quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Portugal deve sair do euro? Sim ou não? (2)




A subalternidade das pequenas nações, a austeridade e a pobreza estão garantidas em capitalismo, com ou sem euro. A solução só pode surgir a partir da solidariedade dos povos europeus, da Ibéria em particular, num quadro de prioridade para a satisfação das necessidades coletivas

Sumário

Conclusões
6 – A constante reconstrução das desigualdades
8 – A dependência externa de Portugal
7 – Processos globais de integração capitalista
9 – O endividamento externo e a subalternidade
10 - Sair do euro?


Conclusões

  • Sendo o capitalismo um sistema hierárquico por excelência, o capitalismo mais avançado subalterniza as formas menos evoluídas e gera desigualdades profundas entre os povos submetidos;
  • Num quadro de globalização ainda em expansão, soluções nacionalistas para o capitalismo, mesmo que ancoradas numa moeda própria, são opções quixotescas para países pequenos e subalternos;
  • Portugal continua num plano de redução da importância dos capitalistas indígenas, relegados para áreas menos tecnológicas ou dependentes dos baixos salários e, consequentemente a ser objeto de integração em redes de negócio com uma lógica transnacional que desmonta fronteiras e soberanias nacionais;
  • A construção da UE assenta na hierarquização dos territórios e na sucessiva criação de instrumentos que facilitem as trocas, gerando-se áreas com excedentes externos tendencialmente credoras de outras, com deficits;
  • O sistema financeiro e as multinacionais prosseguem a concentração de poder e, ao mesmo tempo, a unificação do mundo sob o seu poder, diluindo ainda mais as soberanias nacionais. A UE como parte desse processo estará a ser superada por integração num TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership, como também numa lógica militarista soprada do Pentágono;
  • O deficit da balança de transações em Portugal é estrutural sendo ultimamente menor dada a austeridade e a ausência de investimento e essa é a situação típica da periferia Sul da UE; a adopção ou não do euro não é correlacionável com uma situação positiva ou negativa da balança de transações correntes;
  • O desequilíbrio da conta corrente com o exterior manifesta-se regularmente muito antes da adopção do euro, é dos mais acentuados da Europa e para o efeito, o principal contributo vem dos empréstimos obtidos;
  • Esses empréstimos obtidos no exterior são largamente assumidos pelo sistema financeiro até à eclosão da crise de 2007/08. As dificuldades de refinanciamento externo por parte dos bancos conduziram a problemas graves na concessão do crédito, na assunção de malparado e foram supridas pelo BCE, numa primeira fase, até a troika incluir na dívida pública a intermediação do refinanciamento do sistema bancário, cuja último e desastroso acto dá pelo nome de BES;
  • Essa responsabilização pública pela recapitalização dos bancos tem tido um papel importante na política de cortes em rendimentos e direitos da população que assim se vê onerada por uma dívida privada. Com surpresa para alguns, na classe política não se vem observando qualquer levantamento da ilegitimidade de parte da dívida destinada aos bancos e não só;
  • Nos segmentos mais nacionalistas da chamada esquerda, curiosamente, a recusa do levantamento da ilegitimidade de dívida coincide com propostas tão radicais como suicidas, de saída do euro e da UE;
  • O principal risco de saída do euro poderá surgir de uma qualquer engenharia política das principais potências europeias que ultrapasse o vazio legal no contexto comunitário, num quadro de grande instabilidade do euro, em paralelo com a continuidade do afundamento económico e social de Portugal;
  • Para já, está no terreno o pagamento dos juros da dívida pública como instrumento de dependência e da tutela das altas instâncias da UE sobre as finanças públicas, com implicações nocivas e duradouras sobre os portugueses;
  • E está, certamente, colocado fora de causa uma deriva nacionalista e autárcica, por razões de ordenamento político e económico global, por razões de ordem histórica ou que se prendem com as interligações externas de Portugal e ainda por conveniência (ou menor inconveniência) de quem vive em Portugal.

6 – A constante reconstrução das desigualdades

Em Portugal, a desestruturação resultante da inserção nas cadeias transnacionais que desenham o perfil produtivo da UE e do mundo interage com uma deliberada escolha histórica dos capitalistas portugueses, em privilegiar, sectores de baixa incorporação tecnológica, salários baixos, pouco sujeitos à concorrência externa uma vez que têm porque têm sido aqueles sectores a permitir melhores remunerações do capital, comparativamente a outras, no plano das suas capacidades técnicas e disponibilidade de meios. 

Na hierarquia do capital acontece como nas hierarquias sociais. Ao subalterno, ao serviçal apenas são possíveis as escolhas admitidas pelos senhores.

No plano do capitalismo, essa escolha só seria diferente no contexto de um aparelho de estado capitalista, desenvolvimentista, interventor, keynesiano e apostado numa reestruturação profunda da estrutura empresarial portuguesa, à semelhança do registado nos anos 60 e 70 nos designados “tigres asiáticos” (Coreia do Sul, Formosa, Singapura). Ora esse modelo não tem possibilidades de aplicação no contexto da UE e nas proximidades da mudança de século, após a vitória do modelo neoliberal e o enterro do keynesianismo. 

Quer um quer o outro – o modelo dos “tigres” ou o neoliberal - certamente não por acaso, se baseiam na repressão dos trabalhadores, na compressão do seu poder de compra, dos seus direitos, com fraco apreço pela democracia. No caso daqueles países asiáticos, observou-se um tipo de capitalismo de estado, um processo que se desenvolveu no quadro de um acirrado protecionismo e de forte nacionalismo, em torno de poderosos grupos económicos protegidos e financiados pelos estados; só numa segunda fase se procedeu a algum planeamento da relação rendimentos do trabalho/consumo interno e alguma descompressão no pendor totalitário, com aqueles países, hoje rendidos à democracia de mercado, com gangs partidários e o consumismo necessário para manter mansa a multidão. O modelo dos “tigres” foi, em muito, copiado da prática japonesa do pós-guerra e continuado posteriormente pela China; aqui, ainda sem a adopção da democracia de mercado mas, antes na tradição centralista e corrupta dos velhos mandarins dos tempos do império.

