quarta-feira, 17 de junho de 2015

Crescimento, vantagens competitivas e desigualdades[1]


O crescimento como objetivo é destruidor, doentio e deve ser substituído pela satisfação das necessidades; as vantagens, na realidade são para alguns, à custa da pobreza consolidada dos outros; e uma realidade dolorosa de desigualdades exige que “os de baixo” se dediquem a anular a existência “dos de cima”.

No caso português, trata-se de mais um caso de estado falhado que não conseguindo gerar verdadeiros capitalistas, definha como território desestruturado, pasto de elites predadoras de um povo que tarda em sair da passividade.
Sumário
1 – A fixação no crescimento
a)    A produção de pizzas como caso prático
b)    Lógica de Monsieur de la Palisse
2 - Vantagens versus desvantagens competitivas
3 - A constante recriação das desigualdades
a)    A expressão recente das desigualdades no caso português




1 – A fixação[2] no crescimento

O economicismo impôs-se como a ideologia adequada ao capitalismo. Este precisa de um crescimento incessante do capital, através da expansão dos mercados ou da redução constante dos custos com os fornecedores de força de trabalho. Conta ainda com a especulação, com a criação de capital-dinheiro, desligada da produção de bens, serviços ou de coisa alguma de útil para a Humanidade.

Dessa volúpia resulta a exuberância das considerações sobre a economia, a ansiedade colocada sobre os últimos resultados da conjuntura, das cotações da bolsa, da enorme seriedade com que se divulgam índices de confiança dos consumidores. O frenesi do crescimento insaciável da economia comanda a vida; esse pesadelo comanda a vida, não é o sonho.

Nessa linha, o semovente Passos afirma preferir a prosperidade à felicidade. A prosperidade para os porcos é a abundância de bolota; esta abundância é também a concepção suína de felicidade. Pode mesmo dizer-se que Passos e a sua governação pretendem interpretar o Triunfo dos Porcos.

O economicismo traduz essa necessidade essencial do capital, apontando para uma constante criação de acréscimos no PIB, para um “crescimento económico sustentado”, permanente. Para obter consenso social para a prossecução desta volúpia, cria-se uma sucessão de ações que materializam um círculo vicioso:

· induzem-se, ou melhor, “vendem-se” junto da multidão, pulsões consumistas e o elevado endividamento que alimente a compulsiva satisfação daquelas pulsões;
· na sequência, para se ter acesso a esse consumo inveterado – diretamente ou através do crédito - é preciso rendimento, na grande maioria dos casos proveniente de um emprego;
·    entende-se que o acesso a um emprego, exige o mergulho no ditoso “mercado de trabalho”, nas suas incertezas, precariedades e humilhações;
·   e que esse mergulho significa a passagem à categoria de colaborador[3] e a submissão a um empresário (atualmente rebatizado de empregador) que magnanimamente se dignará pagar uns €500 mensais, que serão diminuídos por dentadas de IRS e contribuições para a Segurança Social, enquanto a magnanimidade durar.

Há, neste percurso, uma verdadeira aldrabice que envolve o candidato a consumidor; em regra, o rendimento líquido obtido não vai permitir a satisfação do tão sonhado grande consumo e apenas produtos alimentares baratos, casa modesta com encargos elevados de prestação bancária, IMI, eletricidade, taxa de saneamento… e, diariamente, muito IVA.

Se o resultado imediato do binómio emprego-consumo é pouco satisfatório para o colaborador já o mesmo não sucede com o empregador, mais que preparado para substituir o colaborador insatisfeito por outro elemento, mais passivo e mais barato.

Para além de gerir os seus “colaboradores”, o assoberbado capitalista tem ainda de estar atento às inovações, aos sinais do mercado quanto a preferências de consumo, pagar os encargos bancários, isentar-se do pagamento de impostos e Segurança Social e vender, vender, aqui, ali, aos vizinhos, do outro lado do mar e um dia, talvez também na Lua, mantendo ainda uma constante drenagem de recursos financeiros para o património familiar e/ou para paraísos fiscais. Nesta narrativa, ressalta que são os empresários que accionam o crescimento; está subjacente que sem aqueles e sem o tal crescimento, o que seria da Humanidade?

