quinta-feira, 18 de maio de 2017

Europa, periferias e desastres periféricos

Europa, periferias e desastres periféricos

Sumário

1 – Elementos de enquadramento de um capitalismo subalterno

2 - Continuada quebra da parcela dos rendimentos do trabalho

3 - Cenários de evolução na geopolítica

     a) Desagregação da UE e/ou da zona euro

     b) Exclusão de um Estado da UE e/ou da zona euro

     c) Uma saída portuguesa voluntária da UE/zona euro

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1 – Elementos de enquadramento de um capitalismo subalterno

Historicamente, Portugal nunca teve um capitalismo empreendedor, moderno e isso confirma-se hoje, sobretudo depois da safra privatizadora final[1], imposta pela troika e do subsequente desabar do já pequeno sector financeiro detido por portugueses. Após essa forçada “internacionalização” do tecido económico, na aplicação das sempre nebulosas e inacabadas “medidas estruturais”,

1 -acentua-se a dependência do empresariato sobrante, face aos apoios públicos e aos fundos comunitários, nos quais o cumprimento de requisitos (vistoriados pela UE) é agora mais exigente do que nas décadas de 80 e 90, quando se observou um insano e improdutivo uso desses fundos, através da utilização do favor político e da corrupção, no seio do costumeiro conluio entre o empresariato luso e a classe política;

2 –fixa-se ainda mais a dedicação a atividades pouco exigentes de qualificação, com trabalhadores atomizados, com baixos salários, vínculos precários e ausência de direitos, beneficiando de um aparelho sindical anémico, dependente da concertação social para ter visibilidade, após a saída de cena das negociações coletivas, como imposto pelo neoliberalismo desde a sua aplicação prática.

Quanto mais fundo é o fosso, mais difícil e exigente é o esforço da saída.

Como a Inglaterra foi vetada de entrar na CEE inicial, surgiu, sob a sua batuta a EFTA, onde Portugal se integrou, naturalmente. Em 1972, na iminência da adesão inglesa à CEE, Portugal celebrou um acordo com esta última, dado o peso das relações comerciais com a Inglaterra e a Dinamarca. A integração portuguesa na CEE alterou fortemente o padrão das relações comerciais que se vieram a polarizar em Espanha e na Alemanha, para além das áreas que vieram a preencher essa integração, como os fundos comunitários, a moeda única, etc; isso, porém, sempre no contexto de desigualdades políticas e económicas estruturais, antigas, geridas pela oligarquia bruxelense, em consonância com os lobbies que a utilizam, bem como dos governos dos principais países que veiculam os interesses dos seus campeões nacionais.

A estreita e economicista visão existente nas altas esferas de Bruxelas, comungada pelas oligarquias nacionais, baseia-se em quatro pontos essenciais:

1 – Existe uma grande preocupação em salvar os “mercados financeiros” como instrumentos de criação acelerada de capital-dinheiro o qual, jamais se dirige para o investimento produtivo, a não ser de forma temporária e destrutiva protagonizada por fundos abutres. Essa acumulação de capital-dinheiro exige o engrossar de cascatas de dívida, que capturam pessoas e estados para o seu pagamento, sabendo-se que uma crise financeira acabará por destruir esse capital mutuado, por não haver capacidade de, alguma vez, ser reembolsado; mesmo admitindo que isso terá algum pingo de legitimidade a qual só somente existe nas dívidas constituídas para incremento do bem-estar dos povos.

A preocupação com a salvaguarda dos interesses do capital financeiro, especulativo e parasita é tal que as dificuldades dos bancos são colmatadas parcialmente com o dinheiro dos impostos, dos estados nacionais (ver caso português[2]), num género de socialização de perdas; isto só é possível porque a democracia está capturada pelos funcionários do sistema financeiro e das multinacionais e daí que os povos não o tenham podido evitar, no actual contexto não-democrático. E isso é ainda mais ínvio porque esse onerar das contas públicas dos estados nacionais não se coaduna com o caráter global do sistema financeiro; este, dedica-se, através das classes políticas, a repartir essas perdas pelos estados que, para este efeito, são individualizados. No caso da UE, há um BCE que em vez de assumir as suas funções de gestor e abastecedor do sistema financeiro (parcialmente) comunitário – admitindo que este exista – endossa as dificuldades dos bancos para os locais onde têm as suas sedes.

