A situação miserável da esmagadora maioria dos portugueses coexiste com
um bloqueio político interno e no enquadramento geopolítico. Esse bloqueio, em
paralelo com uma anemia da movimentação social, dá aso à elevação de um fetiche
como solução.
Sumário
1 – A vida em Portugal antes do euro já não
era fácil
2 – A caminhada até ao euro
3 - Centrar na moeda a causa das desgraças é
um fetichismo
3.1 – A trama do
capital financeiro
3.2 –
A dívida pública e o euro
3.3 –
O deficit externo e o euro
3.4 -
Subfacturação e sobrefaturação
3.5 –
A relação trabalho/capital e o euro
3.6 –
O processo de transição para uma moeda nacional
3.7 -
Os impactos sobre a dívida e o acesso ao crédito
1 – A
vida em Portugal antes do euro já não era fácil
A
realidade é muito esquecida por quem não estuda e se refugia na ideologia, em
posições políticas alicerçadas numa fé clubística ou na vacuidade televisiva.
Uma sucinta recordação de tempos históricos recentes revela aspetos demolidores
para certos meios políticos populistas.
Portugal
teve duas intervenções do FMI, uma em 1977 e outra em 1983/85 por problemas
resultantes dos desequilíbrios nas contas externos que, por sua vez se
relacionavam com a debilidade da economia portuguesa, então ainda antes da
desindustrialização.
Essas
crises foram acompanhadas de desvalorizações da moeda e de enormes taxas de
inflação que, como se pode observar (graf. 1), são as maiores dos últimos 40
anos. Da inflação resultaram grandes quebras nos rendimentos do trabalho – de
67 para 57.8% do PIB entre 1976 e 1978 e de 55.4 para 45.6% entre 1982 e 1986,
tendo ainda, neste último período, acontecido uma outra calamidade, a do início
do predomínio de Cavaco na política portuguesa. A situação melhorou com as ajudas
de pré-adesão à UE e ajudou a ultrapassar a recessão de 1983/85, tão grave que
exigiu um governo de unidade no seio do partido-estado, PS/PSD.
graf. 1
A introdução da UEM – União Económica e Monetária, a partir de 1990, com a liberalização dos movimentos de capitais e, mais tarde com a aproximação de taxas de juro e controlo da inflação, conduziu a custos do crédito muito mais baixos do que os observados até meados da década de oitenta. Hoje, dificilmente haverá na Europa taxas de inflação elevadas porque o seu controlo a baixos níveis é o grande objetivo do BCE que, tem a tarefa facilitada pela anemia que vem caraterizando a economia na UE. Em resumo, taxas de juro baixas e inflação reduzida constituem elementos que não prejudicam a vida dos povos; no entanto, como se pode observar, não são causa suficiente de bem-estar social.
A
cobertura das importações pelas exportações tem-se mantido relativamente
estável, em torno dos 70% desde os anos noventa, mostrando-se pouco sensível às
variações conjunturais, à introdução do euro e menos ainda ao labor
propagandístico do Pires das cervejas, do pomposo responsável da área económica
do governo ou do estimável Chancerelle de Machete. E, por seu turno, a taxa de
penetração das importações (variação das importações de bens e serviços em
comparação ao crescimento da procura total) tem vindo lentamente a crescer
situando-se próxima dos 20% nos últimos anos. Essa evolução prende-se com a
maior segmentação da produção que conduz a um alongamento da cadeia de
intervenientes na produção de qualquer bem e, por consequência, ao crescente
entrosamento das economias.
A
fragilidade da economia portuguesa, já antes da integração na UE e
posteriormente da adopção do euro, pode observar-se pela evolução das cotações
das principais moedas usadas nas transações internacionais portuguesas, medidas
em escudos, para o período que antecedeu a caminhada para o euro.
Em
1989 o Relatório Delors previa a criação da UEM em três fases que contemplariam
grande articulação dos bancos centrais, o encaminhamento da decisão no âmbito
da política monetária para o que viria a ser o BCE e ainda a aproximação das
paridades entre as moedas nacionais que conduziriam à instituição de uma moeda
única.
Sabia-se
que esse calendário seria estruturante nas relações entre os países da UE que,
fruto das desigualdades já então patentes, teriam impactos diferentes consoante
os graus de desenvolvimento, das capacidades do tecido económico e de adaptação
a uma nova situação de ausência de fronteiras físicas e monetárias. Sabe-se
pela História que as comunidades mais desenvolvidas atraem as menos evoluídas
para a sua órbita e que as pessoas e os capitais das áreas periféricas tendem a
dirigir-se para as áreas centrais, onde as possibilidades de trabalho e as
condições de vida são melhores e onde os capitais encontram melhores condições
de rendabilidade a longo prazo.
A
instituição de uma moeda única para um território que abarca áreas mais e menos
desenvolvidas, nada tem de novo. Quase todos os países apresentam desigualdades
entre partes distintas do território e ninguém vai apontar para a moeda comum
como causadora dessas discrepâncias na criação de riqueza e do rendimento das
populações. O que parece estranho na questão do euro é que há uma unificação
política e económica de nações ditas soberanas que, com uma moeda única remetem
para uma instituição global, as funções que antes pertenciam aos bancos
centrais nacionais, tornados agora antenas locais de um BCE. É estranho, de
facto, para quem raciocine num contexto já não existente, de pré-globalização,
em que se pretendia a glorificação do estado-nação como entidade soberana,
embora na realidade, há muitas décadas, o capital financeiro e as
multinacionais, interferiram e condicionem o exercício dessa soberania.
O
projeto euro, embora dirigido pelo capital apresentava, lateralmente, do seu
ponto de vista, várias vantagens para as pessoas em geral. É evidente que uma
moeda comum conduz à abolição dos custos inerentes a trocas de moedas de países
da UE adoptantes do euro e atingiria o negócio sobre câmbios. Por outro lado,
sendo previsivelmente, o euro uma moeda de reserva internacional, qualquer
pessoa portadora de euros transportaria consigo uma moeda aceite em toda a
parte.
A
ausência de uma matriz de taxas de conversão entre várias moedas (de países da
UE) evita a consideração das cotações e a sua volatilidade em função dos
desequilíbrios das contas externas facilmente explorados pelos “mercados”.
Também a fixação de preços numa moeda comum facilita as comparações dos preços,
tornadas assim imediatas, sem necessidade de cálculos e consideração das
flutuações das cotações.