Em Portugal, pelo contrário, assiste-se – e hoje sob pressão do pagamento da dívida pública – à transferência de áreas públicas para a inserção em grupos estrangeiros, bem como à compra de empresas privadas por capitais externos, processo que se vem atenuando, parecendo esgotado, como se observou em outras ocasiões[1]. Não é estranho que o espaço português constitua uma área de confluência entre diversas redes internacionais do capital, para além de interesses ligados ao “establishment” angolano ou de magnatas chineses em busca de lavandaria, sob a forma, tão acarinhada por Portas, dos passaportes dourados. Falta acrescentar um capitalismo luso, inepto, descapitalizado, subalterno. Se dessa confluência emanasse uma estruturação virtuosa do espaço português e para os residentes em Portugal, não seria sequer obra do acaso mas, um milagre da senhora de Fátima. 

O perfil da instrução da população em Portugal é claramente mais pobre do que nos outros países da Europa e revela precisamente as caraterísticas do capitalismo em Portugal[2], bem como do tipo de inserção nas redes globais de negócio. As pessoas mais qualificadas integram-se em empresas de capital estrangeiro ou emigram, como produtos de universidades mercantis viradas para a exportação de jovens com formação; ou para a reexportação de alunos provenientes de países terceiros, onde as propinas são bem mais caras que em Portugal.

Para a atividade turística, serviços pessoais, têxtil, calçado ou construção não se requer, em geral, grande volume de pessoas com um alto padrão de qualificações; bastam qualificações médias e baixas. No trabalho em Portugal vigoram as regras de “empresários” que despedem trabalhadoras grávidas ou impedidas de engravidar ou ir à casa de banho, de utilizadores de estagiários pagos pelo Estado, de horas extras não pagas, etc; regras sempre em apuramento repressivo por parte do governo. 

O modelo de (sub)desenvolvimento baseado na competitividade exportadora, tão divulgado pelo Pires das cervejas ou pelo Paulo dos submarinos está bem presente no quadro seguinte, onde se evidenciam os baixos salários de importantes atividades exportadoras. O têxtil é mesmo o sector campeão, com o salário médio mais baixo do país, logo seguido por quem trabalha na hotelaria/restauração. E certamente, daí resulta o facto de a região Norte ser a mais pobre da Ibéria, como observámos na primeira parte deste trabalho[3].

Nº (a)
€ (b)
Total
2779077
900,0
Fab. Têxteis, vest.e couro
159110
605,0
 Construção
294129
792,6
Com. a retalho, excep. de veíc. Aut. e mot.
303939
717,0
Alojamento, restauração e similares
198813
650,8
(a)        pessoas ao serviço     (b)  remunerações base médias,
                                                          Fonte: Quadros de pessoal ref. Out 2010

Outra hipótese de vida – para além da emigração - para as melhores qualificações, tem sido o aparelho de estado dadas as suas caraterísticas intrínsecas – saúde, educação, tribunais, militares - que, por esse exato motivo, são o alvo do governo Passos para as reduções salariais, aumentos de horários, perdas de direitos; isso, com o paralelo recurso aos negreiros do século XXI, as empresas de trabalho temporário, ou de funções desempenhadas por fornecedores de serviços e consultores, o que representa objetivamente uma empresarialização privada de funções públicas. Nas áreas mais corporativas ou vitais (militares, polícias e juízes) os governos têm alguma uma complacência nessa sanha persecutória. 

A continuidade da periferização de Portugal no seio da Europa ou das redes internacionais do capital parece assegurada através da evolução da banca, elemento central, estratégico, dessa inserção. As dificuldades, primeiro na área periférica da banca – BPN e BPP (mera banqueta como designado, tempos atrás, por alguns) - passaram aos beneficiários do indireto financiamento da troika (BCP, BPI e Banif) atingindo agora o grupo Espírito Santo, um elemento histórico do regime cleptocrático, antes e depois do 25 de Abril. Finalmente, o futuro encerramento dos balcões do Barclay’s (em toda a Europa ocidental da zona euro), possivelmente seguido pelo BBVA e pelo Deutsche Bank[4], será acompanhado com o desmantelamento da rede do BES; todos esses elementos constituem sinais claros da revisão em baixa dos planos do capital global para a paróquia lusa. Neste inevitável processo de reestruturação do sistema financeiro em Portugal são beneficiários capitais angolanos e chineses, necessitados de instrumentos de lavagem e/ou de antenas dentro da UE.

7 – Processos globais de integração capitalista

No processo de construção da UEM – União Económica e Monetária foram definidos critérios para a sua integração por parte dos países. Procurava-se a homogeneidade entre os elementos financeiros de cada estado que promovesse uma mais maleável circulação de bens e capitais, que aumentasse a densidade das trocas no espaço da UE, eliminando as inconveniências das distorções resultantes de diferentes taxas de inflação, de conversões onerosas entre várias moedas, embaratecendo o acesso ao crédito. Ficariam como elementos essenciais para promover a concorrência, a fiscalidade, de modo mitigado e, de forma mais extensiva, a utilização da mercadoria força de trabalho, acoplada à legislação laboral, configurando ambos o “mercado de trabalho”, designação degradante usada de modo ligeiro pelos portadores da tal força de trabalho, numa assunção da sua condição de recursos humanos, da sua coisificação, a par dos recursos financeiros, tecnológicos ou materiais lançados na panela do capital.

Para um país periférico e pobre como Portugal a capacidade de resistência à força centrípeta do capital residente no Centro, era e é muito limitada. Ali se encontra a grande fatia das relações comerciais e financeiras, dali provém o investimento estrangeiro que domina os setores relevantes da economia portuguesa e que integra o país nas redes globais da atividade económica, desestruturando-o como unidade interna e estruturando-o como localização de recursos para o capital global que, naturalmente, pouco se ocupa com a coerência interna do território enquanto estado-nação ou como área onde se fixam cerca de 10.5 milhões de seres humanos.

Em todo o processo de construção da UEM a oposição dos meios empresariais ou políticos em Portugal mostrou-se irrelevante ou foi utilizada apenas como elemento de diversão eleitoral, sendo de referir que João Ferreira do Amaral era dos poucos a considerar nefasta a integração num sistema monetário global. Quanto à plebe, ao hábito da situação periférica e do subsequente desinteresse pelo que acontece para além de Badajoz, juntava-se a pobreza relativa e a despolitização, formando-se uma maioria desatenta ao processo e ao seu significado real mas, bastante ocupada no usufruto do crédito e do consumo, tomados como definitivas dádivas do projeto europeu.

Voltemos um pouco atrás.