No cerne da lógica capitalista estão as necessidades de cada capitalista em combater a concorrência e portanto, crescer, engordar.

·  Para tal, cada capitalista disputa com os congéneres as atenções dos compradores dos seus bens e serviços, as fontes de abastecimento de matérias-primas e energia, os favores da classe política na concessão de serviços, adjudicações, encomendas, benefícios fiscais. Essa disputa gera conflitos entre as multinacionais, no seio do sistema financeiro e dos negócios de tráficos vários, que arrastam os estados-nação para guerras e inerentes barbaridades, para além de infetarem os povos com taras nacionalistas, partidárias, clubísticas e milenaristas.
·  Como peça dessa lógica é essencial a pressão para a contenção de salários e da massa salarial, para a predação demente dos recursos do planeta, para a deterioração da qualidade do ambiente, do habitat das várias espécies animais e vegetais, para a eliminação de custos com pensionistas ou desempregados, com a doença ou a invalidez dos trabalhadores, numa prática que assume todos os contornos de um genocídio[4]

O problema surge e torna-se crónico quando os baixos rendimentos atribuídos aos tais colaboradores não são suficientes para que aqueles os convertam em compras de bens e serviços, ao conjunto dos capitalistas. Fica assim prejudicada a recuperação do capital utilizado na produção e a dos fundos para pagamento dos empréstimos bancários e, sendo esse processo epidémico, em breve está lançada a crise e comprometido o sacrossanto crescimento. Para piorar as coisas, os assalariados são compelidos a cavalgar um consumismo inveterado, a viciarem-se num doentio hedonismo, para antecipar o usufruto de bens e serviços, comprometendo junto dos bancos os seus bens e os (cada vez mais incertos) rendimentos futuros.

Neste encadeado, o emprego de cada um - fonte única dos (parcos) rendimentos que propiciam o consumo – exigirá, aos mansos colaboradores, complacência, sacrifício e apoio aos capitalistas, como grupo social, atitudes assumidas como as únicas susceptíveis de garantir uma vida… sem futuro. Os pobres que paguem a crise!

Os empresários, porém, mostram-se pouco agradecidos perante tanta tolerância. Retribuem com baixos salários, remetendo fatias enormes da população para o desemprego e, por seu turno, o Estado, enquanto ente redistribuidor de capital a favor dos interesses dos incansáveis “empregadores”, encarrega-se de cortes e da definição dos reles sobejos de direitos que vão configurando a democracia de mercado. Terão ao seu serviço magotes de plumitivos e outros mercenários que replicarão ad nauseam os relatórios sempre ameaçadores das lagardes e dos dijsselblomes, clamando por austeridades e privatizações, com o garantido coro dos margraves locais.

a)    A produção de pizzas como caso prático

Suponhamos simbolicamente que o crescimento do PIB se materializa num acréscimo na produção de pizzas. Assim, se todos comerem habitualmente uma pizza diária, para que o PIB cresça –  e se se cumprir a narrativa do economicismo acima descrita - é preciso que o “mercado” cresça e as pessoas aumentem o seu consumo para duas, três, quatro, cinco pizzas diárias. Para além do alargamento da obesidade na população, também o PIB crescerá, por efeito do rendimento gerado pelos salários, juros e lucros pagos pelos produtores de pizzas e dos seus componentes e ainda… pelo aumento dos rendimentos atribuídos ao pessoal da área de saúde que tratará de doentes com obesidade, hipertensão e colesterol elevado. A extrapolação matemática deste ciclo autoalimentado de produção-consumo-produção designa-se por efeito multiplicador. No caso vertente, permite se diga que, a longo prazo, estaremos todos gordos e ricos; mais ou menos o que pretendem os economicistas governamentais e da “oposição” em tempos de propaganda!

