sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O referendo na Catalunha e a geopolítica


Cabe a cada povo o traçado do seu futuro mas, num mundo globalizado, uma independência catalã poderá ser o início de grandes transformações na Ibéria, com vantagens para os portugueses.



1 – A questão

É no domingo, dia 27. Convém que se recorde que há mundo para além de Badajoz e sem ser Berlim, Frankfurt ou Bruxelas. E que o mundo se está nas tintas para a romaria eleitoral de quatro de outubro, na paróquia lusa.
Na Catalunha, as sondagens apontam vantagem para os defensores da independência, com os votos da coligação “Juntos pelo Sim” (governo catalão e ERC) mas, dependentes do apoio das CUP (autogestionários e independentistas) para prosseguirem o processo[1].

A Catalunha é uma das mais ricas autonomias do estado espanhol, uma das que tem uma personalidade mais vincada, com uma história de resistência ao centralismo autoritário de Madrid e ao fascismo, com um enraizamento libertário muito consolidado e ainda, fortes e antigas ligações a França e Itália.

2 – Os princípios democráticos

Cabe a cada povo decidir a sua forma de organização política devendo essa decisão ser universalmente aceite, desde que assente numa expressão livre, transparente  e democrática dos membros desse povo; quer se trate de catalães, trasmontanos ou patagónicos. Sempre que um povo decide autonomizar-se e declarar-se independente das instituições e poderes de um estado-nação, essa decisão exige respeito da parte de todos; mormente da parte do estado-nação sob cuja bandeira esse  povo tem vivido.

Recentemente[2], afirmámos esses princípios a propósito do oligárquico estado português que, embora com uma população relativamente homogénea, se define como centralista e pouco pródigo nas autonomias regionais e autárquicas. Transcrevemos:

“Um território pertence a quem nele reside com continuidade e essa comunidade contém o direito de escolher as leis e instituições pelas quais se deve reger. O princípio da subsidiariedade consiste em essa comunidade se associar a outras para a resolução de problemas e satisfação de necessidades coletivas; um território não é propriedade privada de um Estado, nem os seus habitantes devem ser obrigados a regerem-se por uma jurisdição que considerem inconveniente.

Será que os estados-nação foram, alguma vez, realidades eternas, imutáveis? Não, têm uma origem recente e, sempre foram produtos de circunstâncias históricas, bastante contingentes; ainda que haja alguns (poucos) que têm origens culturais muito antigas, enquanto impérios ou senhorios (China, Irão, Egipto).

Os Estados que, em geral, recusam o direito de secessão, com grande prodigalidade e frequência, estabelecem regimes de extraterritorialidade para os capitais ou para a movimentação de mercadorias – os célebres offshores e as zonas francas. No âmbito dos contratos internacionais é frequente considerarem-se como aplicáveis, legislações estranhas a qualquer dos países de residência dos contratantes; o tenebroso TTIP irá, se aplicado, banalizar essa prática. Finalmente, recorde-se que nas bases militares estrangeiras, como nas Lajes ou em Guantanamo, a lei vigente é a do ocupante, o mesmo acontecendo em embaixadas e consulados, o que tem permitido a Julian Assange viver na representação equatoriana em Londres e evitar a detenção. 

A mesma Constituição portuguesa que afasta secessões, pelo contrário, contém toda a abertura para a integração em espaços económicos e políticos que exigem óbvias perdas de soberania, remetendo para as instituições, para a classe política todas as decisões nesse âmbito, não colocando nunca a hipótese referendária. O caráter autoritário do actual regime político insere-se numa longa tradição histórica de esmagamento da democracia, inerente a uma sociedade onde sempre predominaram estruturas económicas atrasadas e onde a renovação foi considerada como inconveniente.

Sempre que os poderes do Estado-nação é objeto de uma reivindicação secessionista por parte de uma fatia da sua população, cabe-lhe aceitar esse desígnio; caso contrário, estamos numa situação de persistência de dominação colonial.
A Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais foi aprovada através da Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14/12/1960. Aí consta, nomeadamente que:

2 - Todos os povos têm o direito à autodeterminação; em virtude deste direito, podem determinar livremente o seu estatuto político e prosseguir livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural;

4. Todas as acções armadas ou medidas repressivas de qualquer tipo dirigidas contra povos dependentes deverão cessar a fim de permitir a estes últimos exercer pacífica e livremente o seu direito à completa independência, e será respeitada a integridade do seu território nacional;

Registamos a seguir as diversas interferências externas que procuram afetar e condicionar a decisão dos catalães, como se observou, em 2014, no caso do referendo escocês, sobre o qual também demos a nossa opinião[3].

