quarta-feira, 25 de julho de 2018

A longa marcha das desigualdades – 1 (O período 1953/77 e o fim do regime fascista em Portugal )



Quando nos concentramos na conjuntura, nas pequenas mudanças ou no folclore mediático encenado pelos membros das classes políticas; quando nos focamos exclusivamente nas pequenas diferenças nos preços do combustível ou nos rendimentos, acreditando que virá amanhã o aumento prometido no ano passado estamos, decididamente, a ser enganados ou, melhor, a ser toureados. 

Aquela atitude compreende a visão obscurecida pela estúpida crença de que umas eleições que se seguem, onde os feitos do governo se cruzam com as promessas cantadas pela oposição, trarão alguma coisa de substantivo para as nossas vidas. 

Nessa rotina, arriscamo-nos a morrer sem nunca termos entendido as estratégias de que somos vítimas nem a beneficiar das promessas que nos foram feitas durante a vida, adiadas todos os quatro anos, pelas dificuldades da conjuntura; e morremos sem jamais alcançarmos os amanhãs que cantam, sem nos arriscarmos a mudar as estruturas. Os cemitérios estão repletos de muitos de quantos acreditaram nos tais amanhãs, em seguidores de farsantes à procura de votos, daqueles que nunca fizeram nada para tirar as vendas dos olhos e menos ainda para se apossarem do seu próprio futuro. Acomodados pela crença ou crentes para encaixar o comodismo.

É nessa mentira, nessa obscuridade que nos querem manter. Ainda recentemente, na paróquia lusa houve nutrida grita em torno do aumento em alguns cêntimos dos preços dos combustíveis; porém, essa grita, com os animadores partidários em êxtase, não deu origem a uma atitude coletiva contra a imensa carga fiscal que recai sobre os combustíveis; como não deu origem a campanhas de desobediência face ao ignóbil pagamento de portagens sempre que se pretende circular em estradas mais rápidas; ou perante a ausência de transportes; ou por um SNS cada vez mais pasto de adjudicações a empresas, contratações de trabalhadores através dos negreiros atuais (as ETT), para além da pachorrenta aceitação do pagamento anual de € 800 per capita, em nome de uma dívida pública tão eterna quanto, em larga medida, ilegítima, constituída para compensar as perdas de capitalistas e banqueiros.

Claro que a mistificação do caráter da dívida pública irmana toda a classe política, sejam os gestores do partido-estado PS/PSD com o apoio de um seu produto derivado de reserva, o CDS; como inclui a “esquerda” do regime pós-fascista que aceita sem pestanejar a dívida pública como legítima, clamando, numa atitude complacente com o capital financeiro, por uma reestruturação[1] que, se alguma vez se fizesse, teria um impacto mínimo.

As alterações estruturais são tão mais visíveis quanto maior for o lapso de tempo observado. É interessante comparar a evolução dos rendimentos do trabalho como os do capital, em Portugal, depois de 1953, a partir de quando se encontram séries estatísticas regulares. Por rendimentos do trabalho consideram-se os pagamentos efetuados aos trabalhadores e ainda as contribuições patronais para a Segurança Social. Por rendimentos de capital compreende-se o excedente bruto da produção dos serviços de habitação e ainda os lucros distribuídos ou, os ganhos em rendas e juros, por parte de quem tem propriedades ou capitais. Essa comparação é acompanhada por uma outra, habitual, com o PIB, aferidor do rendimento anualmente gerado, na parte em que é conhecido; sabendo-se que há rendimentos efetivos que escapam ao cômputo, como aliás foi inicialmente referido pelo próprio criador do conceito do PIB, Kuznets. Em Portugal, essa compósita gama de rendimentos não contidos na contabilidade nacional, corresponde a cerca de 25% do referido PIB.

Para o período 1953/93 utilizámos as Séries Longas para a Economia Portuguesa, produzidas pelo Banco de Portugal e, para depois de 1977, os elementos constantes nos dados estatísticos correntes, presentes na página daquela instituição. Há, assim, duas séries de dados que iremos considerar.

Dividimos aquele primeiro período de 40 anos em dois gráficos; um, tomando como base o ano de 1953 e que termina em 1977, contendo os últimos 21 anos do regime fascista e os anos de transição para o actual regime pós-fascista, dito de… democracia, só porque não há pide; o que é pouco para que se possa falar de democracia[2]. E o segundo, com o lapso de tempo decorrido entre 1977 e 1995, dentro da série estatística anterior. 