O aumento do PIB nessa Pizzalândia deste exemplo incorporará, tanto quanto possível, para além dos consumidores domésticos de pizzas aqueles que, no estrangeiro, se queiram regalar com as pizzas produzidas no país. Para esse desiderato, o empreendorismo nacional irá aumentar a competitividade, para maximizar a exportação e minimizar a importação de pizzas vindas do exterior; procurará inovar no produto, com novos sabores, cores, cheiros e formatos; e baixar os custos (sobretudo os salariais), investindo nas capacidades de produção, aumentando a produtividade e angariando os habituais apoios estatais, através de benefícios fiscais. Esta lógica é a mesma que se aplica para a produção de cebolas, telemóveis, bonés ou serviços de depilação; o capitalismo obedece às mesmas regras, qualquer que seja o bem ou serviço a transacionar no “mercado”.

Para satisfazerem as necessidades de geração de excedentes, de acumulação de capital, os capitalistas, para além de escoarem quantidades crescentes de pizzas, confrontam-se ainda com um problema que ultrapassa as capacidades de cada produtor de pizzas, individualmente.

A compressão salarial na cena doméstica e no exterior (as práticas de gestão são aqui basicamente as mesmas) reduz o poder de compra dos potenciais compradores de pizzas. Como se diz popularmente, não é possível ter sol na eira e chuva no nabal; isto é não se pode esperar que os consumidores acorram a comprar o que os capitalistas gostariam se estes, procuram conter os rendimentos daqueles enquanto trabalhadores, na sua maioria.

Essas limitações na absorção do volume de pizzas desejado pelos seus produtores e necessário à recuperação do capital investido ou ao pagamento da função financeira, tornam problemática a situação. As necessidades da produção exigem a produção de um volume de pizzas insusceptível de ser consumido, porque não há poder de compra para o efeito e daí que haja empresas que fechem, que haja despedimentos e repercussões negativas em empresas fornecedoras, também dimensionadas para uma produção insusceptível de consumo, face ao poder de compra efetivo. É a chamada crise de sobreprodução.

Naturalmente, não tem de ser assim.

b)    Lógica de Monsieur de la Palisse

As necessidades humanas não são infinitas, como o crescimento que o capitalismo exige para a sua continuidade; como não são infinitos os recursos do planeta necessários à vida humana, nem infinita a capacidade do planeta de se regenerar dos danos causados pela demente lógica do crescimento sem limites, da bestialidade economicista.

A vida dos humanos, depois de milénios sobrecarregados com um penoso labor para garantir a existência, pode beneficiar hoje, do conhecimento acumulado, das tecnologias disponíveis, do bem-estar adequado, das imensas possibilidades de usufruir o lazer, as atividades físicas, a arte e a cultura, as relações afetivas de toda a espécie. Porém, as necessidades capitalistas exigem longas e intensivas jornadas de trabalho para que a concorrência seja vencida, para que o mercado absorva os bens ou serviços produzidos por cada capitalista, apesar de ser possível, mercê das tecnologias existentes, reduzir o tempo de trabalho e repartir a intervenção humana, direta, por várias pessoas, com jornadas de trabalho muito mais reduzidas.

Por isso, surge como algo estranho que, sendo o trabalho, por natureza e etimologicamente associado a esforço, a um sacrifício que impede o usufruto livre da vida, se pugne pelo direito ao… trabalho. Mais inteligente e radical será exigir o direito ao lazer, dar sequência às duras lutas antigas pela redução do horário de trabalho, lutar pela libertação do salariato; coisa repudiada pelas burocracias sindicais, veteranas da concertação social e da alegre convivência com os patrões. Para o efeito, naturalmente, o capitalismo tem de ter apressado o seu fim; ontem, já era tarde.


