terça-feira, 15 de abril de 2014

Algumas fraturas narcísicas na evolução histórica

                                                                                   As certezas na história da humanidade                                                                                                      sofrem, por vezes abalos demolidores. As                                                                                                 causas desses abalos começam por ser                                                                                                     objeto de violência e depois, de silêncios                                                                                                conformados ou de adaptações desvirtuadoras.


1 - A fratura coperniciana
2 - A fratura de Darwin
3 – Fraturas no optimismo capitalista – Marx
4 – Fraturas no optimismo capitalista – Bakunin
5 - A fratura do Homem como construção social



1 - A fratura coperniciana

No século XVI, Copérnico abalou as certezas de muitos, dominantes durante muitos séculos, quando divulgou o seu livro sobre a teoria heliocêntrica. Como a “comunidade científica” não lhe deu grande importância, morreu na paz do Senhor um ano antes da publicação do livro; o Papado andava então mais preocupado com as heresias de Lutero e em estruturar a Inquisição, criada um pouco antes da morte de Copérnico. Este, portanto evitou os incómodos que Galileu haveria de sofrer por defender o heliocentrismo, cerca de um século depois; e, por consequencia, não foi confortado pelas desculpas dirigidas pelo papa Wojtila, em 2000, ao azarado Galileu.

Apesar do continuado interesse do Papado com o equilíbrio psicológico dos seres humanos, a santa instituição não consequiu evitar o abalo no narcisismo imanente ao homo biblicus que então se colocava no centro do universo, criado num acto caprichoso de um deus entediado. Afinal, a Terra não passava de um planeta que gravitava em torno do Sol. que por sua vez se enquadrava numa Via Láctea que por sua vez… Destino indigno, miserável para quem se considerava como a suprema invenção do Criador.

Esta foi a primeira ferida narcísica que a análise científica provocou no homo biblicus, construído por uma póstuma aliança entre Aristóteles e o messianismo judaico.


2 – A fratura de Darwin

Em meados do século XIX, ao inserir a espécie humana na evolução da vida na Terra, com uma evolução própria através do tempo e não como ser pré-fabricado, Darwin desfere uma profundo golpe no orgulho narcísico do homo biblicus auto-proclamado como elemento central da criação divina.

Depois de colocado num planeta insignificante no contexto do universo, o Homem é revelado como um elemento de uma imensa variedade de formas de vida, em constante adaptação às condições do ambiente natural, num processo de tentativas que envolvem êxitos e fracassos.

Depois de perdidas as ideias de geocentrismo, as consequências da consideração de uma evolução das espécies obrigam o regulador vaticano a remeter o homo biblicus para o conforto do campo da irracionalidade inerente ao conceito de fé, como um refúgio, adornado por uma colorida grinalda de fábulas. Fica consumada uma segunda fratura narcísica.


3 – Fraturas no optimismo capitalista – Marx

No campo da evolução no pensamento social regista-se uma profíqua atividade criativa nos séculos XVII-XIX onde se deve enquadrar, entre John Locke e David Ricardo, Adam Smith, Rousseau ou Quesnay, entre outros. Procurava-se então, entender as múltiplas transformações da mundialização e gerar um modelo explicativo, nomeadamente nos campos do modo de produção, da organização política e das relações entre aquelas.

No capítulo do modo de produção, o capitalismo ia saindo de uma exclusiva ocupação no comércio, para se lançar decididamente na aventura da produção de mercadorias, em larga escala, com o recrutamento de assalariados, a criação da oficina, da fábrica, do trabalho, com o preciso e exclusivo objetivo da capitalização, da geração de dinheiro; desligado, portanto, da satisfação das necessidades humanas, o que acontecia pela primeira vez desde a evidenciação dos homens, entre os primatas.

