terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Soberania, soberania nacional e subalternidade – para um enquadramento geopolítico

Sumário

1 - Como se constrói a soberania
2 – Como se desenvolve uma soberania nacional
3 – Portugal, a construção de uma dependência
4 – Mudança de agulha -  a subalternidade dentro da UE
5 – Subalternidade periférica num contexto geopolítico não previsto
6 - A subalternidade é a porta para todas as desigualdades



A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.                                Eduardo Galeano


1 - Como se constrói a soberania

A soberania para as pessoas e para os povos é a morte da imposição, a ausência de senhores ou Estados; estes últimos, em regra, em delegação dos senhores, servem apenas para roubar, importunar e massacrar, se necessário. A continuidade da existência desses entes tem vindo a gerar duas atitudes dominantes; a das vítimas, que procuram a minimização daquelas duas formas de assédio e a dos senhores que procuram, precisamente, manter a inconveniência e o roubo. Fora dessa dicotomia sempre ficaram uns quantos, os rebeldes e os inconformados, designados por criminosos e terroristas pelos senhores e loucos ou utópicos por espoliados conformados com a sua sorte. Galeano refere-os como os que não param de caminhar.

A soberania é a do povo, não a das nações. Uma nação pode ser soberana, no contexto da interdependência que sempre se observa face às suas congéneres mas, dificilmente o seu povo será soberano, uma vez que os seus destinos são definidos pelo Estado, pelos capitalistas e pelos mandarins que se incrustam no primeiro; considera, esse conjunto, as necessidades da multidão como um subproduto da exigente e inadiável prossecução dos seus interesses particulares. A situação que se vive atualmente em Portugal evidencia claramente como, na limitada soberania que é concedida à nação, o sistema financeiro, os mandarins e os capitalistas em geral, bem coordenados, não hesitam em coartar brutalmente os acessos do povo a rendimentos e direitos, dando preferência ao pagamento da dívida à especulação global, ao equilíbrio do balanço dos bancos, à sobrevivência dos capitalistas lusos, ao bem estar de mandarins e dos ricos em geral. Para a multidão de trabalhadores, desempregados e ex-trabalhadores, acusada de “viver acima das suas possibilidades”, a pouca soberania existente da chamada nação portuguesa não lhe traz, todavia, qualquer préstimo, apenas mais deveres e sacrifícios.

Falar de soberania nacional em Portugal é colocar a soberania do povo no cofre forte dos capitalistas lusos que negoceiam a partilha do pote com os capitalistas estrangeiros. Quantas vezes esse filme tem de ser revisto para se perceber que tem um mau epílogo? E esse epílogo é sempre o banquete entre capitalistas de cá e de lá, com o povo a apanhar as migalhas que caem da mesa e a levar uns pontapés quando rosna demasiado. Nestes tempos conturbados é assim tão difícil perceber que os capitalistas não servem para nada[1]; e pior, que isso só estorvam?

Um povo soberano é aquele que gere as suas necessidades materiais e de convivência pacífica, sem imposições de instituições exteriores ou de classes/poderes dominantes emanados de si próprio. As fronteiras que, sobretudo depois do século XVIII, delimitavam de modo muito vincado as nações, serviam essencialmente para a criação de coutadas de força de trabalho para grupos dominantes poderem gerir e explorar a seu contento, sem a concorrência ou interferência de outras nações; e, estas outras, sempre que as suas necessidades de pilhagem de recursos materiais ou de potencial de trabalho o exigiam, violavam essas fronteiras, através da guerra. Hoje, as riquezas mudam de mãos através de investimentos, privatizações e dos mecanismos da dívida. Mais rápido e a coberto de leis pré-fabricadas para tal.

Soberania consiste em as sociedades gerirem autónoma e democraticamente, sem aparelhos estatais ou castas partidárias, as áreas estratégicas essenciais da vida humana – alimentação, educação, saúde, habitação, segurança social, água, energia, circulação de pessoas, qualidade ambiental, ordenamento do território. A proposta de qualquer outro tipo de soberania que não se baseie nisto é uma aldrabice e terá certamente por detrás quem ambicione viver à custa do trabalho do outro, uma sociedade de desigualdades.