2 - Vantagens versus desvantagens competitivas

O discurso da competitividade foi transposto para a cena internacional na fase ascensional do capitalismo e incorporado nas disputas das potências europeias, cada qual na defesa dos seus capitalistas, período onde se veio a verificar um enorme volume de guerras de apropriação colonial ou de choque de rivalidades Inter-imperialistas.

David Ricardo, inglês, descendente de judeus portugueses fugidos para Amsterdão, concebeu a teoria das vantagens competitivas[5], para apresentar uma teoria que racionalizasse e evidenciasse as eventuais virtudes provenientes das relações comerciais entre países com diferentes estados de desenvolvimento. Seria uma forma de estruturar o comércio internacional, dominado pelas potências europeias, em favor destas últimas. Os povos coloniais, caçados, maltratados e roubados, não foram consultados por Ricardo, até porque eram pretos ou amarelos, não brancos[6]. A sua teoria constitui, ainda hoje, o fio condutor da OMC e das instâncias nacionais e plurinacionais da globalização neoliberal; como subjaz aos princípios fundadores do Mercado Comum, depois batizado CEE e finalmente UE, balizados no comércio livre de bens e serviços transitados “obviamente” dos locais onde há vantagens competitivas na sua produção, para os outros onde essas vantagens não se verificam. 

Para o efeito e como exemplo, Ricardo utilizou as relações da Inglaterra com uma sua semicolónia chamada Portugal, com a primeira a exportar lanifícios para o segundo e este a vender vinho para Inglaterra. Recorde-se que essa especialização complementar havia sido alicerçada no tratado de Methuen de 1703 que anulou as Leis Pragmáticas (1677), do conde da Ericeira que visavam um protecionismo adequado ao desenvolvimento industrial português, de acordo com a prática, na época, de apoio aos capitalistas nacionais, na cópia da pioneira prática inglesa. De facto, o inglês Ricardo, defensor de uma industrialização acelerada, só terá visto as vantagens inglesas da especialização e não as desvantagens portuguesas face ao tratado de Methuen, assinado cerca de um século antes de Ricardo ter divulgado a sua teoria. Curiosamente, o mesmo defensor da industrialização e do comércio global, tratava de gerar uma grande fortuna através da… especulação, como aliás aconteceu, mais tarde, com Keynes.

Nessa lógica, Portugal prescindiria de ter uma indústria têxtil pois os ingleses seriam mais competitivos nessa área e a Inglaterra não se interessaria pela produção de vinho, aliás com pouca viabilidade no país, preferindo vinhos portugueses em relação a outros de distintas proveniências. Aparentemente muito equitativo, porém…

No caso exemplificado por Ricardo, referente a princípios do século XVIII, essa contratualizada especialização tinha, de um lado, uma Inglaterra em pleno avanço para a industrialização e consolidação de relações económicas capitalistas, que tinha abolido o poder absoluto real. Do outro lado, Portugal, apresentava uma economia rural atrasada e uma monarquia absoluta irmanada a um clero poderoso que, por detrás do seu poder inquisitorial, podia inventar heresias para se aboletar e dividir com a coroa os bens de alguém com fortuna; o rei e as elites políticas davam corpo a um aparelho de estado rapace (como hoje) contentes com um mercantilismo boullionista baseado no ouro conseguido no Brasil que colmatava o crónico deficit com a Inglaterra e que o tratado de Methuen veio a consolidar. Acrescente-se ainda que o comércio do vinho era detido por ingleses, tal como o de lanifícios, para que fique bem definido o lado ganhador.

Na Inglaterra do século XVIII havia capitalistas entre os quais Methuen, empossado como embaixador para o célebre acordo com Portugal a que deu o nome; e do outro lado, aristocratas possuidores de terras, pouco interessados no desenvolvimento industrial que lhes retirasse o poder sobre os seus súbditos. Bem mais tarde, nem o poderoso Pombal conseguiu reverter a situação. No século XX esta preponderância dos terra-tenentes fomentava uma ideologia assente no receio face à indústria, comungado por Salazar, temoroso das grandes massas operárias, preferindo camponeses esfomeados e analfabetos, tementes do poder do campanário e cuja única hipótese de evitar a pobreza era (como hoje) a emigração.

