Se a atual Constituição
tem sido um brinquedo nas mãos de uns e um tabu para outros, com a imensa
maioria a assistir, é tempo de criar uma democracia e uma Constituição
Democrática.
Sumário
0 - Introdução
1 - Os grandes condicionantes da democracia
2 - Um sistema político que não serve os “de baixo”
2.1 - A base material da organização política de hoje
2.2 - Classe política é parasitismo
0 - Introdução
O poder económico no mundo vem-se concentrando em torno
de um punhado de instituições fechadas e pessoas inacessíveis, não havendo
perspetivas, a curto prazo, de alterações profundas nem fáceis a esse processo
de enriquecimento.
Esse poder, onde se entrelaçam as empresas
transnacionais, o capital financeiro e o capital envolvido nos vários tráficos
criminosos, capturou os aparelhos de estado nacionais manipulando a aplicação
das leis e das receitas fiscais, as origens sociais da carga fiscal, a governação
em geral, para além dos media. Tornando os aparelhos de estado como reais
departamentos seus, o poder económico considera os partidos com vocação
governamental como um funcionalismo ao seu serviço.
Assim sendo, a organização política e as instituições que
se pretenderiam democráticas funcionam como arremedos de democracia, afastando
a esmagadora maioria da população dos processos de decisão sobre a vida
coletiva; e apresentam-se como estruturas autoritárias perante cujas decisões
não há, na realidade, qualquer recurso possível ou exequível.
1 - Os grandes
condicionantes da democracia
A lógica da acumulação de capital choca com as limitações
físicas dos recursos do planeta, com as contradições resultantes da
consideração das pessoas como recurso cuja utilização se pretende com um custo
minimizado e que funcionam também como elementos absorventes dos bens e
serviços produzidos pelas empresas. Daqui resultam, num processo que se autoalimenta,
desigualdades imensas, milhões de pessoas sem as condições básicas de vida, o
desastre ambiental, guerras e deslocações forçadas de pessoas, repressão e
autoritarismo.
Para o fomento do consumo exibe-se junto das pessoas, a
ostentação da riqueza alheia como algo desejável e alcançável, fomenta-se o
desejo por consumos atraentes e geradores de prestígio, anuncia-se a
possibilidade de trabalho, bem pago e interessante que garantirá aqueles
consumos e padrões de vida, se necessário, com o compromisso do futuro através
do crédito.
Durante algumas décadas após a II Guerra tudo isso
parecia garantido, a par da segurança no trabalho, da assistência na doença e de
uma velhice tranquila, numa casa confortável. Tudo isso se baseava em elevadas
taxas de crescimento, investimento público e privado em larga escala, energia
barata e na troca desigual com povos colonizados ou neocolonizados, onde
ocorriam as guerras alimentadas pela rivalidade entre “nós” e o “eixo do mal”.
Porém, gradualmente o que se foi construindo, foi uma
riqueza tornada inalcançável, consumos inviáveis ou conseguidos com o
endividamento perpétuo, trabalho de modo intermitente, mal pago e sem qualquer
afeição; e os sobressaltos incluem a doença sem tratamento, o despejo da casa,
o desemprego permanente, uma aposentação na indigência. O que parecia apenas
caraterística dos países ditos subdesenvolvidos ou cinicamente designados como
“em desenvolvimento”, alastrou como uma peste para o “Ocidente” incluindo aí
países como a Austrália, a Nova Zelândia ou o Japão.
Como o desmoronamento da URSS e do bloco dito socialista
levava consigo o inimigo, o rival dos quase cinquenta anos anteriores, as
questões dos direitos em que se baseava a supremacia moral do “Ocidente” podia
ser secundarizada para benefício dos aumentos de produtividade, sem melhorias
salariais subsequentes; por outro lado, a competitividade criava as
deslocalizações, tornando inúteis grandes massas de trabalhadores, caros face
aos seus congéneres asiáticos e, para mais, pacificados pela atrofiamento dos
sindicatos e da sua combatividade, como pelo apagamento da esquerda[1]
política, mormente da que se revia no modelo “socialista”.