2 – Como se desenvolve uma soberania nacional
                                                                              
Portugal foi inventado pelo impulso separatista de um senhor feudal que pretendia subir um degrau na hierarquia da época e transformar o seu senhorio – um reles condado – num reino. Nada no terreno justificava a separação entre as partes norte e sul da Galiza, com gentes unidas pelo modo de vida, pela língua (e pela fé!!), pelas origens comuns, pela história, depois de cerca de mil anos de romanização, reinos suevo e visigodo, separados durante pouco tempo por uma presença muçulmana. Também a leste não se descortinava qualquer identidade física ou social que separasse as duas margens do Douro ou do Coa, como se não se observou quando a fronteira foi deslizando até à foz do Guadiana.

Não se assistiu a um clamor popular de aplauso pela criação do novo reino, porque a subordinação do povo ao senhor feudal local em nada se alterava. Essa questão da soberania que colocava os senhores à espadeirada uns com os outros, só bulia com os interesses do povo quando as correrias militares devassavam os campos de cultivo ou arrebanhavam jovens para a guerra. A soberania que verdadeiramente interessava ao povo era a alimentar, uma vez que, se houvesse fome, não havia nenhuma Jonet para distribuir as sobras dos supermercados.

Sabemos como o primeiro rei luso conseguiu a soberania. Fazendo-se respeitar como cabo de guerra, alargou os seus domínios até Lisboa e além-Tejo - à custa de outros senhores ditos infiéis – e, assumindo um pagamento eterno de 16 onças de ouro anuais ao papa. Para este, a pretensão soberanista do já rei Afonso só se tornou clara quando a oferta inicial de quatro onças se multiplicou para as definitivos 16.

A conquista de Lisboa que rapidamente se tornou a capital do novo país deu alguma consistência estratégica a Portugal, no contexto peninsular, unindo as populações do norte e as do sul, estas, fortemente marcadas pela civilização muçulmana, sob uma mesma tutela real que nunca permitiu verdadeiros devaneios regionais dos senhores. Lisboa, deu profundidade estratégica territorial a Portugal, uma vez que estava no ponto mais afastado da fronteira, defendida por um rio a sul e por terrenos acidentados a norte; e, para mais, com uma larga saída para o Atlântico que permitiria alimentar um comércio externo importante e evitar uma absorção centrípeta numa Castela de nobres latifundiários, iguais aos seus parentes do norte e centro de Portugal.

No seguimento de várias pretensões aos tronos recíprocos entre Portugal e Castela, sucedeu em Portugal a crise dinástica de 1383/85. A resistência ao pretendente castelhano fez-se sentir sobretudo em Lisboa, ajudada do exterior pelas surtidas de Nuno Álvares Pereira e, sobretudo pela peste, que aniquilou parte do exército castelhano que cercava a cidade, em 1384. Aljubarrota, no ano seguinte selou a independência entre os dois reinos.

A Inglaterra já desempenhava então um papel relevante nas relações comerciais com Portugal, que surgia como um ponto de apoio ao tráfego inglês com o Mediterrâneo. Entre os dois países foi celebrada uma aliança em 1373 a propósito de uma disputa pelo trono de Castela e que viria a ser fortalecida com a crise dinástica de 1383/85 quando os ingleses apoiaram Portugal, para fragilizar Castela, aliada da França, com quem a Inglaterra mantinha as longas disputas senhoriais designadas por Guerra dos Cem Anos. Em Aljubarrota também participaram ingleses e franceses, em campos opostos, naturalmente.

A guerra com Castela renovou a nobreza portuguesa uma vez que os bens dos apoiantes do rei de Castela foram redistribuídos, sendo Nuno Álvares Pereira um dos principais beneficiados. E os custos dessa guerra promoveram a criação da sisa, em 1387, o primeiro imposto geral criado na Europa, iniciando assim uma soberania estatal desde sempre mais lesta numa punção fiscal sufocante do que na promoção do bem estar da população ou sequer de um desenvolvimento capitalista digno desse nome, como se iria a verificar.