No início do século havia, no âmbito da UE, um brutal conjunto de produção legislativa inerente à integração europeia, a seguir ao tratado de Roma, fundador (1958), como o tratado de Bruxelas (1965), o Acto Único Europeu (1986), o tratado de Maastricht (1992) e os tratados de Amsterdão (1997) ou de Nice (2001), estes últimos como clausulados mais formais; e isso foi entendido como necessário objeto de compilação e simplificação. Por outro lado, os projetos de alargamento a novos países e o pretendido aumento da densidade das áreas a unificar, traziam novas necessidades de operacionalidade burocrática e de agilidade decisória. Todas essas razões contribuíram para a criação de uma Constituição Europeia assinada em 2004 que, após a sua recusa no referendo francês e a não ratificação inglesa e holandesa, conduziu a uma reformulação que se veio a chamar Tratado de Lisboa (2007). 

Por essa ocasião, no final do século, desenhavam-se também, a nível global, três instrumentos de enorme importância política e económica. 

Clinton iniciava na Jugoslávia (1999) a aplicação do conceito de guerra humanitária, de guerras preventivas, com a total subalternização da ONU e a subversão de uma ordem jurídica iniciada no pós-guerra que impedia os países poderosos de atuarem de acordo com as suas conveniências. Seguiram-se intervenções militares: Afeganistão, Iraque, Bahrein, Líbia, Síria, Paquistão, Mali... tendo os motivos para as intervenções sido tipificados em Lisboa, na Cimeira da NATO de 2010. A ordem do Império ganhava assim um mais ágil braço armado para qualquer intervenção, independente do quadro da ONU e muito para além do quadro geográfico inicial dos países membros da NATO.

Contrariamente a todos os compromissos assumidos em 1990, seis anos depois, Clinton, ao tempo do ébrio Ieltsin, na Rússia, defendeu e veio a concretizar o alargamento da NATO ao Leste europeu, para cercar a Rússia e remeter a sua influência à Ásia central. Interessava, também cercar o principal adversário estratégico – a China -e controlar as suas linhas de abastecimento energético. Inaugurava-se assim uma nova era de crispação com a Rússia e que se estendeu à China, com frequentes exercícios militares junto à costa chinesa, correspondendo, como reação à criação do OCX – Organização de Cooperação de Xangai. Chama-se a atenção para o facto de o Tratado de Lisboa contemplar também uma componente militar, que hierarquiza os países nos processos decisórios nessa área, entre os pequenos e os que são grandes produtores de armamento, num plano de submissa aceitação da supremacia estratégica do Pentágono sobre a UE no seu todo.

O terceiro elemento prende-se com a revogação em 1999 da lei Glass-Steagall, de 1933 que visava evitar a contaminação do crédito à economia com atividades especulativas, impedidas, portanto de usar o dinheiro dos depósitos de empresas e particulares. O capital financeiro, já globalizado ganhava assim um enorme impulso para controlar as economias, para integrar as suas várias formas de apresentação, para legalizar e agilizar a criação das pirâmides de Ponzi, para precarizar a vida humana numa panóplia de ações: captura dos estados, maior intensidade da aplicação das escrituras neoliberais baseadas no consumismo, no individualismo e na concorrência, na afirmação ideológica da preponderância de um fetiche chamado mercado e da colocação das conveniências das empresas acima das concernentes às pessoas.

Esse desenho que vem sendo pacientemente elaborado está atualmente em desenvolvimento, através da reconfiguração dos espaços mundiais do capital e de atuação das multinacionais, no âmbito do TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership / Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, TAFTA (Transatlantic Free Trade Area) ou GMT (Grande Mercado Transatlântico). O seu objetivo geopolítico é aumentar a integração entre a UE e os EUA, constituir uma frente, para fazer frente aos BRIC, com realce para a China. Pretende-se uma estrutura económica totalitária, tentacular, repressiva, que coincide com o espaço NATO… o que não será certamente, uma simples coincidência. 

O TTIP corresponde a um grau superior de concentração capitalista, um patamar mais elevado do topo das hierarquias do capital e tornará ainda mais irrelevante o papel das nações, sobretudo das pequenas. O próprio TTIP, negociado diretamente entre a Comissão Europeia (por parte da UE) e as multinacionais irá criar instrumentos jurídicos de subalternização dos Estados que terão de se submeter aos interesses do capital, das multinacionais, sob pena de penalizações. Se mesmo os estados-nação se irão tornar obedientes face às disposições vinculativas do TTIP cabe perguntar que papel será o dos povos e das pessoas, na lógica do capital?

Neste contexto, qualquer política de retorno a soberanias nacionais, género de lutas pela independência nacional dos anos sessenta, tem algo de quixotesco, de um regresso ao passado. Há quem pense que é possível devolver o poder a burguesias nacionais, sobretudo de pequenos países, num contexto em que o capital constrói um grau de concentração, uma estruturação num plano nunca visto, uma arquitetura política que coloca diante dos olhos da multidão mundial um inimigo tão bem definido e tão distanciado como nunca. 

Sabe-se que, em qualquer projeto de burguesias nacionais, soberanistas, uma moeda própria, o domínio das funções financeiras era essencial; como essenciais eram símbolos como um hino e uma bandeira, para a captura ideológica da massa dos trabalhadores no apoio ao seu projeto de domínio. Uma lógica soberanista só fará sentido quando um país tem um empresariato capitalizado, empreendedor e ilustrado; caso contrário, a soberania é uma caricatura. Não esqueçamos que Portugal constituiu, durante séculos, o único caso de uma potência colonial simultaneamente dependente, um protetorado inglês. Hoje, sem colónias, nem empresários capazes, uma continuidade capitalista só se concretiza num papel subalterno que, gradualmente, se vem tornando mais evidente. A saída para esta empobrecedora solução só pode ocorrer num quadro europeu, de solidariedade entre os povos europeus; no mínimo, num contexto de união dos povos ibéricos.

Asterix e Obelix, apesar de armados com a célebre poção, não tinham qualquer hipótese de vencer a organização romana que ocupou a Gália, uma vez que não souberam unificar os gauleses e os outros povos subjugados por Roma. É perigoso criar esperanças de que uma ou outra aldeia de Asterix consiga impor-se isoladamente ao poder do capital global, em tempos de reforço da sua organização. Apostar no retorno da soberania nacional, faz lembrar o retorno a revoluções democráticas e nacionais do impagável Cunhal, estratégia que correspondia ao interesse da velha URSS de manter a contestação do lado ocidental em banho-maria. Em Portugal, há por aí vários Asterix que, não detendo  a poção mágica do druida, tomam alucinogénios.