2 –Sublinha-se o esforço exportador como salvação para a atividade económica, com todas as forças e medidas colocadas nesse sentido, dando-se como certo que existem sempre países ou economias onde esse esforço é complementado por uma grande propensão importadora e que, no conjunto, assim se equilibra a economia global. Admite-se, por axioma, que o mercado é tanto mais eficiente quanto mais alargado e concorrencial, embora a existência de monopólios, preços manipulados e adulteração da qualidade negue essa crença (veja-se o recente caso da indústria automóvel). As fortes discrepâncias nas condições de trabalho, de equipamento e formação de lucros, nos factores de contexto, bem como a interferência do sistema financeiro, ou das imposições políticas, demonstram que a eficiência do mercado é uma ficção. Na realidade, todos procuram exportar, exportar sem curarem de entender que isso exige que alguém importe, importe… Uma lógica meridianamente sem futuro, doentia, com efeitos desastrosos no ambiente, que induz luta desenfreada por recursos e mercados, desequilíbrios comerciais e financeiros, colmatados por dívida e países ou camadas sociais ricas a par de outros em regressão e pobreza.

3 – Para se exportar, exige-se competitividade e esta, não vem privilegiando aumentos de produtividade resultantes de inovação tecnológica mas, sobretudo, poupanças nos custos do trabalho. Essas poupanças desenrolam-se de várias formas; deslocalizando a produção de componentes para áreas do globo onde os salários são mais baixos, onde os direitos ambientais não são respeitados, onde as jornadas de trabalho são mais longas e os direitos laborais ignorados. Esta aposta em baixos custos do trabalho, por sua vez, resulta da baixa combatividade inerente à alta desorganização dos trabalhadores, incapazes não só de fortes contestações a nível nacional como, sobretudo, de se concertarem internacionalmente, ultrapassando os quadros nacionais, acompanhando a internacionalização do capital com a sua própria internacionalização.

Nesse contexto, exige-se a cada indivíduo que seja competitivo, que se esforce mais e mais, que se encha de empreendedorismo e se torne um empresário em nome individual – assim considerado pelo poder, pela administração fiscal, pela segurança social – o que disfarça uma situação real de trabalho precário e dependente, perante a qual os capitalistas não assumem qualquer obrigação ou responsabilidade.

Como em todos os países essa lógica prepondera, o custo efetivo do trabalho baixa por unidade de tempo e por unidade de valor criada, aumentando, por consequência, o quinhão que é repartido pelo capitalista, pelo sistema financeiro que o financia, pelo Estado predador que exerce a punção fiscal e constrói a arquitetura regulatória e repressiva. Esse rebaixamento do preço do trabalho coexiste com milhões de desempregados, com pessoas com dois ou três empregos, numa verdadeira escravatura; e relaciona-se com a sobrevalorização das fronteiras para que se gerem bolsas de imigrados, sem-papéis que, pelos níveis de salário e de marginalidade contribuem para o rebaixamento global do preço do trabalho. De facto, essa é a função oculta dos nacionalistas, sobrevalorizar a importância das fronteiras para fornecer trabalho barato aos capitalistas.

4 – A esta arquitetura económica que se tornou obrigatória e cuja recusa provoca acusações de irrealismo ou esquerdismo, junta-se também outra evidência, obviamente inscrita nas estrelas como destino final da Humanidade – a chamada democracia representativa; que admite muitas nuances, que aceita todas as configurações práticas, desde que haja eleições e parlamento, não se cuidando de muitos outros aspectos que de facto, negam a democracia e a representação.

Por um lado, multiplicam-se as estruturas globais ou regionais de caráter supra-estatal, de enquadramento das profundas desigualdades entre os estados componentes e que a “velha” ONU ou o FMI bem cedo sedimentaram. Noutras situações, assumem particular importância corpos de funcionários, burocracias, hierarquizadas como são todas as burocracias, consoante o peso político ou económico do estado membro de onde provêm, sem prejuízo da sua própria criatividade, como será o caso da UE e da Comissão Europeia em particular.

Essas estruturas multiplicam-se e fazem parte de um processo aglutinador que vai esvaziando de funções os estados-nação, mormente pequenos e médios cuja soberania, nos tempos atuais, nada tem de semelhante à dos tempos das fronteiras, bem demarcadas e guardadas, com forças armadas, moeda, oligarquias económicas próprias, hino e bandeira. Um processo que acompanha a globalização histórica, que é perturbada, enviezada pelo capitalismo e que tende a diluir os orgulhos patrióticos e excludentes do Outro, num processo lento que não vai evitando os lepenismos de várias latitudes.