O enorme desenvolvimento da expansão territorial além-mar e do comércio longínquo a partir do século XV tornou Portugal, durante algum tempo, a primeira potência naval. Uma população reduzida, a ausência de camadas sociais capazes de se impor à preponderância de fidalgotes vivendo de uma agricultura atrasada, uma monarquia muito centralista, que encarava o comércio longínquo como fonte de renda estatal, foram alguns factores que impediram um desenvolvimento económico e financeiro interno sustentável. Portugal ficava dependente do poder financeiro italiano ou flamengo e, não controlando os preços no destino das mercadorias que transportava, ficou limitado ao papel de transportador, assumindo os custos humanos e materiais de viagens longas e arriscadas.


3 – Portugal, a construção de uma dependência

Nos séculos XVI e XVII, o modelo económico implícito na Ibéria baseava-se nos ganhos com o comércio longínquo, associado ao saque dos metais preciosos do México e do Peru, no caso de Espanha. A procura da continuidade do monopólio desse comércio - validado pelo Papa em 1506 - e a garantia da segurança do tráfego marítimo face a ingleses, holandeses, franceses e piratas comuns, exigiu gastos militares enormes a que se adicionaram as necessidades das guerras europeias resultantes da integração espanhola no disperso e inviável império dos Habsburgos, atravessado por guerras civis, nacionais e religiosas.

Entretanto, holandeses e ingleses desenvolveram poderosas marinhas mercantes e de guerra enquanto o corso (palavra que então legalizava a pirataria) do Drake ofereceu um contributo muito importante para a primitiva acumulação capitalista inglesa. Na Ibéria, o desequilíbrio externo com o norte da Europa era habitual, coberto com os lucros das Índias ocidentais e orientais mas, um assunto não tão importante como eventos organizados pela Inquisição, de queima de “hereges” nas praças públicas.

Portugal, após a união dinástica de 1580 com Espanha, esteve integrado na estratégia dos Habsburgos até 1640 e, a partir de então procurou recuperar as colónias brasileiras e africanas, activando o ciclo do açúcar e do comércio atlântico de escravos; mas, já não o comércio do Oriente, irremediavelmente perdido. Para se defender de uma nova integração na monarquia espanhola, Portugal iniciou um período de séculos de dependência e subalternidade face à Inglaterra, cada vez mais a potência dominante a nível mundial.

As experiências industrializantes do duque da Ericeira (depois de 1670) – desenvolvimento do têxtil moderno com artífices ingleses -  abortaram, porque perante a descoberta do ouro no Brasil (1693), interessava mais aos ingleses o subdesenvolvimento industrial em Portugal que favoreceria a importação de manufacturas inglesas, pagas com ouro brasileiro.

No seguimento, a coroa, a aristocracia latifundiária e a Inglaterra geraram o tratado de Methuen (1703) segundo o qual os ingleses compravam vinho e vendiam lanifícios, com impactos muito distintos na criação de riqueza, no desenvolvimento capitalista, no trabalho qualificado, na densificação da matriz inter-industrial. Esta segmentação foi tão bem urdida que ficou considerada por David Ricardo como exemplo paradigmático da sua teoria das vantagens comparativas.

Ainda nessa época, Portugal envolvia-se na guerra da sucessão de Espanha, alinhado com os interesses estratégicos ingleses, para impedir reis Bourbons em França e Espanha. Embora esse desiderato não tenha sido obtido, a Inglaterra obteve vantagens geopolíticas várias enquanto Portugal selava, um futuro de dependência e de atraso económico e político.

No início do século XIX, Napoleão, vencido em Trafalgar, perdeu a possibilidade de disputar o controlo do mar à Inglaterra e decidiu dar um golpe no comércio inglês, decretando o bloqueio continental. Portugal, se tem obedecido a Napoleão, teria visto a Inglaterra bloquear o tráfego português com o Brasil, o verdadeiro pulmão do Estado português e da sua corte. Neste contexto, a guerra com a França era inevitável e a corte foi despachada para o Brasil – levando consigo o real mobiliário de Mafra - protegida pela frota inglesa, sem que a Inglaterra perdesse a oportunidade de cobrar o serviço; isto é, exigiu a abertura dos portos brasileiros ao comércio inglês, vantagem bem mais interessante do que o transporte de uns magotes de parasitas para o Brasil.

Os franceses enviam três vagas de tropas para submeter e retalhar Portugal mas, encontraram uma forte resistência dirigida pelos ingleses; é Wellington que dirige as operações na decisiva batalha do Buçaco. Vencidos os franceses, o general Beresford governou Portugal, no contexto da continuada ausência da corte, até à revolução liberal de 1820.