Registavam-se
também vários argumentos de resultados duvidosos para a multidão e outros que,
de facto, não se vieram a mostrar efetivos. Para as empresas, uma moeda única
traz também algumas vantagens, sobretudo para as que têm densas relações com o
exterior mas, que são muito menores para o caso de empresas com vendas de
âmbito local ou mesmo apenas nacional. A ausência de barreiras monetárias
favorece pois, empresas maiores, mais capacitadas ou experientes que assim,
poderão entrar mais facilmente em territórios até então com uma barreira
monetária. É um factor que ajuda à concentração de capitais em empresas de
grande dimensão, em detrimento de pequenas empresas.
Não
parece ter sido muito considerada a importância da moeda única para o capital
financeiro, para a especulação que, nesse contexto, deveria ter visto a sua
atividade limitada, tendo em conta os impactos cuja nocividade hoje, todos
veem.
Outro
aspeto teoricamente apontado como positivo veio a demonstrar-se como uma
fábula. Referimo-nos ao controlo do deficit que deveria corresponder a uma
menor pressão da punção fiscal e dotar a população de mais rendimento,
propulsor de mais consumo, dentro da insana fé no crescimento infinito. Como
sabemos, os deficits são comuns, elevados e prolongados no tempo sem que se
observem reduções na carga fiscal; no entanto, servem para justificar cortes,
reduções de gastos sociais, privatizações e outras perdas para trabalhadores e
para a população em geral.
A
centralização no BCE da decisão na área monetária, correspondente à unificação
política, ao retirar os instrumentos de política monetária aos estados
nacionais não criou alternativas que possam obviar aos desequilíbrios a nível
nacional que inevitavelmente atingirão, de modo amplificado, as periferias.
Estas últimas, certamente contentes com a fobia do BCE em controlar a inflação,
são compelidas a sujeitarem-se às limitações de financiamento dos deficits
públicos e ao aumento das taxas de juro nos “mercados”, mesmo que o BCE seja
magnânimo e compre dívida em mercado secundário, sem tocar na rendabilidade do
capital especulativo.
Mais,
os povos das periferias (e não só) devem avaliar com júbilo as intervenções dos
Estados nacionais e do BCE com nacionalizações[2] e
injeções de capital para salvar bancos da falência, como se algum deles ao
falir levasse consigo algo de insubstituível. Os casos em Portugal, do BPN[3], para
evitar o “risco sistémico” e mais recentemente do BES[4], a joia
da coroa do capitalismo nativo, revelam que uma das principais utilidades da
população é pagar as vigarices dos banqueiros. Como é sabido, no empréstimo da troika foram incluídos € 12000 M
expressamente consignados à recapitalização dos bancos, tendo vários recorrido
a esse financiamento (BCP, BPI, Banif e CGD). Não deixa de ser curioso ver a
forma suspeitosa como o capital global olha para os bancos portugueses; o seu
refinanciamento não é direto, pois as respetivas valias não são grandes num
país em atrofia mas, mediado pelo Estado que assume o reembolso e o pagamento
dos juros, acarretando com os riscos e carreando os custos para a população. A
única verdadeira “empresa” capitalista de capital nacional é o Estado que
obriga 10 M de pessoas a comprarem os seus “serviços”.
Ficando
excluída a política monetária de uma utilização nacional (regional no contexto
comunitário) e impedidas fórmulas de solidariedade global de apoio ao
estado-membro em dificuldades mantém-se portanto, segmentada a UE, dependentes
essas frações das apreciações do mercado e dos níveis dos desequilíbrios
estruturais. Na arquitetura actual, há uma união política que não assume
coletivamente dificuldades face ao exterior, circunscritas geograficamente.
Trata-se de um ente não definido; não é uma federação pois não tem um governo
federal nem é um estado unitário pois os vários países mantêm a grande parte da
sua autonomia face ao exterior, como se de estados independentes se tratassem.
Procurou-se,
acima de tudo cimentar uma estrutura hierárquica que dotasse uns países de
maior poder efetivo que outros, em função das influências em Bruxelas, do apoio
que têm do capital financeiro e da força dos capitalistas autóctones; e como
hierarquia, baseia-se em desigualdades, na sua gestão, na drenagem de
rendimentos das periferias para o Centro, com o endividamento daquelas enquanto
coutadas do Centro, que joga na primeira divisão do capital global.
Há
uma preocupação particular com um eventual deficit público, com a neutralidade
financeira das contas públicas que, se possível, devem gerar um excedente.
Subjaz daí uma ideia de equiparação da gestão pública com a de uma empresa
privada, embora não se entenda como é possível gerir com lógica empresarial
serviços socialmente de baixa, nula ou negativa rendabilidade. E isso associado
a receitas obtidas de modo compulsivo, mesmo que seja crescente o volume
cobrado com taxas associadas à prestação desses serviços.
Essa
obsessão com o equilíbrio orçamental corresponde à negação da opção keynesiana
dos orçamentos contracíclicos mas, em contrapartida, vai-se admitindo como
necessários enormes diferenças salariais – no espaço comunitário e no seio de
cada país - dos custos do trabalho, da dimensão e qualidade dos direitos
sociais, na fiscalidade. Portanto, toda a atuação admissível é superficial,
ineficaz em termos orçamentais e tendente a alargar os desequilíbrios entre as
várias regiões da UE (ou da zona euro). O aumento dos desequilíbrios observa-se
também com o empobrecimento de diversos e numerosos segmentos sociais dentro de
cada país, como os jovens, saltando entre a precariedade e o desemprego; os
idosos, empurrados para uma morte desejavelmente a antecipar; da população
ativa em geral submetida a maiores jornadas de trabalho, uma fiscalidade que
tende para a extorsão e a redução dos direitos sociais na saúde ou na educação,
onde a lógica de mercado gradualmente se estabelece, viabilizada com o apoio de
fundos públicos no contexto de nunca acabadas “reformas do Estado”.
Para
se obviar a esses desequilíbrios somente se admite um Fundo de Coesão para
suprir problemas de desemprego, no âmbito de uma convenção extraída do missal
neoliberal de que esses problemas são conjunturais, meras discrepâncias entre a
oferta e a procura num tal “mercado de trabalho”. Pagam-se umas obras públicas,
contratam-se uns quantos trabalhadores e espera-se que a economia do país
responda ao estímulo…
2 – A
caminhada até ao euro
Os
estados podem tolerar bandeiras e hinos, governos e parlamentos nacionais e
regionais, línguas distintas mas, em regra, não aceitam várias moedas de curso
corrente.