As necessidades de força de trabalho exigiam a destruição dos vínculos de ordem política entre servos e senhores, para a libertação de detentores da força de trabalho conveniente para um capitalismo optimista, com a pujança da juventude. Para efeitos de demarcação face ao feudalismo a burguesia vai defender o vínculo social essencial se faz entre seres “livres”, tendo de um lado, o capitalista que se apropria do produto do trabalho, transformado em mercadoria e do outro, os assalariados com direito a uma contraprestação avaliada em torno do necessário para poderem perpetuar a sua subalternidade, a sua submissão. A liberdade política replicava a hipocrisia igualitária da relação laboral, comportando a sacralização da propriedade como ponto de partida e de chegada para o exercício da vida política, excluidos os camponeses e os proletários que se amontoavam nas cidades.

Por seu turno, o domínio do aparelho de estado era necessário para conduzir a guerra resultante da rivalidade entre as potências europeias para a supremacia sobre os outros povos e respetivos recursos. Esss pulsão pelo domínio, ao fundir o capitalismo e com o liberalismo político está na base da construção das nações, como elementos fundamentais para a constituição de coutadas, de prisões de povos para servirem as respetivas burguesias nacionais.

O rei passou de um árbitro das disputas senhoriais para um símbolo da unidade nacional, funções essas que passaram para figuras não hereditárias nas situações que que a monarquia se tornava insustentável, como mudança necessária para garantir que nada se alterasse de substantivo na ordem capitalista.

Qualquer Estado capitalista com o seu rei/presidente, em constantes disputas com a concorrência, teria de garantir a fidelização dos seus trabalhadores já constrangidos pela existência de fronteiras bem definidas e guardadas. O instrumento para esse efeito de fidelização e rejeição do Outro foi o patriotismo que permite diabolizar o Outro, que mais não é do que um alter ego de nós próprios. Daí a tara identitária de edificar uma nação para cada povo, à revelia de miscigenações seculares, preocupação florescente do século XIX, ainda vivida nos tempos e em guerras correntes.

Na mesma época de Darwin, surgem Bakunin e Marx para colocarem em questão a arquitetura económica, política e social do impante capitalismo.

Marx demonstrou os limites inerentes ao capitalismo como sistema económico, baseado num incremento constante de capital fixo e redução da parcela de trabalho direto na produção, gerando crises de sobreprodução em paralelo com limitações marcantes que afetam grande parte da população mundial; essas crises, frequentes desde o século XIX, têm conduzido a guerras devastadoras e a desigualdades monstruosas, num plano de destruição ambiental agravada. Por sue turno, observa-se a fuga para a frente através da financiarização da economia, que incha e desincha as bolhas financeiras/imobiliárias numa cadência cada vez mais violenta. Em contrapartida, persiste uma evidente menoridade política da multidão planetária e, mormente, dos trabalhadores que hoje, mais que nunca, dominam tecnicamente todo o processo produtivo, sem precisar de capitalistas para coisa nenhuma[1].

Essa demonstração marxiana (não confundir com as variadas deturpações chamadas marxistas) evidencia que o auto-confiante capitalismo afinal tem pés de barro e trás no bornal uma bomba-relógio que o destruirá, sem que se possa livrar dela. Apenas poderá ir retardando a sua explosão, com habilidades e subterfúgios diversos. Marx destruiu essa auto-confiança de um capitalismo narcisista, tornando o sistema marcado por uma crise existencial, a terceira das fraturas narcísicas aqui apontadas.

4 – Fraturas no optimismo capitalista – Bakunin

Bakunin viu melhor a questão do Estado do que Marx; este, tomando como exemplo o desfecho da Comuna de Paris entendeu a importância do Estado como instrumento útil para a consolidação do poder dos trabalhadores, contrariamente a Bakunin que sempre tomou o Estado como excrescência do capitalismo.

A supremacia da tolerância face ao Estado foi prosseguida e desenvolvida por Lenin, que se veio a colocar como o criador de facto do capitalismo de estado, com aplicação extensiva na URSS, alcunhado de socialismo, fazendo escola em experiências posteriores. Pretendia-se, com o socialismo, definir uma etapa (eternamente) transitória para se atingir o comunismo, no qual o Estado, a propriedade e as classes sociais se dissipariam. Stalin e Trotsky foram os heróis da aplicação prática deste modelo chamado “socialismo científico”, cilindrando como contra-revolucionário qualquer recalcitrante, tratando de deturpar a obra do próprio Marx, inventando uma panaceia, - marxismo-leninismo - para justificar a construção do capitalismo de estado.

