As certezas na história da humanidade sofrem, por vezes abalos
demolidores. As causas desses abalos começam por ser objeto de violência e
depois, de silêncios conformados ou de adaptações desvirtuadoras.
1 - A fratura coperniciana
2 - A fratura de Darwin
3 – Fraturas no optimismo capitalista – Marx
4 – Fraturas no optimismo capitalista – Bakunin
5 - A fratura do Homem como construção social
1 - A fratura coperniciana
No século XVI, Copérnico abalou as certezas de muitos,
dominantes durante muitos séculos, quando divulgou o seu livro sobre a teoria
heliocêntrica. Como a “comunidade científica” não lhe deu grande importância,
morreu na paz do Senhor um ano antes da publicação do livro; o Papado andava
então mais preocupado com as heresias de Lutero e em estruturar a Inquisição,
criada um pouco antes da morte de Copérnico. Este, portanto evitou os incómodos
que Galileu haveria de sofrer por defender o heliocentrismo, cerca de um século
depois; e, por consequencia, não foi confortado pelas desculpas dirigidas pelo
papa Wojtila, em 2000, ao azarado Galileu.
Apesar do continuado interesse do Papado com o equilíbrio
psicológico dos seres humanos, a santa instituição não consequiu evitar o abalo
no narcisismo imanente ao homo biblicus que
então se colocava no centro do universo, criado num acto caprichoso de um deus
entediado. Afinal, a Terra não passava de um planeta que gravitava em torno do
Sol. que por sua vez se enquadrava numa Via Láctea que por sua vez… Destino
indigno, miserável para quem se considerava como a suprema invenção do Criador.
Esta foi a primeira ferida narcísica que a análise
científica provocou no homo biblicus, construído
por uma póstuma aliança entre Aristóteles e o messianismo judaico.
2 – A fratura de Darwin
Em meados do século XIX, ao inserir a espécie humana na
evolução da vida na Terra, com uma evolução própria através do tempo e não como
ser pré-fabricado, Darwin desfere uma profundo golpe no orgulho narcísico do homo biblicus auto-proclamado como
elemento central da criação divina.
Depois de colocado num planeta insignificante no contexto do
universo, o Homem é revelado como um elemento de uma imensa variedade de formas
de vida, em constante adaptação às condições do ambiente natural, num processo
de tentativas que envolvem êxitos e fracassos.
Depois de perdidas as ideias de geocentrismo, as
consequências da consideração de uma evolução das espécies obrigam o regulador
vaticano a remeter o homo biblicus
para o conforto do campo da irracionalidade inerente ao conceito de fé, como um
refúgio, adornado por uma colorida grinalda de fábulas. Fica consumada uma
segunda fratura narcísica.
3 – Fraturas no optimismo capitalista – Marx
No campo da evolução no pensamento social regista-se uma
profíqua atividade criativa nos séculos XVII-XIX onde se deve enquadrar, entre
John Locke e David Ricardo, Adam Smith, Rousseau ou Quesnay, entre outros.
Procurava-se então, entender as múltiplas transformações da mundialização e
gerar um modelo explicativo, nomeadamente nos campos do modo de produção, da
organização política e das relações entre aquelas.
No capítulo do modo de produção, o capitalismo ia saindo de
uma exclusiva ocupação no comércio, para se lançar decididamente na aventura da
produção de mercadorias, em larga escala, com o recrutamento de assalariados, a
criação da oficina, da fábrica, do trabalho, com o preciso e exclusivo objetivo
da capitalização, da geração de dinheiro; desligado, portanto, da satisfação
das necessidades humanas, o que acontecia pela primeira vez desde a
evidenciação dos homens, entre os primatas.
