quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A NÃO SOLUÇÃO COM UM NOVO ESCUDO [1]


A situação miserável da esmagadora maioria dos portugueses coexiste com um bloqueio político interno e no enquadramento geopolítico. Esse bloqueio, em paralelo com uma anemia da movimentação social, dá aso à elevação de um fetiche como solução.


Sumário

1 – A vida em Portugal antes do euro já não era fácil
2 – A caminhada até ao euro
3 - Centrar na moeda a causa das desgraças é um fetichismo
3.1 – A trama do capital financeiro
3.2 – A dívida pública e o euro
3.3 – O deficit externo e o euro
3.4 - Subfacturação e sobrefaturação
3.5 – A relação trabalho/capital e o euro
3.6 – O processo de transição para uma moeda nacional
3.7 - Os impactos sobre a dívida e o acesso ao crédito



1 – A vida em Portugal antes do euro já não era fácil

A realidade é muito esquecida por quem não estuda e se refugia na ideologia, em posições políticas alicerçadas numa fé clubística ou na vacuidade televisiva. Uma sucinta recordação de tempos históricos recentes revela aspetos demolidores para certos meios políticos populistas.
Portugal teve duas intervenções do FMI, uma em 1977 e outra em 1983/85 por problemas resultantes dos desequilíbrios nas contas externos que, por sua vez se relacionavam com a debilidade da economia portuguesa, então ainda antes da desindustrialização.

Essas crises foram acompanhadas de desvalorizações da moeda e de enormes taxas de inflação que, como se pode observar (graf. 1), são as maiores dos últimos 40 anos. Da inflação resultaram grandes quebras nos rendimentos do trabalho – de 67 para 57.8% do PIB entre 1976 e 1978 e de 55.4 para 45.6% entre 1982 e 1986, tendo ainda, neste último período, acontecido uma outra calamidade, a do início do predomínio de Cavaco na política portuguesa. A situação melhorou com as ajudas de pré-adesão à UE e ajudou a ultrapassar a recessão de 1983/85, tão grave que exigiu um governo de unidade no seio do partido-estado, PS/PSD.
                            graf. 1

A introdução da UEM – União Económica e Monetária, a partir de 1990, com a liberalização dos movimentos de capitais e, mais tarde com a aproximação de taxas de juro e controlo da inflação, conduziu a custos do crédito muito mais baixos do que os observados até meados da década de oitenta. Hoje, dificilmente haverá na Europa taxas de inflação elevadas porque o seu controlo a baixos níveis é o grande objetivo do BCE que, tem a tarefa facilitada pela anemia que vem caraterizando a economia na UE. Em resumo, taxas de juro baixas e inflação reduzida constituem elementos que não prejudicam a vida dos povos; no entanto, como se pode observar, não são causa suficiente de bem-estar social.

A cobertura das importações pelas exportações tem-se mantido relativamente estável, em torno dos 70% desde os anos noventa, mostrando-se pouco sensível às variações conjunturais, à introdução do euro e menos ainda ao labor propagandístico do Pires das cervejas, do pomposo responsável da área económica do governo ou do estimável Chancerelle de Machete. E, por seu turno, a taxa de penetração das importações (variação das importações de bens e serviços em comparação ao crescimento da procura total) tem vindo lentamente a crescer situando-se próxima dos 20% nos últimos anos. Essa evolução prende-se com a maior segmentação da produção que conduz a um alongamento da cadeia de intervenientes na produção de qualquer bem e, por consequência, ao crescente entrosamento das economias.

A fragilidade da economia portuguesa, já antes da integração na UE e posteriormente da adopção do euro, pode observar-se pela evolução das cotações das principais moedas usadas nas transações internacionais portuguesas, medidas em escudos, para o período que antecedeu a caminhada para o euro.

Em 1989 o Relatório Delors previa a criação da UEM em três fases que contemplariam grande articulação dos bancos centrais, o encaminhamento da decisão no âmbito da política monetária para o que viria a ser o BCE e ainda a aproximação das paridades entre as moedas nacionais que conduziriam à instituição de uma moeda única.

Sabia-se que esse calendário seria estruturante nas relações entre os países da UE que, fruto das desigualdades já então patentes, teriam impactos diferentes consoante os graus de desenvolvimento, das capacidades do tecido económico e de adaptação a uma nova situação de ausência de fronteiras físicas e monetárias. Sabe-se pela História que as comunidades mais desenvolvidas atraem as menos evoluídas para a sua órbita e que as pessoas e os capitais das áreas periféricas tendem a dirigir-se para as áreas centrais, onde as possibilidades de trabalho e as condições de vida são melhores e onde os capitais encontram melhores condições de rendabilidade a longo prazo.

A instituição de uma moeda única para um território que abarca áreas mais e menos desenvolvidas, nada tem de novo. Quase todos os países apresentam desigualdades entre partes distintas do território e ninguém vai apontar para a moeda comum como causadora dessas discrepâncias na criação de riqueza e do rendimento das populações. O que parece estranho na questão do euro é que há uma unificação política e económica de nações ditas soberanas que, com uma moeda única remetem para uma instituição global, as funções que antes pertenciam aos bancos centrais nacionais, tornados agora antenas locais de um BCE. É estranho, de facto, para quem raciocine num contexto já não existente, de pré-globalização, em que se pretendia a glorificação do estado-nação como entidade soberana, embora na realidade, há muitas décadas, o capital financeiro e as multinacionais, interferiram e condicionem o exercício dessa soberania.

O projeto euro, embora dirigido pelo capital apresentava, lateralmente, do seu ponto de vista, várias vantagens para as pessoas em geral. É evidente que uma moeda comum conduz à abolição dos custos inerentes a trocas de moedas de países da UE adoptantes do euro e atingiria o negócio sobre câmbios. Por outro lado, sendo previsivelmente, o euro uma moeda de reserva internacional, qualquer pessoa portadora de euros transportaria consigo uma moeda aceite em toda a parte.

A ausência de uma matriz de taxas de conversão entre várias moedas (de países da UE) evita a consideração das cotações e a sua volatilidade em função dos desequilíbrios das contas externas facilmente explorados pelos “mercados”. Também a fixação de preços numa moeda comum facilita as comparações dos preços, tornadas assim imediatas, sem necessidade de cálculos e consideração das flutuações das cotações.