Ainda com Lenin surgiu uma outra inovação – o partido – constituido por auto-ungidos representantes do povo e da “classe operária” dotados de uma irrefutável omnisciência prosseguida no terreno com a inclusão de um medonho aparelho da repressão física, militar ou policial e, gerando um aparelho ideológico responsável pela censura e definição da “linha justa”, no conhecimento, na arte, no comportamento individual. Na realidade o partido demonstrou ser uma casta rodeada de privilégios e inchada pela corrupção mas, apontando sempre como objetivo, a construção do dito socialismo.

A conivência tática do capitalismo de “iniciativa privada” com o de estado, do (neo)liberalismo ocidental com o tal marxismo-leninismo promoveu, durante décadas, a perseguição e a ocultação do pensamento libertário e da sua profunda crítica do Estado como ente genuinamente opressor, como capitalista coletivo, ocupado por minorias de privilegiados, corruptos e repressores. Isso aconteceu na URSS, como na Alemanha nazi, no franquismo como no salazarismo, como também nas democracias de mercado, ocidentais. O pensamento anarquista foi submetido a um feroz silenciamento até 1968, quando saiu do gueto para as ruas, em França e Itália.

Hoje, qualquer movimento social incorpora muito mais ideias anarquistas do que as recolhidas do cardápio marxista-leninista; embora haja defensores de receitas deste último dentro dos movimentos sociais a sua presença é, demasiadas vezes, no sentido do controlo e desvirtuamento da autonomia e dos objetivos da multidão. Em síntese, mantêm-se fiéis na defesa de uma sociedade capitalista.

Passado mais de um século, os movimentos sociais, ao colocarem em causa o Estado como supremo orquestrador do capitalismo; a organização hierárquica e autoritária bem representada nas empresas e nos partidos; a demência capitalista promotora do consumismo e do desastre ambiental; a guerra e a violência como modos de domesticação das “massas”, tornam Bakunin e o anarquismo como os portadores de poderosos instrumentos de libertação da multidão humana face ao capitalismo, num mundo globalizado e sob formas diversificadas e intensivas de solidariedade na produção como na cultura[2].

Depois do hiato vivido entre as duas guerras, com a ascensão dos fascismos e do modelo soviético; depois do fracasso dos teoremas keynesianos de salvação do capitalismo através do seu modelo de intervenção extensiva do Estado; depois dos últimos 40 anos do cruel experimentalismo neoliberal que não recua (tal como os nazis) perante o genocídio, está em aberto uma nova prática política, uma nova sociabilidade humana, um novo modelo de organização da satisfação das necessidades coletivas, baseado no pensamento e na ética libertária.

As transformações em curso na consciência da multidão colocam-nos numa época de mudança face ao papel do Estado, da organização política e social, dos modos de decisão sobre as necessidades coletivas e da sua gestão. Essa nova consciência evidencia a vivência de uma outra fratura narcísiva. Em Portugal é, porventura, menos visível dado o atraso das estruturas económicas, políticas e culturais. Se nos lembrarmos que a chegada a Portugal da teoria da evolução das espécies foi considerada no século XIX como um disparate pelo magnífico reitor da universidade de Coimbra… há razões para algum otimismo; embora haja quem aceite uma dívida ilegítima e impagável de facto (com ou sem reestruturação) justa causa para a penitência através do empobrecimento, como via para a felicidade coletiva. Salazar sobrevive, os portugueses querem-se pobres mas honrados.

5 – A fratura do Homem como construção social

Depois das fraturas narcísicas provocadas pelo génio de Copérnico e de Darwin o humanidade, despida dos seus adornos bíblicos e inventou novos idílios, entre eles o capitalismo e o Estado que, apesar dos caminhos abertos por Marx e Bakunin, muitos continuam a não ver como soluções para a sociabilidade humana e para a construção do bem-estar dos indivíduos.