Em
dadas circunstâncias porém, podem circular moedas estrangeiras por conveniente
escolha dos povos, quando é evidente a falta de confiança na moeda oficial e
apesar do desagrado do poder estatal; noutras circunstâncias, a presença
habitual de moeda não nacional verifica-se em meios ligados a um muito
difundido contrabando. Em alguns países de capitalismo de estado pode
constituir uma forma de segmentar a população, num contexto de controlo
apertado de divisas favorecendo a utilização de moeda estrangeira em casos
específicos (turismo) ou em lojas com artigos importados de luxo, para
benefício dos seus mandarins, sem que o povo lhes tenha acesso. Há ainda
situações de renúncia a uma moeda nacional como escolha deliberada, como no
caso do Equador, onde a moeda corrente é o dólar americano e para além dos
países da zona euro, como está bem de ver.
Se
nos recordamos, o abandono do escudo e a adopção do euro foi um processo que,
para além da confusão na equiparação dos preços nas duas moedas em pessoas
menos escolarizadas e alguns aproveitamentos de “arredondamento”, teve uma
aceitação generalizada e o escudo saiu rapidamente de circulação. Os impactos
nas taxas de inflação são absolutamente despiciendos – 2.86% e 2.88%, em média
anual, respetivamente para 1997/2001 e 2002/2006 – para os períodos
imediatamente antes e depois do euro entrar em cena.
É
certo que todo o “projeto europeu” foi aceite de modo acrítico, interpretado
por capitalistas e mandarins como forma de acesso a fundos comunitários,
enriquecedor de empresários e políticos corruptos com ação nacional, regional
ou local. E, sem dúvida, a propaganda também contribuiu para que uma transição
rápida e pacífica para o euro acontecesse e os escudos não entregues em troca
por euros ficassem apenas como recordação nas gavetas particulares ou nos
escaparates dos numismatas.
A
adesão à UE e posteriormente o euro, como seu prolongamento lógico, foram
aceites porque os portugueses conheciam as condições de vida nos países da
Europa Ocidental que haviam acolhido mais de um milhão de emigrantes nas
décadas de 60/70, fugidas da miséria e da guerra colonial que caraterizavam
Portugal. A ideia que tinham da Europa não chocava com a propaganda política
que anunciava de modo simplista um futuro de felicidade a uma população ingénua
e mal informada.
A
abolição das fronteiras, a livre circulação de pessoas e bens, são desejadas
por todos os povos, em contraste com a lógica nacionalista de encerramento de
toda uma população, constituída em coutada privada de capitalistas nacionais.
Estava na memória de todos a passagem da fronteira “a salto”, os elevados
pagamentos a intermediários para a colocação de pessoas nas franças, o risco de
intercepção pela Guardia Civil, o contrabando, a humilhante abertura do
porta-bagagens para os guardas verificarem, nas compras feitas em Espanha, o
número de chouriços ou de embalagens de detergente. Esse mundo queria-se para
trás e a integração na UE seria um acesso garantido a uma realidade mais
cosmopolita e vistas menos centradas no campanário da igreja local. Aliás o
parlapatão Mário Soares já em 1976 anunciava a chegada a padrões de vida europeus
para … 1980, mesmo sem adesão à UE.
A
percepção de rendimentos em escudos dificultava as viagens e as compras no
exterior e tinha custos de conversão, para além da tendência para a
desvalorização do escudo face às principais moedas de referência. Depois da
queda do fascismo, o escudo desvalorizou em 1977 (15%), 1978 (6.1% e por
indicação do FMI), mas foi valorizado em 1980 (6%, pois o governo Sá Carneiro
“privilegiou mais o objectivo anti-inflacionista, em detrimento da preocupação,
anteriormente predominante, de reforçar a competitividade externa da economia
portuguesa”[5].
Em 1982, de novo uma desvalorização (9.4%), em 1983 outras duas (2% em março e
12% em junho) até que em 1985, nasceu o mercado de câmbios interbancário à
vista, não havendo lugar à intervenção oficial do Banco de Portugal. Num espaço
de seis anos (1977/83) o escudo desvalorizou em um terço do seu valor em 1977,
numa intenção de embaratecer os produtos exportados e encarecer os bens
importados, numa procura ilusória de um equilíbrio externo. Como Portugal tem
uma diversificada necessidade de importar – equipamentos, energia, veículos,
etc - ficava garantida a repercussão nos preços em escudos, das inevitáveis
compras no exterior.
Após
um acordo de 1980 iniciavam-se as ajudas de pré-adesão à UE, no valor de 125 M
ecus não reembolsáveis e 150 M ecus por empréstimo, substituídas a partir do
ano seguinte pelos fundos estruturais. O seu impacto é evidente, medido pelas
transferências unilaterais públicas (crédito/entradas), em milhões de contos.
Crédito
|
% Crédito
da Bal. Trans. Correntes
|
|
1984
|
5430
|
0.4
|
1985
|
21817
|
1.2
|
1986
|
81029
|
3.8
|
1987
|
108646
|
4.1
|
Banco de Portugal – Séries Longas
para a Economia Portuguesa
O
processo de convergência no seio da CEE produziu o SME – Sistema Monetário
Europeu em 1979 que se veio a materializar num MTC – Mecanismo de Taxas de
Câmbio que fixou em +2.25%/-2.25% a taxa de variação entre as várias moedas dos
países da UE, então com nove membros. Como nem sempre era possível assegurar
aquele objetivo, em 1986 decidiu-se manter a regra mas, compensando as
potenciais diferenças com a manipulação das taxas de juro nos países
envolvidos.
Portugal, mesmo depois da integração na então CEE, em 1986, não entrou
no SME, preferindo manter-se um sistema de desvalorização deslizante do escudo
(chamado crawling peg), com impactos
na inflação - que volta a crescer até 1990 - mas, que permite taxas de juro
menos elevadas (16 a 18% em finais de 1988, contra 20 a até mais de 30% em
1982/85). Em 1990, em preparação para a integração do escudo no MTC, Portugal
coloca a moeda com uma cotação alicerçada num cabaz das moedas dos países
comunitários com mais relações com o país (Alemanha, Espanha, França, Grã-Bretanha
e Itália) pretendendo-se assim tentar segurar as contas externas sem o recurso
à crónica desvalorização; e de facto, no período que se seguiu, assistiu-se a
uma forte queda na taxa de inflação e das taxas de juro ( cerca de 19% no fim
de 1992, de 15% em 1994, de 8.5% no final de 1997 para empréstimos a empresas
por 91/180 dias). Em 1992 (abril), Portugal adere ao MTC sendo fixada uma
equivalência ao ECU (moeda virtual à qual todas as outras se referiam) de
178,735 escudos.
Como imagem dos impactos da desvalorização do escudo, no período 1980/92
observe-se a evolução da cotação em escudos, para algumas das principais
moedas.