Essa situação no Ocidente, de uma democracia truncada, de
direitos restringidos, em paralelo com uma baixa conflitualidade, tem convivido
bem com a exigência aos povos não ocidentais para adoptarem o mesmo modelo de
democracia, entendida como eleições regulares, partidos e mudanças cosméticas
no poder, com uma menor ocorrência de golpes de estado e assassínios políticos
do que anteriormente. Isso, naturalmente, com as excepções e adaptações às
tradições e despotismos locais, a tolerância para com autoritarismos e
ditaduras mascaradas e a corrupção, desde que não perturbem os interesses das
multinacionais, dos investidores estrangeiros. Por exemplo, Angola é aceite
como democracia, no Mali as tropas francesas acudiram para obviar à subversão
mas, no Egipto, um golpe de estado derrubou um presidente eleito, sem protestos
ocidentais.
A globalização tem destas coisas, tende a homogeneizar
não apenas os consumos (por exemplo, os yemenitas fizeram grandes progressos na adopção dos hábitos
alimentares ocidentais) mas, também a aproximar as formas de domínio dos “de
baixo”, pelos “de cima”.
O afunilamento político em torno das prerrogativas que o
domínio do Estado permite à classe política, na sua generalidade, vem
crescendo, em paralelo com o empobrecimento, a entropia social e até, uma
desesperança face a uma mudança. O rótulo de democracia aplicado a uma grande
variedade de ordenamentos políticos e respetivas práticas, inibe a discussão do
seu conteúdo pois todos entendem como subjacente um entendimento único que, na
realidade, é um entendimento difuso que obscurece todas as derivas e
empobrecimentos na qualidade dos métodos de decisão sobre os assuntos comuns e
das práticas sociais. E não apenas difuso, como em regra, minimalista,
interpretado como a possibilidade de se poder expressar ideias sem daí se
incorrer em detenção ou prisão.
Torna-se, pois importante discutir a democracia,
expressar o seu conteúdo real e compará-lo com a vasta panóplia de direitos que
o tempo vem construindo para dignificar a vida em sociedade, sem exclusões. E,
seguidamente expressar formas de configuração de um sistema político inclusivo
e abrangente que assimile os princípios da liberdade, da igualdade e da
fraternidade[2].
O que se pretende não é apontar para uma utopia
configuradora de uma sociedade futura, uma idealização abstrata desligada da
realidade dos dias de hoje mas, a construção concreta de um sistema de decisão
sobre os assuntos que se prendem com as necessidades coletivas e de um modelo
de representação nos casos em que esta é necessária. Tendo em consideração que
as sociedades são por natureza, dinâmicas e que a criatividade humana, se
livremente explanada, tem enormes capacidades de se evidenciar, toda e qualquer
formulação não pode tomar-se como produto acabado e imutável.
2 - Um sistema político que
não serve “os de baixo”
Um sistema político pode ser caraterizado pela estrutura
política, pelo conjunto articulado das suas instituições e pelo modo como aquela
se reproduz, a partir de um modelo de representação bem definido. Num sistema
económico e social capitalista a democracia acha-se submetida ao poder do
capital, em grau variável, de acordo com o nível de consciência e organização
vigente na sociedade e também do grau maturidade da organização dos
capitalistas. A interação entre o sistema político e o económico no capitalismo
comporta uma reformulação permanente no sentido do reforço da hegemonia do
segundo, para a consumação e a continuidade do domínio dos “de baixo” pelos “de
cima”. Porém, a dinâmica social pode estabelecer entraves a essa hegemonia e
mesmo colocá-la em causa.
Mais concretamente, a organização política denominada
democracia representativa, gerada no Ocidente, nunca foi representativa da
grande massa da população; e, no exercício da democracia, sobretudo enquanto
articulação da isegoria, da parrésia e da tomada de decisão, estas vão cedendo
face a derivas guerreiras, autoritárias, securitárias, ou em nome de consignas
económicas genericamente contidas no fruto ideológico da eficácia competitiva[3].
2.1 - A base material da organização política de hoje
A maior complexidade da produção material capitalista
diversificou substancialmente as funções sociais, muito para além dos vários
escalões de senhores (incluindo os reis), das hierarquias eclesiásticas e da
tropa que enformavam o topo das sociedades europeias no ancien regime.
A riqueza acumulada no Ocidente teve, na base, a
exploração esclavagista, o trabalho forçado, a troca desigual que, em paralelo,
gerou guerra, extermínios, fome, doença, pobreza e despotismo. Essa riqueza foi
também alicerçada na acumulação de conhecimentos técnicos e científicos por
parte da população e, durante alguns séculos, foi quase um exclusivo do
Ocidente, muito hábil em transformar outras áreas e povos como periféricos,
subdesenvolvidos, justificando o colonialismo com uma duvidosa superioridade
civilizacional, religiosa e racial .