A psicanálise começou por uma interpretação de que a consciência mais não seria que a emanação de factores inconscientes, numa concepção algo a-social da realidade individual. Assim, a cada um de nós caberia a gestão dessa determinação, dessa subjetividade, relativamente imune a forças exteriores, numa solidão narcísica que nos condenaria ao confronto com a nossa imagem no espelho; a não ser que enveredássemos por uma penosa cura psicanalítica, nunca garantida a priori.

A verificação de que a nossa individualidade é um produto social, que se constrói durante toda a vida como resultado de relações sociais corrói essa ideia de magnífico isolamento, de atitudes defensivas face ao exterior, ao Outro, tomado como intruso, como potencial ameaça à nossa relação conosco próprios e dificilmente encarado como contribuinte para a solução dos nossas próprias dificuldades na observação e compreensão da realidade que nos rodeia.

Esta observação traz outras consequências. Por um lado incorpora a nossa atitude para com os outros na realidade da múltipla interação social que se observa no trabalho, na escola, na família. Por outro, a abertura daí resultante entra em antagonismo com as pulsões do capitalismo para o individualismo, para a competição, para a supremacia sobre o Outro.

Pelo contrário, se estamos inseridos numa matriz de relações sociais que nos enformam através da vida, isso significa que a realidade que vivemos é uma realidade individual partilhada que nos insere num espaço comum e de solidariedades. A auto-satisfação de um narcisismo doentio, decididamente tende a ter pouco espaço; e o que tiver não é virtuoso.


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Documentos e textos em:    





[1]  http://grazia-tanta.blogspot.pt/2011/12/afinal-qual-funcao-social-do.html
[2]  http://grazia-tanta.blogspot.pt/2011/12/neoanarquismo-por-manuel-castells.html

2 comentários:

  1. Os comentários do nosso amigo Victor são sempre extremamente acutilantes, interessantes e direitos ao fulcro das questões. Mas permito-me discordar de alguns aspectos. A evolução do capitalismo selvagem entrou numa fase em que enormes saltos qualitativos estão a ser dados. Um dos pontos essenciais é o progressivo esbatimento das fronteiras e a degradação do poder e da soberania dos estados-nação face ao crescente à vontade com que os fluxos principais da produção (dinheiro, tecnologia, produtos, etc.) circulam globalmente. É esta nova forma global de economia que alguns autores designam de IMPÉRIO. Já não existe um centro territorial de poder. É antes um aparelho de descentralização que abrange o mundo inteiro e não já áreas específicas como os velhos imperialismos. O projecto imperial é o de unir o poder económico ao político para materializar a NOVA ORDEM MUNDIAL. Um dos principais instrumentos da materialização dessa ORDEM, reside nos tratados internacionais TPP e o TTIP, o primeiro abrangendo os países da bacia do Pacífico e o segundo os países da bacia do Atlântico. O fundamental objectivo desses tratados é o de consolidar definitivamente o poder das 500 maiores corporações do mundo, de modo a esmagar o poder dos povos e dos estados, bem como das suas protecções aos cidadãos, ao ambiente, à alimentação saudável, aos monopólios, etc. A implementação desses tratados cuja negociação é mantida secreta, vai conduzir a que essas corporações adquiram um poder absoluto que nenhum estado ou grupo de estados poderá contestar, chegando ao ponto de elas poderem processar os governos que se atreverem a limitar a sua ânsia desmedida pelo lucro a qualquer preço, através de tribunais especiais com jurisdição acima do tribunal de Haia ou do Tribunal Penal Internacional. Isto para dizer que os estados-nação que sempre foram instrumento dessas corporações na acumulação capitalista, estão a mudar de estatuto e podem ser o último reduto da luta dos povos contra a dominação e opressão do novo poder tentacular que visa controlar todo o globo.

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