Essas estruturas emitem, no caso concreto da UE, bulas para aplicação pelas classes políticas nacionais, que sobrevivem do mesmo modelo, gerindo o pote e encenando uma “democracia” para manter os povos serenos, na esperança de que os amanhãs cantarão. Essa ladainha visa manter a normalidade dos negócios para o que é essencial, povos desabituados de contestar mas viciados em obedecer, que vão acreditando em próximas eleições, dentro de sistemas políticos corruptos, onde vão emergindo verdadeiros idiotas como Hollande ou Passos e entes com vocação de verdugos fascistas como LePen, Farage, Wilders, Orban, Netanyahou, Erdogan, etc; para além dos que acumulam ambas as caraterísticas, como Trump.

Nesse contexto, as democracias ditas representativas tendem a ser mero espetáculo, com regulares romarias eleitorais para a alternância de papéis entre os vários grupos de atores pertencentes a uma mesma oligarquia, estratificada, fechada e conservadora. Esta situação é colocada como fazendo parte da natureza das coisas, como a sucessão entre dia e noite e que se pretende seja aceite sem grandes reservas pela multidão das vítimas da disfuncionalidade do modelo de representação e da ausência de real democracia.

Na realidade, todos os sistemas económicos estabelecem regimes políticos que capeiam e procuram legitimar o funcionamento das relações sociais e de produção que favorecem uns poucos e depreciam ou oprimem a maioria. O esclavagismo garantia mão-de-obra aos senhores da terra, com um rei ou imperador no topo da ação política que funcionava como um legitimador de última instância, a quem competia a continuidade da ordem estabelecida e o cumprimento das leis convenientes para os donos da terra. Com a diluição dos poderes monárquicos ou imperatoriais o escravo passou a servo, de igual modo ligado à terra cuja posse cabia a um dito nobre; exigia-se que tivesse o “empreendedorismo” necessário para a exploração da terra que pertencia ao senhor que, como renda, cobrava uma parte da produção ou tempo de serviço militar, inerente ao seu direito de suserania. Com o capitalismo, o dono dos meios de produção – indivíduo, empresa ou Estado - seja terra, equipamentos ou dinheiro, contrata quem de facto produz os bens ou serviços, pagando à peça ou por tempo de trabalho, uma parte do valor produzido; sem outro vínculo que não o selado pela troca de esforço de trabalho por salário, nomeadamente nos tempos recentes de precariedade extensiva e vulgarizada. O capitalismo, para impor esta norma, equipou-se com um enorme Estado, dotado de formas de coação brutais e diversificadas – tribunais, polícias, tropa, ação legislativa e regulamentadora, punção fiscal, produção ideológica, recolha extensiva de informação para o controlo biopolítico de cada indivíduo, tudo embrulhado sob o rótulo de democracia. Uma democracia em que tudo o que não é proibido, é obrigatório.

2 - Continuada quebra da parcela dos rendimentos do trabalho


Vejamos o que se passou nos últimos anos (2004/16) com a evolução do PIB e do volume das remunerações dos assalariados, para os dois principais países da UE e da zona euro e, de todos os da periferia Sul que, com a Irlanda, estiveram sob o fogo da troika ou das preocupações e imposições das instituições da UE, com a intervenção na política económica protagonizada pela Comissão Europeia, BCE, Eurogrupo, nomeadamente, para além do FMI (nos casos de Chipre, Grécia, Irlanda e Portugal). Nessa evolução, há ganhadores e perdedores, não só no âmbito de cada país mas, também na relação entre trabalhadores e capitalistas.


A evolução observada para as remunerações comparada com a do PIB é muito diversificada, no quadro da UE, revelando as desigualdades existentes e aprofundadas por políticas únicas, saídas do armário neoliberal e que são  aplicadas para realidades distintas; mostram a falta de instrumentos que colmatem ou minimizem as desigualdades existentes, que remontam a tempos muito anteriores à crise financeira que se revelou em 2008.

a)    A Alemanha e a França, passado o sobressalto de 2009, no seguimento da crise financeira de 2008 continuam o crescimento regular do PIB e das remunerações, mais acentuado na primeira. Na Alemanha o PIB cresce mais do que as remunerações até 2012, havendo paralelismo daí em diante; quanto à França esse paralelismo regista-se até 2008 passando depois as remunerações a ter um dinamismo superior ao do PIB;







 