A intervenção inglesa tornou-se também decisiva na definitiva vitória de Pedro IV sobre os absolutistas dirigidos pelo seu irmão Miguel, em 1834. Mais tarde, em 1847, são novamente os ingleses que, com os espanhóis, põem termo à sublevação do Norte, designada por Patuleia, impondo a autoridade da rainha Maria II. Portugal tinha, portanto, a condição de um estado vassalo da Inglaterra sobretudo, depois de enfraquecido após a independência do Brasil face à coroa lusitana.

Nos finais do século XIX, no auge da partilha de África entre as grandes potências europeias, Portugal sentiu que tinha de fazer algo para manter a sua histórica presença nas velhas colónias de Angola e Moçambique, a qual pouco se afastava, então, do litoral: e daí, que se tenham efetuado expedições para obter a vassalagem das tribos entre aquelas duas colónias e conseguir a legitimação da presença colonial portuguesa. Porém, essa intenção chocava com o projeto inglês de construir uma ligação ferroviária, sob o seu controlo, entre a Cidade do Cabo e o Cairo, surgindo, em 1890, nessa sequência, a exigência inglesa para a retirada portuguesa daquelas regiões do interior, no que foi obedecida, naturalmente. O vexame, entendido como próprio de uma situação de estado vassalo da principal potência da época, desacreditou a monarquia lusa e veio a motivar a insurreição republicana de 1891 que, no entanto, só veio a ser bem sucedida em 1910. Por essa época, Eça de Queiroz, diplomata em Inglaterra e França, dizia que Portugal era “um sítio”, ligeiramente diferente da Lapónia que nem sítio era.

Durante a guerra de 1914/18 Portugal, para defesa das colónias de eventuais partilhas entre as grandes potências – sobretudo da Alemanha, chegada tardiamente ao saque colonial -  lançou-se na guerra, sem qualquer capacidade militar para tal, assumindo-se como uma tropa subalterna da suserania inglesa, à custa de elevadas perdas humanas. Apenas se observou uma preparação relativamente ao momento da entrada na guerra (1916); quando estava um grande número de navios mercantes alemães e austríacos nos portos portugueses. O fim da neutralidade, possibilitava ao governo a apropriação dos navios tornados inimigos, aumentando-se assim, de modo gratuito, uma débil marinha mercante.

Durante a II Guerra, Salazar manteve-se neutro pois a neutralidade de Franco não lhe exigia uma opção e, contrariamente a 1914, as colónias estavam fora do cenário da guerra; entretanto, alguns enriqueciam com a venda de volfrâmio aos dois campos do conflito e contribuíam para a redução do deficit, o que agradava sobremaneira a Salazar, ao original… como aos seus atuais sucedâneos.

Em 1943, a Inglaterra, conluiada secretamente com os EUA e depois de proferidas umas loas à secular aliança luso-britânica para agradar a Salazar, consegue instalar a base militar das Lajes, nos Açores; em troca ofereceu material militar de segunda escolha para entreter os generais lusos e a promessa de defesa de Portugal em caso de ataque alemão (pouco provável). Depois da instalação dos ingleses, é imposta a presença dos norte-americanos, já sem margem de manobra para Salazar, que detestava o “american way of life”, para si, nos antípodas da boa moral católica – Hollywood, mulheres emancipadas... um horror!!

A partir daí, a supremacia política e militar dos EUA no “mundo ocidental” subalterniza a Inglaterra e tal é compreendido por Portugal que se apresenta como fundador da NATO, em 1949. Salazar fez essa opção mais como necessidade de legitimação e salvaguarda do regime fascista do que por fidelidade à aliança com a Inglaterra, também fundadora da sublime instituição militar ou, por reação a qualquer ameaça soviética.

Contudo, a Inglaterra continua a ser bem mais importante que os EUA a nível das relações económicas. E Salazar até prescinde de apoios norte-americanos no âmbito do Plano Marshall.


4 - Mudança de agulha -  a subalternidade dentro da UE

No seguimento da criação da CEE a partir de 1958, com a recusa da Inglaterra em participar, esta decide criar a EFTA (1960) para unir países da Escandinávia, Portugal e a Suiça numa pauta aduaneira comum. Portugal não tinha outra solução dada a relação comercial com a Inglaterra e porque, razões de ordem económica e política (o caráter fascista do regime, particularmente) impediam um ingresso na CEE.