1 - O período 1953/77 e o fim do regime fascista

O gráfico abaixo (graf. 1) representa a evolução daqueles dois tipos de rendimento para o período 1953/77 (preços correntes). Neste, como nos gráficos que se seguirão, daremos relevância essencialmente à convergência ou à divergência entre as variáveis, como reflexo das diferenças na afetação dos rendimentos globais gerados pelos dois grupos sociais distintos – os trabalhadores e os capitalistas – durante os últimos 21 anos do regime fascista e os quatro primeiros anos do actual regime, cujo caráter reacionário e cleptocrático nos permite dar-lhe o epíteto de pós-fascista. Procuraremos adiante uma explicação para um maior dinamismo dos rendimentos do trabalho, comparativamente ao PIB e aos rendimentos do capital, neste período.
                                                                                                                      graf. 1
Fonte primária: Banco de Portugal - Séries Longas para a Economia Portuguesa
·   Tomando como base o ano de 1953 verifica-se que os rendimentos do trabalho cresceram no período 1953/77 quase 15 vezes, contra 12 e 8.5 vezes, respetivamente, para os casos do PIB e dos rendimentos do capital; devendo ter-se em consideração que grande parte desse crescimento é devido à inflação, que acelera a partir de meados da década de 60 e, particularmente, após uma sucessão de acontecimentos – a subida dos preços do petróleo em 1973, a crise política de 1974/75 que se seguiu ao fim do regime fascista e às dificuldades económicas nos primeiros anos da normalização pós-fascista (gráf. 2).
                                                                                                                     graf. 2
                                                                                       Fonte primária: Banco de Portugal 

·      Como se revela na tabela abaixo, até 1959 os rendimentos do capital têm uma ascensão superior à marcha do PIB, bem como das remunerações do trabalho, com poucas excepções. A partir daquele ano, o crescimento das remunerações do trabalho, em regra, supera a evolução dos rendimentos do capital, até ao início do actual regime político, que reverteu a situação, subalternizando a evolução dos rendimentos do trabalho aos sacrossantos rendimentos do capital. 

·      O crescimento das remunerações dos trabalhadores tende a superar o do PIB, grosso modo, em toda a década de 60 e, depois, durante os anos 1974/75, por óbvia pressão das movimentações populares perante um poder de estado muito debilitado. A comparação da evolução das remunerações do trabalho com a taxa de inflação mostra ganhos relativos dos trabalhadores em todos os anos considerados, excepto o último, 1977 – ano da primeira intervenção do FMI, na sequência da qual surgiu, logo em janeiro do ano seguinte, o governo PS/CDS, durante o qual foi criado o SNS, em breve desprezado, sabotado e tornado veículo da parasitação de privados, como hoje é, escandalosamente, claro.

Variações percentuais face ao ano anterior



1954
1955
1956
1957
1958
1959
1960
1961
1962
1963
1964
1965
1966
Remun. do trabalho
7,4
4,1
5,5
3,6
1,5
7,6
6,9
8,8
6,7
9,3
9,6
12,3
11,2
Rend. do capital
13,5
5,2
18,3
-6,3
7,6
7,2
4,6
1,5
6,4
6,4
9,3
5,8
8,9
PIB
6,1
4,6
6,9
6,2
6,7
6,1
5,9
4,1
12,2
3,3
8,6
16,3
6,7
Inflação
1,7
-1,9
0,3
2,9
1,1
2,2
1,4
2,6
0,5
2,4
1,7
3,1
4,7
 




1967
1968
1969
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
Remun. do trabalho
15,8
8,5
11,0
15,8
15,2
17,2
18,2
31,3
29,9
16,1
17,5
Rend. do capital
8,9
11,4
5,9
9,1
13,0
17,5
16,8
-6,8
15,8
16,8
33,8
PIB
12,0
8,1
7,3
12,8
15,7
18,0
18,2
18,4
15,8
19,6
28,5
Inflação
6,6
4,5
5,8
8,6
4,4
10,9
11,2
13,0
26,1
17,4
19,9




               Chave de interpretação
Remun. do trabalho  > Rend. do capital
Remun. do trabalho  > PIB
Rend. do capital > PIB
Remun. do trabalho > 
 Inflação