A polarização da abordagem nos estados-nação está, naturalmente, ultrapassada porque hoje, na ausência de barreiras alfandegárias, quem domina o comércio global são multinacionais que segmentam a produção de bens e serviços em vários locais e países, sendo pouco relevante onde é expedido o produto final sendo bem mais relevante o local de faturação e onde do domicílio onde cairá o rendimento dessa venda pode ser um off-shore ou um país benévolo na tributação de lucros. É conhecida a “exportação” de relógios Swatch na Madeira, para efeitos meramente fiscais, uma vez que nem um ponteiro é fabricado na ilha; a vantagem competitiva da Madeira, não é a competência na relojoaria mas a benevolência fiscal criada pela classe política portuguesa.

Na UE, a consolidação de um Centro e duas periferias em que estas são fornecedoras daquele em bens de baixo valor acrescentado e trabalho barato e compradoras de bens de elevado valor, gera desequilíbrios permanentes de ordem comercial e financeira que constroem uma estrutura produtiva absolutamente desigual e na qual as vantagens competitivas no terreno são o produto de uma cadeia de poder; e não o que seria racional, como pretenderia Ricardo. A situação da Grécia, o afundamento de Portugal ou a crise financeira situam a realidade muito para além da teoria simplista de Ricardo.

O deficit nas relações comerciais entre Portugal e os principais países da Europa continua hoje, a ser uma realidade, com a Espanha e a Alemanha a ultrapassarem, de longe a Inglaterra, após a integração na UE. Portugal mantém-se como país atrasado, o mais pobre da Europa Ocidental, com um empresariato culturalmente indigente, em sintonia com uma classe política de biltres corruptos, vivendo da predação do Estado, tal como a nobreza e a casa real do século XVIII. E como não têm minas de ouro para tributar, no seu parasitismo alugam parte da população ao exterior, ansiosos pela entrada das poupanças dos emigrantes e sonhando com a entrada de volumosos capitais estrangeiros com a venda de passaportes dourados.

Hoje, passado o tempo áureo das pátrias soberanas, Portugal que nunca gerou uma burguesia empreendedora capaz de alicerçar no país uma base capitalista sólida, perdeu toda a autonomia, relegando-se, passivo, à situação de um bezirke teutónico, com um margrave tosco e submisso como primeiro-ministro, que se poderá chamar Passos da Costa ou Costa Passos.

Há um tempo não aproveitado que se finou e, como é vulgar na História, os povos mesclam-se fisicamente e nas suas culturas, constituindo novas identidades e vivências coletivas, deixando no lastro da História milhares de entidades políticas, entretanto desaparecidas. Portugal pode não ter futuro como soberania mas, os residentes em Portugal têm o direito e o dever de expressar a sua cultura, de estabelecerem relações com outros povos, no sentido da eliminação comum de capitalistas e de classes políticas, como forma única de decidirem o seu futuro, de garantirem a satisfação das suas necessidades e serem felizes.

3 - A constante recriação das desigualdades

No comércio internacional, desde a expansão europeia do século XVI, a regra é a desigualdade entre as partes e daí que a especialização produtiva subjacente ao postulado de Ricardo esteja viciada, pelas enormes diferenças entre os países ricos e os outros, pobres ou dependentes. Abundam relações tendo, por um lado, um país rico ou uma multinacional sequiosa de recursos, tais como terras para culturas extensivas, trabalhadores dóceis e baratos ou de escoamento para os seus produtos; e, por outro, no país pobre, uma elite corrupta, beneficiária e guardiã da pobreza dos seus próprios concidadãos e das estruturas políticas e económicas anquilosadas que as perpetuam – a pobreza e as elites políticas e económicas.