A resposta dos povos ao reforço organizativo do capital não se pode cingir a lutas paroquiais, nacionais, isoladas a favor dos “seus” capitalistas contra as multinacionais. e o sistema financeiro. A resposta é a união, a concertação das lutas dos povos, abandonado o espartilho dos estados-nação, a construção de um verdadeiro internacionalismo, cujas últimas demonstrações se verificaram antes dos anos vinte do século passado e com as brigadas internacionais durante a guerra civil de Espanha.

8 – A dependência externa de Portugal

Os saldos da balança de transações correntes sintetizam relações comerciais, transações e transferências de cada país (ou grupo de países) com o seu exterior. Um saldo positivo significa um acréscimo dos meios financeiros e dos direitos de propriedade acumulados, na posse dos residentes; um saldo negativo representa uma redução daqueles meios e direitos em benefício do exterior.

Os saldos da balança de transações correntes para os vários espaços económicos que configuram a UE, agrupados de acordo com as estruturas da “divisão internacional do trabalho” definidas pelas cúpulas do capital financeiro e das multinacionais, são apresentadas no gráfico que se segue. 


As segmentações existentes no seio da UE são nítidas. O Centro gera normalmente fortes excedentes anuais, que têm estabilizado a partir de 2006 e é relativamente imune a impactos produzidos pela deterioração das contas externas na periferia Sul, não parecendo também beneficiar diretamente dos crescentes deficits daquela, a partir de 2004. Na realidade, não sendo a Europa uma realidade fechada, o Centro garante a estabilidade dos seus excedentes a partir das suas relações com o resto do mundo; por exemplo, o excedente registado pelo Centro não reflete em nada a grande redução dos deficits do Sul em 2012/13, tal como pouco sofreu com o afundamento dos deficits ali, em 1997/2008. 

A periferia Sul determina a evolução do saldo global da UE a partir de 2004 e, a passagem a uma situação superavitária em 2013 permite que esse saldo global  ultrapasse o excedente do Centro. A baixa nas taxas de juro e a existência de uma moeda única favoreceram, como no caso português, grandes aumentos do crédito, da importação e a deterioração da estrutura produtiva, com a formação de bolhas imobiliárias. Como se sabe, a melhoria recente da situação financeira no Sul foi conseguida através da quebra da atividade económica, com menor importação de bens de investimento, do consumo dos povos, o último preterido a favor da maior relevância das exportações, que vieram justificar todas as medidas que reduziram o preço do trabalho. Essa melhoria financeira no Sul só será sustentável com a fixação de um novo patamar da sua subalternidade com o aumento das desigualdades no espaço comunitário.

A periferia Leste só foi constituída formalmente por membros da UE (já antes era uma periferia), a partir de 2004 e isso manifesta-se no aumento do deficit global até 2009, quando aquele se cifra em valores semelhantes aos verificados antes da integração.

O gráfico seguinte mostra, de modo mais detalhado, tomando os países do Centro e os países intervencionados, os respetivos saldos das transações correntes acumulados no período 1995/2013, onde se evidenciam uma vez mais as desigualdades existentes dentro da UE, como produto das especializações a que cada país foi conduzido.

Entre os dez países do Centro, apenas dois apresentam um deficit para o período escolhido, por razões de disponibilidade estatística no Eurostat; a França, com um valor reduzido e a Grã-Bretanha, com um deficit acumulado de uns € 657000 M. Entre os restantes sublinhe-se o caso particular do superavit alemão, bem como os da Holanda ou da Suécia. No caso dos países do Sul (onde por comodidade incluímos a Irlanda), todos apresentam deficits no período 1995/2013, com relevo para a Espanha e ainda da Grécia e Portugal, nestes casos, tendo em consideração as suas dimensões populacionais e de produção de riqueza.

O gráfico não revela nenhuma inferência indiciadora da importância da adopção ou não, do euro. Há países superavitários que usam o euro e outros (Dinamarca e Suécia) que mantêm as suas próprias moedas. Entre os que apresentam deficits crónicos, para além dos intervencionados pertencentes à zona euro, há a registar a Grã-Bretanha que continua a utilizar a sua libra e com posições crescentes de antipatia face à UE.

Como se vem verificando, os desequilíbrios no seio da UE têm origens inerentes ao próprio processo de integração capitalista e, mais recentemente, através de uma evolução normativa que cria as condições para uma dominação do Centro sobre as duas reconhecidas periferias. É elementar também a verificação que essas disparidades tanto se verificam no tempo em que cada país detinha moeda própria quer já neste século com a criação do euro, enquanto elemento facilitador da integração. Tentar polarizar as dificuldades económicas vividas em Portugal, inerentes ao seu débil capitalismo (como nos restantes países periféricos) com a integração numa mesma zona monetária é como culpar a espuma das ondas da violência com que estas desabam sobre a areia da praia; ou as casas, pela especulação que sobre elas incide. 

Numa época em que o capitalismo se integra a nível global, alicerçada em desenvolvimentos tecnológicos na área das comunicações e da logística, num processo conduzido pelas multinacionais e pelo sistema financeiro; numa época em que a produção global se distribui por vários locais geográficos e o trabalho se desenvolve no seio de uma matriz complexa de micro-decisões, pode dizer-se que existe uma economia global que superou as fronteiras laboriosamente (e com muito sangue) construídas nos séculos passados.

Nessa sequência, é óbvio que o processo exige instrumentos que facilitem a troca e o crédito e a simplicidade nos instrumentos monetários está nessa linha. 

Como diz Krugman[5] sem solução europeia, aos países periféricos só lhes resta aceitar a austeridade e perder soberania ou sair do euro. E os nacionalistas ancorados tecnicamente na escolástica keynesiana de universitários esquecidos de que a economia só o é como política, parece admitirem uma possibilidade de um estado “soberano” viável com moeda própria, qual ilha isolada da economia global, numa renovação do falanstério de Fourier. E admitem, na peugada de Ferreira do Amaral, uma “saída negociada do euro”… o que exigiria a criação de um governo patriótico de esquerda, e um frente a frente entre Jerónimo e Merkel. Temos dificuldade e saber se a ideia é anedota ou embuste.


9 - O endividamento externo e a subalternidade

A posição do investimento internacional representa o saldo global entre os direitos e as obrigações face a entidades no exterior. Cerca de dois anos atrás observámos esta realidade de acordo com grandes grupos comportamentais – pessoas/famílias, empresas comuns, sistema financeiro e Estado e por tipo de responsabilidades face ao exterior entre empréstimos (não titulados), títulos (que materializam empréstimos), dinheiro e depósitos, ações e participações em empresas[6]. Procedamos agora a uma análise da segmentação por sectores institucionais.