                                                                                            
b)   A Irlanda é o primeiro país dos escolhidos a revelar quebra na evolução do PIB, em 2008, ao contrário dos outros, que revelam o eclodir da crise em 2009. No entanto, a evolução das remunerações manteve-se sempre num plano mais elevado o que deixou de se verificar em 2015, por razões muito anormais; é que o registo no país de algumas multinacionais, para beneficiarem das vantagens fiscais, empolou de modo absurdo o PIB;                                                                         
c) A Grécia e a Irlanda revelam, uma evolução mais favorável ou menos desfavorável para as remunerações, comparativamente ao PIB, excepto nos últimos anos. No caso de Chipre e da Itália essa situação verifica-se em todo o período e apesar da intervenção da troika no caso do primeiro onde, por outro lado, se evidencia o crescimento mais elevado do PIB até 2011, pouco antes da crise que levou à intervenção e ao  bail-out do seu sistema financeiro;

d) Espanha apresenta situações de paralelismo na evolução do PIB e das remunerações excepto no período 2008/11, quando as últimas têm uma dinâmica superior. A partir de 2013, sanado o sistema financeiro, a evolução do PIB processa-se quase em total concordância com a das remunerações a despeito do elevado nível de desemprego; 

e) A evolução das remunerações é, em geral mais favorável ou menos desfavorável que a observada para o PIB, ainda que com períodos de particular paralelismo nos casos da Alemanha, da Espanha e da França;

f)   Alemanha e Portugal mostram um predomínio de situações em que o PIB cresce mais do que as remunerações, com um realce para o segundo, onde a perda de relevância das remunerações face ao PIB é uma constante há mais de uma década, acentuando-se bastante com a intervenção da troika

    A disparidade na evolução do conjunto das remunerações e o PIB mantém-se no período posterior, não se evidenciando impactos da mudança de governo e do envolvimento da “esquerda” no seu apoio;

g)   Sobressai a situação da Grécia, o único caso em que os níveis do PIB e das remunerações se situam, nos últimos anos, claramente aquém do verificado no ano base, 2004.

Neste conjunto diversificado de situações pretendemos situar alguns aspetos sobre a realidade portuguesa.

a) Portugal, sendo o país mais pobre da Europa Ocidental, onde os rendimentos e os perfis educativos são os mais baixos, revela uma continuada perda de representação das remunerações no produto global, tomando como base o ano de 2004. E, entre todos os países considerados, o crescimento do PIB só se mostra inferior ao português no extremo caso grego e na Itália onde os níveis de vida são bastante superiores aos portugueses. No entanto, nesses dois países a evolução das remunerações mostra-se, em regra, acima da registada para o PIB.
b) Em Portugal, os níveis de dívida pública e privada são, em parte, resultantes dos crimes que envolveram o sistema bancário, pejado de malparado e descapitalizado e cujo processo se arrasta no tempo, contrastando com o que se passou em Espanha ou na Irlanda, por exemplo, como resultado da conivência da administração do Banco de Portugal (ligada ao PSD) com os banqueiros a quem competiria fiscalizar; uma situação que também se verificou, anos antes, com o BPN, quando a gestão do banco central era encabeçada por Vítor Constâncio, muito tolerante com aquele gang constituído por altas figuras do PSD e que, no seguimento, foi brindado com uma vice-presidência do BCE.
c)  O sistema político, oligárquico e estagnado, bloqueia a evolução social e encarrega-se de destruir qualquer foco de contestação social ou laboral o que reflete e amplia um caso de periferização no plano europeu e ibérico, a que escapam apenas os que podem emigrar, os promotores imobiliários ou hoteleiros (enquanto durar a moda) e os que parasitam o erário público recolhendo prebendas e subsídios.
3 - Cenários de evolução na geopolítica

No capítulo das hipóteses de evolução no enquadramento geopolítico de um país como Portugal, há três cenários básicos que, naturalmente, poderão ser desenvolvidos através de sub-hipóteses, nas quais não entraremos. São cenários pouco simpáticos porque nada há de promissor no actual contexto de capitalismo com os seus típicos gestores políticos; precisa-se sim, de uma União dos Povos Europeus, democrática e solidária, com capitalistas e classes políticas no baú da História.