Equivalente em
escudos de uma unidade (final do periodo)
|
|||||
dólar
|
libra
|
franco fr
|
marco
|
peseta
|
|
1980
|
53,0
|
126,5
|
11,6
|
27,1
|
0,671
|
1981
|
65,2
|
124,5
|
11,4
|
29,0
|
0,676
|
1982
|
89,1
|
143,6
|
13,2
|
37,5
|
0,713
|
1983
|
131,5
|
190,5
|
15,8
|
48,2
|
0,838
|
1984
|
169,3
|
196,0
|
17,6
|
53,7
|
0,977
|
1985
|
157,5
|
227,3
|
20,9
|
64,3
|
1,030
|
1986
|
146,1
|
215,5
|
22,7
|
75,4
|
1,110
|
1987
|
129,9
|
243,2
|
24,3
|
82,2
|
1,200
|
1988
|
146,4
|
265,1
|
24,2
|
82,6
|
1,290
|
1989
|
149,8
|
240,6
|
25,9
|
88,5
|
1,370
|
1990
|
133,6
|
258,1
|
26,2
|
89,5
|
1,400
|
1991
|
134,2
|
250,9
|
25,9
|
88,3
|
1,390
|
1992
|
146,8
|
222,7
|
26,7
|
90,9
|
1,280
|
2001
|
172,4
|
285,7
|
30,7
|
102,0
|
1,21
|
Fontes: Banco de Portugal
A
conjuntura mostra-se complexa nos anos 90, devido à recessão inglesa que acaba
por afastar a Grã-Bretanha do MTC (juntamente com a Itália) e do processo
conducente ao euro, ao enorme desemprego espanhol que provoca sucessivas
desvalorizações da peseta, à inflação e às altas taxas de juro alemães que
valorizam o marco; todos, são alguns dos factores que conduzem uma instabilidade
monetária pouco desejada.
A
integração do escudo no MTC e até 1998 - quando em maio, são fixadas
definitivamente as cotações das moedas contidas no MTC – não evita novas
alterações nas paridades do escudo, sobretudo, para acompanhamento total ou
parcial das desvalorizações espanholas, susceptíveis de afetar a economia
portuguesa. Os ditos “mercados” não separavam escudo da peseta embora Portugal
considerasse mais interessante acompanhar o marco por razões de luta
anti-inflacionista. Portugal desvaloriza o escudo em novembro de 1992 (6%), em
maio de 1993 (6.5%) e em 1995 (3.5%).
A tão desejada liberdade de circulação dos capitais, na realidade, favorecia os especuladores que podiam escolher o país/moeda onde apontar as suas baterias, jogar com as suas disparidades, com as diferenças nas situações conjunturais ou nas reservas cambiais e até elementos estranhos à Europa, como a crise mexicana de pagamentos em 1995, que promoveu uma grande procura (e valorização) do marco por parte de especuladores que se queriam desfazer de dólares. Nesse contexto, não havia condições para garantir uma convergência entre as moedas com base nas reservas dos vários bancos centrais e daí que em agosto de 1993 a banda de flutuação das moedas integradas no MTC passasse para -15%/+15%; o que de facto, ao reduzir as veleidades especulativas dos “mercados”, anulava também os objetivos de estabilidade entre as paridades das moedas e a convergência no sentido da criação de uma moeda única.
A tão desejada liberdade de circulação dos capitais, na realidade, favorecia os especuladores que podiam escolher o país/moeda onde apontar as suas baterias, jogar com as suas disparidades, com as diferenças nas situações conjunturais ou nas reservas cambiais e até elementos estranhos à Europa, como a crise mexicana de pagamentos em 1995, que promoveu uma grande procura (e valorização) do marco por parte de especuladores que se queriam desfazer de dólares. Nesse contexto, não havia condições para garantir uma convergência entre as moedas com base nas reservas dos vários bancos centrais e daí que em agosto de 1993 a banda de flutuação das moedas integradas no MTC passasse para -15%/+15%; o que de facto, ao reduzir as veleidades especulativas dos “mercados”, anulava também os objetivos de estabilidade entre as paridades das moedas e a convergência no sentido da criação de uma moeda única.
A
fixação definitiva das taxas de câmbio na última fase da criação da moeda única
ainda em modo escritural (1999) colocava várias condições aos países aderentes
– os critérios de convergência que já abordamos no primeiro capítulo deste
trabalho[6].
Em
suma, ao observar-se toda esta caminhada que desembocou no euro conclui-se,
para Portugal:
- uma redução substancial da crónica inflação que
se registou até ao início da década de 90 e já vinda dos tempos do
fascismo:
- uma baixa significativa das taxas de juro que se
situavam entre 4.66% e 6.66% em 2013 e que permitiu a obtenção de crédito,
malbaratado pela supremacia do capital financeiro sobre a classe política
e os capitalistas comuns, oleada pela já endémica corrupção;
- o desaparecimento da variável cambial –
protagonizada por várias desvalorizações do escudo entre 1977 e 1995 - nas
relações entre Portugal e a maioria dos seus principais parceiros
comerciais;
- a desvalorização da produção nacional, medida em
relação às principais divisas é marcante quando se compara as cotações de
2001 (nas vésperas da adopção do euro) e de 1980. Em 2001, o dólar valia
mais 3.3 vezes do que em 1980, a libra 2.3, o franco francês 2.6, o marco
3.8 e a peseta 1.8 vezes.
Tudo
isto se verifica num contexto de desigualdade e subalternidade que são
históricas e da integração entre as economias ibéricas e europeias, conduzidas
pelo capital sediado no Centro da UE, enquanto caso particular da globalização.
Essa desigualdade, no plano geopolítico tem, naturalmente, um impacto dramático
em Portugal, na repartição do rendimento, agudizado nos últimos anos na
sequência das dificuldades da banca, transferidas para o Estado que, por sua
vez, as endossou para a população, o que é bem visível no gráfico seguinte
(graf. 2).
(graf.
2)
3 - Centrar na moeda a causa das desgraças é um
fetichismo
Quando
se considera a moeda como a causa das desgraças nacionais é patente nisso a
criação de um fetiche; o que configura um projeto reacionário.
3.1 – A trama do capital financeiro
Conforme se tem referido em textos anteriores[7], a trama
montada pelo capital financeiro e aplicada, nomeadamente pelo partido-estado
(PSD/PS), baseou-se no recurso massivo ao crédito externo, depois de absorvida
a poupança interna e, a partir de meados da década de 90:
- esse crédito dirigiu-se particularmente para os sectores do imobiliário/construção/obra pública, com o final envolvimento das famílias nesse endividamento, com a aplicação descuidada de fundos comunitários, com a sua transformação em parcerias público-privadas. Nesse percurso, ficaram prejudicados, a melhoria do aparelho produtivo e o relevo deste para a redução do deficit externo;
- outra
parte desse crédito acabou por ser reexportado para o exterior, para
usufruto de benefícios fiscais e para o exercício de atividades criminosas;
uma vez mais envolvendo a banca e as empresas de regime, na sua maioria
presentes no PSI-20.