Assim, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, aponta[4] que o território de um Estado-membro da União Europeia não pode alterar-se por uma decisão de um parlamento autonómico que contrarie a Constituição desse país. Assim, o zeloso oficiante das vantagens fiscais para as multinacionais, enquanto primeiro-ministro luxemburguês, comunga a ideia oligárquica da recusa da soberania de um povo, só porque contido num estado-membro da UE; assim, o tal presidente entende que os Estados são mais importantes que os povos, tal como considerou recentemente que o sistema financeiro merece o sacrifício e o esmagamento do povo grego. A Catalunha seria assim, um território duplamente conquistado, pelo poder de Madrid numa histórica primeira instância e, mais acima, pela hierarquia burocrática da UE que define os orçamentos e a politica monetária mas, que evidencia a sua pouco humanitária cacofonia no capítulo do afluxo de refugiados.

Chovem ameaças de dificuldades de todos os quadrantes da classe política europeia, como no relativo à independência da Escócia: saída da UE, do euro, do espaço Schengen que, por sinal anda com muito pouca saúde, sem qualquer contributo catalão. Essas ameaças e retaliações, em sentido inverso, não são dirigidas ao fascista Victor Orban (nem antes, nem depois da crise dos refugiados), contrariamente ao que havia sucedido quando da ascensão do xenófobo Georg Haider na Áustria, no princípio do século. A tolerância face a Orban contrasta com a intolerância face à Grécia; na UE não se admite nada que vá além da via estreita e reacionária dos partidos ditos socialistas e sociais-democratas que têm como chefe de fila o famoso Martin Schulz.

Quem não poderia ficar fora do coro condenatório da consulta democrática dos catalães seria o psicopata Passos que, ao lado de um compulsivo leitor de jornais desportivos chamado Rajoy, revelou ser "muito importante manter uma Espanha unida, com a sua integridade territorial”[5]

Não espantará ninguém que os bancos catalães Sabadel e La Caixa, como a Associação dos Empresários da Catalunha sejam contra o referendo, tal como as centrais sindicais CCOO e UGT[6]. Mais curiosa é a atitude dos magnatas do futebol espanhol ameaçando com a exclusão do Barcelona do campeonato, em caso de independência catalã, uma vez que só equipas de Andorra podem participar nos campeonatos espanhóis, para além dos súbditos de Felipe VI. Nesse caso, talvez os franceses gostassem de ver o Barcelona no seu campeonato.

A forma monárquica da chefia do estado espanhol tem muitos adversários, mormente nas autonomias e, ao permitir a passagem tranquila do ceptro, de Juan Carlos para o filho Felipe, Rajoy alinhou com os tradicionalistas monárquicos, com a poderosa Igreja Católica, fornecendo uma alento adicional às pulsões independentistas ou de reforço das autonomias, embora Felipe não tenha as mãos sujas de seu pai. Madrid e os partidos dominantes em Espanha (PP e PSOE) tiveram uma oportunidade para, eventualmente, reduzirem o impulso independentista dos catalães, quando Juan Carlos abdicou, convocando um referendo sobre a monarquia.

Sabe-se que a monarquia em Espanha é ilegítima pois foi abolida democraticamente, em 1931, na sequência de eleições tomadas como um plebiscito pelo próprio rei de então, que abdicou. A monarquia dos Bourbons foi restaurada em 1969, através da nomeação de Juan Carlos pelo ditador Franco que procurava assim uma continuidade tranquila à sua figura de “generalíssimo”. Iniciada a transição pós-franquista, os partidos da esquerda do sistema de então (PSOE e PCE) aceitaram o retorno à monarquia, como tributo a pagar para a restauração de um regime parlamentar.

Por muito anacrónico que seja o recurso a uma sucessão familiar para o preenchimento de um cargo de representação estatal, convém ter presente que não é a forma monárquica ou republicana que, nos dias de hoje, define a qualidade democrática de um regime político; é preciso ir muito mais além.

3 – A geopolítica ibérica possível

Interessa-nos acompanhar com particular atenção o que se passa no estado espanhol e, sobretudo, avaliar, do ponto de vista geopolítico, as consequências possíveis do referendo catalão e, nomeadamente se se concretizar a declaração unilateral de independência no espaço de 18 meses.