O saldo é francamente negativo e aumenta regularmente de 1996 até 2008; estagna durante dois anos e retoma o ritmo de crescimento nos últimos anos. Os últimos dados conhecidos revelam um nível líquido de responsabilidades perante o exterior da ordem dos 124% do PIB, contra uns 10% em 1995 e 60% no ano da adopção do euro (2002). No âmbito da UE, em 2013, a posição negativa do investimento internacional correspondente a Portugal cifrava-se em 118.7% do PIB, ligeiramente ultrapassada na sua dimensão relativa pela Grécia (119.3%) e já algo afastada dos níveis atingidos pela Irlanda (104.9%) e Espanha (98.2%)[7].

Todos os componentes que contribuem para o valor global da posição do investimento internacional têm um saldo negativo, com a óbvia excepção das reservas do Banco de Portugal que, no entanto, atingem valores relativamente baixos em 2004/2008, para crescerem até 2012 e caindo desde então.

O saldo dos derivados é irrelevante (embora os valores anuais de movimentos a débito  e crédito sejam significativos) e constante em todo o período enquanto o saldo líquido do investimento estrangeiro, revela um ligeiro acréscimo daquele que se efetua em Portugal sobre o que é efetuado por portugueses no exterior. Convém não esquecer que muito do que é considerado investimento estrangeiro constitui, na realidade, um truque contabilístico que visa a obtenção de ganhos fiscais; trata-se da mudança de sede dos grandes grupos portugueses para a Holanda e o Luxemburgo, com a continuidade dos negócios aqui. Por seu turno o investimento de carteira (títulos sob a forma de acções, unidades de participação e obrigações, sem perspetivas de longo prazo, de consolidação) recuperou, mais recentemente, do grande aumento registado em 2007/2009.

A posição global do investimento internacional ou melhor, o seu saldo negativo, é determinada pelo “outro investimento”, isto é, empréstimos que correspondem a cerca de ¾ do saldo global. É a evolução deste vector que degrada a posição global de endividamento face ao exterior; e isso deve-se a um aumento dos passivos (5.5 vezes em 1996/2013) muito superior aos ativos (2.7 vezes). Nesse contexto, não consideraremos uma análise da composição dos ativos mas, apenas dos passivos, das responsabilidades perante o exterior, para não avolumar uma exposição, já longa e densa por natureza. Vejam-se pois esses passivos, a sua dinâmica global e, seguidamente, a evolução registada na sua composição.

As responsabilidades para com credores no exterior crescem de modo imparável até 2007 mantendo-se estáveis até 2009, pelo efeito direto da crise que afetou o sistema financeiro global no rescaldo dos subprimes, da falência do Lehman Brothers e das roturas financeiras que obrigaram a várias intervenções e nacionalizações, nos EUA e na Europa (Royal Bank of Scotland, Bank of Ireland, Dexia e o conhecido BPN). Seguem-se mais três anos em que o endividamento retoma o seu ritmo anterior, reduzindo-se nos últimos tempos, refletindo a quebra da atividade económica. Neste campo, a relevância do euro antes ou depois da sua efetiva adopção, resulta da credibilidade de uma moeda global a subscrever por um país periférico como Portugal, da sua supervisão pelo BCE que dá segurança aos credores e porque sendo as taxas de juro baixas, facilmente se torna acessível o recurso ao crédito, junto dos bancos que recolhem o produto dos excedentes comerciais externos.

Observemos as posições relativas dos componentes estruturais dos passivos classificados como “outro investimento”:
Até 2007 é o tempo de festa dos bancos. O dinheiro é fácil de obter no exterior, as taxas são baixas e como é o “mercado” que zela (?) pela aplicação socialmente eficiente do crédito, a responsabilidade do sistema bancário no endividamento externo passa de 64.8% em 1996 para 80.1% em 2007, com a gradual redução do peso dos outros sectores. Nesse período, as “autoridades monetárias” (eurosistema ou, mais concretamente, o BCE e o BdP) como financiadoras do sistema financeiro têm uma relevância desigual que não ultrapassa os 7.4%. E por seu turno, o Estado apresenta um baixo nível de endividamento externo, entre 3.5 e 5.3% do total, no período 1996/2010.

O BCE começou a intervir com financiamentos de longo prazo aos bancos europeus, a partir de finais de 2007  e também a comprar títulos de dívida no final de 2008, com o acentuar da crise.

Em 2008, o contágio internacional provoca baixas nas cotações dos bancos portugueses causando aumentos nas taxas de juro e prémios de risco mas, em contrapartida, os bancos beneficiaram do aumento interno dos depósitos, resultantes, por sua vez, das atitudes cautelares de pessoas e empresas, face à conturbada conjuntura; os bancos procederam ainda a uma vultuosa redução de haveres bancários no correspondente a 13% do PIB; e finalmente aumentaram a sua dívida para com o BCE em mais de € 12700 M. 

O endividamento externo do Estado mantém-se a um mesmo nível – € 8000/9000 M entre 2004 e 2010, contrariamente ao que muitos elementos afetos ao governo, propagam aos quatro ventos com a complacência de jornalistas ignorantes ou temerosos/coniventes face aos mandarins; e portanto, corruptos. Em 2008, o Estado colocava facilmente dívida junto de investidores externos, como viria a acontecer em 2009 enquanto, neste último ano, os bancos portugueses compravam obrigações e outros títulos de dívida de médio e longo prazo emitidos por outros Estados que não o português.

A partir de finais de 2009 os bancos têm grandes dificuldades em se financiarem, sobretudo a médio e longo prazo, por contágio da crise das dívidas soberanas e, depois de maio de 2010, é o BCE que financia extensivamente os bancos portugueses os quais, por sua vez, compram dívida portuguesa emitida por um Estado já então também com dificuldades em colocar dívida no exterior. Isso constitui o conhecido maná oferecido aos bancos pelo BCE que os financia a 1%, fundos esses, seguidamente utilizados na compra de dívida pública a valores de mercado, com juros muito superiores. Recorde-se que estatutariamente o BCE não pode financiar diretamente os Estados, como acontece nos estados com moeda própria e como produto da tara mercantilista de uma concepção emanada do próprio capital financeiro que, assim fica com o monopólio do financiamento dos estados tendencialmente deficitários.

Em 2010, a dívida pública total aumenta uns € 19075 M face ao ano anterior mas, o endividamento externo do Estado no âmbito do “outro investimento” até se reduziu em € 332 M, (tal como se reduziu o passivo no contexto dos “investimentos em carteira”), sendo a diferença absorvida, essencialmente, pelos bancos, que mesmo assim reduzem o seu endividamento externo (menos € 11443 M).