Registavam-se também vários argumentos de resultados duvidosos para a multidão e outros que, de facto, não se vieram a mostrar efetivos. Para as empresas, uma moeda única traz também algumas vantagens, sobretudo para as que têm densas relações com o exterior mas, que são muito menores para o caso de empresas com vendas de âmbito local ou mesmo apenas nacional. A ausência de barreiras monetárias favorece pois, empresas maiores, mais capacitadas ou experientes que assim, poderão entrar mais facilmente em territórios até então com uma barreira monetária. É um factor que ajuda à concentração de capitais em empresas de grande dimensão, em detrimento de pequenas empresas.

Não parece ter sido muito considerada a importância da moeda única para o capital financeiro, para a especulação que, nesse contexto, deveria ter visto a sua atividade limitada, tendo em conta os impactos cuja nocividade hoje, todos veem.

Outro aspeto teoricamente apontado como positivo veio a demonstrar-se como uma fábula. Referimo-nos ao controlo do deficit que deveria corresponder a uma menor pressão da punção fiscal e dotar a população de mais rendimento, propulsor de mais consumo, dentro da insana fé no crescimento infinito. Como sabemos, os deficits são comuns, elevados e prolongados no tempo sem que se observem reduções na carga fiscal; no entanto, servem para justificar cortes, reduções de gastos sociais, privatizações e outras perdas para trabalhadores e para a população em geral.

A centralização no BCE da decisão na área monetária, correspondente à unificação política, ao retirar os instrumentos de política monetária aos estados nacionais não criou alternativas que possam obviar aos desequilíbrios a nível nacional que inevitavelmente atingirão, de modo amplificado, as periferias. Estas últimas, certamente contentes com a fobia do BCE em controlar a inflação, são compelidas a sujeitarem-se às limitações de financiamento dos deficits públicos e ao aumento das taxas de juro nos “mercados”, mesmo que o BCE seja magnânimo e compre dívida em mercado secundário, sem tocar na rendabilidade do capital especulativo.

Mais, os povos das periferias (e não só) devem avaliar com júbilo as intervenções dos Estados nacionais e do BCE com nacionalizações[2] e injeções de capital para salvar bancos da falência, como se algum deles ao falir levasse consigo algo de insubstituível. Os casos em Portugal, do BPN[3], para evitar o “risco sistémico” e mais recentemente do BES[4], a joia da coroa do capitalismo nativo, revelam que uma das principais utilidades da população é pagar as vigarices dos banqueiros. Como é sabido, no empréstimo da troika foram incluídos € 12000 M expressamente consignados à recapitalização dos bancos, tendo vários recorrido a esse financiamento (BCP, BPI, Banif e CGD). Não deixa de ser curioso ver a forma suspeitosa como o capital global olha para os bancos portugueses; o seu refinanciamento não é direto, pois as respetivas valias não são grandes num país em atrofia mas, mediado pelo Estado que assume o reembolso e o pagamento dos juros, acarretando com os riscos e carreando os custos para a população. A única verdadeira “empresa” capitalista de capital nacional é o Estado que obriga 10 M de pessoas a comprarem os seus “serviços”.

Ficando excluída a política monetária de uma utilização nacional (regional no contexto comunitário) e impedidas fórmulas de solidariedade global de apoio ao estado-membro em dificuldades mantém-se portanto, segmentada a UE, dependentes essas frações das apreciações do mercado e dos níveis dos desequilíbrios estruturais. Na arquitetura actual, há uma união política que não assume coletivamente dificuldades face ao exterior, circunscritas geograficamente. Trata-se de um ente não definido; não é uma federação pois não tem um governo federal nem é um estado unitário pois os vários países mantêm a grande parte da sua autonomia face ao exterior, como se de estados independentes se tratassem.

Procurou-se, acima de tudo cimentar uma estrutura hierárquica que dotasse uns países de maior poder efetivo que outros, em função das influências em Bruxelas, do apoio que têm do capital financeiro e da força dos capitalistas autóctones; e como hierarquia, baseia-se em desigualdades, na sua gestão, na drenagem de rendimentos das periferias para o Centro, com o endividamento daquelas enquanto coutadas do Centro, que joga na primeira divisão do capital global.
Há uma preocupação particular com um eventual deficit público, com a neutralidade financeira das contas públicas que, se possível, devem gerar um excedente. Subjaz daí uma ideia de equiparação da gestão pública com a de uma empresa privada, embora não se entenda como é possível gerir com lógica empresarial serviços socialmente de baixa, nula ou negativa rendabilidade. E isso associado a receitas obtidas de modo compulsivo, mesmo que seja crescente o volume cobrado com taxas associadas à prestação desses serviços.

Essa obsessão com o equilíbrio orçamental corresponde à negação da opção keynesiana dos orçamentos contracíclicos mas, em contrapartida, vai-se admitindo como necessários enormes diferenças salariais – no espaço comunitário e no seio de cada país - dos custos do trabalho, da dimensão e qualidade dos direitos sociais, na fiscalidade. Portanto, toda a atuação admissível é superficial, ineficaz em termos orçamentais e tendente a alargar os desequilíbrios entre as várias regiões da UE (ou da zona euro). O aumento dos desequilíbrios observa-se também com o empobrecimento de diversos e numerosos segmentos sociais dentro de cada país, como os jovens, saltando entre a precariedade e o desemprego; os idosos, empurrados para uma morte desejavelmente a antecipar; da população ativa em geral submetida a maiores jornadas de trabalho, uma fiscalidade que tende para a extorsão e a redução dos direitos sociais na saúde ou na educação, onde a lógica de mercado gradualmente se estabelece, viabilizada com o apoio de fundos públicos no contexto de nunca acabadas “reformas do Estado”.

Para se obviar a esses desequilíbrios somente se admite um Fundo de Coesão para suprir problemas de desemprego, no âmbito de uma convenção extraída do missal neoliberal de que esses problemas são conjunturais, meras discrepâncias entre a oferta e a procura num tal “mercado de trabalho”. Pagam-se umas obras públicas, contratam-se uns quantos trabalhadores e espera-se que a economia do país responda ao estímulo…

2 – A caminhada até ao euro

Os estados podem tolerar bandeiras e hinos, governos e parlamentos nacionais e regionais, línguas distintas mas, em regra, não aceitam várias moedas de curso corrente.