As velhas Companhias das Índias primeiro e, posteriormente, a desestruturação das sociedades coloniais através do esclavagismo, da instituição do trabalho forçado, da extração mineira e das monoculturas, cavaram um persistente fosso entre países ricos e pobres; a ação, nos dias de hoje, de multinacionais poderosas (e das suas agências, OMC, FMI, Banco Mundial) continuam esse processo de desestruturação nos países outrora colonizados ou atualmente neocolonizados, com o apoio dos Estados respetivos, se necessário, através de intervenção militar, mormente de consórcios de guerra como a NATO, o Conselho de Coordenação do Golfo, e ainda de agências como o ISIS, a al-Qaeda, Israel e outros.

O comércio internacional como expressão de relações capitalistas evidencia as desigualdades que têm na base diferenças de poder, na sua acepção mais geral e crua. As desigualdades existentes entre Portugal e Inglaterra nos séculos XVII e XVIII não se atenuaram posteriormente. É conhecido como a Inglaterra conseguiu de Portugal a possibilidade de frequentar os portos brasileiros em troca da proteção da viagem para o Brasil da rainha portuguesa e da sua corte (… levando consigo o mobiliário real de Mafra…), fugidos das tropas de Junot.

A tese de Ricardo é uma ladainha moralista típica dos primeiros economistas, para justificar como virtuosa a afirmação do capitalismo, como sistema instituinte de regras “naturais”, económicas, ao contrário da servidão, alicerçada em vínculos de ordem política. É uma forma de enquadrar relações e conflitos sociais no quadro mecanicista de uma ordem natural das coisas que pretende consolidar teoricamente uma relação de poder. E essa ideologia da ordem natural das coisas ocupa a cabeça dos pobres quando dizem “sempre foi assim” para explicar a sua coisificação no âmbito das leis do capital.

O caso das relações desiguais no comércio entre a Inglaterra e Portugal encobertas na teoria das vantagens competitivas formulada por Ricardo está longe de ser o mais brutal da História do capitalismo, como se observará adiante.

A ordem subjacente ao postulado de Ricardo era a que, no seu tempo, discriminava as metrópoles europeias face às suas colónias, com a escravatura e o trabalho forçado nas últimas a ser abolido décadas depois da sua eliminação na Europa. Essa era a ordem que, através das Leis de Navegação inglesas, destruiu a indústria têxtil indiana, impedindo a funcionamento das tais vantagens competitivas apontadas com falsa candura pelo ricaço inglês; Leis essas que foram abandonadas quando a Inglaterra conseguiu o domínio dos mares em meados do século XIX. A única vantagem competitiva da Índia após a destruição do têxtil, com a desagregação social inerente, foi a produção de… ópio para os ingleses comercializarem na China.

Para os países pobres, ontem como hoje, a especialização na produção de bens ou serviços competitivos assenta apenas nas monoculturas agrícolas extensivas, na extração de combustíveis ou minerais, na exportação de gente fugida de lugares, por exclusão, tornados não competitivos, onde já não haja lugar à produção de alimentos, tudo orquestrado para benefício das multinacionais e dos países ricos. Os preços de venda de matérias-primas são determinados nas bolsas dos países compradores, nos EUA, na Europa ou, em … Riad.

Os preços dos bens manufaturados, de consumo ou de capital, são fixados por multinacionais ou redes de comercialização, quase todas oriundas dos países ricos. A entrada de um país pobre em concorrência no capítulo dos bens de maior valor acrescentado é uma quimera, pois somente com fortes apoios estatais poderiam juntar capitais, tecnologia, canais de comercialização e outros factores, para contrabalançar todo o peso da histórica desestruturação causada pelo colonialismo, o neocolonialismo, as intervenções do FMI, a dívida e as agressões militares. Para tornar essa hipótese ainda mais difícil, a OMC ou a UE, impedem os apoios estatais (excepto às suas próprias grandes empresas e bancos) e, como se sabe, o tenebroso TTIP avizinha-se para tornar os Estados (ainda mais) submetidos às conveniências das multinacionais.