Em maio e novembro de 2010, respetivamente, acontecem os resgates da Irlanda e da Grécia e são criados o FEEP (Fundo Europeu de Estabilidade Financeira a ser substituído pelo MEE (Mecanismo Europeu de Estabilidade) com a possibilidade de excepcional compra direta de dívida dos estados intervencionados.

Os bancos portugueses, sem acesso direto ao financiamento, fechadas as portas do BCE e repletos de títulos de dívida irlandesa e grega (a que se juntaram os portugueses), todos tomados como lixo pelas empresas de rating não podiam emprestar ao Estado, nem se recapitalizar para o efeito. 

Entretanto, na AR, a oposição, à direita como à esquerda de Sócrates, uniu-se na reprovação do PEC IV (23 de março) enquanto os banqueiros procuravam assegurar a salvaguarda dos seus interesses no âmbito de um futuro resgate. Carlos Costa mostrou, pela primeira vez, a sua pouca idoneidade como regulador ao afirmar numa reunião com os banqueiros (4 de abril): “vocês não podem continuar a financiar (o Estado). O risco é afundarem-se os bancos, a parte sã, e a República que é a parte que criou o problema”[8]. Mais de três anos depois, fácil se torna ver a saúde dos bancos… e as trapalhadas de Costa em todo o processo do BES.

Segue-se o pedido do resgate (6 de abril de 2011) e a demissão do governo. Os banqueiros, entretanto tinham garantido a inclusão nos € 78000 M do empréstimo da troika, € 12000 M, para a sua recapitalização; era a República, a austeridade, a perda de direitos e rendimentos da esmagadora maioria dos portugueses que, afinal, iria salvar a tal “parte sã”, encurralada, sem dinheiro próprio, nem acesso ao alheio que não com a mediação pública. Para que haveria então de servir o Estado que não como capitalista coletivo, de último recurso?

Lastimavelmente, é este capital financeiro que, através da classe política, condiciona e inferniza as nossas vidas. O neoliberalismo e o capital financeiro que tanto defendem o afastamento do Estado das suas prestimosas atividades, nem hesitam em se financiarem através do endividamento público. A utilização do aparelho de estado e da classe política pelo capital financeiro é uma rotina; mas, esse expediente viria a tornar-se objeto de repúdio, não só porque redundou na responsabilização da população por uma dívida que é privada, como por toda a avalanche de aumentos de impostos, de cortes no rendimento, nos direitos e nos serviços públicos.

Esses evidentes motivos dotam essa responsabilização de uma total ilegitimidade. Tendo em conta que toda a classe política (à direita como da “esquerda”, se recusou, com argumentos diversos, em colocar a questão da ilegitimidade de segmentos relevantes da dívida tomada como pública, tem sido evitada qualquer discussão pública do assunto, deixando-se a população à mercê dos políticos-comentadores que enformam o adormecimento popular.

Até finais de julho último só cerca de metade dos € 12000 M do empréstimo da troika tinha sido utilizada pela banca (BCP, Banif, BPI e CGD) tendo os dois últimos bancos procedido ao total reembolso. Até que o mesmo Carlos Costa e o governo escondido no seu bolso acharam ser necessário voltar a colocar dinheiro público numa outra “parte sã” do sistema financeiro, o BES[9]

Em 2011/13 sobe substancialmente o passivo do Estado como resultado do recebimento do empréstimo da troika, enquanto os bancos reduziam bastante os seus débitos externos (em 2013 era apenas 43% do volume registado em 2007) como resultado do menor volume de crédito concedido e do aumento dos depósitos, num evidente sistema de vasos comunicantes. Quanto aos apoios do BCE, esses mantêm-se ao nível do ano anterior, pouco variando, posteriormente, até hoje. De modo muito aproximado pode dizer-se que, em 2013, se estabeleceu uma distribuição mais equilibrada entre os vários grupos de intervenientes, uma vez que em 2007 os bancos respondiam por mais de 80% do endividamento externo correspondente ao “outro investimento”, como se pode ver adiante:


2007
2013
Outras Instituições Financeiras Monetárias
80,1
29,7
Autoridades Monetárias
3,0
24,9
Administrações Públicas
4,8
33,5
Outros Sectores
12,1
11,9
                                                           Fonte primária: Banco de Portugal

Todas estas mudanças verificadas nas contas correntes com o exterior poderão ser imputáveis ao euro? Certamente que nunca seria possível este grau de endividamento externo num país com uma fraca moeda própria. Mas seria esta última o instrumento necessário e suficiente para equilibrar a balança de transações correntes? Os desequilíbrios na estrutura produtiva seriam menores em regime de autarcia monetária? A que preço seriam obtidos os financiamentos externos? Quais os custos em termos de inflação? Que efeitos teria a inflação e que desequilíbrios sociais e económicos teriam? Um sistema bancário apenas ligado a um banco central indígena deixaria de ostentar desvarios de contornos mafiosos? 

A evolução recente da banca em Portugal, bem como a que advirá da recomposição acionista do Novo Banco e de uma provável privatização da CGD, é sintomática da debilidade do capitalismo de raiz lusa. As nacionalizações de 1974/75 visaram obviar às debilidades do sistema – especulação, vigarices, descapitalização – e conduziram à inclusão das suas peças mais frágeis em estruturas melhor dimensionadas, com o envolvimento de dinheiros públicos, colocadas na rampa de lançamento em direção às privatizações dos anos 90. Despois das últimas, continuou a ser maioritária a presença de capitais portugueses na banca, contudo em parcela bem inferior à situação observada antes das nacionalizações de 1975. Gradualmente, o peso dos capitais estrangeiros tem crescido e em breve será esmagador, sem nenhum banco com capital maioritariamente português; uma situação que, aliás, já se verifica na maioria das mais relevantes empresas portuguesas. Recordamos, anos atrás, uma “carta dos 40” (empresários) que pareciam muito empenhados em manter os centros de decisão em Portugal e que logo se esboroou quando Vaz Guedes vendeu a Mague à espanhola Sacyr; a receita com o negócio superou os ímpetos nacionalistas do magnata e nunca mais se ouviu falar da tal carta. 

O atrás exposto é um sintoma esmagador do caráter subalterno do capitalismo de origem portuguesa, da incapacidade dos capitalistas portugueses para criarem redes de negócio centradas em Portugal e evitarem a desestruturação que se observa na economia portuguesa, mero lugar geométrico onde se cruzam fluxos incluídos em redes distintas e desconexas, de caráter global. Neste contexto de uma neocolonização típica do século XXI, falar de soberania nacional é uma irrealidade e uma impossibilidade, como referimos recentemente[10].