Tem
havido uma campanha mediática no sentido da focagem da responsabilidade próxima
da crise no endividamento público e numa acusação capciosa da população por
“ter vivido acima das suas responsabilidades”. E para que isso se apresente
como adequado à dita tradição católica dos portugueses, estes terão de penar
pelas suas culpas e sem outra saída que não o “aguentam, aguentam” saído da
cloaca de um banqueiro. A essa campanha junta-se o silenciamento junto da
multidão, do desmascaramento dos principais responsáveis:
- o
sistema financeiro - esse sim que viveu muito acima das suas
possibilidades como se vê pela sua precária situação;
- e
a classe política, imputando uns, ao Estado os custos da sobrevivência dos
bancos e outros, entretendo a multidão com fait-divers parlamentares.
Pode
dizer-se que se trata de uma crise do capitalismo o que, com toda a facilidade
se usa como bordão para não objetivizar as responsabilidades em cada momento. E
isso é mesmo uma banalidade, uma vez que o capitalismo vive da crise e em crise
desde que se tornou sistema político e económico dominante. E há mesmo
candidatos a videntes que extraem dos clássicos da economia política e dos seus
falsificadores, sistematicamente, a crise final do capitalismo.
Tem
havido uma recusa objetiva das responsabilidades desta trama no brutal
endividamento público e privado, com a imputação dos custos do seu
financiamento para a população, mormente para segmentos específicos como
funcionários públicos, reformados e desempregados.
3.2 –
A dívida pública e o euro
Sendo
a dívida pública reconhecidamente impagável[8] não se
entende como uma saída do euro promove uma resolução do problema. Por outro
lado, na esquerda institucional, tem vigorado como dogma que a dívida é toda
para pagar clamando-se apenas por uma renegociação de prazos e taxas de juro
que, a ser aceite pelos credores, em caso algum comportaria um alívio sensível
do peso do serviço de dívida. Essa aceitação exigiria uma nova política
comunitária, muito para além da estreiteza dos instrumentos monetários usados
pelo BCE - taxas de juro baixas numa baldada esperança que isso promova um
surto de investimento e, compra de dívida no mercado secundário. As esperanças
numa mutualização de parte da divida (acima dos 60% do PIB) morreram com a
reeleição de Merkel; a sua aceitação exigiria dirigentes comunitários não
comprometidos com a trajetória dos últimos anos, uma saída de cena da própria
Merkel e ainda, que assumissem ter sido toda a política conducente ao
endividamento dos estados, devida ao refinanciamento dos bancos falidos e à
defesa do euro. Por outro lado, nunca se viu da parte dos países endividados
qualquer amostra de estratégia comum face às estruturas comunitárias e ao FMI;
assistiu-se, na essência, a uma obediência canina dos governos nacionais face à
ortodoxia neoliberal emanada das altas instâncias, por conveniência do capital
financeiro, em estancar localmente a propagação dos tóxicos com o concomitante
aumento das dívidas nacionais transmitidas para a população, de modo fortemente
assimétrico, sádico.
Na
realidade, qualquer saída que favoreça a multidão só poderá surgir na sequência
de alterações na estrutura económica, no enquadramento europeu, comunitário ou
não e do ordenamento político interno.
Se se
aponta para uma renegociação da dívida – tomando toda por legítima - como
instrumento de saída do torniquete em nome do qual se colocou todo um povo em
quarentena, então que sentido faz clamar pela saída do euro (e até da UE)?
Se
nem sequer é colocada a questão da recusa de dívida ilegítima – por exemplo, os
compromissos públicos com a recapitalização dos bancos (€ 12000 M), a gerada em
torno do caso BPN, a denúncia dos contratos inerentes às parcerias
público-privadas – porque se avança para uma saída do euro? Sai-se do euro mas
cumpre-se escrupulosamente o serviço de dívida? Sai-se do euro sem,
previamente, aventar a suspensão do pagamento da dívida por motivos de força
maior?
Se se
aceita que essa guerra pode ser ganha com o recurso a um morteiro porque razão
se defende o uso da bomba atómica?
Quando
se recusa a existência de uma dívida ilegítima – caso da chamada esquerda
parlamentar defensora do abandono do euro (PC) ou não (BE) – isso significa
legitimação da dívida contraída para pagar os desmandos do sistema financeiro e
dos seus mainatos com funções políticas. A aceitação da legitimidade de toda a
dívida, a afirmação de que toda a dívida deve ser honrada e paga… apenas com
prestações mais suaves, revela a aceitação do predomínio do sistema financeiro
e do missal neoliberal que o sustenta; significa uma aceitação implícita da
justeza da austeridade como saneadora dos balanços da banca.
É
vasta a literatura jurídica e económica que aborda situações de ilegitimidade
no pagamento de dívidas soberanas. Por exemplo, o jurista alemão que em meados
do século XIX muito influenciou o ordenamento jurídico francês – Karl E.
Zachariae – reconhecia não se poder faltar ao compromisso do pagamento da
dívida mas que os governos têm um dever de ordem superior ao de pagar aos seus
credores: o de manter vivos os seus cidadãos. E que não existe outra
alternativa que não ignorar os as queixas dos seus credores.
Não
existindo qualquer estudo de avaliação concreta das consequências da saída do
euro, só o populismo pode justificar essa posição. Tendo pouca visibilidade a
expressão política da defesa da saída do euro por parte da direita cabe a uma
certa “esquerda” a procura do apoio de franjas eleitorais pouco esclarecidas
mas, radicalizadas pela austeridade e pelo desemprego, sensíveis ao sonho
isolacionista ou nacionalista que, em outras latitudes seriam atraídas pela
extrema-direita. Em Portugal não há uma pública e organizada xenofobia, como em
França, Itália ou Grécia dada a pequena notoriedade dos emigrantes, favorecida
pela sua concentração geográfica; no entanto, está longe de ser raro encontrar
um substrato racista em conversas comuns. Daí que seja possível a uma certa
“esquerda” apresentar-se nacionalista e garantir um eleitorado com posições
formalmente progressistas, sem o recurso à cartada xenófoba.
