras;
· criar ou alterar taxas ou
preços de serviços, bem como autorizar o recrutamento de pessoal para quaisquer
órgãos da autarquia e ainda ainda aprovar alterações na estrutura orgânica da
autarquia;
·
Aprovação dos planos de
ordenamento e das normas da sua aplicação;
·
Decisão sobre propostas
governamentais que afetem as receitas municipais;
·
Convocar referendos, por
maioria simples dos seus membros, sem prejuízo das decisões populares no
sentido da sua realização.
b.
Configuração das Câmaras
Municipais (CM)
As CM
são órgãos executivos cuja função é proceder à gestão corrente da autarquia e
cumprir as decisões da AM.
· No caso do modelo A
acima definido, serão eleitores da CM, todos os residentes com idade superior a
16 anos;
· No caso do modelo A, todos
os eleitores residentes há mais de um ano, poderão candidatar-se pessoalmente a
membros da CM, não havendo lugar a quaisquer candidaturas coletivas. A
propósito da redução da idade eleitoral pode levantar-se a questão de se
considerar se os menores de 18 anos deverão ser elegíveis para funções de
representação;
· O elenco das vereações
camarárias foi definido acima e aplica-se para qualquer dos modelos de
organização autárquica municipal;
· No caso de haver eleição
direta dos membros da CM, são eleitos os mais votados dos candidatos até ao
preenchimento dos lugares estipulados e desde que detenham, cada um, pelo
menos, 10% dos votos;
· Se não houver candidatos
em número suficiente os restantes serão escolhidos por sorteio entre os
eleitores;
· Ao eleito mais votado (modelo
A) caberá, em termos genéricos, a representação (delegável), da autarquia em
questões executivas, sem prejuízo da AM poder escolher outro representante para
uma função específica. No caso do modelo B, os designados para as funções executivas
escolherão entre si essa representação;
· Nenhum membro da CM poderá cumprir mais de
dois mandatos seguidos e só poderá voltar a candidatar-se depois de duas
legislaturas sem mandato, com as adequações resultantes de cada um dos modelos
acima definidos;
o No caso
do modelo A o limite dos dois mandatos é aplicável a todos os membros da AM quer
haja ou não desempenho de funções camarárias.
· Qualquer eleito poderá ter o mandato retirado
por referendo no qual votem mais de 50% dos eleitores;
·
As decisões da CM serão tomadas por maioria;
Compete à CM, particularmente[13]:
§ Apresentar
à AM propostas para decisão sobre assuntos que não se incluam na gestão
corrente (ver acima nas competências da AM);
§ Executar
as deliberações da AM;
§ Gerir
todas as funções que não exijam um desempenho que, por razões de ordem
financeira ou complexidade técnica obriguem a outro nível de coordenação,
mormente a nível regional ou no âmbito de associação de municípios (princípio
da subsidiariedade);
§ Divulgar
publicamente as actas das reuniões da CM, no máximo uma semana depois da sua
realização;
§ Promover
a divulgação mensal, pública e detalhada dos balancetes e mapas de receitas e
despesas, bem como propiciar aos residentes a visualização de qualquer
documento, sempre que tal seja solicitado (excepto de candidaturas a concursos
ainda em aberto).
[1] Texto inicial em: http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/02/para-uma-constituicao-democratica-com.html o segundo em: http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/03/para-uma-constituicao-democratica-com.html
e o terceiro em
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/03/para-uma-constituicao-democratica-com_22.html
[3] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/11/autarquicas-2013-e-putrefacao-do.html
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/01/a-nao-politica-de-habitacao-e-o-imi.html
[5] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/07/a-divida-autarquica-e-romaria-eleitoral.html
[7] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/03/para-uma-constituicao-democratica-com.html
[8] Atualmente, o artº 42 da Lei nº 169/99 de 18/9 estabelece que o número de
deputados eleitos diretamente pela população terá sempre de ser superior ao
número de presidentes de junta de freguesia que a integram e, simultaneamente,
ter pelo menos o triplo do número de vereadores da câmara respetiva. A soma dos
diretamente eleitos e dos presidentes de junta enformam o elenco das assembleias municipais. A título de exemplo, em Lisboa, há 51 deputados
municipais com eleição direta e 24 que acumulam com o cargo de presidentes das
freguesias que representam.
[9] Atualmente os presidentes de JF são membros de corpo inteiro das AM. Sendo
ambas as autarquias independentes, sem vínculos de subordinação e com
legitimidades próprias, não nos parece lógico que aos presidentes de JF seja conferido um poder
deliberativo de uma outra autarquia, pela mesma razão que as instâncias
municipais não têm poder deliberativo nas freguesias.
[10] Por exemplo em “A Atual Reforma da Administração Local” de Nuno J. Vasconcelos
Albuquerque Sousa
[11] Considerámos aqui a redução da idade para o exercício do
voto http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/03/para-uma-constituicao-democratica-com.html
[12] É sintomático que na lei portuguesa uma Assembleia Municipal não possa
destituir uma vereação à semelhança do que acontece coma Assembleia da
República face ao governo nacional; ou um vereador sequer. Trata-se de uma
forma de introduzir um verniz democrático nas autarquias mantendo todo o poder
no executivo, mormente no presidente da câmara, como acontecia durante o
fascismo. Em contrapartida cabem às assembleias as autorizações tão relevantes
como as … geminações ( Lei 75/2013 de 12/9, artº 25 1, t))
[13]
A Lei das Autarquias Locais (Lei n.º 75/2013 de 12 de setembro),
apresenta listas muito pormenorizadas de funções a cargo das
CM
olá estou escrevendo sobre a administração local sob as ordenações do reino e posteriores a elas no Brasil e em Portugal e isto vai me ser útil.
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