As necessidades no âmbito da saúde, da educação, da
justiça, da repressão policial, da circulação de pessoas e bens, da manutenção
e vigilância das fronteiras e das alfândegas, da recolha dos impostos ou das
comunicações constituem aspetos importantes que fomentaram o crescimento da
burocracia estatal; e com esta, foi-se alicerçando, matizando e apurando uma
classe política para a dirigir.
A maior instrução em geral e das camadas dominantes em
particular, a complexidade da vida económica e social envolviam uma vasta rede
de decisões que arrastavam consigo opções, discussões sobre as mesmas e uma
hierarquia social que exigia a compatibilização entre os vários interesses em
presença, bastantes vezes, em conflito.
Os interesses económicos que, na Europa. se manifestavam
numa matriz de conflitos Inter-imperialistas, exigiam a mobilização dos dinheiros
públicos para a guerra e a diplomacia. Ora, a domesticação do rebanho humano
apenas pela espada mostrava-se pouco eficaz para convencer as pessoas a apoiar
um senhor qualquer ou, um conjunto de capitalistas contra outros da mesma
estirpe, em outras latitudes. Para isso foram inventadas as nações – união de
território, povo com um Estado a tutelar – e o patriotismo passou a ser peça
central de divisão do rebanho humano em função das diferentes entidades
emitentes do cartão de identidade. O orgulho pátrio foi construído com mitos,
heróis, bandeiras e hinos, logo na escola primária e, pouco depois, num serviço
militar obrigatório.
Assim, atrás de trapos multicores, milhões de pessoas
mataram outros milhões, sendo a única diferença entre os dois campos de
batalha, as cores dos tais trapos drapejantes. Atrás, bem longe do tiroteio e
das bombas, políticos concebiam formas de prestar bom serviço aos seus
respetivos capitalistas que, sem o incómodo do cheiro da pólvora ou a visão de
corpos esfacelados, se encontravam em lugares aprazíveis para tratar de
negócios – como a Suíça, onde durante a II Guerra, capitalistas alemães,
ingleses e norte-americanos confraternizavam.
O capitalismo em rédea solta desembocou em enormes
desigualdades sociais e económicas e em duas guerras com um grau de destruição
nunca visto. As críticas ao liberalismo provenientes de massas de trabalhadores
radicalizados na procura de uma revolução que abolisse o capital e as pátrias
não conseguiram vencer as várias oposições anti-democráticas.
Foram adoptadas várias respostas às falhas do capitalismo
liberal baseadas na pesada intervenção do Estado e numa brutal repressão dos
povos, necessária para que se processasse a acumulação capitalista. O fascismo
e o estalinismo, protagonizaram derivas genocidas de um capitalismo de estado,
com a palavra socialismo como rótulo, para confundir e pacificar a forte
radicalização dos trabalhadores entre as duas grandes guerras.
Os capitalistas sempre preferiram destruir pessoas para
poupar o capital, inevitavelmente atingido nas guerras, sobretudo com as novas
tecnologias de destruição. Aplicaram esse preceito durante a carnificina de
1914/18, onde generais idiotas utilizaram as táticas guerreiras do tempo de
Napoleão, quando não existiam, por exemplo, armas automáticas. E na II Guerra,
inicialmente, os ingleses bombardeavam os bairros operários próximos das
fábricas alemãs de armamento, deixando as últimas incólumes, esperando um breve
armistício, embora no final, a Europa tivesse ficado arrasada.
A reconstrução europeia foi efetuada em parte por
capitais norte-americanos e também foi com inspiração dos EUA que foram criadas
as Comunidades enquanto acto criador da atual UE, forma de concentração de
esforços para combater a ameaça militar e ideológica da URSS e peça pioneira no
que se veio a chamar integração económica.
O modelo utilizado incluiu a generalização de um enorme
aparelho de estado que veio a incorporar serviços nacionais de saúde, sistemas
de segurança social, legislação laboral concertando patrões e trabalhadores, um
sistema educativo massificado e acessível a todos, etc; e que envolveu toda a
Europa Ocidental, excluindo as ditaduras ibéricas que sobreviveram trinta anos
ao final da II Guerra.
Esse modelo exigia grande mobilização de recursos financeiros,
gerados pelo próprio processo da reconstrução das infraestruturas (vias de
comunicação, habitação…) mas também nos excedentes obtidos em países coloniais,
semicoloniais e neocolonizados, por força de tratados injustos obtidos com a
presença de canhoneiras, como ameaça ou, com o pleno exercício das suas funções
como máquinas de guerra (Palestina, Suez, Indochina, Coreia, Quénia…).