A Inglaterra, quando se apercebeu que a questão da CEE tinha uma dinâmica superior à das relações com a Commonwealth, entabulou negociações para a sua adesão, vetada pela França em 1963 e 1967. A saída de de Gaulle em abril de 1969 permite o reinício dos trabalhos de adesão da Inglaterra à CEE, o que se vem a concretizar a partir de 1973. Impossibilitado de seguir fiel e integralmente a Inglaterra, devido à natureza fascista do regime e ao envolvimento numa guerra colonial em três frentes, Portugal teve de se limitar a um acordo comercial com a CEE, em 1972.

O reforço do número de membros da CEE (nove, desde 1973), a sua pujança económica, a presença ali de centenas de milhar de emigrantes portugueses, a maior concentração das relações comerciais com aquele bloco após esse alargamento, a redução do papel económico das colónias que, pelo contrário, se tornavam de manutenção problemática, do ponto de vista económico, político, militar e diplomático, constituem factores novos que precipitaram um realinhamento geopolítico de Portugal, já não polarizado em torno da Inglaterra e na relação colonial com África.

Esses são vários dos elementos que facilitaram a queda do regime fascista, a descolonização e a instituição de um regime político aceitável no quadro europeu, com o apoio das forças políticas do PS para a direita e dos meios empresariais; sobretudo depois do contra-golpe militar de 25 de novembro de 1975 que abafou as sementes da revolta popular.

O pedido de adesão à CEE foi feito em 1977, no contexto de dificuldades com deficits externos que conduziram a duas intervenções do FMI naquele ano e em 1983 que demonstraram a fragilidade do capitalismo português, para mais num contexto em que a Espanha havia saído do fascismo e procurava também ingressar na CEE. As ajudas de pré-adesão para Portugal (100 M de ecus em 1980 e 50M em 1984) surgiram como um aperitivo bem apaladado para o empresariato português. É curioso observar-se o modo grotesco como o governo português pretendeu mostrar a singularidade lusa no contexto europeu e ibérico, procurando uma formal adesão à CEE prévia e separada da de Espanha, mais atrasada nas negociações. Ainda não haviam percebido que Portugal, para os capitalistas globais, como para os burocratas de Bruxelas é apenas uma região da Ibéria.

Essa mudança geopolítica – integração na CEE - veio a concretizar-se em 1986, tendo a subalternidade do país face ao (efémero) eixo franco-alemão sido cimentada com fundos comunitários subsequentes para a “modernização” de Portugal. Através do PS de Soares, o PSF (Mitterrand) e o SPD alemão assumiram maior protagonismo em Portugal, os últimos financiando o PS desde 1973 (fundação) ou com a criação da UGT. Nesses anos de início da década de 80 o PSD, fiel a um atlantismo salazarento, ainda se mostrava alinhado com Reagan e Wojtyla num evento com velas acesas, contra o golpe militar de Jaruszelsky na Polónia. A Inglaterra ficava, decididamente para trás, largamente ultrapassada na sua importância no âmbito do comércio externo e do investimento externo.

No contexto desta redefinição estratégica da inserção subalterna de Portugal no mundo, há desenvolvimentos posteriores que, de facto, tendem a anular o papel das fronteiras como delimitadores das soberanias. Em 1985, os países do Benelux, com a França e a Alemanha assinaram o Acordo de Schengen, seguidos da maioria dos restantes, para agilizarem o “mercado de trabalho” e controlar a emigração. Em 1987 surge o Acto Único definido por Delors como “…a obrigação de realizar simultaneamente o grande mercado sem fronteiras e também, a coesão económica e social, uma política europeia de investigação e tecnologia, o reforço do Sistema Monetário Europeu, o começo de um espaço social europeu e de acções significativas em relação ao meio ambiente".