Em dadas circunstâncias porém, podem circular moedas estrangeiras por conveniente escolha dos povos, quando é evidente a falta de confiança na moeda oficial e apesar do desagrado do poder estatal; noutras circunstâncias, a presença habitual de moeda não nacional verifica-se em meios ligados a um muito difundido contrabando. Em alguns países de capitalismo de estado pode constituir uma forma de segmentar a população, num contexto de controlo apertado de divisas favorecendo a utilização de moeda estrangeira em casos específicos (turismo) ou em lojas com artigos importados de luxo, para benefício dos seus mandarins, sem que o povo lhes tenha acesso. Há ainda situações de renúncia a uma moeda nacional como escolha deliberada, como no caso do Equador, onde a moeda corrente é o dólar americano e para além dos países da zona euro, como está bem de ver.

Se nos recordamos, o abandono do escudo e a adopção do euro foi um processo que, para além da confusão na equiparação dos preços nas duas moedas em pessoas menos escolarizadas e alguns aproveitamentos de “arredondamento”, teve uma aceitação generalizada e o escudo saiu rapidamente de circulação. Os impactos nas taxas de inflação são absolutamente despiciendos – 2.86% e 2.88%, em média anual, respetivamente para 1997/2001 e 2002/2006 – para os períodos imediatamente antes e depois do euro entrar em cena.

É certo que todo o “projeto europeu” foi aceite de modo acrítico, interpretado por capitalistas e mandarins como forma de acesso a fundos comunitários, enriquecedor de empresários e políticos corruptos com ação nacional, regional ou local. E, sem dúvida, a propaganda também contribuiu para que uma transição rápida e pacífica para o euro acontecesse e os escudos não entregues em troca por euros ficassem apenas como recordação nas gavetas particulares ou nos escaparates dos numismatas.

A adesão à UE e posteriormente o euro, como seu prolongamento lógico, foram aceites porque os portugueses conheciam as condições de vida nos países da Europa Ocidental que haviam acolhido mais de um milhão de emigrantes nas décadas de 60/70, fugidas da miséria e da guerra colonial que caraterizavam Portugal. A ideia que tinham da Europa não chocava com a propaganda política que anunciava de modo simplista um futuro de felicidade a uma população ingénua e mal informada.

A abolição das fronteiras, a livre circulação de pessoas e bens, são desejadas por todos os povos, em contraste com a lógica nacionalista de encerramento de toda uma população, constituída em coutada privada de capitalistas nacionais. Estava na memória de todos a passagem da fronteira “a salto”, os elevados pagamentos a intermediários para a colocação de pessoas nas franças, o risco de intercepção pela Guardia Civil, o contrabando, a humilhante abertura do porta-bagagens para os guardas verificarem, nas compras feitas em Espanha, o número de chouriços ou de embalagens de detergente. Esse mundo queria-se para trás e a integração na UE seria um acesso garantido a uma realidade mais cosmopolita e vistas menos centradas no campanário da igreja local. Aliás o parlapatão Mário Soares já em 1976 anunciava a chegada a padrões de vida europeus para … 1980, mesmo sem adesão à UE.

A percepção de rendimentos em escudos dificultava as viagens e as compras no exterior e tinha custos de conversão, para além da tendência para a desvalorização do escudo face às principais moedas de referência. Depois da queda do fascismo, o escudo desvalorizou em 1977 (15%), 1978 (6.1% e por indicação do FMI), mas foi valorizado em 1980 (6%, pois o governo Sá Carneiro “privilegiou mais o objectivo anti-inflacionista, em detrimento da preocupação, anteriormente predominante, de reforçar a competitividade externa da economia portuguesa”[5]. Em 1982, de novo uma desvalorização (9.4%), em 1983 outras duas (2% em março e 12% em junho) até que em 1985, nasceu o mercado de câmbios interbancário à vista, não havendo lugar à intervenção oficial do Banco de Portugal. Num espaço de seis anos (1977/83) o escudo desvalorizou em um terço do seu valor em 1977, numa intenção de embaratecer os produtos exportados e encarecer os bens importados, numa procura ilusória de um equilíbrio externo. Como Portugal tem uma diversificada necessidade de importar – equipamentos, energia, veículos, etc - ficava garantida a repercussão nos preços em escudos, das inevitáveis compras no exterior.

Após um acordo de 1980 iniciavam-se as ajudas de pré-adesão à UE, no valor de 125 M ecus não reembolsáveis e 150 M ecus por empréstimo, substituídas a partir do ano seguinte pelos fundos estruturais. O seu impacto é evidente, medido pelas transferências unilaterais públicas (crédito/entradas), em milhões de contos.


Crédito
% Crédito da Bal. Trans. Correntes
1984
5430
0.4
1985
21817
1.2
1986
81029
3.8
1987
108646
4.1
                                                                         Banco de Portugal – Séries Longas para a Economia Portuguesa

O processo de convergência no seio da CEE produziu o SME – Sistema Monetário Europeu em 1979 que se veio a materializar num MTC – Mecanismo de Taxas de Câmbio que fixou em +2.25%/-2.25% a taxa de variação entre as várias moedas dos países da UE, então com nove membros. Como nem sempre era possível assegurar aquele objetivo, em 1986 decidiu-se manter a regra mas, compensando as potenciais diferenças com a manipulação das taxas de juro nos países envolvidos.

Portugal, mesmo depois da integração na então CEE, em 1986, não entrou no SME, preferindo manter-se um sistema de desvalorização deslizante do escudo (chamado crawling peg), com impactos na inflação - que volta a crescer até 1990 - mas, que permite taxas de juro menos elevadas (16 a 18% em finais de 1988, contra 20 a até mais de 30% em 1982/85). Em 1990, em preparação para a integração do escudo no MTC, Portugal coloca a moeda com uma cotação alicerçada num cabaz das moedas dos países comunitários com mais relações com o país (Alemanha, Espanha, França, Grã-Bretanha e Itália) pretendendo-se assim tentar segurar as contas externas sem o recurso à crónica desvalorização; e de facto, no período que se seguiu, assistiu-se a uma forte queda na taxa de inflação e das taxas de juro ( cerca de 19% no fim de 1992, de 15% em 1994, de 8.5% no final de 1997 para empréstimos a empresas por 91/180 dias). Em 1992 (abril), Portugal adere ao MTC sendo fixada uma equivalência ao ECU (moeda virtual à qual todas as outras se referiam) de 178,735 escudos.