3.3 –
O deficit externo e o euro
A
existência de uma moeda nacional, de uma fronteira monetária, terá algum
sentido com uma economia geradora de superavits externos e um desenvolvido
mercado interno, alicerçados numa densa matriz de relações inter-sectoriais,
susceptível de gerar uma baixa inflação e estabilidade cambial (Suíça, Suécia,
Japão). Numa economia com deficits externos estruturais[9] e uma
enorme e condicionadora dívida pública ou privada, com uma estrutura produtiva
como caótico local de encontro de redes multinacionais, com escassa coerência
interna no espaço nacional, é natural a existência de uma moeda própria frágil
e submetida a pressões diversas no sentido da desvalorização, como nos anos
70/80, em Portugal. Sabe-se que as desvalorizações da moeda são potencialmente
facilitadoras de exportações e desincentivadoras de importações, sendo ambas,
em conjunto inflacionistas, quer por pressão dos trabalhadores para a reposição
do poder de compra, repercutidos nos preços pelos capitalistas, quer pelo
impacto dos mais elevados preços de bens importados expressos na moeda
nacional. Sabe-se também que essas ondas de choque da desvalorização traduzidas
em inflação têm um impacto temporário, voltando-se à situação inicial, passados
poucos anos, com um nível mais elevado nos preços internos.
Parte
significativa da exportação portuguesa tem origem em empresas de capital
estrangeiro que se mantêm em Portugal, dadas as condições de trabalho,
salariais e de enquadramento jurídico e ainda dada a conflitualidade. Altos
níveis de inflação, instabilidade cambial e conflitualidade social com lutas de
trabalhadores pela reposição de poder de compra não atraem investidores e a
concorrência na oferta de trabalho barato e dócil é muito vasta. No capítulo
das empresas estrangeiras instaladas em Portugal e viradas para a satisfação do
consumo interno a atualização dos preços dos componentes importados é imediata
à desvalorização a não ser que o Estado autóctone avance com fórmulas de
fixação administrativa de preços de bens essenciais ou outras, sobre os preços,
que pretendam atenuar a inflação.
Os
importadores em geral, com toda a naturalidade, atualizam os preços como consequência
da maior expressão em moeda nacional dos bens importados e procurarão que os
consumidores nacionais consigam manter o seu poder de compra para evitar uma
erosão nas vendas. Se o consumo baixar demasiado, fecham as portas.
3.4 -
Subfacturação e sobrefaturação
Os
corruptos e os empresários em geral - e os dos países de menor gabarito, em
particular - desenvolvem a meritória atividade de colocação de pecúlios em
registos off-shore, com a interessada
colaboração do sistema financeiro. A fuga fiscal é uma regra a que o grosso da
população não tem acesso, escrutinada que é a sua vida pelos funcionários do
Fisco, através de extensas aplicações informáticas e em cruzamentos cada vez
mais detalhados e invasivos. Essa prática insere-se numa vasta panóplia de
procedimentos que enformam a chamada economia paralela ou subterrânea e que em
Portugal corresponde a um quarto do PIB; e permite também, sob diversos
ângulos, a sobrevivência de trabalhadores independentes, de negócios de biscate
e de pequenas empresas que seriam inviáveis se cumprissem rigorosamente os
ditames agilizadores da punção fiscal exercida pelo Estado cleptocrático.
Um
exemplo típico da fuga fiscal institucional prende-se com a Swatch, conhecida
marca de relógios suíços, vendidos na Europa com faturas emitidas na Zona
Franca da Madeira; essa faturação valia € 597 M em 2009[10] e
escusado será dizer que os relógios não foram produzidos na Madeira, nem sequer
passaram ao largo da região. A questão é que a faturação registada na Zona
Franca tem uma carga fiscal diminuta que, na Suíça seria impossível.
Abordaremos
aqui apenas os aspetos da subfacturação e da sobrefaturação, relacionados com
questões cambiais e monetárias. As diferenças cambiais entre moedas fortes e
fracas são também um bom argumento para a utilização de off-shores por parte de valorosos e patrióticos empresários.
Suponhamos
que um daqueles empresários que figuram nas fábulas do empreendorismo exporta
€100000 de mercadoria e esse dinheiro entra direitinho nos registos da balança
comercial portuguesa. Essa figura será a de um candidato à canonização.
Entremos
na realidade e vejamos como as coisas podem acontecer com um empresário típico.
Ele “vende” a mesma mercadoria para um seu off-shore
por € 80000 e, por sua vez essa empresa fantasma fatura ao cliente os efetivos
€100000, gerando-se assim, no final um depósito de € 20000 no referido registo off-shore em nome do intrépido criador
de riqueza e emprego e de sua digníssima família, limpos de impostos.
Naturalmente, isso vai acontecendo, hoje, por razões fiscais e, numa hipótese
de moeda própria, sem aceitação no exterior e objeto de sucessivas
desvalorizações “competitivas”, abre-se um novo motivo de incentivo à fraude. O
valoroso empresário irá transferir apenas os €80000 para Portugal, a converter
parcialmente em moeda nacional para pagar salários e despesas locais de fabrico
e ainda poderá pedir ao governo incentivos à exportação, bonificações fiscais,
etc para se manter competitivo…
Um
importador, colega do anterior esforçado exportador, procede de modo idêntico.
Transfere os € 100000 para pagamento de uma fatura emitida por um off-shore que controla, tendo este, por
sua vez comprado algures a mercadoria por € 80000. Neste caso, não é um
quantitativo de dinheiro que não entra pela fronteira como no caso anterior
mas, um valor que sai direto para o bolso do importador algures num off-shore, por conta de uma mercadoria
que custou 80% do volume de divisas registado na balança comercial; é a
sobrefaturação.
3.5 –
A relação trabalho/capital e o euro
Os
defensores da saída do euro, nada acrescentam no capítulo da relação
trabalho/capital, perpetuando essa relação favorável aos capitalistas; como
nacionalistas ou keynesianos, as questões sociais são subalternizados no
contexto dos seus economicismos ou preconceitos patrióticos. O modelo de moeda
própria associado a desvalorizações “competitivas” e a subsequente inflação
tende a acentuar a pressão sobre os trabalhadores, para serem mais
competitivos, mais produtivos, para trabalharem mais e serem parcos de
rendimentos para vencerem a concorrência externa. Esta só pode ser vencida se a
produção nacional for mais barata nos mercados externos; e daí a pressão para a
perda nos salários reais associada a uma pesada carga fiscal pois as empresas
têm de a ter aligeirada, competindo ao Estado – neoliberal ou keynesiano -
apoiar as empresas nesse patriótico desígnio exportador. Tudo isso já acontece
hoje e a desvalorização da moeda constituiria mais um incentivo a essa deriva
repressiva. É fácil de entender que os defensores da saída do euro secundarizam
a importância dos desequilíbrios na relação trabalho/capital, como se viu acima
a propósito dos efeitos da inflação antes da adopção do euro e que penalizam os
trabalhadores.