Os chamados recursos humanos, com o final da guerra, eram
abundantes mas, rapidamente se mostraram insuficientes criando-se rotas da
emigração a partir da Itália, da Espanha, dos Balcãs, antes de abrangerem
portugueses e magrebinos, a que se seguiram fluxos provenientes de todos os
continentes e que agora tanto afligem os dirigentes europeus e da NATO,
criativos inventores de Schengen, Frontex, Active Endeavour, barreiras, magotes
de guardas, campos de concentração e repatriamentos. A criativa Europa de hoje,
conjuga a necessidade de imigrantes baratos, com chegadas controladas, com a
presença de milhões de desempregados sem futuro ou, de pensionistas tomados
como inconveniente custo orçamental, a reduzir.
Também a seguir à II Guerra, na Europa Ocidental, as
necessidades de produção ideológica e de propaganda se fizeram sentir. Por um
lado, apontando para o conteúdo efetivo repressivo do bloco soviético, cujo
modelo social e económico durante alguns anos chegou a cativar muitos
intelectuais de gabarito, como Sartre. E por outro, amaciando e cooptando os
partidos de esquerda e os sindicatos para a construção do que se viria a chamar
“modelo social europeu”, integrado num capitalismo desenvolvimentista e
keynesiano.
Para ultrapassar as experiências ditatoriais, os
fascismos e as guerras na Europa, foi construída uma articulação de
instrumentos políticos, sociais, económicos e ideológicos para que uma
acumulação pacífica de capital pudesse acontecer. Porém, essa articulação não
foi extensiva a outras paragens, do mundo colonial ou neocolonial, onde a
aplicação do “modelo social europeu” continua a ser uma miragem e onde a utilização
da guerra, do genocídio, da formação de colunas de refugiados se banalizaram em
conflitos de maior ou menor extensão temporal, territorial ou intensidade.
Mesmo a civilizada Europa não deixa de evidenciar falhas graves nessa
preferência pela concertação, se pensarmos nos morticínios e bombardeamentos na
ex-Jugoslávia, a invenção do Kosovo e, mais recentemente, a partilha da Ucrânia
ou os programas de resgate, impostos de modo ditatorial.
2.2 - Classe política é parasitismo
A globalização excludente que se conhece vem
desenvolvendo a tríade do poder económico mundial – multinacionais, capital
financeiro e capital mafioso - daí resultando uma nova matriz de estruturas de
enquadramento dos movimentos de bens, pessoas e capitais ainda inacabada, em
desenvolvimento, com a menorização do papel dos estados-nação, com a
constituição de uma classe política com vocação global, em coabitação com a
referida tríade.
Há, pois uma classe política que exerce funções no âmbito
global, essencialmente proveniente do Ocidente, que preenche as principais
funções nas instituições que zelam pelos interesses do capital – FMI, OCDE,
OMC, Comissão Europeia, Clube Bilderberg e outras - que aplicam o modelo
neoliberal, com as heterodoxias adequadas às circunstâncias desde que fornecedoras
de eficácia, em paralelo com estratégias como a do TTIP, bem urdidas, no seu
horror. O referido modelo fornece a ideologia e a ideia de sociedade, sem a
rigidez que os fanatismos religiosos colocam nos seus sacralizados textos. O
projeto neoliberal deixa à política económica, à política em geral, os graus de
liberdade convenientes para a maximização da sua eficácia estratégica; e que
tanto podem passar pela privatização como pela nacionalização, pela intervenção
decidida dos governos, sem prejuízo de um discurso em defesa da
desregulamentação, pela aceitação de resultados eleitorais como pelo fomento de
golpes de estado ou da guerra. Essa versatilidade foi por nós analisada em 2009[4]
no início da crise que muitos consideram ser a derradeira do capitalismo, uma
ideia que não partilhamos na medida em que falta a mobilização social
politicamente expressa e que acentue as dificuldades do capitalismo, que o
coloque em causa.
Essa nomenklatura
global articula-se com as várias classes políticas nacionais, negociando ou
impondo regulamentos, investimentos, benefícios fiscais e apoios públicos[5],
pouco interferindo nas relações das multinacionais ou do capital financeiro
global com os capitalistas indígenas. Não são os grandes bancos que dialogam
com os governos dos PIIGS mas os burocratas de Bruxelas ou Frankfurt que, com o
FMI, servem de agentes dos interesses do capital financeiro, harmonizando as
suas conveniências, rivalidades e conflitos. Inversamente, as recentes medidas
de Draghi para financiar os bancos tiveram, naturalmente o aval dos últimos, ou
não seja o italiano uma emanação do Goldman Sachs.