As necessidades de força de trabalho exigiam a destruição
dos vínculos de ordem política entre servos e senhores, para a libertação de
detentores da força de trabalho conveniente para um capitalismo optimista, com
a pujança da juventude. Para efeitos de demarcação face ao feudalismo a
burguesia vai defender o vínculo social essencial se faz entre seres “livres”,
tendo de um lado, o capitalista que se apropria do produto do trabalho,
transformado em mercadoria e do outro, os assalariados com direito a uma
contraprestação avaliada em torno do necessário para poderem perpetuar a sua
subalternidade, a sua submissão. A liberdade política replicava a hipocrisia
igualitária da relação laboral, comportando a sacralização da propriedade como
ponto de partida e de chegada para o exercício da vida política, excluidos os
camponeses e os proletários que se amontoavam nas cidades.
Por seu turno, o domínio do aparelho de estado era
necessário para conduzir a guerra resultante da rivalidade entre as potências
europeias para a supremacia sobre os outros povos e respetivos recursos. Esss
pulsão pelo domínio, ao fundir o capitalismo e com o liberalismo político está
na base da construção das nações, como elementos fundamentais para a
constituição de coutadas, de prisões de povos para servirem as respetivas
burguesias nacionais.
O rei passou de um árbitro das disputas senhoriais para um
símbolo da unidade nacional, funções essas que passaram para figuras não
hereditárias nas situações que que a monarquia se tornava insustentável, como
mudança necessária para garantir que nada se alterasse de substantivo na ordem
capitalista.
Qualquer Estado capitalista com o seu rei/presidente, em
constantes disputas com a concorrência, teria de garantir a fidelização dos
seus trabalhadores já constrangidos pela existência de fronteiras bem definidas
e guardadas. O instrumento para esse efeito de fidelização e rejeição do Outro
foi o patriotismo que permite diabolizar o Outro, que mais não é do que um
alter ego de nós próprios. Daí a tara identitária de edificar uma nação para
cada povo, à revelia de miscigenações seculares, preocupação florescente do
século XIX, ainda vivida nos tempos e em guerras correntes.
Na mesma época de Darwin, surgem Bakunin e Marx para
colocarem em questão a arquitetura económica, política e social do impante
capitalismo.
Marx demonstrou os limites inerentes ao capitalismo como
sistema económico, baseado num incremento constante de capital fixo e redução
da parcela de trabalho direto na produção, gerando crises de sobreprodução em
paralelo com limitações marcantes que afetam grande parte da população mundial;
essas crises, frequentes desde o século XIX, têm conduzido a guerras devastadoras
e a desigualdades monstruosas, num plano de destruição ambiental agravada. Por
sue turno, observa-se a fuga para a frente através da financiarização da
economia, que incha e desincha as bolhas financeiras/imobiliárias numa cadência
cada vez mais violenta. Em contrapartida, persiste uma evidente menoridade
política da multidão planetária e, mormente, dos trabalhadores que hoje, mais
que nunca, dominam tecnicamente todo o processo produtivo, sem precisar de
capitalistas para coisa nenhuma[1].
Essa demonstração marxiana (não confundir com as variadas
deturpações chamadas marxistas) evidencia que o auto-confiante capitalismo
afinal tem pés de barro e trás no bornal uma bomba-relógio que o destruirá, sem
que se possa livrar dela. Apenas poderá ir retardando a sua explosão, com
habilidades e subterfúgios diversos. Marx destruiu essa auto-confiança de um
capitalismo narcisista, tornando o sistema marcado por uma crise existencial, a
terceira das fraturas narcísicas aqui apontadas.
4 – Fraturas no optimismo capitalista – Bakunin
Bakunin viu melhor a questão do Estado do que Marx; este,
tomando como exemplo o desfecho da Comuna de Paris entendeu a importância do
Estado como instrumento útil para a consolidação do poder dos trabalhadores,
contrariamente a Bakunin que sempre tomou o Estado como excrescência do
capitalismo.
A supremacia da tolerância face ao Estado foi prosseguida e
desenvolvida por Lenin, que se veio a colocar como o criador de facto do
capitalismo de estado, com aplicação extensiva na URSS, alcunhado de
socialismo, fazendo escola em experiências posteriores. Pretendia-se, com o
socialismo, definir uma etapa (eternamente) transitória para se atingir o
comunismo, no qual o Estado, a propriedade e as classes sociais se dissipariam.