O Acto Único é detalhado e aprofundado no Tratado da União Europeia (Maastricht, 1992) apontando para reformas da Política Agrícola Comum (PAC) e dos fundos comunitários, estes últimos causadores do brilhozinho nos olhos de políticos e empresários portugueses e fecundo antro da corrupção. O Fundo de Coesão visava particularmente as redes transeuropeias de transportes, essenciais para suportar o comércio; e Portugal caraterizou-se por uma total preferência pelo modo rodoviário, atrofiando a rede ferroviária e jamais arrancando com as chamadas “autoestradas marítimas” como seria lógico para um país periférico, com longas distâncias a percorrer nos seus fluxos externos (exceptuando de/para Espanha), com bons portos, etc. De facto, estradas e auto-estradas preenchem uma política de betão, enriquecendo as empresas de construção do regime que absorvem os fundos comunitários, não se esquecendo, gratos, de financiar os partidos no poder e alguns mandarins rapidamente transformados em investidores de milhões, surgidos do nada ou patrocinados pelo generoso “mecenato” do BPN, criado em 1993.

Enquanto na Lusolândia se festejava o crescente valor diário dos milhões que entravam de ajudas comunitárias, o grande capital europeu urdia a teia da satelitização total dos pobres ou pequenos países, mormente do sul, recém-entrados diretamente destinados para constituírem uma periferia.

Na especialização dentro do espaço europeu com doze sócios, havia alguns, muito minoritários, sem direito a ações privilegiadas, como convém em grandes consórcios capitalistas, como a UE. Aos grandes caberia o projeto e a decisão, a venda para o mercado global de maquinaria, equipamentos, química fina, material de transporte e conhecimento, tudo com incorporação de alto valor acrescentado, competindo à periferia (então restrita ao sul) vender sol e praia, têxteis, calçado e espaço para eucalipto, negócios desconexos para exportação, que nem sequer densificam a matriz das relações inter-industriais e que se cruzam com baixos salários, baixo valor acrescentado ou danos ambientais. Seria injusto deixar de fazer aqui uma menção ao elemento mais nocivo que governou Portugal, no século XX: Aníbal Cavaco Silva. Só superado por Salazar.

O componente central do Acto Único é a UEM – União Económica e Monetária, assim como é significativo o maior relevo dado à decisão por maioria e, já não por unanimidade; também ali se define o alargamento das competências comunitárias a novas áreas – ambiente, redes transeuropeias, políticas de transportes, educativas, proteção do consumidor, I&D, política industrial, económica e monetária, política externa e de segurança comum (PESC) e a criação da Europol.

A UEM propõe-se ter uma concretização faseada. Até final de 1993, a total liberalização dos movimentos de capitais, a peça ideológica fulcral no pensamento liberal e da financiarização; depois, até ao fim de 1998 a aplicação dos célebres critérios de convergência (ver abaixo); e, finalmente, a partir de 1999 o parto dos gémeos uterinos, o euro e o BCE, este tendo como único objetivo o controlo da inflação, como determinado pela Alemanha, em atenção à sua experiência dos anos 20 mas, sobretudo, porque a inflação não convém nada a um sistema financeiro sobredimensionado dado que a erosão do poder aquisitivo da moeda desvaloriza o rendimento dos credores e beneficia os devedores.

Os critérios de convergência, ou de Maastricht foram, sumariamente:

  • Inflação que não supere em mais de 1.5% a média dos três estados com os mais baixos indicadores;
  • Deficit orçamental não superior a 3% do PIB
  • Dívida pública não superior a 60% do PIB
  • Participação no SME - Sistema Monetário Europeu, substituído na terceira fase por um MTC – Mecanismo de Taxas de Câmbio;
  • Taxa de juro de longo prazo que não supere em mais de 2% a média observada nos três países com menor inflação.

A PESC continha no Tratado de Masstricht um compromisso de defesa comum que veio a ser desenvolvido no Tratado de Lisboa, sem que se tenha perdido a habitual subordinação à NATO e ao Pentágono, no capítulo da estratégia planetária, que a UE nunca teve.

O fama de um Portugal como bom aluno nasceu do cumprimento de Maastricht, atapetado com a entrada de fundos comunitários, com a construção de infraestruturas (auto-estradas, Expo/98, Ponte Vasco da Gama…) que não evitaram o aumento do desemprego, privatizações para abate da dívida pública e desvalorizações do escudo mais ou menos paralelas com as da peseta, com a aproximação das taxas de juro a longo prazo das taxas alemãs.