Por seu turno, as classes políticas nacionais, constituem
no seu conjunto, uma segunda esfera de monitores dos interesses do capital,
embora seja evidente que algumas tenham um peso político e económico suficiente
para lidar ombro a ombro com essa nomenklatura
global. São poucos e bem conhecidos os países nessas condições – EUA, Alemanha,
China, Índia, Rússia e, em segunda linha, Grã-Bretanha, Japão, Brasil, numa curta
hierarquia em cuja base predominam os países com uma audiência pouco
significativa ou nula. A Alemanha, tal com Junkers, Draghi ou Lagarde,
formularam juízos de valor antes das eleições gregas, certamente ouvidas em
Atenas; mas ninguém deu relevo a idênticas formulações (se existiram) na
Letónia ou na Finlândia. E, em Portugal, os protestos de vassalagem de Passos à
troika, nem em Badajoz terão sido
notícia.
Para além dessa integração subalterna internacional, as
classes políticas nacionais europeias enquadram-se em constelações de caráter
continental, como o PPE e o S&D entre outras, menores, como os
Conservadores e Reformistas Europeus, onde avultam os tories da Grã-Bretanha. Essas constelações são redes de partidos
locais, territorializados, para procederem, nos respetivos âmbitos geográficos:
- à articulação com a nomenklatura global no que respeita
aos assuntos com incidências nacionais;
- à garantia do bom “ambiente
competitivo” que se traduz por uma vasta panóplia de funções, como as de assegurar
uma conveniente punção fiscal, reduzir gastos públicos e efetuar as
eternas e difusas reformas estruturais;
- a dar bom acolhimento aos
desejos e negócios do capital global, assegurando uma participação
condigna do capital financeiro nacional (quando existe, sendo evidente que
em Portugal, os bancos tendem a ser filiais de outros dirigidos do
exterior) ou das empresas do regime (as que vivem em verdadeira coabitação
com o Estado, como Mota-Engil, EDP, Galp, PT);
- garantir a concertação social,
a regular reprodução da ilusão eleitoral, planificando a ritual
alternância bipolarizada, a emanação de leis inclinadas contra a
população, a inocuidade do sistema judiciário, a operacionalidade do
aparelho repressivo, o entretenimento dos militares;
- e cuidar das mordomias, imunidades
e impunidades da própria classe política (a comissão que cobram nos
negócios do capital) ou da passagem de muitos dos seus membros para as
empresas de regime, o sistema financeiro, os escritórios de advogados
(leia-se, a promoção na carreira) ou ainda para a grandiosa função de
empresários quando amealham na base de favores corruptos.
Convém referir que as classes políticas nacionais não são
homogéneas, podendo dividir-se em três grupos de congregações. A principal é a
que, num dado momento, tem o poder (estatal ou autárquico) de acesso ao pote,
às concessões, aos contratos, às licenças, à possibilidade de criar “postos de
trabalho” para amigos da mesma coloração. Segue-se, por ordem de importância, a
parte que perdeu o anterior concurso eleitoral e que espera, zurzindo os
confrades com o actual acesso ao pote, a sua nova oportunidade. Finalmente, uma
terceira parte, de entertainers
parlamentares ou eternos candidatos a essa função, devidamente agraciados com
óbulos estatais e, em Portugal brevemente acompanhada de uma luzida comitiva –
Tempo de Avançar, um género de Livre indireto, um Nós Cidadãos, tipo pontapé de
baliza, um PDR do Marinho Pinto com jogo a meio-campo, um Juntos Podemos,
género de pontapé para o ar e os restos do QSLT, já objeto de cartão vermelho.
Torna-se claro para um volume crescente de pessoas que a
classe política na sua generalidade é um alfobre de mediocridade e corrupção. A
crise empurra muitos desvalidos e oportunistas para o abrigo do subsídio
estatal, para candidaturas ao mandarinato, oferecendo como contrapartida, a continuidade
e a legitimação da organização política não democrática que vivemos; os mais
estúpidos contudo, acreditam na sua …regeneração. Entretanto, a dívida pública
origina uma sangria de rendimentos e é argumento para a redução de direitos,
colocando claramente a questão do sistema político em que temos vivido. Por seu
turno, o deficit externo é o retrato de um capitalismo de renda ou baseado em
baixos salários, marcado por uma imensa fuga de capitais, mostrando que as
virtudes da exportação em detrimento da satisfação das necessidades dos
residentes em Portugal está longe de trazer bons resultados. E não há na classe
política qualquer vislumbre de solução para a vida dos mais de dez milhões de
pessoas que vivem em Portugal.