·    Em 1961 inicia-se a guerra colonial em Angola e, pouco depois, sucede a perda das possessões coloniais na Índia; em 1963 a sublevação acontece na Guiné-Bissau e em 1965, em Moçambique. Isso constituiu um bom motivo para a emigração e fuga dos mais jovens e dos mais politizados, pouco interessados em participar num contingente que chegou aos 250000 homens em armas e numa guerra que não sentiam como sua. Curiosamente, o PCP não aconselhava essa fuga, defendendo a integração nos contingentes militares e uma eventual deserção no teatro de guerra (um verdadeiro suicídio!), numa expressão muito curiosa de internacionalismo; que aliás mantém com a sua “política patriótica de esquerda”…

·      O enorme contingente militar – completamente desmesurado para um país pobre e com pouco mais de 9 M de habitantes – bem como o esforço de guerra, promovem um aumento substancial dos gastos militares. Isso, porém não se reflete nas contas públicas sob a forma de deficit pois Salazar sacralizava o equilíbrio orçamental através de uma “contabilidade criativa”; considerava o produto da emissão de dívida como uma… receita, desvalorizando o que isso representava como responsabilidade, a constar num balanço. Esse enorme gasto público, sem contrapartidas produtivas correspondeu a uma distribuição de rendimento que contribuiu para incentivar uma escalada inflacionista a partir de meados dos anos 60.

·      Por outro lado, a emigração legal referida por Joel Serrão em “A Emigração Portuguesa”, é estável em 1955/62, entre 21300 e 27600 pessoas mas, dispara, a partir de 1963, sabendo-se que o total dos emigrantes é de 15 a 30% superior aos valores indicados como legais. Assim, em 1966 o número contabilizado de emigrantes chega a 120239 e mantém-se sempre acima dos 50000 até 1973. Até à crise que marcou o fim dos chamados 30 gloriosos anos de vigência do paradigma keynesiano, os países da Europa Ocidental, sobretudo França, Bélgica e Alemanha, recorreram massiva e sucessivamente à imigração de norte-africanos, italianos, espanhóis e portugueses. 

·      Esse enorme contingente de emigrantes procedia ao envio de rendimentos, que beneficiaram essencialmente as famílias mais pobres e conduziu a um aumento da procura de bens, serviços e gastos na construção/reparação de casas. Esse aumento de poder de compra que não encontrava capacidades adequadas no aparelho produtivo, contribuiu também para a inflação. A importância das remessas dos emigrantes no rendimento disponível bruto pode observar-se abaixo  
                                                                                                                     (%)
1953
1960
1965
1970
1971
1972
1973
1974
1977
2,5
4,1
4,4
8,2
9,2
9,7
9,4
8,3
7,6

·      O maior crescimento das remunerações de trabalho face aos rendimentos do capital que se observa a partir de meados dos anos 60 não surge, naturalmente, de um processo reivindicativo ou de uma crise política; a incapacidade e depois a morte de Salazar não provocaram grande abalo ao regime. Caetano, no poder, permitiu alguma reivindicação salarial a qual contribuiu para um aumento dos rendimentos das camadas mais organizadas dos trabalhadores, em interação com a escalada dos preços. Em 1974/75, na sequência do fim do fascismo e perante uma grande crise do poder do estado, há mudanças substantivas na relação trabalho/capital, a favor dos trabalhadores mas, que se esfumam logo nos anos seguintes. 

·      Em 1974/75 a entrada de gente vinda das colónias representou um aumento populacional de umas 600000 pessoas, muitas das quais necessitadas do apoio público, conseguido através da emissão de moeda pelo Banco de Portugal, criando-se assim mais um impulso para a inflação.

Os últimos anos do fascismo revelam elementos que apontavam para uma inexorável mudança; a guerra colonial era o maior obstáculo, quer a nível interno, quer externo.

A nível interno, pelas razões atrás expendidas, mostraram-se pouco impactantes as tímidas ou cosméticas medidas levadas a cabo por Marcelo Caetano, englobadas no que o próprio chamou “evolução na continuidade”. A tropa, só muito próximo do final de regime - que acabou por derrubar - encontrou capacidade política para compreender a necessidade de encontrar um fim para o regime fascista, como forma de se libertar de um próximo desastre militar. E a sua típica postura elitista fê-los querer manter a população em casa, retirando-lhe o prazer e a festa, o gozo de participar no fim do regime; e, rapidamente apresentaram, como novos dirigentes, um punhado de generais, num retrato de cariz latino-americano, para sossegar Washington e as capitais europeias.