a)    Desagregação da UE e/ou da zona euro
A UE desagrega-se e cada país europeu trata de si, num contexto de retorno às rivalidades, históricas ou mais recentes, com um regresso das fronteiras, das moedas nacionais, das barreiras alfandegárias, dos conflitos militares, no que seria um verdadeiro caos; que os EUA através da Nato e do dólar se encarregariam de gerir, repartindo com a Rússia as respetivas zonas de influência, como em 1945.
Voltar-se-ia às restrições na circulação de pessoas e de bens, inevitáveis com o aumento das já grandes disparidades no quadro europeu, com maior repressão nas fronteiras e acrescido contrabando? Isso constitui a grande bandeira de nacionalistas de direita ou ditos de esquerda; todos, defensores de um estado forte e de mão pesada sobre estrangeiros e dissidentes.
Essa desagregação, com o regresso aos velhos e autárcicos estados-nação, representaria maior severidade na repressão do trabalho, através dos sindicatos e da inflação, para que os capitalistas nacionais se tornassem competitivos face aos dos países vizinhos.
Neste caso, para Portugal, tendo em conta as relações externas consolidadas – capitais estrangeiros, comércio exterior – isso significaria uma situação de apêndice periférico da Espanha ou de plataforma logística dos EUA para o controlo do Atlântico Norte, com um regime fascizante mesmo que adornado com eleições; um cenário excelente para a emigração e a desertificação. A breve construção da Rota da Seda, da China até Roterdão estabelece um eixo estruturante das relações euro-asiáticas, acentuando o caráter periférico da Península e sobretudo de Portugal, num contexto de desagregação da UE.
b) Exclusão de um Estado da UE e/ou da zona euro[3]
Num cenário de alta probabilidade - o de uma UE em reequacionamento - podemos referir a imagem de um navio com fissuras no casco, onde se exige seja alijada carga para manter uma deriva sem que o navio naufrague. Que países poderão constituir essa carga a mandar pela borda fora?
Ainda que por vontade própria, a saída da Grã-Bretanha da UE vai ser um excelente caso prático para se medirem os efeitos desse tipo de decisão que, mesmo no caso de um país com o poder e a riqueza da Grã-Bretanha, não se preveem muito favoráveis ao mesmo; em termos económicos, financeiros e de política interna. Farage, o grande construtor do Brexit, satisfeito na sua verve xenófoba e de saudosista do império, logo se colocou de fora da gestão dos efeitos, para mais tarde poder vir a apontar o dedo para o que correr mal. O Brexit e a gestão dos dossiers que enformarão o divórcio serão também úteis para a oligarquia bruxelense afinar práticas e condicionalismos que dificultem tentações de saída para outros estados-membros (por exemplo, a Polónia ou a Hungria, com governos fascizantes).
Conforme dito por Juncker no seu recente Livro Branco, admitem-se velocidades várias para os países, no capítulo da integração económica e política, o que mais não é do que a admissão como natural de uma hierarquia entre os países da UE, uns mais centrais, outros mais periféricos; ou a consolidação como naturais, das desigualdades enormes que se verificam entre os 27+1 membros da UE. Trata-se de uma forma mais clara de admitir vários níveis de integração concertada entre países avulsos – a cooperação reforçada, já prevista no Tratado de Lisboa, artº 20º - que apenas obriga os interessados, sem que os outros sejam obrigados a participar ou a cumprir. Uma Europa que sela com conformismo e naturalidade as crescentes desigualdades, o crescente caráter autoritário das oligarquias nacionais ou comunitárias, devotos da religião neoliberal que perseguem os objetivos ditados pelo misterioso “mercado”, pela boca das agências de rating, tais como a redução do deficit público, o endividamento público insustentável e as ditas reformas estruturais que, em regra, se prendem com o “mercado de trabalho”. Todas as decisões essenciais são monitoradas pelo sistema financeiro e pelas multinacionais e daí nada conduz a uma Europa construída por povos solidários.
Os tratados e a legislação comunitária são construídos na base de vagos princípios aprovados com pompa e circunstância mas, o seu detalhe revela que ao seu conteúdo se podem atribuir diferentes leituras, para permitir a discricionariedade que tanto agrada às classes políticas. Neste contexto, será de estranhar que os países mais ricos e mais integrados, do Norte e Centro da Europa decidam que há uns quantos países incapazes de manter uma velocidade desejável, de gerar deficits públicos evanescentes ou dívidas sustentáveis e que prejudicam o conjunto? E se esses membros forem periféricos, pobres e sem grande relevância no conjunto, como a Grécia ou Portugal, como já foi aventado por diversas vezes?