3 - Os direitos que preenchem
uma democracia
A interação entre a acumulação de riqueza e a aquisição
de conhecimentos por parte das populações dos países definidos como âncoras
pioneiras do desenvolvimento do Ocidente, gerou um corpus de direitos que se podem materializar em quatro grandes
grupos ou gerações. Esse processo não foi o produto de uma explosão criativa
determinada no tempo e, menos ainda, uma dádiva do capitalismo; pelo contrário,
foi gradativo, sedimentar, com momentos altos e baixos, acompanhado de uma
infinidade de guerras, sacrifícios, revoltas, revoluções ou expressões
pacíficas de vontades populares. E exige uma vigilância popular constante
contra a sua redução ou aviltamento por parte dos poderes, grandes ou pequenos.
Consideram-se quatro grandes grupos de direitos,
constituídos em função da época histórica em que foram reconhecidos – direito
às liberdades públicas e direitos políticos; direitos sociais, económicos e
culturais; direitos de solidariedade; os novos direitos.
1º grupo –
Liberdades públicas e direitos políticos
Tiveram como texto inspirador a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, de 1789, que recolheu as teses adoptadas na constituição
norte-americana e as influências de Diderot, d’Alembert, Voltaire, Montesquieu,
Jefferson e, mais atrás, de John Locke e Spinoza, da Bill of Rights inglesa de
1689; esta, que por sua vez, teve como antepassada a Magna Carta de 1215. Toda
essa linha de pensamento visa defender as pessoas das limitações e abusos que os
Estados tendem a protagonizar e ainda que a gestão das questões coletivas não
seja apropriada por grupos ou seitas.
Estão, entre outros, no campo das liberdades individuais,
a liberdade de expressão (política, de crença…), a presunção de inocência, a inviolabilidade
de domicílio, a proteção à vida privada, a liberdade de circulação, os direitos
dos presos ou detidos, a existência de processo judicial.
No capítulo dos direitos políticos estão a participação
na administração pública, no controlo dos atos públicos, o direito de votar e
de ser votado, o de associação política.
Não é preciso um estudo muito profundo para se observarem
desvios à cabal aplicação destes princípios elementares, em grande parte dos
países. Mesmo no Ocidente, a liberdade de expressão pode acarretar
condicionamentos ou repressão policial ou ainda, marginalização pelos poderes;
a inviolabilidade do domicílio cede facilmente aos difusos ditames da luta
contra o terrorismo e o narcotráfico; a vida privada é devassada por sistemas
de videovigilância, de observação na internet ou de escutas telefónicas a cargo
de variadas entidades policiais; a liberdade de circulação é coartada por
portagens que a tornam um bem mercantil; a administração pública está longe de
ser um lugar democrático, devido ao seu controlo pelos governos e, quem lá
trabalha, não passa de um assalariado que se pretende manso e acéfalo; o
direito de votar tornou-se obrigação em vários países enquanto o de ser votado
exclui, em regra, quem não pertence a partidos políticos, os monopolizadores da
representação.
2º grupo – Direitos sociais, económicos e culturais
No primeiro grupo atrás referido, procurava-se limitar as
ingerências dos estados enquanto neste segundo grupo se colocam como obrigações
dos estados a disponibilidade e a igualdade de acesso ao exercício desses
direitos. Assim, definem-se responsabilidades estatais para a garantia, com
ações afirmativas, dos direitos sociais (saúde, educação, trabalho, habitação,
lazer, segurança social, assistência na pobreza, proteção na maternidade e às
crianças…); dos direitos económicos (valorização do trabalho, livre iniciativa
e função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor,
redução de desigualdades sociais e regionais…); e dos direitos culturais (valorização
e difusão de manifestações culturais e, entre estas, as nacionais, proteção do
património histórico…). Estes direitos dirigem-se à população, na sua
generalidade mas, alguns são dirigidos a camadas sociais concretas
(trabalhadores, capitalistas, proprietários) como ainda pretendem afirmar as
culturas nacionais ou das minorias étnicos, religiosas ou linguísticas.