Toda a panóplia de barreiras alfandegárias, cargas fiscais discriminatórias, guerras comerciais e de apropriação de territórios disponíveis no tempo de Ricardo, criaram a base das desigualdades que hoje continuam patentes no mundo. Porém, essas alavancas, esses instrumentos protecionistas de uns e destruidores de outros, foram um produto histórico inventado pelos atuais países ricos e impostos sem margens para negociação, à época. Hoje, esses mesmos países dominantes e as suas multinacionais continuam a garantir os seus privilégios, o seu domínio e não permitem aos países pobres a negociação de acordos onde possa vigorar qualquer aproximação do modelo teórico das vantagens competitivas.

Não há capitalismo sem desigualdades, mesmo com a aplicação de um imposto, à escala mundial, sobre os ricos, como defende o impagável Piketty; tal como não é implantando dentes nas galinhas que elas darão melhores ovos.

Neste contexto, nos dias de hoje, mesmo um desenvolvimento capitalista nos países pobres e periféricos está bloqueado pelos poderes económicos, financeiros e militares existentes, instalados e projetados pelos países ricos.

Atualmente, continua a evidenciar-se uma profunda divergência entre países pobres e ricos nas capacidades de imposição por vias militares, de disponibilidade de tecnologias ou de capitais, no domínio sobre os preços e das capacidades logísticas ou de aliciamento das elites dos países pobres - como se vem observando relativamente aos governos portugueses - para fazerem valer os seus interesses. Essas relações de desigualdade revelam que na sua base há fatores de ordem histórica, política, social, tecnológica, comercial e económica que colocam o conceito de mercado livre, concorrencial, pouco mais do que como um artefacto ideológico, mecanicista e moralista típico dos princípios do século XIX, quando o capitalismo ainda procurava uma racionalidade teórica que cimentasse a sua hegemonia.

Se olharmos à nossa volta - exceptuando em cafés e restaurantes ou outros pequenos negócios muito pulverizados, baseados no esforço familiar ou de trabalhadores convencidos pela propaganda pelo empreendorismo ou empurrados pelas circunstâncias - há apenas situações de monopólio, de oligopólio (cambão de grandes empresas abastecedoras) ou de oligopsónio (caso dos supermercados que impõem as suas condições, a montante, aos seus fornecedores). Mesmo o dito “mercado de trabalho” resulta da imposição de patrões cavalgando regras humilhantes, promulgadas pelo seu Estado, para embaratecer o preço do trabalho, em nome da competitividade das empresas; as condições teóricas definidas para a existência de mercado – livre capacidade negocial das partes – não existem.

A situação portuguesa nos últimos anos oferece um exemplo claro em como a geopolítica, gera e desenvolve relações de dependência e de desigualdade, mesmo tendo na base de acordos e tratados formalmente igualitários.

Essas relações de dependência e de desigualdade dificilmente são revertidas porque nos países dependentes as elites funcionam como agentes das grandes potências, das suas multinacionais e das instituições plurinacionais; e o modelo do partido-estado bicéfalo, com romarias eleitorais regulares, nada mais permite que a perpetuação da subalternidade.

a)    A expressão recente das desigualdades no caso português

A integração europeia constituía inicialmente uma tentativa de sobrevivência dos capitalistas portugueses após a descolonização, findo o sonho de plataforma logística associada ao encerramento do Suez (reaberto em 1975) e passada a ressaca do PREC, com o regresso à boa e velha ordem do roubo e da obediência, agora em “democracia”.