1991
1998

Portugal
UE 15
Portugal
UE 15
PIB per capita (UE=100)
64,4
100,0
74,8
100,0
PIB (% var. real)
2,3
1,7
3,5
2,7
Inflação - consumo privado (%)
12,2
5,8
1,8
1,7
Desemprego (%)
4,0
8,1
5,2
9,9
Deficit Bal. Trans. Corr. (% PIB)
-0,9
-1,2
-4,7
0,9
Deficit Estado (% PIB)
5,9
4,2
2,1
1,5
Dívida pública bruta (% PIB) 
65,9
55,2
56,5
69,0
         Fonte: DA ADESÃO À COMUNIDADE EUROPEIA À PARTICIPAÇÃO na UEM - A EXPERIÊNCIA PORTUGUESA
                  DE DESINFLAÇÃO NO PERÍODO 1984-1998 – Marta Abreu

Esta melhoria global do enquadramento externo resultava também de Portugal ser o mais pobre dos países da Comunidade, onde os salários eram mais baixos; e a adesão, em 1995 de países de rendimento elevado – Áustria, Finlândia e Suécia só veio acentuar essa situação; a Suiça, por referendo ficou de fora. A estabilidade cambial, a ausência de conflitualidade social (construída na corporativa Concertação Social), o acesso barato ao crédito e proteção da pauta aduaneira comunitária face a países terceiros contribuíram para aqueles resultados, mesmo num contexto de ausência de meios para o exercício da política económica, delegados em instituições comunitárias.

Essas caraterísticas facilitaram, a partir de meados da década de 90 um enorme aumento do crédito, em grande parte obtido no exterior e que se distribuiu a partir do sistema bancário, pelos sectores da construção, do imobiliário, das obras públicas (em processo de hipertrofia) e das famílias, que encontravam através dessa via a resolução do problema da habitação, área onde a ausência de políticas públicas se mostrou estrutural. Pelo caminho, também havia dinheiro desviado para autarcas e seus partidos, por conta de facilidades nos loteamentos, fornecidas a muitos dos chamados empresários que largaram as suas atividades para se dedicarem ao imobiliário[2]. Claro que a situação, bem evidenciada no gráfico, tinha de conduzir, de per si, a um desastre, como se assiste.
  
                                                                         Fonte primária: Banco de Portugal

5 – Subalternidade periférica agravada por um contexto geopolítico não previsto

Próximo da mudança de século havia, no seio da UE, duas políticas alternativas ou a conciliar; uma, baseada no alargamento geográfico e outra, privilegiando o desenvolvimento da consistência interna do chamado projeto europeu, privilegiada em Maastricht. Para Portugal conviria mais a segunda, como se irá observar, em seguida.

O desmoronamento do bloco do “socialismo real”, abria um espaço vazio do ponto de vista da geopolítica, entre a UE e a Rússia, um espaço que hoje mesmo, tem a Ucrânia na ribalta, disputada entre os mesmos protagonistas. Os EUA, logo de início, começaram a manobrar no sentido de para lá venderem armas no âmbito da uma normalização do arsenal da NATO, onde aqueles países se vieram a inserir. Por outro lado, os países do Leste da Europa, empobrecidos, estavam desejosos de investimentos estrangeiros, de fundos comunitários mas, também do acesso à volúpia das sociedades de consumo. E a ocasião era única pois a Rússia, em recuo estratégico, tinha entrado num processo de desmantelamento social e económico protagonizado pelas mafias saídas da nomenklatura soviética e pelos seus financiadores ocidentais; era dirigida por um idiota (Ieltsin); e estava, portanto, neutralizada para este jogo de disputa do espaço Leste europeu.

A presa era apetecível e surgia aos capitalistas alemães como um prolongamento do processo de absorção da antiga RDA; e fazia lembrar que afinal poderiam concretizar o seu velho sonho de um Drang nach Osten,  sem guerra e sem grandes oposições na Europa. Essa apetência pela expansão a Leste foi bem clara logo no reconhecimento da independência da Eslovénia e da Croácia (1991), por parte da Alemanha e do Vaticano, ambos desejosos de poder ajudar aqueles povos nos caminhos do capital, o primeiro e do Senhor, o segundo. Que isso tenha sido o princípio para o desmantelamento da Jugoslávia e de uma década de guerras e morticínios na região, era certamente, secundário.

