sábado, 3 de junho de 2017

Social-democracia. Afunda-se ou renova-se? (1ª parte)



A social-democracia tradicional surgiu como fórmula de gestão dos capitalismos nacionais, com o envolvimento dos trabalhadores nessa gestão. Hoje, não passa de uma técnica de gestão política e económica que pouco difere do liberalismo e do conservadorismo.

1 – Uma evolução de tombos para a direita

Os partidos sociais-democratas, originariamente, na primeira vintena do século XX toleravam o capitalismo enquanto se procederia a uma sua transição gradual e pacífica para o socialismo, através de reformas legislativas, no âmbito da chamada democracia representativa, alicerçada em partidos e eleições regulares. 

Prosseguindo a histórica segmentação dos povos entre senhores e servidores, admitiam a necessidade de um escol de benfeitores – uma classe política com a preponderância de sociais-democratas (naturalmente!) – para conduzir as massas ao socialismo. Mais à esquerda,
os que se vieram a chamar comunistas (impropriamente, tendo em conta a sua prática pouco igualitária) defendiam a revolução conduzida por um outro escol de benfeitores – o partido – com direitos de vida ou de morte sobre os discordantes; e beneficiaram também de um vasto campo de aplicação na Rússia, depois de 1917.

Para os sociais-democratas, nesse processo gradual de chegada ao socialismo, a distribuição do rendimento deveria refletir os aumentos da produtividade, permitindo regulares acréscimos dos salários reais, com o Estado como grande instrumento de redução das injustiças sociais. Nesse contexto, estabeleceu-se uma relação próxima entre o partido social-democrata e os sindicatos, a qual está bastante presente na Grã-Bretanha e no Norte da Europa. No Sul da Europa predomina uma segmentação da representação sindical mais ou menos de acordo com alinhamentos políticos distintos; assim, há oito centrais em França e quatro, em Espanha como em Itália. Em Portugal pode dizer-se que há uma e mais qualquer coisa.


No final da II Guerra, os partidos sociais-democratas, assumiram a defesa de um modelo político e social que afastasse a tentação de aproximação ao modelo soviético que então, à sombra dos feitos do Exército Vermelho contra os nazis, obtinha grandes simpatias e gerava a existência de fortes partidos comunistas, como em França e Itália. Foi o período da maior radicalização dos partidos sociais-democratas, com nacionalizações, sistemas públicos de saúde, de educação, de segurança social e uma fiscalidade progressiva. 

A estabilização da situação económica e política na Europa e o maior conhecimento da realidade concreta nos países do bloco soviético (Sartre, por exemplo, só passados alguns anos do fim da guerra tomou conhecimento dos métodos de Stalin) constituíram elementos de amenização do pendor já reformista da social-democracia europeia.

A primeira situação de aliança à direita dá-se com do PSDI italiano, em 1947, surgindo então a ideia de uma Terceira Via que, só mais tarde, após a queda do Muro de Berlim, foi popularizada por Tony Blair, com base na teorização efetuada por Anthony Giddens e no seguimento do desafio criado pela “eficácia” de Thatcher e Reagan na aplicação da gestão neoliberal do capitalismo. A alternativa - não seguida - teria sido a resistência à imposição da mercantilização de todas as áreas da sociedade e à atomização das vidas, desligadas da esfera coletiva em nome do individualismo consumista e que vêm enformando a marcha neoliberal. Pelo contrário, a Terceira Via foi o elemento programático que erodiu, em grande parte, as diferenças entre os sociais-democratas e a direita liberal ou conservadora, no capítulo da economia; garantida uma quase unanimidade quanto à economia, os pontos diferenciadores apresentados pelos sociais-democratas são questões relacionadas com serviços sociais, direitos humanos e ambientais. Estas áreas não contam muito nos balanços das empresas e dos bancos, preocupações quase únicas dos partidos mais à direita, de recorte neoliberal puro e daí que sejam encarados com alguma indiferença pelos últimos, desde que não onerem as contas públicas. Em questões relacionadas com o género ou a orientação sexual, as dificuldades levantadas pelos partidos mais à direita, quando surgem, revelam influências religiosas, dos paladinos dos “bons costumes” e que serão relevantes se puderem afetar o sentido do voto de uma parte significativa do eleitorado.

Para essa deriva no sentido neoliberal contribuiu também a ausência - por implosão, desaparição ou esbatimento - dos tradicionais partidos comunistas mesmo antes de 1989 e da implosão da URSS dois anos depois. Nos países do Leste, as nomenclaturas reinantes, rapidamente se organizaram em partidos sociais-democratas, liberais ou conservadores para se poderem enquadrar no modelo ocidental, mantendo o pote nas mãos. Depois desse corte geopolítico, sem esquerdas parlamentares críticas do sistema, susceptíveis de minar as suas bases, os partidos sociais-democratas, podem colocar no terreno, sem perdas eleitorais de monta, a sua deriva, complacente com o neoliberalismo. Daí que Sassoon tenha dito que, após o desmantelar da URSS, à esquerda só existe a social-democracia.