O acesso sem barreiras aos mercados da Europa rica e a promessa de fundos comunitários calaram os patriotismos e todos pareciam contentes durante o cavaquismo – iniciado, na prática com a adesão à então CEE - até que aquele implodiu sob o efeito da crise de 1993/95. Nesse período, assistia-se ao discurso da solidariedade europeia, da convergência untada com fundos de coesão, não emergindo socialmente a ideia elementar de que os capitalistas se preocupam muito pouco com a salvação das suas almas para se dedicarem à prática de boas ações.

Não era facilmente aceite em terras lusitanas a ideia de que o país mais pobre da CEE pudesse ser visto, do lado norte da Europa, como um cantinho de sudeste asiático, com assalariados baratos e dóceis.

A entrada de fundos comunitários e os programas para a sua distribuição conduziram à descoberta do imobiliário, da obra pública, da transformação de espaços industriais em urbanizações e centros comerciais; e ainda à proliferação de “empresários” e alguns sindicalistas dedicados a ações de formação onde a fraude era corrente. Como se observa no gráfico seguinte, a FBCF, o investimento, estagna a partir do novo século enquanto o crédito bancário proveniente, em grande parte, do exterior, cresce de modo absurdo e descontrolado, arrastando essencialmente, empresas e particulares[7], numa espiral de dívida a que se viriam juntar o Estado e as autarquias.
                                         Fonte primária: Banco de Portugal

A incapacidade dos bancos pagarem as suas dívidas terminado o filão do desmesurado endividamento de empresas e famílias motivou a transição do endividamento externo para o Estado, o único ente português com garantias de solvência a longo prazo, do ponto de vista do sistema financeiro global.

Ficava definido através do mecanismo da dívida a constituição de um povo como pagador eterno[8] de uma renda ao capital financeiro global. Assinaram onde lhes foi ordenado, os do costume – PS, PSD e o acólito CDS, num processo em que a ala esquerda do sistema político foi particularmente conivente.

A intervenção da troika visou o “downsizing” económico e social com os custos do descalabro do modelo económico português imputáveis a trabalhadores, reformados e desempregados, desarmados na sua capacidade de resistência, pela crónica e passiva aceitação da rotina institucional de uma falsa democracia. As empresas estatais foram privatizadas e compradas por interesses externos e os empresários locais de maior gabarito venderam também os seus negócios para se dedicarem à especulação no exterior, para onde transitaram os seus capitais. Hoje, Portugal significa, economicamente, uma dívida pública constituída como impagável, PME’s com um grau de endividamento único na Europa, com as empresas relevantes em mãos estrangeiras e um sistema bancário debilitado e também a cair nas mãos de redes financeiras chinesas, espanholas e angolanas.

De modo muito cru, como unidade económica, como nação ao estilo dos séculos XIX e XX, até ao advento do neoliberalismo, Portugal não existe, falhado o sonho impossível de se atrelar ao comboio da Europa desenvolvida. O que existe, é típico na maior parte do mundo; Portugal é um território desestruturado, com uma população pobre e violentada por enormes desigualdades de rendimentos e direitos, entre a grande maioria e uma escassa minoria que só na televisão surge sem cordões de polícias em seu redor.

Este e outros textos em:





[1]  Este texto constitui a continuação de “O economicismo ou o discurso do empobrecimento compulsivo”     http://grazia-tanta.blogspot.pt/2015/05/o-economicismo-ou-o-discurso-do.html
[2] Uma fixação não é nada saudável. Fixação designa “um apego permanente da líbido a um estágio inicial e mais primitivo de desenvolvimento”; ou “um forte apego a pessoas ou coisas, especialmente mórbido, formado na infância e que leva a um comportamento neurótico ou imaturo”; ou ainda “um conflito não resolvido ou desligamento emocional causado por excessos ou frustração.). Recordemos isto quando observarmos papagaios economicistas e da classe política a falar sobre crescimento.
[5]  Anos atrás aflorámos este tema em “Miséria da economia”  http://www.slideshare.net/durgarrai/misria-da-economia
[6]  Quem inventou a designação de brancos, mormente aos oriundos da Europa era, certamente daltónico

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