Stalin e Trotsky foram os heróis da aplicação prática deste modelo chamado
“socialismo científico”, cilindrando como contra-revolucionário qualquer
recalcitrante, tratando de deturpar a obra do próprio Marx, inventando uma
panaceia, - marxismo-leninismo - para justificar a construção do capitalismo de
estado.
Ainda com Lenin surgiu uma outra inovação – o partido –
constituido por auto-ungidos representantes do povo e da “classe operária”
dotados de uma irrefutável omnisciência prosseguida no terreno com a inclusão de
um medonho aparelho da repressão física, militar ou policial e, gerando um
aparelho ideológico responsável pela censura e definição da “linha justa”, no
conhecimento, na arte, no comportamento individual. Na realidade o partido
demonstrou ser uma casta rodeada de privilégios e inchada pela corrupção mas,
apontando sempre como objetivo, a construção do dito socialismo.
A conivência tática do capitalismo de “iniciativa privada”
com o de estado, do (neo)liberalismo ocidental com o tal marxismo-leninismo promoveu,
durante décadas, a perseguição e a ocultação do pensamento libertário e da sua
profunda crítica do Estado como ente genuinamente opressor, como capitalista
coletivo, ocupado por minorias de privilegiados, corruptos e repressores. Isso
aconteceu na URSS, como na Alemanha nazi, no franquismo como no salazarismo,
como também nas democracias de mercado, ocidentais. O pensamento anarquista foi
submetido a um feroz silenciamento até 1968, quando saiu do gueto para as ruas,
em França e Itália.
Hoje, qualquer movimento social incorpora muito mais ideias
anarquistas do que as recolhidas do cardápio marxista-leninista; embora haja
defensores de receitas deste último dentro dos movimentos sociais a sua
presença é, demasiadas vezes, no sentido do controlo e desvirtuamento da
autonomia e dos objetivos da multidão. Em síntese, mantêm-se fiéis na defesa de
uma sociedade capitalista.
Passado mais de um século, os movimentos sociais, ao
colocarem em causa o Estado como supremo orquestrador do capitalismo; a
organização hierárquica e autoritária bem representada nas empresas e nos
partidos; a demência capitalista promotora do consumismo e do desastre
ambiental; a guerra e a violência como modos de domesticação das “massas”,
tornam Bakunin e o anarquismo como os portadores de poderosos instrumentos de
libertação da multidão humana face ao capitalismo, num mundo globalizado e sob
formas diversificadas e intensivas de solidariedade na produção como na cultura[2].
Depois do hiato vivido entre as duas guerras, com a ascensão
dos fascismos e do modelo soviético; depois do fracasso dos teoremas
keynesianos de salvação do capitalismo através do seu modelo de intervenção
extensiva do Estado; depois dos últimos 40 anos do cruel experimentalismo
neoliberal que não recua (tal como os nazis) perante o genocídio, está em
aberto uma nova prática política, uma nova sociabilidade humana, um novo modelo
de organização da satisfação das necessidades coletivas, baseado no pensamento
e na ética libertária.
As transformações em curso na consciência da multidão
colocam-nos numa época de mudança face ao papel do Estado, da organização
política e social, dos modos de decisão sobre as necessidades coletivas e da
sua gestão. Essa nova consciência evidencia a vivência de uma outra fratura
narcísiva. Em Portugal é, porventura, menos visível dado o atraso das
estruturas económicas, políticas e culturais. Se nos lembrarmos que a chegada a
Portugal da teoria da evolução das espécies foi considerada no século XIX como
um disparate pelo magnífico reitor da universidade de Coimbra… há razões para
algum otimismo; embora haja quem aceite uma dívida ilegítima e impagável de
facto (com ou sem reestruturação) justa causa para a penitência através do
empobrecimento, como via para a felicidade coletiva. Salazar sobrevive, os
portugueses querem-se pobres mas honrados.