Essa subalternidade gera problemas graves. Um problema, é que se constituiu em Portugal, uma verdadeira orgia de crédito, em torno da construção/imobiliário que exigiria um crescimento contínuo do poder de compra dos portugueses ou, de uma forte evolução das exportações, impossível dado o baixo nível do investimento produtivo, inserido num modelo de desenvolvimento alicerçado em baixos salários. Outro problema, é a facilidade com que os grupos financeiros portugueses constituem redes de fluxos entre lugares físicos e contas em offshores, dado que lhes é permitida a total promiscuidade entre os depósitos das pessoas – na realidade obrigadas a ter conta bancária – e a atividade especulativa, instável e imprevisível, por natureza. O novelo do grupo Espírito Santo que se vai desenrolando com muitos pontos obscuros revela isso mesmo; para que aqueles circuitos funcionem é preciso uma regulação meramente cosmética, que observa sem nada querer ver e a captura corrupta da classe política que se mostra como corpo executivo dos interesses do capital financeiro, elementos essenciais para a movimentação especulativa e criminosa de capitais. Em suma, a economia e a vida de todos os residentes em Portugal fica dependente da atuação de bandos de criminosos que, manietando o sistema judiciário, perpetuam um sistema político e um modelo de representação que não passam de uma mascarada pseudo-democrática. 

Não foi a facilidade de crédito obtida pela existência de uma moeda única que provocou o desastre lusitano mas, a lógica criminosa do capital financeiro que, montando, a seu contento, toda a política de capitais, de crédito, de obra pública e de habitação, utilizou as facilidades de financiamento externo na estruturação de gangs mafiosos, como o BPN, o BES ou o BPP, arrastando nessa volúpia o empresariato luso tão cúpido, quanto ignorante. Toda essa trama exigiu a domesticação da classe política, convenientemente paga, para ajudar ou para olhar para o lado, enquanto as instituições comunitárias entoavam salmos às virtudes do “mercado”.


10 - Sair do euro?

O artº 50º do Tratado de Lisboa prevê uma possibilidade de saída voluntária e unilateral da UE através de notificação nesse sentido ao Conselho Europeu o qual indicará os trâmites do acordo de saída e das modalidades desta, a aprovar pelo PE (ver nº3 do artº 218 TFUE[11]). Estabelece-se ainda um período de transição, com duração máxima de dois anos (com possibilidade de prolongamento) após a referida notificação. Qualquer desejo de reingresso será equiparado a um processo de adesão. Prevê-se uma hipótese de saída mas não a de expulsão, embora a correlação de forças económicas e políticas na UE permita sempre a construção de uma forma jurídica e excepcional de saída “voluntária” para um pequeno país. 

A regra de equilíbrio orçamental está definida no nº1, artº 3º do TECG[12] que, através de medidas automáticas, pretende tornar as finanças públicas neutras ou excedentárias. Esta regra é a aplicação em força de lei da tese (neo)liberal sobre um Estado “neutro” e, sobretudo, sem concorrer com as empresas no recurso ao crédito. É a negação de toda a tradição keynesiana sobre o papel incentivador do gasto público e do deficit, na economia, da utilização dos orçamentos como instrumentos anti-cíclicos, factores de estabilização dos ritmos de evolução das economias. Admite-se, como excepção, apenas um deficit de 0.5% do PIB no âmbito de objetivos de médio prazo propostos pela Comissão no sentido da sua eliminação.

Se a dívida for “significativamente” inferior a 60% do PIB, o deficit pode chegar a 1% do PIB; e se for superior tem de ser reduzida em 1/20 por ano, como referência (art.º 3º, al. d) nº 1 do TAEG). No caso de Portugal, que tem uma dívida pública de uns 135% do PIB, teria de se contemplar uma redução de 3.75% do PIB, durante 20 anos, para que isso possa ser cumprido; isso significa uma amortização acima dos € 6000 M anuais, para além dos juros que se colocam acima dos € 7000 M para os próximos anos, como analisámos recentemente[13]. Impossível de cumprir, frisamos.

A situação portuguesa no contexto do normativo comunitário está longe de ser excepção; o que é excepcional é a coincidência entre tal volume da dívida pública e uma estrutura económica frágil e subalterna. No conjunto da UE, em 2013, a dívida pública é de 88.2% do PIB, (92.6% na zona euro), havendo 14 países que não cumprem as regras tão recentemente estabelecidas, entre os quais se contam todos os países ocidentais e do sul europeu, exceptuando o Luxemburgo.

Uma união monetária não é caso virgem; resulta, no caso da zona euro, de uma cópia do modelo mais bem sucedido, a Zollverein estabelecida entre vários estados alemães em 1875, com a criação do Reichsbank e do Reichsmark, pela mão de Bismark e após muitos anos de guerras pela unificação da Alemanha, em torno da Prússia, contra a Dinamarca, a Austro-Hungria e a França. A moeda única foi, no caso da UE, uma estratégia cautelosa e paciente formalizada com o sistema monetário europeu em 1979, depois com o tratado da UE, em Maastricht, em 1992 até à instauração do euro, como moeda de conta, em 1999 e como moeda corrente a partir de 2002.

A instituição do euro pretende-se que funcione em mancha, com a progressiva extensão a todos os países da UE, embora seja muito duvidoso que isso aconteça, sem qua haja algumas defeções, sobretudo da Grã-Bretanha. De qualquer dos modos, tem sido um argumento útil para a consolidação de desigualdades no seio da UE uma vez que representa bem o impulso de estabelecimento de um Centro e de periferias.

Tudo ia correndo sem sobressaltos enquanto os deficits externos iam sendo financiados pelos bancos distribuidores dos excedentes de outros. Com o contágio da crise dos subprimes esse fluxo foi perturbado, as taxas de juro subiram, muitos bancos ficaram em dificuldades, o crescimento económico e o investimento desapareceram enquanto as receitas fiscais caiam e o desemprego aumentava. Como o BCE está impedido de fornecer liquidez aos estados, estes viram-se obrigados a recorrer ao “mercado” que por sua vez recorria ao BCE, com enormes lucros resultantes dos diferenciais entre taxas de juro. 