A erosão das diferenças entre sociais-democratas, liberais e conservadores, bem como daqueles face a partidos ditos de esquerda, resulta na imobilidade dos sistemas políticos, na escassa diferenciação nas medidas e atitudes governamentais, mais ou menos uniformes qualquer que seja o partido ou coligação no poder, indiferente a quais representam o papel de oposição. E daí que as eleições se tornem mais do que nunca, meros rituais de sagração, montados por agências de comunicação, com os principais candidatos maquilhados à medida, para que as mudanças sejam pouco significativas; com a multidão dos votantes a ser manipulada como massa de bonecos ou de idiotas úteis, dispensados de qualquer consulta durante os quatro anos seguintes. É o que se vem chamando o pensamento único da era neoliberal.

Os partidos sociais-democratas e os liberais ou conservadores que ocupam o centro do leque partidário, pouco diferem na sua atuação concreta quando no poder, tal como acontece com os seus impactos na população. Assim, faz sentido considerar que essas formações, em regra alternantes, sejam vistos como alas de um único partido, tonalidades mais ou menos carregadas de uma mesma cor. Na realidade, são sensibilidades autónomas de um partido único, onde se entrelaçam todas as alternativas admissíveis ou viáveis. Um sufoco.

Em qualquer das situações a agenda neoliberal é cumprida – o TINA, there is no alternative. No capítulo da economia, assiste-se ao afunilamento na defesa dos interesses dos campeões nacionais, das multinacionais e do capital financeiro; no âmbito da política, com a denominada democracia representativa, os únicos representados são os altos interesses económicos e as classes políticas, protagonistas de mordomias várias e na corrupção, agentes fornecedores do zelo adequado a quem pagar para obter um financiamento público ou um decreto-lei.

Na Europa, embora de modo desigual, a segurança social apresenta dificuldades em propiciar rendimentos decentes de substituição em caso de desemprego ou aposentação, por incapacidade em a adaptar às novas estruturas económicas, como observámos há uns dez anos; e, em países desestruturados como Portugal, a segurança social é utilizada para conceder benefícios aos capitalistas, através da clara e histórica benevolência governamental face ao não pagamento das suas contribuições. O saque da Segurança Social portuguesa tem sido executado por Cavaco ou Passos. Em Portugal, o sinistro factor de sustentabilidade da Segurança Social – que onera a maior longevidade com mais anos de trabalho ou menos rendimento na reforma – foi aplicado pelo PS, através de Vieira da Silva e Pedro Marques, atuais ministros do ministro do trabalho, solidariedade e segurança social e do planeamento e das infraestruturas, respetivamente.


No ideário social-democrata, a distribuição do rendimento deveria refletir os aumentos da produtividade, permitindo regulares acréscimos de salários reais, o que não acontece em geral, apenas a espaços.  A segurança no posto de trabalho perdeu-se em nome da competitividade e deu origem à precariedade, ao despedimento frequente, mantendo-se a discriminação das mulheres, principais vítimas de trabalhos em tempo parcial e de menores remunerações, quando não são despedidas em caso de casamento ou gravidez.

A utilização do Estado para a gradual redução das injustiças sociais era outra das metas estratégicas dos sociais-democratas que, entretanto se tem diluído nas reformas estruturais que o capital não se cansa de reivindicar, pela boca dos seus arautos políticos, num paciente processo de atomização e subjugação dos trabalhadores. O que se passa, mais frequentemente é a redução de direitos e perdas de poder de compra, para aumentar a competitividade, como os pacotes Hartz levados a cabo por um dito social-democrata alemão, Gerhard Schroeder que, da chancelaria passou a quadro da Gazprom.

Os sindicatos, abandonaram a lógica da luta de classes, criaram burocracias imensas, são entidades prestadoras de serviços e centram-se nas normas e rotinas de concertação social a nível nacional, depois de perdida, em grande parte, a contratação coletiva, para a regulação dos salários e das condições de trabalho, um dos objetivos primordiais do neoliberalismo, aceite por sociais-democratas, como pelos partidos à sua direita. 

                                                                              Fonte - Stratfor

Em Portugal, a social-democracia criou uma dita central sindical – UGT – com fortes apoios financeiros e organizativos para combater a influência e o domínio do PCP nos sindicatos, em 1975. A UGT só não é apenas uma sigla porque é paga para animar as sessões da concertação social, em regra secundando as posições patronais; começou como uma criação social-democrata, desembocou numa burla política.

O acesso que temos a uma coleção de boletins Nueva Sociedad editados nos anos setenta, pela Fundação Friederich Ebert, mostra o empenho do SPD alemão, no apoio a grupos sociais-democratas na América Latina, sendo muito curioso observar o seu radicalismo, muito mais acentuado do que em qualquer das organizações ditas de esquerda, hoje, na Europa. Aquela Fundação mostrou-se, então, muito ativa no financiamento do PS e foi essencial para a criação da UGT.