Depois da integração na EFTA, em 1959 surgiu algum investimento estrangeiro mas, com o início da guerra colonial, Portugal foi sujeito ao boicote e à animosidade dos países então chamados do Terceiro Mundo. Por exemplo, o não reconhecimento da integração de Goa na Índia impedia qualquer ligação comercial com aquele enorme país, centrando-se Portugal numa relação com o vizinho Paquistão, em histórico conflito com a Índia, mais recentemente por a última ter tido um papel relevante no desmembramento do Paquistão, com a criação do Bangla Desh, em 1971.

O grande beneficiário desse boicote e do desgaste do esforço de guerra foi a Espanha que, apesar do regime franquista, não tinha guerras coloniais em curso e enveredara por uma certa evolução na continuidade através de um governo ligado à Opus Dei, atraindo o investimento estrangeiro. As diferenças espelham-se muito claramente na evolução populacional (milhares).

1960
1970
1980
Espanha
30455
33814
37491
Portugal
8858
8680
9766

Na altura, ainda muito ligado à Grã-Bretanha, Portugal viu-se obrigado a negociar com a CEE um acordo em 1972. E entretanto, procurava aproveitar a sua posição estratégica, criando o porto de Sines para a atracação de navios-tanque com mais de 500000 t., uma reparação naval para os acolher e ainda um complexo petroquímico para a venda de refinados na Europa. A reabertura do canal do Suez, em 1973, reduziu radicalmente a dimensão necessária dos navios e o largo investimento inerente a esta estratégia perdeu-se em grande parte, transitando os prejuízos para o povo português, após a conveniente nacionalização das infraestruturas (Petroquímica, Lisnave, Setenave, nomeadamente).

Uma réplica do processo de crescimento económico que atravessou os países da OCDE na década de 60 exigia a passagem de um capitalismo baseado em unidades empresariais artesanais, tão ao gosto ruralista de Salazar, para um capitalismo moderno, com forte investimento em equipamentos e conhecimento, exigente de trabalhadores qualificados e, obviamente, mais bem pagos, no contexto dos salários de miséria tradicionais em Portugal. Essa capacidade para a passagem para um novo patamar de desenvolvimento capitalista, simbolicamente, pode colocar-se em 1961, com a criação da Siderurgia Nacional e da Lisnave, que se viriam a juntar ao antigo e diversificado grupo CUF. Simbolicamente, na inauguração da primeira, o ministro Ferreira Dias, um entusiasta da industrialização diria “país sem siderurgia, não é um país, é uma horta”. Assim, de 1960 para 1967 os trabalhadores na indústria transformadora passam de 680.7 mil para 903 mil, aumentando apenas 77 mil até 1974.

Uma indústria moderna exige gente qualificada e o fluxo crescente de emigração constituía um elemento de concorrência pouco habitual para a maioria do empresariato luso, beneficiário do corporativismo, do condicionamento industrial, da mãozinha do estado… como hoje; e, na frágil camada de trabalhadores qualificados, uns eram repelidos para o exterior para fugirem à guerra colonial e outros emigravam sobretudo para a Alemanha, atraídos por melhores condições de vida e maior respeito pelos direitos. E daí, aos capitalistas só restava aumentar as remunerações, encolhendo nos rendimentos do capital. 

A crise ocidental no princípio dos anos 70, iniciada com a desvalorização da libra em 1968, o fim da convertibilidade do dólar em 1971, a enorme subida dos preços do petróleo em 1973 e, politicamente, o golpe fascista no Chile, apadrinhado pelos EUA, significam a passagem do modelo keynesiano para o paradigma neoliberal; embora os grandes emblemas da aplicação do neoliberalismo – Thatcher e Reagan - só tenham chegado ao poder em 1979 e 1981, respetivamente. E essa passagem, que coloca um fim aos “30 gloriosos anos”  de crescimento do pós-guerra, reduz substancialmente a procura de trabalhadores imigrados na Europa Ocidental.  

próximo capítulo “Da primeira intervenção do FMI ao cavaquismo (1977/95)”


Este e outros textos em:
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