Como imagem dos impactos da desvalorização do escudo, no período 1980/92 observe-se a evolução da cotação em escudos, para algumas das principais moedas.

Equivalente em escudos de uma unidade (final do periodo)

dólar
libra
franco fr
marco
peseta
1980
53,0
126,5
11,6
27,1
0,671
1981
65,2
124,5
11,4
29,0
0,676
1982
89,1
143,6
13,2
37,5
0,713
1983
131,5
190,5
15,8
48,2
0,838
1984
169,3
196,0
17,6
53,7
0,977
1985
157,5
227,3
20,9
64,3
1,030
1986
146,1
215,5
22,7
75,4
1,110
1987
129,9
243,2
24,3
82,2
1,200
1988
146,4
265,1
24,2
82,6
1,290
1989
149,8
240,6
25,9
88,5
1,370
1990
133,6
258,1
26,2
89,5
1,400
1991
134,2
250,9
25,9
88,3
1,390
1992
146,8
222,7
26,7
90,9
1,280






2001
172,4
285,7
30,7
102,0
1,21
                        Fontes: Banco de Portugal
                                          http://www.oanda.com/lang/pt/currency/historical-rates/

A conjuntura mostra-se complexa nos anos 90, devido à recessão inglesa que acaba por afastar a Grã-Bretanha do MTC (juntamente com a Itália) e do processo conducente ao euro, ao enorme desemprego espanhol que provoca sucessivas desvalorizações da peseta, à inflação e às altas taxas de juro alemães que valorizam o marco; todos, são alguns dos factores que conduzem uma instabilidade monetária pouco desejada.

A integração do escudo no MTC e até 1998 - quando em maio, são fixadas definitivamente as cotações das moedas contidas no MTC – não evita novas alterações nas paridades do escudo, sobretudo, para acompanhamento total ou parcial das desvalorizações espanholas, susceptíveis de afetar a economia portuguesa. Os ditos “mercados” não separavam escudo da peseta embora Portugal considerasse mais interessante acompanhar o marco por razões de luta anti-inflacionista. Portugal desvaloriza o escudo em novembro de 1992 (6%), em maio de 1993 (6.5%) e em 1995 (3.5%).

A tão desejada liberdade de circulação dos capitais, na realidade, favorecia os especuladores que podiam escolher o país/moeda onde apontar as suas baterias, jogar com as suas disparidades, com as diferenças nas situações conjunturais ou nas reservas cambiais e até elementos estranhos à Europa, como a crise mexicana de pagamentos em 1995, que promoveu uma grande procura (e valorização) do marco por parte de especuladores que se queriam desfazer de dólares. Nesse contexto, não havia condições para garantir uma convergência entre as moedas com base nas reservas dos vários bancos centrais e daí que em agosto de 1993 a banda de flutuação das moedas integradas no MTC passasse para -15%/+15%; o que de facto, ao reduzir as veleidades especulativas dos “mercados”, anulava também os objetivos de estabilidade entre as paridades das moedas e a convergência no sentido da criação de uma moeda única.
A fixação definitiva das taxas de câmbio na última fase da criação da moeda única ainda em modo escritural (1999) colocava várias condições aos países aderentes – os critérios de convergência que já abordamos no primeiro capítulo deste trabalho[6].
Em suma, ao observar-se toda esta caminhada que desembocou no euro conclui-se, para Portugal:
  • uma redução substancial da crónica inflação que se registou até ao início da década de 90 e já vinda dos tempos do fascismo:
  • uma baixa significativa das taxas de juro que se situavam entre 4.66% e 6.66% em 2013 e que permitiu a obtenção de crédito, malbaratado pela supremacia do capital financeiro sobre a classe política e os capitalistas comuns, oleada pela já endémica corrupção;
  • o desaparecimento da variável cambial – protagonizada por várias desvalorizações do escudo entre 1977 e 1995 - nas relações entre Portugal e a maioria dos seus principais parceiros comerciais;
  • a desvalorização da produção nacional, medida em relação às principais divisas é marcante quando se compara as cotações de 2001 (nas vésperas da adopção do euro) e de 1980. Em 2001, o dólar valia mais 3.3 vezes do que em 1980, a libra 2.3, o franco francês 2.6, o marco 3.8 e a peseta 1.8 vezes.
Tudo isto se verifica num contexto de desigualdade e subalternidade que são históricas e da integração entre as economias ibéricas e europeias, conduzidas pelo capital sediado no Centro da UE, enquanto caso particular da globalização. Essa desigualdade, no plano geopolítico tem, naturalmente, um impacto dramático em Portugal, na repartição do rendimento, agudizado nos últimos anos na sequência das dificuldades da banca, transferidas para o Estado que, por sua vez, as endossou para a população, o que é bem visível no gráfico seguinte (graf. 2).
                              (graf. 2)

3 - Centrar na moeda a causa das desgraças é um fetichismo

Quando se considera a moeda como a causa das desgraças nacionais é patente nisso a criação de um fetiche; o que configura um projeto reacionário.

3.1 – A trama do capital financeiro

Conforme se tem referido em textos anteriores[7], a trama montada pelo capital financeiro e aplicada, nomeadamente pelo partido-estado (PSD/PS), baseou-se no recurso massivo ao crédito externo, depois de absorvida a poupança interna e, a partir de meados da década de 90:

  • esse crédito dirigiu-se particularmente para os sectores do imobiliário/construção/obra pública, com o final envolvimento das famílias nesse endividamento, com a aplicação descuidada de fundos comunitários, com a sua transformação em parcerias público-privadas. Nesse percurso, ficaram prejudicados, a melhoria do aparelho produtivo e o relevo deste para a redução do deficit externo;


  • outra parte desse crédito acabou por ser reexportado para o exterior, para usufruto de benefícios fiscais e para o exercício de atividades criminosas; uma vez mais envolvendo a banca e as empresas de regime, na sua maioria presentes no PSI-20.
Tem havido uma campanha mediática no sentido da focagem da responsabilidade próxima da crise no endividamento público e numa acusação capciosa da população por “ter vivido acima das suas responsabilidades”. E para que isso se apresente como adequado à dita tradição católica dos portugueses, estes terão de penar pelas suas culpas e sem outra saída que não o “aguentam, aguentam” saído da cloaca de um banqueiro. A essa campanha junta-se o silenciamento junto da multidão, do desmascaramento dos principais responsáveis:

  • o sistema financeiro - esse sim que viveu muito acima das suas possibilidades como se vê pela sua precária situação;


  • e a classe política, imputando uns, ao Estado os custos da sobrevivência dos bancos e outros, entretendo a multidão com fait-divers parlamentares.
Pode dizer-se que se trata de uma crise do capitalismo o que, com toda a facilidade se usa como bordão para não objetivizar as responsabilidades em cada momento. E isso é mesmo uma banalidade, uma vez que o capitalismo vive da crise e em crise desde que se tornou sistema político e económico dominante. E há mesmo candidatos a videntes que extraem dos clássicos da economia política e dos seus falsificadores, sistematicamente, a crise final do capitalismo.

Tem havido uma recusa objetiva das responsabilidades desta trama no brutal endividamento público e privado, com a imputação dos custos do seu financiamento para a população, mormente para segmentos específicos como funcionários públicos, reformados e desempregados.

3.2 – A dívida pública e o euro

Sendo a dívida pública reconhecidamente impagável[8] não se entende como uma saída do euro promove uma resolução do problema. Por outro lado, na esquerda institucional, tem vigorado como dogma que a dívida é toda para pagar clamando-se apenas por uma renegociação de prazos e taxas de juro que, a ser aceite pelos credores, em caso algum comportaria um alívio sensível do peso do serviço de dívida. Essa aceitação exigiria uma nova política comunitária, muito para além da estreiteza dos instrumentos monetários usados pelo BCE - taxas de juro baixas numa baldada esperança que isso promova um surto de investimento e, compra de dívida no mercado secundário. As esperanças numa mutualização de parte da divida (acima dos 60% do PIB) morreram com a reeleição de Merkel; a sua aceitação exigiria dirigentes comunitários não comprometidos com a trajetória dos últimos anos, uma saída de cena da própria Merkel e ainda, que assumissem ter sido toda a política conducente ao endividamento dos estados, devida ao refinanciamento dos bancos falidos e à defesa do euro. Por outro lado, nunca se viu da parte dos países endividados qualquer amostra de estratégia comum face às estruturas comunitárias e ao FMI; assistiu-se, na essência, a uma obediência canina dos governos nacionais face à ortodoxia neoliberal emanada das altas instâncias, por conveniência do capital financeiro, em estancar localmente a propagação dos tóxicos com o concomitante aumento das dívidas nacionais transmitidas para a população, de modo fortemente assimétrico, sádico.

Na realidade, qualquer saída que favoreça a multidão só poderá surgir na sequência de alterações na estrutura económica, no enquadramento europeu, comunitário ou não e do ordenamento político interno.

Se se aponta para uma renegociação da dívida – tomando toda por legítima - como instrumento de saída do torniquete em nome do qual se colocou todo um povo em quarentena, então que sentido faz clamar pela saída do euro (e até da UE)?

Se nem sequer é colocada a questão da recusa de dívida ilegítima – por exemplo, os compromissos públicos com a recapitalização dos bancos (€ 12000 M), a gerada em torno do caso BPN, a denúncia dos contratos inerentes às parcerias público-privadas – porque se avança para uma saída do euro? Sai-se do euro mas cumpre-se escrupulosamente o serviço de dívida? Sai-se do euro sem, previamente, aventar a suspensão do pagamento da dívida por motivos de força maior?

Se se aceita que essa guerra pode ser ganha com o recurso a um morteiro porque razão se defende o uso da bomba atómica?

Quando se recusa a existência de uma dívida ilegítima – caso da chamada esquerda parlamentar defensora do abandono do euro (PC) ou não (BE) – isso significa legitimação da dívida contraída para pagar os desmandos do sistema financeiro e dos seus mainatos com funções políticas. A aceitação da legitimidade de toda a dívida, a afirmação de que toda a dívida deve ser honrada e paga… apenas com prestações mais suaves, revela a aceitação do predomínio do sistema financeiro e do missal neoliberal que o sustenta; significa uma aceitação implícita da justeza da austeridade como saneadora dos balanços da banca.

É vasta a literatura jurídica e económica que aborda situações de ilegitimidade no pagamento de dívidas soberanas. Por exemplo, o jurista alemão que em meados do século XIX muito influenciou o ordenamento jurídico francês – Karl E. Zachariae – reconhecia não se poder faltar ao compromisso do pagamento da dívida mas que os governos têm um dever de ordem superior ao de pagar aos seus credores: o de manter vivos os seus cidadãos. E que não existe outra alternativa que não ignorar os as queixas dos seus credores.

Não existindo qualquer estudo de avaliação concreta das consequências da saída do euro, só o populismo pode justificar essa posição. Tendo pouca visibilidade a expressão política da defesa da saída do euro por parte da direita cabe a uma certa “esquerda” a procura do apoio de franjas eleitorais pouco esclarecidas mas, radicalizadas pela austeridade e pelo desemprego, sensíveis ao sonho isolacionista ou nacionalista que, em outras latitudes seriam atraídas pela extrema-direita. Em Portugal não há uma pública e organizada xenofobia, como em França, Itália ou Grécia dada a pequena notoriedade dos emigrantes, favorecida pela sua concentração geográfica; no entanto, está longe de ser raro encontrar um substrato racista em conversas comuns. Daí que seja possível a uma certa “esquerda” apresentar-se nacionalista e garantir um eleitorado com posições formalmente progressistas, sem o recurso à cartada xenófoba.