5 – A fratura do Homem como construção social
Depois das fraturas narcísicas provocadas pelo génio de
Copérnico e de Darwin o humanidade, despida dos seus adornos bíblicos e
inventou novos idílios, entre eles o capitalismo e o Estado que, apesar dos
caminhos abertos por Marx e Bakunin, muitos continuam a não ver como soluções
para a sociabilidade humana e para a construção do bem-estar dos indivíduos.
A psicanálise começou por uma interpretação de que a
consciência mais não seria que a emanação de factores inconscientes, numa
concepção algo a-social da realidade individual. Assim, a cada um de nós
caberia a gestão dessa determinação, dessa subjetividade, relativamente imune a
forças exteriores, numa solidão narcísica que nos condenaria ao confronto com a
nossa imagem no espelho; a não ser que enveredássemos por uma penosa cura
psicanalítica, nunca garantida a priori.
A verificação de que a nossa individualidade é um produto
social, que se constrói durante toda a vida como resultado de relações sociais
corrói essa ideia de magnífico isolamento, de atitudes defensivas face ao
exterior, ao Outro, tomado como intruso, como potencial ameaça à nossa relação
conosco próprios e dificilmente encarado como contribuinte para a solução dos
nossas próprias dificuldades na observação e compreensão da realidade que nos
rodeia.
Esta observação traz outras consequências. Por um lado
incorpora a nossa atitude para com os outros na realidade da múltipla interação
social que se observa no trabalho, na escola, na família. Por outro, a abertura
daí resultante entra em antagonismo com as pulsões do capitalismo para o
individualismo, para a competição, para a supremacia sobre o Outro.
Pelo contrário, se estamos inseridos numa matriz de relações
sociais que nos enformam através da vida, isso significa que a realidade que
vivemos é uma realidade individual partilhada que nos insere num espaço comum e
de solidariedades. A auto-satisfação de um narcisismo doentio, decididamente
tende a ter pouco espaço; e o que tiver não é virtuoso.
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Documentos e textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
Os comentários do nosso amigo Victor são sempre extremamente acutilantes, interessantes e direitos ao fulcro das questões. Mas permito-me discordar de alguns aspectos. A evolução do capitalismo selvagem entrou numa fase em que enormes saltos qualitativos estão a ser dados. Um dos pontos essenciais é o progressivo esbatimento das fronteiras e a degradação do poder e da soberania dos estados-nação face ao crescente à vontade com que os fluxos principais da produção (dinheiro, tecnologia, produtos, etc.) circulam globalmente. É esta nova forma global de economia que alguns autores designam de IMPÉRIO. Já não existe um centro territorial de poder. É antes um aparelho de descentralização que abrange o mundo inteiro e não já áreas específicas como os velhos imperialismos. O projecto imperial é o de unir o poder económico ao político para materializar a NOVA ORDEM MUNDIAL. Um dos principais instrumentos da materialização dessa ORDEM, reside nos tratados internacionais TPP e o TTIP, o primeiro abrangendo os países da bacia do Pacífico e o segundo os países da bacia do Atlântico. O fundamental objectivo desses tratados é o de consolidar definitivamente o poder das 500 maiores corporações do mundo, de modo a esmagar o poder dos povos e dos estados, bem como das suas protecções aos cidadãos, ao ambiente, à alimentação saudável, aos monopólios, etc. A implementação desses tratados cuja negociação é mantida secreta, vai conduzir a que essas corporações adquiram um poder absoluto que nenhum estado ou grupo de estados poderá contestar, chegando ao ponto de elas poderem processar os governos que se atreverem a limitar a sua ânsia desmedida pelo lucro a qualquer preço, através de tribunais especiais com jurisdição acima do tribunal de Haia ou do Tribunal Penal Internacional. Isto para dizer que os estados-nação que sempre foram instrumento dessas corporações na acumulação capitalista, estão a mudar de estatuto e podem ser o último reduto da luta dos povos contra a dominação e opressão do novo poder tentacular que visa controlar todo o globo.
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