De certo modo, a morte do socialismo (leia-se, capitalismo de estado), como ideia galvanizadora e libertadora dos povos[1], acelerou o processo de rendição à gestão neoliberal por parte dos partidos sociais-democratas; e a Terceira Via procedeu a essa transição, com uma pretensa teoria de fusão, de fim da História. Assim, os designados sociais-democratas, sem alternativas reais à sua esquerda, deixaram de se apresentar como lídimos defensores de um estado de bem-estar social, com segurança social, férias pagas, direitos laborais e uma distribuição do rendimento que favorecesse as camadas laboriosas da população. Deixaram ao mercado essas questões e, tal como liberais ou conservadores, subscrevem as “reformas estruturais” e a flexi-segurança, conceito inventado pelo social-democrata dinamarquês Poul Rasmussen, nos anos noventa.

Atualmente as referências a socialismo tornaram-se raras - tal como à própria social-democracia - que vão subsistindo apenas como referências históricas nos nomes dos vários partidos, funcionando estes, realmente, como entidades gestoras do capitalismo, focadas no crescimento, na exportação, no empreendedorismo, nos equilíbrios macro-económicos, num quadro ideológico neoliberal centrado no sistema financeiro e na especulação. Vai-se preferindo a utilização do cinzento termo reformismo que, na realidade, nada significa em termos de política. Na verdade, mesmo nos partidos ditos de esquerda também são raras as referências a socialismo ou capitalismo, preferindo-se um discurso neutro, tecnocrata, focado nos aspetos da política conjuntural e na gestão das audiências.

2 – Onde está e onde não está a social-democracia

A degenerescência atrás expressa pode observar-se institucionalmente, em duas instâncias;

a)     Na Internacional Socialista conflui um conjunto muito heterogéneo de partidos. Uns, que se definem como sociais-democratas por muito difusa e vazia que seja a sua prática, em nada consonantes com a social-democracia histórica. Porém, ao admitir, por razões de ordem política, partidos sem qualquer prática próxima da social-democracia, sob qualquer acepção, como o MPLA angolano, a Frelimo moçambicana, o Partido do Povo do Paquistão ou o Partido Trabalhista israelita, a Internacional Socialista revela-se muito afastada do ideário social-democrata dos princípios do século XX.
b)    No Parlamento Europeu, os socialistas e sociais-democratas agrupam-se, em grande parte, no grupo parlamentar Aliança Progressista de Socialistas e Democratas onde, além de partidos que incluem aquelas designações no seu nome, estão outros que por exclusão, se aproximam dos primeiros. É o caso do Partido Democrata, italiano, em tempos conhecido por “A Coisa”, dada a sua identidade indefinida e que, no contexto italiano, não é, de facto, o mais reacionário do país. Por outro lado, o PSD português não teve acesso, no passado, à Internacional Socialista, apesar dos esforços de Sá Carneiro e tem-se mostrado claramente como uma formação liberal e de direita. Em contrapartida, o holandês Partido Socialista não faz parte desta corrente, incorporando-se na esquerda parlamentar de Estrasburgo.
Se, como diz Sassoon, a única referência de esquerda após o desmantelamento da URSS é a social-democracia, perante a proximidade entre os partidos históricos da social-democracia e os liberais e conservadores, no cumprimento da agenda neoliberal, há duas formas de encarar aquela afirmação. Uma, que a social-democracia morreu; a segunda, que emigrou para outras formações políticas.

Quando se fala de social-democracia, hoje, podem considerar-se duas acepções;

a) A social-democracia histórica tornou-se um conjunto heterogéneo de partidos conservadores, muitos com uma raiz popular e progressista, abandonada há muito; com a preferência dada à gestão política do capitalismo, com a ligação dos governos às multinacionais e ao capital financeiro; com as políticas sociais subordinadas ao catecismo neoliberal, com um tempero adequado à conjuntura; defensores da ordem militarista ditada pelo Pentágono… Se nos cingirmos a esses partidos ditos socialistas ou sociais-democratas, para além da sua designação (na Grã-Bretanha existe um Partido Trabalhista), diríamos que a social-democracia morreu.
b)  Do ponto de vista doutrinal e político, no Parlamento Europeu, o reformismo social-democrata, encontra-se essencialmente no grupo GUE/NGL, se nos abstrairmos das suas designações e olharmos mais à suas práticas e aos seus programas. Aceitam o capitalismo, o sacrossanto crescimento do PIB como desígnio civilizacional e o anti-democrático modelo de representação vigente, sem qualquer perspetiva de ruptura com o mesmo; denunciam o sistema financeiro e defendam a reestruturação da dívida pública sabendo que esta é um dos grandes sustentáculos da construção da próxima crise; defendem o reforço salvador do Estado e não que este é parte essencial dos problemas; e aceitam como escrita nas estrelas a continuidade do trabalho assalariado. Alguns, mostram mesmo um pendor nacionalista tal como os sociais-democratas de há um século, sem se preocuparem que isso seja também o ponto forte dos grupos fascistas na Europa. Este grupo heterogéneo de iluminados condutores das massas é, hoje, o lar de acolhimento das sobras do ideário social-democrata.

Este e outros textos em:



[1]  O folclore chavista, baseado num homem providencial, na tradição do caciquismo sul-americano, sob o slogan de “Socialismo do século XXI”, arrasta-se em pobreza e repressão, sem qualquer projeto credível e agregador.

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