3.3 – O deficit externo e o euro

A existência de uma moeda nacional, de uma fronteira monetária, terá algum sentido com uma economia geradora de superavits externos e um desenvolvido mercado interno, alicerçados numa densa matriz de relações inter-sectoriais, susceptível de gerar uma baixa inflação e estabilidade cambial (Suíça, Suécia, Japão). Numa economia com deficits externos estruturais[9] e uma enorme e condicionadora dívida pública ou privada, com uma estrutura produtiva como caótico local de encontro de redes multinacionais, com escassa coerência interna no espaço nacional, é natural a existência de uma moeda própria frágil e submetida a pressões diversas no sentido da desvalorização, como nos anos 70/80, em Portugal. Sabe-se que as desvalorizações da moeda são potencialmente facilitadoras de exportações e desincentivadoras de importações, sendo ambas, em conjunto inflacionistas, quer por pressão dos trabalhadores para a reposição do poder de compra, repercutidos nos preços pelos capitalistas, quer pelo impacto dos mais elevados preços de bens importados expressos na moeda nacional. Sabe-se também que essas ondas de choque da desvalorização traduzidas em inflação têm um impacto temporário, voltando-se à situação inicial, passados poucos anos, com um nível mais elevado nos preços internos.

Parte significativa da exportação portuguesa tem origem em empresas de capital estrangeiro que se mantêm em Portugal, dadas as condições de trabalho, salariais e de enquadramento jurídico e ainda dada a conflitualidade. Altos níveis de inflação, instabilidade cambial e conflitualidade social com lutas de trabalhadores pela reposição de poder de compra não atraem investidores e a concorrência na oferta de trabalho barato e dócil é muito vasta. No capítulo das empresas estrangeiras instaladas em Portugal e viradas para a satisfação do consumo interno a atualização dos preços dos componentes importados é imediata à desvalorização a não ser que o Estado autóctone avance com fórmulas de fixação administrativa de preços de bens essenciais ou outras, sobre os preços, que pretendam atenuar a inflação.

Os importadores em geral, com toda a naturalidade, atualizam os preços como consequência da maior expressão em moeda nacional dos bens importados e procurarão que os consumidores nacionais consigam manter o seu poder de compra para evitar uma erosão nas vendas. Se o consumo baixar demasiado, fecham as portas.

3.4 - Subfacturação e sobrefaturação

Os corruptos e os empresários em geral - e os dos países de menor gabarito, em particular - desenvolvem a meritória atividade de colocação de pecúlios em registos off-shore, com a interessada colaboração do sistema financeiro. A fuga fiscal é uma regra a que o grosso da população não tem acesso, escrutinada que é a sua vida pelos funcionários do Fisco, através de extensas aplicações informáticas e em cruzamentos cada vez mais detalhados e invasivos. Essa prática insere-se numa vasta panóplia de procedimentos que enformam a chamada economia paralela ou subterrânea e que em Portugal corresponde a um quarto do PIB; e permite também, sob diversos ângulos, a sobrevivência de trabalhadores independentes, de negócios de biscate e de pequenas empresas que seriam inviáveis se cumprissem rigorosamente os ditames agilizadores da punção fiscal exercida pelo Estado cleptocrático.

Um exemplo típico da fuga fiscal institucional prende-se com a Swatch, conhecida marca de relógios suíços, vendidos na Europa com faturas emitidas na Zona Franca da Madeira; essa faturação valia € 597 M em 2009[10] e escusado será dizer que os relógios não foram produzidos na Madeira, nem sequer passaram ao largo da região. A questão é que a faturação registada na Zona Franca tem uma carga fiscal diminuta que, na Suíça seria impossível.

Abordaremos aqui apenas os aspetos da subfacturação e da sobrefaturação, relacionados com questões cambiais e monetárias. As diferenças cambiais entre moedas fortes e fracas são também um bom argumento para a utilização de off-shores por parte de valorosos e patrióticos empresários.

Suponhamos que um daqueles empresários que figuram nas fábulas do empreendorismo exporta €100000 de mercadoria e esse dinheiro entra direitinho nos registos da balança comercial portuguesa. Essa figura será a de um candidato à canonização.

Entremos na realidade e vejamos como as coisas podem acontecer com um empresário típico. Ele “vende” a mesma mercadoria para um seu off-shore por € 80000 e, por sua vez essa empresa fantasma fatura ao cliente os efetivos €100000, gerando-se assim, no final um depósito de € 20000 no referido registo off-shore em nome do intrépido criador de riqueza e emprego e de sua digníssima família, limpos de impostos. Naturalmente, isso vai acontecendo, hoje, por razões fiscais e, numa hipótese de moeda própria, sem aceitação no exterior e objeto de sucessivas desvalorizações “competitivas”, abre-se um novo motivo de incentivo à fraude. O valoroso empresário irá transferir apenas os €80000 para Portugal, a converter parcialmente em moeda nacional para pagar salários e despesas locais de fabrico e ainda poderá pedir ao governo incentivos à exportação, bonificações fiscais, etc para se manter competitivo…

Um importador, colega do anterior esforçado exportador, procede de modo idêntico. Transfere os € 100000 para pagamento de uma fatura emitida por um off-shore que controla, tendo este, por sua vez comprado algures a mercadoria por € 80000. Neste caso, não é um quantitativo de dinheiro que não entra pela fronteira como no caso anterior mas, um valor que sai direto para o bolso do importador algures num off-shore, por conta de uma mercadoria que custou 80% do volume de divisas registado na balança comercial; é a sobrefaturação.

3.5 – A relação trabalho/capital e o euro

Os defensores da saída do euro, nada acrescentam no capítulo da relação trabalho/capital, perpetuando essa relação favorável aos capitalistas; como nacionalistas ou keynesianos, as questões sociais são subalternizados no contexto dos seus economicismos ou preconceitos patrióticos. O modelo de moeda própria associado a desvalorizações “competitivas” e a subsequente inflação tende a acentuar a pressão sobre os trabalhadores, para serem mais competitivos, mais produtivos, para trabalharem mais e serem parcos de rendimentos para vencerem a concorrência externa. Esta só pode ser vencida se a produção nacional for mais barata nos mercados externos; e daí a pressão para a perda nos salários reais associada a uma pesada carga fiscal pois as empresas têm de a ter aligeirada, competindo ao Estado – neoliberal ou keynesiano - apoiar as empresas nesse patriótico desígnio exportador. Tudo isso já acontece hoje e a desvalorização da moeda constituiria mais um incentivo a essa deriva repressiva. É fácil de entender que os defensores da saída do euro secundarizam a importância dos desequilíbrios na relação trabalho/capital, como se viu acima a propósito dos efeitos da inflação antes da adopção do euro e que penalizam os trabalhadores.