A
desvalorização da moeda, sobretudo se frequente, é um instrumento que favorece
os sectores exportadores e, dificultando as importações pode constituir um
inventivo na sua substituição por produção interna embora esta, em muitos casos
tendo forte componente importada (energia, matérias primas, equipamento) lhe
possa retirar esse benefício. Dado o potencial de conflitualidade acarretado
pela inflação associado à pressão patronal para a baixa dos salários reais,
quem poderia beneficiar com a situação seriam os sindicalistas amarelos, sempre
mais atentos aos interesses “nacionais” em sede de concertação social do que
aos interesses dos trabalhadores.
Uma
política de desvalorização “competitiva” de uma moeda é acomodatícia; isto é,
os exportadores habituam-se a esse incentivo, pouco exigente em termos das
alterações na composição orgânica de capital, na qualidade de gestão e, por
consequência, não se materializam em apelos à criatividade e ao investimento,
perpetuando as desigualdades regionais, neste caso no seio da UE.
Tendo
em conta a regular perda de valor da moeda nacional, face às moedas de
referência, é natural que muitos empresários se foquem em atividades focadas no
mercado interno, sobretudo as que não são objeto de grande concorrência vinda
do exterior, ou mesmo não susceptíveis de transações envolvendo transporte,
como por exemplo, o imobiliário. Voltaríamos a uma orgia imobiliária desta vez
já não financiada junto da banca internacional ou pelos fundos comunitários
mas, alicerçada na emissão monetária do BdP? Com uma nova configuração,
voltaríamos à política do betão e da betoneira a seguir à que recentemente
conhecemos e cujos nefastos efeitos estão patentes? Iríamos construir mais
habitações para uma população precária e sem rendimentos razoáveis ou estáveis
ou, segundo a deriva alucinada da direita, ir-se-ia promover a vinda de
reformados endinheirados do norte da Europa para alimentar esse novo surto
imobiliário?
Por
outro lado, a aceitação passiva da competitividade é princípio imanente nos
debates, para a condução das economias e configuração da vida social; é um
princípio de atávico conservadorismo. Será a competitividade, complementada
pelo consumismo e pelo crescimento infinito, um valor a preservar? Será que se
pode coadunar a aceitação da competitividade com uma postura anti-capitalista?
É uma contradição que não vive na “esquerda” do sistema político, porque
capitalista.
3.6 –
O processo de transição para uma moeda nacional
Um
aspeto interessante (entre muitos outros) sobre o qual os arautos da saída do
euro não apresentam soluções refere-se à troca de moeda corrente, com a
substituição do euro por moeda nacional, suponhamos, de novo, o escudo. O
processo não seria, naturalmente, tão isento de sobressaltos como em 2002,
quando os portugueses entregaram os escudos em troca de euros. Uma coisa é
entregar uma moeda fraca, de curso circunscrito por troca com outra – o euro -
reconhecida como forte, com procura generalizada e com escassas necessidades de
ser trocada por outra divisa e outra é entregar euros e receber em troca uma
moeda de curso limitado e condenada à desvalorização. O entesouramento de euros
seria extensivo, adequado às disponibilidades de cada um e, de facto,
vigorariam em Portugal duas moedas uma forte e outra fraca.
Tendo
em conta a situação financeira portuguesa de deficit externo crónico acrescido
de uma enorme dívida externa, pública e privada, muito provavelmente não seria
utilizada a mesma paridade usada em 2002, quando da adopção do euro - € 1 =
200,482 escudos. Mesmo que a saída do euro fosse objeto de uma negociação
benevolente por parte do BCE, da Comissão Europeia e do Conselho e não
resultado de uma mais que provável crispação, cremos que a paridade seria mais
desvantajosa do que a definida em 2002.
Para
além da questão da paridade inicial, quem ficará feliz por entregar euros em
troca de uma moeda que não terá circulação do outro lado do Caia e que se vai
desvalorizar a curto prazo? As pessoas têm bastante racionalidade na abordagem
das suas conveniências e tratarão de guardar o máximo de euros para adquirirem
bens no exterior ou no âmbito de um contrabando que, certamente se tornará numa
vultuosa atividade económica nacional.
Como
muita gente verá os seus rendimentos regulares – salários e pensões – serem
pagos em escudos, muitos procurarão encontrar euros, dólares… para comprar bens
de contrabando ou, na falta deles entregarão escudos com um câmbio desfavorável
face ao oficial. Dada a dimensão da atividade turística, os seus trabalhadores
terão acesso facilitado a divisas, como é comum em países menos desenvolvidos e
que depois municiarão as suas famílias e amigos para a obtenção de bens no
exterior ou nos meios do contrabando. Gerar-se-ia aí mais um factor de
desigualdade em Portugal.
O
anúncio do regresso ao escudo tenderá a promover uma corrida ao levantamento de
depósitos em euros, como são hoje. Têm os bancos reservas monetárias para
satisfazer essa procura? Claro que não têm e esse movimento massivo de levantamento
de depósitos teria de ser reprimido pelo Estado que, uma vez mais estaria do
lado dos bancos, contra a população. Fechariam as agências bancárias e
deixariam “secas” as caixas MB para evitar a bancarrota dos bancos? E deixariam
como possível a transferência para contas no exterior, em euros? Utilizariam
magotes de polícias para conter a multidão roubada e enfurecida, como na
Argentina?
Dito
de outro modo, grande parte das poupanças das pessoas seria expropriada, de
facto, pelo binómio bancos/Estado, apenas lhes sendo permitido levantar os seus
haveres quando os bancos estivessem municiados de escudos; isto é, quando as
pessoas se desinteressassem de levantar os seus depósitos já reconvertidos em
moeda nacional. Se o Estado português de hoje já tem escassa credibilidade após
décadas de enfeudamento ao sistema financeiro e devido aos últimos anos de
empobrecimento, que legitimidade lhe sobraria depois desse “golpe do baú”? E o
sistema político resistiria ao afundamento dessa ilegitimidade agravada?