Enquanto a dívida pública crescia em vários estados, mormente da periferia Sul (onde incluímos a Irlanda) a fatura dos juros ia tornando insustentável o serviço de dívida. Num espaço geográfico que se pretende uniformizado seria lógico que a defesa da estabilidade do euro e a dívida fosse assegurada de modo coletivo, mutualizado, com equilíbrios baseados na solidariedade, como acontece dentro de cada estado-nação com as dívidas soberanas. A estabilidade do sistema, pelo contrário, fez-se com o onerar dos países periféricos e endividados, no âmbito do TECG, acentuando as desigualdades que fazem parte dos genes da UE.
 
Voltemos ao clausulado comunitário.

Dirigido aos países ditos de “deficit excessivo” e para assegurar a sua efetiva e sustentável correção, é criado um programa de parceria orçamental e económica que especifica as reformas estruturais a adoptar e homologadas pelo Conselho e pela Comissão Europeia que se encarregam de supervisionar o programa, tal como acontece com os orçamentos anuais (artº 5º, nº1 do TAEG). No seguimento desse programa, os países (artº 7º) “comprometem-se a apoiar as propostas ou recomendações apresentadas pela Comissão Europeia quando esta considerar que um Estado-Membro da União Europeia cuja moeda seja o euro viola o critério do défice no quadro de um procedimento relativo a um défice excessivo”. 

Esse acto de submissão tem uma justificação expressa no artº 9º no qual “as Partes Contratantes comprometem-se a atuar conjuntamente no sentido de uma política económica que promova o bom funcionamento da união económica e monetária e o crescimento económico, mediante o reforço da convergência e da competitividade”. Isso constitui uma forma de enquadramento dos países pequenos e médios, revela uma convergência que em tudo diverge das desigualdades que se vão afirmando na realidade e, claro, aponta para a competitividade como o princípio ativo que tudo faz andar, numa lógica idiota de crescimento infinito, de rebaixamentos salariais e redução do poder de compra que constituem, na prática, a negação do crescimento da produção e do emprego. No entanto, é isso que consta na parte final do mesmo artigo “…adotam as ações e medidas necessárias em todos os domínios cruciais para o bom funcionamento da área do euro, prosseguindo os objetivos de promover a competitividade, incentivar o emprego, contribuir para a sustentabilidade das finanças públicas e reforçar a estabilidade financeira.”

O artº 10º insiste para que ninguém se esqueça do recado; “…as Partes Contratantes estão disponíveis para recorrer mais ativamente, sempre que adequado e necessário… nas matérias essenciais para o bom funcionamento da área do euro, sem prejudicar o mercado interno.” E foi isso que aconteceu a partir de 2008 quando, para garantir o “bom” funcionamento dos mercados financeiros, afetados pelas dificuldades dos bancos, os Estados assumiram o preço dessas dificuldades, endividaram-se, enveredaram pela austeridade, cortes e privatizações, naturalmente reduzindo o mercado interno. Passados seis anos do início do processo, está sempre iminente uma falência bancária, um contágio galopante; a economia europeia não cresce, o desemprego é enorme, os deficits e as dívidas públicas elevadas são banais; o BCE e a UE têm sempre em anúncio medidas para aprimorar a supervisão bancária na Europa, não sendo possível esquecer a inserção dos bancos no sistema financeiro global, as suas relações com os capitais mafiosos, excelentes fornecedores de liquidez, ou os offshores, tudo isso sem qualquer regulação efetiva. Tudo isso, por sua vez, em íntima interação com o mundo da economia real, do mundo do trabalho, com as nossas vidas esmagadas por impostos e incerteza, emanadas de aparelhos estatais e classes políticas.

Não há no ordenamento jurídico da UE nada que expresse uma saída do euro. E, certamente, nenhum governo em Portugal o iria fazer mesmo com Jerónimo de Sousa como primeiro-ministro.

Podemos especular que num cenário de grande turbulência na área financeira da zona euro, com o afundamento de um pequeno país como Portugal, possa ser conveniente para acalmar o deus “mercado”, apresentar um culpado. E, num contexto desses, facilmente os poderes reais no seio da UE encontrariam uma fórmula legal, por interpretação criativa da legislação existente ou através de um novo instrumento, para designar esse culpado. Adiantamos mesmo que a haver um sacrificado para salvar a honra da agremiação, Portugal teria mais hipótese de ser o feliz contemplado em detrimento da Grécia, pois a Ibéria é uma área pacífica do ponto de vista geopolítico e os Balcãs não; e por outro lado, Portugal é encarado como um desdobramento da Espanha e a Grécia não tem um enquadramento regional semelhante, para além de aspetos de ordem interna, como a maior combatividade do seu povo.

(continua)

Este e outros textos em:



[8]  citado em “Jogos do Poder”, de Paulo Pena, 2014
[11]  TFUE – Tratado de Funcionamento da União Europeia
[12]  TECG - Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação

2 comentários:

  1. Juízes, Advogados e Jornalistas - MAUS, devem ser condenados? Sim ou não?

    Esta "Santíssima Trindade da Justiça", deve ser julgada e condenada, no quadro de uma investigação profissional e independente, a serio e não hipócrita. Proponho-me a relatar o que acontece em Portugal e no Brasil, com Casos Reais e Verídicos, e que se encontram em Tribunais, a Inércia Profissional, ética e Moral destes três, no âmbito do Processo que envolve a Fundação Geolíngua e o projeto ENDOECONOMIA. Sugiro que se realize uma Grande Reportagem, com base nos arquivos destes órgãos - RTP, SIC, TVI, Visão, Público, DN, Correio da Manhã e, com destaque a Agência Lusa, entre outros, e que já possuem um Dossiê, completo do Processo citado a anos e anos, e, CALAM-SE! Creio que, a solução só pode surgir a partir da solidariedade do Povo Português e da Ibéria, num quadro de prioridade para a satisfação das necessidades colectivas. - Estou a disposição para colaborar e denunciar a "Santíssima Trindade da Justiça" na sua versão - Má e Hipócrita! - Roberto Moreno - geo@geolingua.org

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  2. Acho que isto só lá vai com alguma forma de golpe de Estado(claro que não estamos em 1974 ou em 1928 onde a realidade era outra)como sempre aconteceu neste país em situações limite(não advogo voltar atrás ou criar novos fascismos).Quanto a solidariedades ibéricas ou outras não devemos esperar nada pois nem já dentro dos países os povos se entendem(e esse foi o grande golpe dos globalistas ao conseguirem minar a coesão e a identidade cultural dos povos sob a capa dos chamados "direitos e liberdades")quanto mais entre países.Preferia estar enganado.

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