A desvalorização da moeda, sobretudo se frequente, é um instrumento que favorece os sectores exportadores e, dificultando as importações pode constituir um inventivo na sua substituição por produção interna embora esta, em muitos casos tendo forte componente importada (energia, matérias primas, equipamento) lhe possa retirar esse benefício. Dado o potencial de conflitualidade acarretado pela inflação associado à pressão patronal para a baixa dos salários reais, quem poderia beneficiar com a situação seriam os sindicalistas amarelos, sempre mais atentos aos interesses “nacionais” em sede de concertação social do que aos interesses dos trabalhadores.

Uma política de desvalorização “competitiva” de uma moeda é acomodatícia; isto é, os exportadores habituam-se a esse incentivo, pouco exigente em termos das alterações na composição orgânica de capital, na qualidade de gestão e, por consequência, não se materializam em apelos à criatividade e ao investimento, perpetuando as desigualdades regionais, neste caso no seio da UE.

Tendo em conta a regular perda de valor da moeda nacional, face às moedas de referência, é natural que muitos empresários se foquem em atividades focadas no mercado interno, sobretudo as que não são objeto de grande concorrência vinda do exterior, ou mesmo não susceptíveis de transações envolvendo transporte, como por exemplo, o imobiliário. Voltaríamos a uma orgia imobiliária desta vez já não financiada junto da banca internacional ou pelos fundos comunitários mas, alicerçada na emissão monetária do BdP? Com uma nova configuração, voltaríamos à política do betão e da betoneira a seguir à que recentemente conhecemos e cujos nefastos efeitos estão patentes? Iríamos construir mais habitações para uma população precária e sem rendimentos razoáveis ou estáveis ou, segundo a deriva alucinada da direita, ir-se-ia promover a vinda de reformados endinheirados do norte da Europa para alimentar esse novo surto imobiliário?

Por outro lado, a aceitação passiva da competitividade é princípio imanente nos debates, para a condução das economias e configuração da vida social; é um princípio de atávico conservadorismo. Será a competitividade, complementada pelo consumismo e pelo crescimento infinito, um valor a preservar? Será que se pode coadunar a aceitação da competitividade com uma postura anti-capitalista? É uma contradição que não vive na “esquerda” do sistema político, porque capitalista.

3.6 – O processo de transição para uma moeda nacional

Um aspeto interessante (entre muitos outros) sobre o qual os arautos da saída do euro não apresentam soluções refere-se à troca de moeda corrente, com a substituição do euro por moeda nacional, suponhamos, de novo, o escudo. O processo não seria, naturalmente, tão isento de sobressaltos como em 2002, quando os portugueses entregaram os escudos em troca de euros. Uma coisa é entregar uma moeda fraca, de curso circunscrito por troca com outra – o euro - reconhecida como forte, com procura generalizada e com escassas necessidades de ser trocada por outra divisa e outra é entregar euros e receber em troca uma moeda de curso limitado e condenada à desvalorização. O entesouramento de euros seria extensivo, adequado às disponibilidades de cada um e, de facto, vigorariam em Portugal duas moedas uma forte e outra fraca.

Tendo em conta a situação financeira portuguesa de deficit externo crónico acrescido de uma enorme dívida externa, pública e privada, muito provavelmente não seria utilizada a mesma paridade usada em 2002, quando da adopção do euro - € 1 = 200,482 escudos. Mesmo que a saída do euro fosse objeto de uma negociação benevolente por parte do BCE, da Comissão Europeia e do Conselho e não resultado de uma mais que provável crispação, cremos que a paridade seria mais desvantajosa do que a definida em 2002.

Para além da questão da paridade inicial, quem ficará feliz por entregar euros em troca de uma moeda que não terá circulação do outro lado do Caia e que se vai desvalorizar a curto prazo? As pessoas têm bastante racionalidade na abordagem das suas conveniências e tratarão de guardar o máximo de euros para adquirirem bens no exterior ou no âmbito de um contrabando que, certamente se tornará numa vultuosa atividade económica nacional.

Como muita gente verá os seus rendimentos regulares – salários e pensões – serem pagos em escudos, muitos procurarão encontrar euros, dólares… para comprar bens de contrabando ou, na falta deles entregarão escudos com um câmbio desfavorável face ao oficial. Dada a dimensão da atividade turística, os seus trabalhadores terão acesso facilitado a divisas, como é comum em países menos desenvolvidos e que depois municiarão as suas famílias e amigos para a obtenção de bens no exterior ou nos meios do contrabando. Gerar-se-ia aí mais um factor de desigualdade em Portugal.

O anúncio do regresso ao escudo tenderá a promover uma corrida ao levantamento de depósitos em euros, como são hoje. Têm os bancos reservas monetárias para satisfazer essa procura? Claro que não têm e esse movimento massivo de levantamento de depósitos teria de ser reprimido pelo Estado que, uma vez mais estaria do lado dos bancos, contra a população. Fechariam as agências bancárias e deixariam “secas” as caixas MB para evitar a bancarrota dos bancos? E deixariam como possível a transferência para contas no exterior, em euros? Utilizariam magotes de polícias para conter a multidão roubada e enfurecida, como na Argentina?

Dito de outro modo, grande parte das poupanças das pessoas seria expropriada, de facto, pelo binómio bancos/Estado, apenas lhes sendo permitido levantar os seus haveres quando os bancos estivessem municiados de escudos; isto é, quando as pessoas se desinteressassem de levantar os seus depósitos já reconvertidos em moeda nacional. Se o Estado português de hoje já tem escassa credibilidade após décadas de enfeudamento ao sistema financeiro e devido aos últimos anos de empobrecimento, que legitimidade lhe sobraria depois desse “golpe do baú”? E o sistema político resistiria ao afundamento dessa ilegitimidade agravada?

Não é concebível que toda a preparação do regresso ao escudo possa ser feita em perfeito sigilo até que num certo dia (uma segunda-feira) as pessoas acordariam com os noticiários a informarem tamanha alteração nas suas vidas e com as caixas MB recheadas de escudos. A logística e a duração da sua montagem não poderiam passar desapercebidas, por muitas cautelas que o BdP e o governo tivessem. Os funcionários envolvidos na operação, as empresas de segurança que municiam agências bancárias e caixas MB manteriam o sigilo junto das suas famílias? E ficariam mudos e quedos a assistir ao golpe de mão sobre as suas próprias poupanças? Como se viu no caso recente do BES, a notificação do Carlos Costa num domingo à noite, não evitou que houvesse prévias fugas de informação que beneficiaram uns quantos; ora uma operação de mudança de moeda forte para outra fraca é algo de uma complexidade e de uma relevância coletiva muito maior e a mais pequena fuga de informação não deixaria de se ver amplificada, destruindo todas as precauções governamentais.