No caso português, um empurrão para a saída da UE ou do euro teria efeitos devastadores que, sucintamente, abordaremos em seguida.
c)  Uma saída portuguesa voluntária da UE/zona euro
Consideramos que os efeitos de um empurrão Portugal para fora da UE por parte de Bruxelas seriam muito semelhantes aos de uma saída voluntária, como protagonizada pela Grã-Bretanha. No entanto, numa saída voluntária é possível escolher o momento adequado, em função de uma conjuntura interna e no enquadramento externo particularmente favoráveis, embora não consigamos antever que fatores poderiam conduzir a que essa opção fosse vantajosa.
Em Portugal a despolitização é enorme, como consequência de o povo ter sido mandado ficar casa, no dia 25 de Abril de 1974 quando o fascismo foi abatido – quando não obedeceu – e no dia 25 de novembro do ano seguinte, quando um golpe militar estabeleceu a “ordem”, restaurando o habitual poder coercivo do Estado. Depois disso, a despolitização vem resultando da própria Constituição – repleta de incumprimentos - que afunila toda a ação política nos partidos, para além de injeções mediáticas de vulgaridade e intriga onde a análise é circunscrita ao que os partidos e alguns colunáveis dizem. Nas escolas, mormente na universidade, é imensa a despolitização que resulta da cultura do empreendedorismo, do economicismo, gerando nos jovens um grau zero de contestação. Ora, se os jovens não contestam, uma sociedade inteira fica socialmente petrificada, reduzida às funções animais, ao apego ao futebol, às quatro horas diárias de vacuidade televisiva ou nas chamadas “redes sociais”.
Entrar na CEE estava subjacente aos intuitos dos militares que derrubaram o fascismo e tornou-se uma premência logo que terminou a turbulência social em 1975. Sabia-se que não seria fácil estar afastado dos países de destino da exportação e onde residiam centenas de milhares de emigrantes, cujas remessas colmatavam parte substantiva do deficit externo. E, apesar de alguma ajuda inicial dos países ricos da Europa, até à entrada formal na UE, em 1986, a má situação social, económica e financeira, originou a duas intervenções do FMI (1977 e 1983) e várias formas pouco profícuas de experimentalismo político.
A crise de 1983 só foi debelada com a chegada de fundos comunitários, de pré-adesão a que se seguiu a entrada estatutária dos fundos estruturais que, por falta de monitorização adequada foram, em grande parte, cair nos bolsos de uma vasta camada de corruptos da classe política transformados em empresários e gestores ou de capitalistas financiadores da classe política.
A partir daí, mantém-se a crónica má situação das contas públicas que, por acordo PSD/PS, deveriam ter sido sanadas com as privatizações, o que não aconteceu, mesmo depois da sua efetivação, em duas levas: nos anos 90 e recentemente por ordem da troika. O aparelho de estado mantém-se até hoje enorme, ineficaz, caro; mas é o grande viabilizador de negócios privados em diversas áreas e obras discutíveis, através de parcerias, adjudicações, aquisições, contratos.
Hoje, a situação é mais grave porque já pouco há para privatizar e a dívida pública tem um peso enorme, jamais poderá ser paga, custando mais de € 800 de juros a cada residente no país, por ano; e se não fosse a inclusão no euro e o quantitative easing do Draghi o serviço de dívida seria muito mais caro.
Se já hoje, a competitividade portuguesa se baseia no baixo salário, quanto seria necessário rebaixar os preços do trabalho, reduzir o nível de vida dos residentes para que a produção continuasse a engorda dos capitalistas e o parasitismo da classe política, como gestora do sobredimensionado aparelho de estado? Rebaixar o preço real do trabalho através da inflação tem o mesmo impacto na vida de cada um do que a desvalorização interna, através de cortes e de punção fiscal, como é aplicável na UE atual, mormente na zona euro, onde a desvalorização da moeda não tem cabimento.