Esta concepção, apontando o Estado como responsável pelo
estabelecimento de condições de vida condignas, surgia após períodos de guerra
e de grandes convulsões revolucionárias que obrigaram as camadas possidentes a
encarar soluções que obviassem à miséria e às dificuldades do proletariado
(prolífico mas, com altas taxas de mortalidade) ou das “classes laboriosas”
organizadas em sindicatos poderosos, com trabalhadores radicalizados e até com
milícias armadas. E assim, as constituições, através do alargamento da paleta
de direitos e da sua aplicação imputada ao Estado, visavam unir a população,
concertando trabalhadores e capitalistas, sob a mesma bandeira, como aliás se
havia observado durante as guerras, apesar do internacionalismo presente em
vastas camadas da população trabalhadora e da intelectualidade.
Este tipo de direitos, como se disse, foi impulsionado
por guerras e revoluções, como se evidencia pela sua presença nas Constituições
francesa e mexicana (1848 e 1917, respetivamente), na Declaração Russa dos
Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (1918) e no Tratado de Versalhes, de
1919. Porém, a sua sistematização, que veio a servir de modelo na época, foi a
constituição alemã de Weimar (1919) que, aliás fazia uma ponte com algumas
medidas de Bismark, como a criação da escola técnica e dos seguros de acidentes
profissionais, poucas décadas atrás.
A crise do capitalismo liberal tornara apelativa a
intervenção dos Estados como entes reguladores e interventores na gestão
económica e na vida coletiva; porém, a execução era mais problemática pois ia
para além da produção de leis e exigia disponibilidades orçamentais para a
concretização de investimentos, e a contratação de profissionais qualificados.
Também não é difícil descortinar, neste grupo de
direitos, a não execução dos compromissos constitucionais na generalidade dos
países (pelo menos, em toda a sua amplitude), pelos estados nacionais e suas respetivas
classes políticas. A doutrina neoliberal de invasão de todos os espaços das
nossas vidas com a lógica mercantil tem promovido o fim das responsabilidades
estatais pela garantia destes direitos, que deixam de o ser, para se tornarem
opções de compra… para quem dispuser de dinheiro; sem que as populações vejam
reduzidas as suas cargas fiscais, cujo produto se encaminha, em alternativa,
para o fomento da competitividade das empresas.
Compram-se cuidados de saúde como refrigerantes; a educação
tende a ser ministrada em escolas privadas pagas pelas famílias mas, com
rendabilidade assegurada pelo Estado que, em contrapartida, subfinancia a
escola pública destinada aos filhos dos menos endinheirados[6];
trabalho é bem escasso, precário e pouco valorizado; habitação é negócio de
bancos, imobiliárias e autarcas corruptos; o lazer é encaminhado para passeios
em centros comerciais; a segurança social é descapitalizada pelos governos; os
apoios na pobreza regridem para o nível da caridade, como na Idade Média; o
empreendorismo é glorificado, embora com poucos resultados e a livre
concorrência é um mito, pois quase tudo funciona em oligopólio, com benefícios
fiscais; a defesa do consumidor é parca contra os abusos das grandes empresas e
dos bancos, para prevenir contra mixórdias e transgénicos incluídos na comida
ou contra os negócios das farmacêuticas; os fenómenos de periferização e de
bairros pobres estigmatizados estão no terreno; o património histórico é
incluído em empreendimentos turísticos e a paisagem privatizada…
3º grupo – Direitos de solidariedade
Trata-se de um conjunto de direitos de fruição coletiva,
de afirmação de princípios éticos, expressão de solidariedades, com
constitucionalização a partir da década de 60 do século passado.
Engloba os direitos ao desenvolvimento, à paz e contra o
militarismo, o de salvaguarda do património comum da Humanidade, o da
autodeterminação dos povos, o de defesa face a ameaças de purificação étnica ou
genocídio, o de proteção contra manifestações de discriminação racial, o de
proteção em tempos de guerra ou qualquer outro conflito armado, o de defesa e
garantia de um meio ambiente equilibrado, o direito à disponibilidade de
serviços públicos eficientes, o de respeito pela diversidade, o de defesa
contra agressões poluentes, direitos mais efetivos dos portadores de doenças
graves…
Nem sempre é
possível determinar concretamente os lesados, nem têm de ser os lesados a
reivindicar o exercício do direito quando se trata de direitos coletivos ou
difusos; e daí a relevância de grupos e organizações com objetivos precisos de
defesa de direitos desta geração, como expressão de solidariedade. Por outro
lado, nem sempre o poder estatal está sensibilizado ao exercício destes
direitos e até pode ter interesses antagónicos com a sua expressão, havendo a
necessidade de ações mediáticas de desobediência, manifestações, de recurso a
tribunais ou instâncias internacionais, para fazer valer esse direito coletivo.