Mais, essa operação teria de passar certamente por contactos, negociações, acertos com o BCE e as instituições de Bruxelas durante algum tempo. Nada passaria para a imprensa? Duvidamos que a burla sobre 10 milhões de pessoas se concretizasse no seu total desconhecimento. E se isso acontecesse e a multidão acordasse nessa segunda-feira negra na situação de enganada e espoliada?

Uma passagem do euro para o escudo pouparia as poupanças dos criminosos que colocam o seu pecúlio em off-shores. Até os favoreceria. Primeiro, porque não são abrangidos pela troca de moeda, continuando incólumes os seus depósitos em euros ou dólares, ao contrário do que acontece com a esmagadora maioria dos portugueses; e mais, ficando de fora, beneficiarão da política de desvalorização da moeda subsequente à re-introdução do escudo. Em síntese, os empresários de médio ou alto gabarito, os gestores de topo e os mandarins verão valorizada parte substancial das suas poupanças, de origem criminosa.

3.7 - Os impactos sobre a dívida e o acesso ao crédito

Todos sabemos que o BCE tem fornecido uma almofada para que o Estado português consiga crédito; e a sua titularidade em euros constitui uma garantia face a uma desvalorização cambial, junto dos credores. De modo idêntico, o BCE constitui a fonte de abastecimento para os bancos portugueses, em dificuldades com a colocação de créditos em empresas sustentáveis - que não abundam numa economia em recessão - e em se aliviarem do malparado.

Numa concretização de saída do euro (se não a partir do seu mero anúncio), o BCE deixa de existir face a Portugal e exige o reembolso dos financiamentos de curto prazo aos bancos como se observou recentemente no caso BES. Que alternativa? Aumentos de capital dos mesmos ou financiamento do BdP como regulador integral, eventualmente através de emissão monetária? Quanto aos apoios do BCE e dos fundos europeus[11] no âmbito da intervenção da troika, as coisas poderiam ser mais delicadas pois saindo Portugal da zona euro, aqueles canais e veículos ficariam indisponíveis ou, numa hipótese de maior benevolência, seria dado um prazo para a amortização daqueles créditos, em euros, naturalmente.

Tomando o caso da dívida pública, é evidente que continuaria a ser exigida em euros o pagamento de capital e juros por parte dos credores estrangeiros, podendo ter menor sorte os titulares nacionais de certificados de aforro, por exemplo.

A dívida pública, excluídos os certificados de aforro, é da ordem dos € 200000 M e a sua conversão em escudos, com a paridade de € 1 = 200,482 escudos, utilizada em 2002, corresponderia, sensivelmente a 40 biliões de escudos. Logo numa primeira desvalorização, supondo de 5% e sem alteração no volume em euros, aquela dívida passaria para 42 biliões de escudos, com o pagamento do serviço de dívida a pesar sobre salários e outros rendimentos; essa desvalorização só seria indiferente nos casos em que aqueles rendimentos aumentassem, em moeda nacional, na mesma proporção o que no caso de salários ou pensões não aconteceria, com grande probabilidade.

Qualquer crédito obtido no exterior, por hipótese, em euros e pagável em euros terá um acréscimo em moeda nacional proporcional à sua desvalorização, com concomitante reflexo nas taxas de juro internas praticadas pelos bancos que contemplarão, não somente o impacto do maior risco considerado pelos prestamistas externos como ainda a cobertura da inflação. A subida e a incerteza das taxas de juro induzida da inflação e do risco seriam certamente penalizadores, promovendo também, de per si, inflação.

Este e outros textos em:    






[2]  http://www.scribd.com/doc/14290349/Nacionalizacao-da-banca-piada-ou-mistificacao
[3]  http://www.scribd.com/doc/11134622/BPN-Exemplo-Pratico-Do-Que-e-o-Capitalismo
[4]  http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/08/o-bes-bom-o-bes-mau-e-ma-gestao-dos.html
[5]  http://www.bportugal.pt/EstatisticasWEB/MetadataItens/Metadata_Ramo_HistoricoEscudo.htm
[6]   http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/07/portugal-deve-sair-do-euro-sim-ou-nao-1.html
[9]  Os esporádicos recentes superavits mensais na balança de transações correntes, têm resultado de factores pontuais (vendas da Galp), de reduções no consumo resultantes da austeridade, do desemprego e da emigração e da estagnação das importações de equipamentos, inerentes à estagnação do investimento.
[10]  Conferir detalhes em Suite 605 de João Pedro Martins
[11]  http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/03/porque-nao-e-pagavel-divida-publica.html

1 comentário:

  1. Falem da evolução da Balança de Transacções Correntes desde 1953 para cá.

    Digam a VERDADE sobre os efeitos da adesão ao Euro de um país que sempre gastou mais do que produziu e que se habituou a viver à CONTA: à conta das colónias, à conta dos emigrantes, e à conta dos Fundos europeus.
    Que, até 1995, apesar do país “gastar”, em média, mais do que produzia, a dinâmica de crescimento da dívida externa era sustentável em resultado de sucessivas desvalorizações cambiais e do efeito destas sobretudo na PII do país, na balança de transferências unilaterais e na balança de rendimentos. E que, como a partir de meados de 1993, deixaram de ocorrer as desvalorizações cambiais no âmbito do processo de adesão ao euro, daí resultou que a balança de transferências correntes e a balança de capital passassem a decrescer em percentagem do PIB e, portanto, deixassem de ser suficientes para suportar o elevado défice da balança comercial e o crescente défice da balança de rendimentos (resultante do crescente passivo externo líquido).
    Sendo que, após 1995, com a estabilidade cambial, esse efeito desapareceu de vez, levando a uma dinâmica de crescimento insustentável do passivo externo líquido e a um progressivo aumento das necessidades líquidas de financiamento da economia. Maria Manuela.
    http://viriatoapedrada.blogspot.pt/2012/11/portugal-ja-esteve-varias-vezes-na.html

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