O fim dos fundos comunitários teria efeitos altamente lesivos no nível global de investimento e na dimensão das entradas de capitais. A exclusão afastaria o investimento estrangeiro que hoje, se dirige a Portugal – e não é muito - devido à sua integração na UE. Recorde-se que, nos anos 90, com a desagregação da antiga zona de suserania soviética e mais tarde com a inclusão dos países da Europa de Leste na UE - com vantagens de situação geográfica, nos preços do trabalho e com níveis de qualificação superiores aos portugueses – Portugal perdeu o estatuto de região mais pobre da UE, nunca mais tendo os níveis de prosperidade que se evidenciaram durante os primeiros anos de inclusão na então CEE.
Por outro lado, a desinserção de uma área globalizada colocaria dificuldades aos emigrantes já instalados nos restantes países da UE, como se pode verificar pelos receios e a instabilidade que o Brexit vem colocando nos imigrantes comunitários na Grã-Bretanha ou no estatuto dos britânicos nos países da UE; e que constitui um dos pontos fortes em discussão depois do recurso ao artº 50 do Tratado de Lisboa, por parte de Theresa May. E que dificuldades seriam colocadas a portugueses, como não-comunitários, para emigrarem para a remanescente UE?
Uma moeda própria seria objeto das regulares desvalorizações inerentes a desequilíbrios financeiros ou como estratégia de embaratecer os bens exportados e ganhar competitividade; o que, numa economia muito dependente da importação (matérias-primas, bens de equipamento, energia, sobretudo) levaria a elevados níveis de inflação. Esta, por seu turno, traduzir-se-ia em pressão dos trabalhadores para a reposição do poder de compra, com a óbvia oposição do empresariato, dos governos e a compreensão – quiçá repressiva - dos burocratas sindicais. O contrabando voltaria em grande escala criando uma circulação paralela de moeda forte que discriminaria quem à mesma não tivesse acesso, enquanto a subfacturação ou a sobrefaturação seriam vulgares, com a fuga de capitais para o exterior. O acesso ao crédito externo seria muito mais dificultado e a dívida externa do Estado ou das empresas valorizar-se-ia em função da queda do poder aquisitivo da moeda nacional, aumentando as dificuldades inerentes ao seu reembolso e às taxas de juro exigidas… Num país pobre, o Estado - sem pressões para a sua racionalidade - tenderia a aumentar a sua influência como burocracia, como primordial e seguro pasto para a classe política e suas clientelas; com as sequelas habituais em termos de carga fiscal.
Se Portugal decidisse ficar de fora da UE, que futuro seria o de um país ainda mais pobre e desestruturado, com o perfil educativo mais baixo da Europa, isolado dentro da sua natural e histórica área geográfica de inserção e com várias barreiras nas suas relações dentro dessa área? O futuro, seria ficar inserido, de modo (ainda mais) subalterno numa zona ibérica, como área pobre e periférica; passar de uma obediência a Bruxelas para uma situação de integração numa Espanha centralizada em Madrid, num mesmo quadro de subalternidade, capitalista e oligárquica, seria uma alternativa interessante? Muitos percebem esses perigos excepto os iluminados admiradores da Le Pen que usam linguagens de “esquerda” e que ignoram a inevitabilidade da globalização bem como o o fim do prazo de validade dos estados-nação, como  concebidos no século XVII.
O que importa é o bem-estar das pessoas, a nacionalidade é um adereço que serve para discriminar uns em favor de outros, para dividir as pessoas, com ganhos que sempre se dirigem para os bolsos dos capitalistas, cujos interesses materiais há muito os colocam nas tintas para as pátrias. Há muito que se diz “o capital não tem pátria”; está do lado que mais rende e incute ao povo o sentimento patriótico e o empolgamento face ao hino nacional. Ainda recentemente, na campanha eleitoral francesa, Mélenchon, tal como Marine Le Pen, discursavam às massas tendo como pano de fundo bandeiras nacionais a drapejar.
Acresce que o descontentamento popular na Europa é contido nas instituições da democracia de mercado, ocupadas por mandarins da classe política que, nos pleitos eleitorais, simulam alternativas para que os distraídos ou os idiotas escolham; sabendo todos de que nada há a escolher e que nada de substantivo se irá alterar no final do campeonato eleitoral. A nível laboral, os sindicatos tornaram-se, há décadas, instituições burocráticas que mais parecem constituir repartições do Estado, com os seus quadros a funcionar em simbiose com a classe política e o empresariato.
Perante tantas dificuldades e fora de um enquadramento político global que exige as parcas democracias de mercado, não seria estranho que os regimes políticos nos países excluídos resvalassem para um autoritarismo nacionalista com um cheiro fascista.
Outros documentos em:    