Se a Catalunha se transformar num estado independente da tutela de Madrid, esta ficará significativamente mais pobre no seu conjunto e essa independência retirará argumentos ao governo de Madrid para contrariar idênticos propósitos independentistas e autonomistas em Euskadi e na Galiza, pelo menos. Nesse contexto de dissolução prática do actual estado espanhol, a excepção portuguesa deixará de existir, como nos últimos séculos, no seio da Ibéria, como único território fora da órbita de Madrid… para além de Gibraltar. Assim, tornar-se-á muito mais viável a constituição de uma União dos Povos Ibéricos, com parcelas de dimensão aproximada, com economias muito interpenetradas e culturalmente próximas, que se pretenderá baseada numa grande autonomia dos seus povos, regiões e municípios, com instituições globais geradas a partir das suas instituições de base, alicerçadas numa verdadeira democracia, sem classe política e estruturas económicas solidárias, vocacionadas para a satisfação das necessidades de todos.

Numa continuidade da UE dentro da sua actual forma fragmentária e desigual, a Ibéria teria um peso acrescido, com uns 55 M de habitantes, próximo, portanto do peso demográfico de França, da Grã-Bretanha ou da Itália e mais capaz de gerar, na periferia Sul, um bloco político que desafie a hegemonia alemã e altere os tratados que lhe dão capacidade de se impor, dividindo e corrompendo as classes políticas, para reinar.

Nunca fomos tocados por fervores nacionalistas de encerramento autárcico nas fronteiras portuguesas, para entrega de um povo à pobreza, enriquecedora de um empresariato débil e incapaz, de uma classe política corrupta e de multinacionais meramente interessadas em baixos salários. Nesse contexto, demonstrámos as inconveniências de uma moeda específica, com curso restrito ao território luso[7], como elemento de empobrecimento, de sobrevivência de capitalistas dependentes da rapina do produto de uma punção fiscal opressiva, da fuga e da evasão fiscal e contributiva e, muito hábeis em acumular dinheiro na Suiça, no Luxemburgo e na vasta panóplia de offshores.

Em maio último escrevemos[8]:

“Uma saída voluntária de Portugal do euro poderia ser um instrumento importante, se (e só se) num âmbito ibérico, com a Espanha ou as nações do actual estado espanhol, como mínimo de viabilidade. Essa situação abalaria sem dúvida o processo centrípeto do Centro e, tanto mais, se acompanhado pela Grécia, pela Itália e por Chipre, num projeto que abrangesse o Sul da Europa; que poderia ter maior impacto se coincidisse com uma eventual saída da Inglaterra (com ou sem Escócia) da UE, em 2017[9]. 

Essas conjeturas exigiriam previamente o afastamento dos margraves ibéricos, profundas alterações na organização política, do modelo de representação e a construção de uma economia comum, baseada na satisfação das necessidades dos povos.”

Este e outros textos em:

http://grazia-tanta.blogspot.com/                               




[9] Para quem ache que do desmantelamento da actual UE surgirá, de imediato, uma guerra, numa perspetiva de repetição da História, convém esclarecer que a Alemanha, a principal afetada com esse desmoronamento tem umas forças armadas de 132000 pessoas (que não lhe permitiriam grandes feitos militares) e sobretudo quando se sabe que somente uns 9000 daquele total estão operacionais. E como temos sentido de humor, podemos referir que a forças armadas portuguesas (31000 pessoas), para manter a proporção face à Alemanha, deveriam pertencer de um país com… 20 M de habitantes!

1 comentário:

  1. Nazismo não é o ser 'alto e louro', bla bla bla,... mas sim... a busca de pretextos com o objectivo de negar o Direito à Sobrevivência de outros!
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    É preciso dizer não ao nazismo democrático e sim ao separatismo, isto é: é preciso dizer NÃO àqueles que pretendem determinar/negar democraticamente o Direito à Sobrevivência de outros.
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    Quando se fala no (LEGÍTIMO) Direito à Sobrevivência de Identidades Autóctones [nota: Inclusive as de 'baixo rendimento demográfico'... Inclusive as economicamente pouco rentáveis...] nazis made-in-USA - desde há séculos com a bênção de responsáveis da Igreja Católica - proclamam logo: «a sobrevivência de Identidades Autóctones provoca danos à economia...»
    [nota: os nazis made-in-USA provocaram holocaustos massivos em Identidades Autóctones]
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    Pelo Direito à Sobrevivência:
    -> http://separatismo--50--50.blogspot.com/
    (antes que seja tarde demais)
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    P.S.
    -> Existem 'globalization-lovers' (que fiquem na sua... desde que respeitem os Direitos dos outros... e vice-versa), e existem 'globalization-lovers' nazis (estes buscam pretextos para negar o Direito à Sobrevivência das Identidades Autóctones).
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    P.S.2.
    ->Todos diferentes, todos iguais... isto é: todas as Identidades Autóctones devem possuir o Direito de ter o SEU espaço no planeta!

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