Não é
concebível que toda a preparação do regresso ao escudo possa ser feita em
perfeito sigilo até que num certo dia (uma segunda-feira) as pessoas acordariam
com os noticiários a informarem tamanha alteração nas suas vidas e com as
caixas MB recheadas de escudos. A logística e a duração da sua montagem não
poderiam passar desapercebidas, por muitas cautelas que o BdP e o governo
tivessem. Os funcionários envolvidos na operação, as empresas de segurança que
municiam agências bancárias e caixas MB manteriam o sigilo junto das suas
famílias? E ficariam mudos e quedos a assistir ao golpe de mão sobre as suas
próprias poupanças? Como se viu no caso recente do BES, a notificação do Carlos
Costa num domingo à noite, não evitou que houvesse prévias fugas de informação
que beneficiaram uns quantos; ora uma operação de mudança de moeda forte para
outra fraca é algo de uma complexidade e de uma relevância coletiva muito maior
e a mais pequena fuga de informação não deixaria de se ver amplificada,
destruindo todas as precauções governamentais.
Mais,
essa operação teria de passar certamente por contactos, negociações, acertos
com o BCE e as instituições de Bruxelas durante algum tempo. Nada passaria para
a imprensa? Duvidamos que a burla sobre 10 milhões de pessoas se concretizasse
no seu total desconhecimento. E se isso acontecesse e a multidão acordasse
nessa segunda-feira negra na situação de enganada e espoliada?
Uma
passagem do euro para o escudo pouparia as poupanças dos criminosos que colocam
o seu pecúlio em off-shores. Até os
favoreceria. Primeiro, porque não são abrangidos pela troca de moeda,
continuando incólumes os seus depósitos em euros ou dólares, ao contrário do
que acontece com a esmagadora maioria dos portugueses; e mais, ficando de fora,
beneficiarão da política de desvalorização da moeda subsequente à re-introdução
do escudo. Em síntese, os empresários de médio ou alto gabarito, os gestores de
topo e os mandarins verão valorizada parte substancial das suas poupanças, de
origem criminosa.
3.7 -
Os impactos sobre a dívida e o acesso ao crédito
Todos
sabemos que o BCE tem fornecido uma almofada para que o Estado português
consiga crédito; e a sua titularidade em euros constitui uma garantia face a
uma desvalorização cambial, junto dos credores. De modo idêntico, o BCE
constitui a fonte de abastecimento para os bancos portugueses, em dificuldades
com a colocação de créditos em empresas sustentáveis - que não abundam numa
economia em recessão - e em se aliviarem do malparado.
Numa
concretização de saída do euro (se não a partir do seu mero anúncio), o BCE
deixa de existir face a Portugal e exige o reembolso dos financiamentos de
curto prazo aos bancos como se observou recentemente no caso BES. Que
alternativa? Aumentos de capital dos mesmos ou financiamento do BdP como
regulador integral, eventualmente através de emissão monetária? Quanto aos
apoios do BCE e dos fundos europeus[11] no
âmbito da intervenção da troika, as
coisas poderiam ser mais delicadas pois saindo Portugal da zona euro, aqueles
canais e veículos ficariam indisponíveis ou, numa hipótese de maior
benevolência, seria dado um prazo para a amortização daqueles créditos, em
euros, naturalmente.
Tomando
o caso da dívida pública, é evidente que continuaria a ser exigida em euros o
pagamento de capital e juros por parte dos credores estrangeiros, podendo ter
menor sorte os titulares nacionais de certificados de aforro, por exemplo.
A
dívida pública, excluídos os certificados de aforro, é da ordem dos € 200000 M
e a sua conversão em escudos, com a paridade de € 1 = 200,482 escudos,
utilizada em 2002, corresponderia, sensivelmente a 40 biliões de escudos. Logo
numa primeira desvalorização, supondo de 5% e sem alteração no volume em euros,
aquela dívida passaria para 42 biliões de escudos, com o pagamento do serviço
de dívida a pesar sobre salários e outros rendimentos; essa desvalorização só
seria indiferente nos casos em que aqueles rendimentos aumentassem, em moeda
nacional, na mesma proporção o que no caso de salários ou pensões não
aconteceria, com grande probabilidade.
Qualquer
crédito obtido no exterior, por hipótese, em euros e pagável em euros terá um
acréscimo em moeda nacional proporcional à sua desvalorização, com concomitante
reflexo nas taxas de juro internas praticadas pelos bancos que contemplarão,
não somente o impacto do maior risco considerado pelos prestamistas externos
como ainda a cobertura da inflação. A subida e a incerteza das taxas de juro
induzida da inflação e do risco seriam certamente penalizadores, promovendo
também, de per si, inflação.
Este e outros textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
[1] As duas primeiras partes deste texto
encontram-se em:
[2] http://www.scribd.com/doc/14290349/Nacionalizacao-da-banca-piada-ou-mistificacao
[3]
http://www.scribd.com/doc/11134622/BPN-Exemplo-Pratico-Do-Que-e-o-Capitalismo
[4] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/08/o-bes-bom-o-bes-mau-e-ma-gestao-dos.html
[5] http://www.bportugal.pt/EstatisticasWEB/MetadataItens/Metadata_Ramo_HistoricoEscudo.htm
[6] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/07/portugal-deve-sair-do-euro-sim-ou-nao-1.html
[9] Os esporádicos recentes superavits mensais na balança de
transações correntes, têm resultado de factores pontuais (vendas da Galp), de
reduções no consumo resultantes da austeridade, do desemprego e da emigração e
da estagnação das importações de equipamentos, inerentes à estagnação do
investimento.
[10] Conferir detalhes em Suite 605 de João Pedro
Martins
[11]
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/03/porque-nao-e-pagavel-divida-publica.html
Falem da evolução da Balança de Transacções Correntes desde 1953 para cá.
ResponderEliminarDigam a VERDADE sobre os efeitos da adesão ao Euro de um país que sempre gastou mais do que produziu e que se habituou a viver à CONTA: à conta das colónias, à conta dos emigrantes, e à conta dos Fundos europeus.
Que, até 1995, apesar do país “gastar”, em média, mais do que produzia, a dinâmica de crescimento da dívida externa era sustentável em resultado de sucessivas desvalorizações cambiais e do efeito destas sobretudo na PII do país, na balança de transferências unilaterais e na balança de rendimentos. E que, como a partir de meados de 1993, deixaram de ocorrer as desvalorizações cambiais no âmbito do processo de adesão ao euro, daí resultou que a balança de transferências correntes e a balança de capital passassem a decrescer em percentagem do PIB e, portanto, deixassem de ser suficientes para suportar o elevado défice da balança comercial e o crescente défice da balança de rendimentos (resultante do crescente passivo externo líquido).
Sendo que, após 1995, com a estabilidade cambial, esse efeito desapareceu de vez, levando a uma dinâmica de crescimento insustentável do passivo externo líquido e a um progressivo aumento das necessidades líquidas de financiamento da economia. Maria Manuela.
http://viriatoapedrada.blogspot.pt/2012/11/portugal-ja-esteve-varias-vezes-na.html