[1] A inicial desenvolveu-se sobretudo no tempo do cavaquismo, por um acordo entre Cavaco e Constâncio, magnos chefes das duas alas que enformam o partido-estado, o PSD e o PS, respetivamente.
[2]  € 14367.7 M com o BPN, o Banif e a CGD a que se deverão acrescentar os danos do BES mau e do BES menos mau (conf Visão 7/2/2017)
[3]  Os tratados que configuram a UE não contemplam a possibilidade de saída da zona euro (o sistema financeiro não aprecia turbulência na área monetária) mas, certamente que a criatividade dos burocratas encontraria uma solução, quanto mais não seja à la carte.  Admitem uma saída da UE, através do recurso ao tão falado artº 50 que se vai aplicar à Grã-Bretanha, sendo previsíveis muitas dificuldades para o país; as naturais, as causadas pelos burocratas de Bruxelas e a de uma eventual independência da Escócia

5 comentários:

  1. Entre os cenários, surpreende-me a ausência do mais imediato, provável e já anunciado: o reforço do federalismo europeu rumo à construção definitiva do super-estado europeu.Macron e Merkel (M_M)apresentaram a sua agenda de reforço do "europeísmo", uniformizar por baixo as leis laborais, reforçar a integração bancária, criar um governo económico-financeiro e reforçar a componente da defesa para criar as forças armadas europeias e agradar a Trump.
    Em face desta oligarquia centralizadora, parece-me que lutar pelo enfraquecimento dos poderes dos estados, só iria fazer a vontade ao grupo M-M e aplanar-lhes o caminho.

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    1. Sim esse cenário não foi considerado. Abordámos cenários de rotura e o que estará em curso é de continuidade; nada de novo. É a criação de um super-estado, de uma alta oligarquia que não prescindirá das atuais oligarquias nacionais, mantendo-se a situação actual de articulação e conivência contra os povos. Os tratados de Maastricht e de Lisboa, por exemplo inseriram-se nesse plano e naturalmente vão ter continuidade; a continuidade do sistema capitalista, capeado pela democracia de mercado e onde as pessoas estão a mais.
      Os estados atuais, na sua maioria ficarão relegados a um género de autarquias de tipo superior, à categoria de NUT-1 no desenho do Eurostat.
      É comum, perante a ausência de uma alternativa de futuro que as pessoas ganhem saudades de um passado e tentem voltar a ele; o romantismo. Porém, a História não volta atrás, sem prejuízo de recuos de curto prazo demasiadas vezes sob a forma de desastre.
      Os cenários considerados não são felizes para os povos; como não sai felicidade do renovar das soberanias nacionais; nem sai nada de bom da articulação entre a oligarquia bruxelense com as oligarquias nacionais.
      E pouco ou nada se evolui sem uma nova construção social, política e económica vinda de baixo; uma construção criativa. Se ocorrer uma nova e mais destrutiva crise financeira, como será? E o que fará frente a esse desastre. Eleições com as mesmas cartas viciadas dos defensores do sistema? Nove anos depois do Lehman que balanço se pode fazer? Os movimentos sociais por degenerescência ou sabotagem esvairam-se ou deram novos ingredientes para a manutenção do sistema, como o Podemos. O Médio Oriente é um pântano e os refugiados vieram dar alento a populações estagnadas como a alemã; serão absorvidos.
      As forças de mudança no capitalismo actual, a globalização, a produção desmaterializada e segmentada, o trabalho colaborativo, os enormes aumentos de produtividade sem os acréscimos de rendimento distribuído aos trabalhadores, não alimenta mercados internos mas capitais para alimentar pirâmides de Ponzi. A tecnologia dispensa o trabalho como o (ainda) concebemos e não vem dando lugar, sequer a reduções no tempo de trabalho mas a jornadas cansativas de trabalho a quem o tem e a inanição na pobreza e na insegurança de quem o não tem
      Voltar a meados do século XIX com a defesa “a cada povo o seu estado” o que contribui para a solução dos problemas de hoje?
      Mais bem-estar? É duvidoso, basta pensarmos a situação portuguesa até 1974 e que atualmente o investimento resulta de fundos comunitários ou do capital estrangeiro. Tal como dantes, vigora o modelo do baixo salário e a emigração, desta vez dos mais qualificados, um novo brain drain em que os portugueses se estreiam.
      Mais democracia? É duvidoso, um modelo de baixo salário nunca é boa solução pois há sempre onde o mesmo é mais baixo. E a sobrevivência do capital nacional exigiria um regime musculado, fascizante

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  2. Qual é solução da Grazia Tanto?

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  3. Qualquer solução deve excluir a continuidade, com capitalismo, classes políticas, patriotismos excludentes. Tudo passa por democracia assembleária, produção colaborativa e virada para a satisfação das necessidades, com solidariedades onde hoje está a obrigatoriedade do lucro.
    DEfinimos essa solução há pouco tempo

    http://grazia-tanta.blogspot.pt/2016/09/uniao-dos-povos-da-europa-ou-o.html

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