A falta de individualização do exercício do direito, da
possibilidade da sua repartição e a abrangência de um grande número de pessoas,
não identificado nem organizado, facilita o não respeito dos Estados para com
um direito coletivo, como por exemplo no âmbito da Segurança Social ou do
Serviço Nacional de Saúde, jogando o Estado português com questões de eficácia
na gestão, os compromissos com a troika
e ilegitimidades afins.
4º grupo – Os novos direitos
Incluem-se aqui vários tipos de direitos que se podem sintetizar
em três domínios - o da bioética, o da sexualidade e o da informática.
As dificuldades da sua aplicação resultam das
resistências políticas, ideológicas e religiosas que constituem um núcleo de
recusa à sua existência. Uns, como o direito ao aborto ou à procriação
artificial, vão abrindo caminho mais facilmente. No que respeita aos direitos
no âmbito da sexualidade, como o casamento de pessoas do mesmo sexo ou a
adopção de filhos por esses casais, as questões encontram maiores resistências,
pela influência (em Portugal) do catolicismo e da Igreja, que se entrelaçam com
uma sociedade muito fechada e conservadora. Mais complicado ainda é a
consideração do direito ao suicídio, à eutanásia, como o comércio de órgãos, a
manipulação do código genético ou a clonagem de seres humanos, em alguns dos
quais poderão interferir interesses económicos particulares, de
mercantilizações odiosas ou manipulações perigosas por parte de empresas e Estados.
No capítulo dos direitos relativos à informática e à
comunicação pela internet há que considerar a sua utilização por todos, sem controlo
por empresas ou Estados, sem a sistemática apropriação de dados pessoais por
interesses comerciais ou policiais. A atuação das polícias deverá restringir-se
à pesquisa, autorizada por tribunais, nos casos de crimes, de caráter
económico, de burlas relacionadas com o comércio virtual ou de pedofilia, por
exemplo.
As necessidades dos grupos humanos, os direitos de que
devem usufruir, andam sempre à frente das capacidades de compreensão e
aceitação por parte das classes políticas, presas aos seus preconceitos
ideológicos e religiosos, como aos seus compromissos com os mais poderosos
interesses económicos. No âmbito do direito, as suas figuras de topo,
emplumados togados, normalmente também não descolam do conservadorismo típico
da universidade. Por isso, tem de ser a multidão, em democracia, a compreender
e a aceitar as diferenças, a não exclusão dos direitos dos vários grupos
humanos, nem a marginalização das suas formas de viver e pensar.
Os direitos devem estar disponíveis a todos, de acordo
com as suas necessidades e, desde que o exercício de um direito não prejudique
os direitos de outras pessoas. As ideologias e as religiosidades fazem parte
dos direitos individuais e os seus portadores não as podem impor às sociedades,
nem sequer a minorias; as sociedades precisam de decidir e satisfazer as
necessidades coletivas e não de ideologias obrigatórias, que forcem a
ocultações ou a clandestinidades.
Um projeto constitucional completo é uma tarefa muito
complexa que exige um diálogo aberto entre a multidão, como foi efetuado na
Islândia, recentemente. Iremos em próximos textos cingir-nos, principalmente à
organização política e ao modelo de representação.
Este e outros textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
[1] Os fracassos históricos, mormente fascizantes e as derivas autoritárias ou
apenas folclóricas de algumas etiquetas de esquerda, coloca a questão da
existência da necessidade da sua reconstrução como ente político, democrático e
revolucionário, com enraizamento social
[4] Capitalismo hoje. Caracterização,
crises e eixos estratégicos http://www.slideshare.net/durgarrai/capitalismo-hoje-caracterizao-crises-e-eixos-estratgicos
A resposta capitalista
que estão a preparar para a crise
[5] Como exemplo
http://www.ionline.pt/artigos/dinheiro/vieira-minho-ganha-call-center-da-altice-espera-outro-da-pt
curiosamente(ou não)as ideologias(ou ideologia)que diziam combater a situação(desenvolvida ainda mais a partir da queda soviética)foram as que acabaram por "permitir" na prática(a teoria é quase sempre outra coisa)o avanço do grande capital.(ao ponto de termos uma CRP que na teoria aponta para o socialismo,mas na prática é o que vemos)mais valia termos uma CRP que não fosse "socialista" em teoria mas que na prática impedisse a situação grave de corrupção e injustiça social.
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