Esta lógica não convinha aos empresários portugueses e seus mandarins, objetivamente interessados, por paradoxal que pareça, na continuidade do Muro e do bloco de Leste, na guerra fria, etc; embora essa continuidade fosse contrária à tradição anti-comunista de Salazar, adaptada em 1975 por Mário Soares e Sá Carneiro. Essa tradição revela-se ainda hoje, quando se observa que Portugal, com a Inglaterra (apesar da recente recusa em intervir na Síria) e a Holanda, constituem o naipe dos países mais atlantistas e alinhados com os EUA e o Pentágono, de toda a Europa, a par dos antigos satélites soviéticos, por razões óbvias.

·    A abertura de uma nova periferia dentro da UE, a Leste, iria recentrar mais a UE em torno da Alemanha, como pilar político mais forte e, acentuar a posição periférica de Portugal, até então o país mais pobre da única periferia existente, a Sul;

·     Os níveis salariais a Leste eram mais baixos que em Portugal, este deixava de ser o campeão dos baixos salários no espaço comunitário, sendo ultrapassado por checos, eslovacos, húngaros, polacos…

·     Para mais, sendo os níveis de instrução e qualificação bem mais elevados a Leste, os capitalistas que tanto gostam de se banquetear com galinha barata iriam certamente preferir empanturrar-se no Leste onde a galinha além de barata, era gorda. Neste contexto, no período 1996/2012 o valor da posição alemã no investimento estrangeiro em Portugal duplica, enquanto que para o conjunto dos países da UE aquele investimento aumentou 521%[3], revelando assim, indiretamente, as preferências do capital alemão;

·    Portugal, como o mais pobre dos países da UE era o mais beneficiado em apoios comunitários, baseados no distanciamento face à capitação média do PIB comunitário. A entrada de países ainda mais pobres, baixou a média comunitária e aproximou dela os indicadores portugueses; e isso para além das regras para uma nova redistribuição dos fundos comunitários, saída da Agenda 2000. Daí que a região de Lisboa e Vale do Tejo tenha sido reconstituída para não prejudicar o acesso aos fundos das regiões do Oeste e do Ribatejo. Por seu turno, a Madeira e, parcialmente, o Algarve deixaram também de estar no mais baixo escalão dos beneficiários dos fundos comunitários.

Tendo subjacente a relevância do alargamento, o Tratado de Amsterdão (1997) deixou por resolver questões de organização e de coesão interna entre os 15 membros, mantendo-se o chamado “deficit democrático” e um Parlamento Europeu quase irrelevante[4], com todo o poder concentrado na hierarquia dos governos e nos burocratas que vivem em franco concubinato com os lobbys acampados em Bruxelas.

A produção legislativa, contudo, foi abundante, na área dos grandes princípios – Carta dos Direitos Fundamentais, reformulação da Carta Social – com a possibilidade de intervenção em caso de violação de direitos fundamentais, como aconteceu na Áustria pouco depois, após a eleição de Haider em 2000. Paralelamente, essas belas intenções eram esquecidos pela UE no cenário balcânico; continuam por aplicar contra o fascizante regime húngaro atual; e, finalmente, não se descortina que interpretação será dada aos direitos fundamentais quando instituições comunitárias de topo – Conselho Europeu e BCE – impõem os memorandos de entendimento e medidas de extorsão e genocídio, na periferia Sul e na Irlanda, evidenciando que os direitos do capital financeiro são os dominantes.

Por seu turno, a Agenda 2000 (1997) aponta como metas para o século XXI a resolução dos problemas da expansão da UE para Leste. Porque os países ricos não estavam disponíveis para aumentar substancialmente os apoios alicerçados nos fundos comunitários, procedeu-se a um congelamento/redução daqueles fundos para 2000/06 o que não agradou nada aos mandarins portugueses (ver acima). Para o efeito, a UE segmentou o espaço territorial mais débil economicamente em regiões com um PIB inferior a 75% da média comunitária, outras com problemas graves de de reestruturação económica e social e, um terceiro grupo com ambas as anteriores caraterísticas. Quanto aos fundos de coesão iriam concentrar-se nos países com uma capitação inferior a 90% da média global.

São, no seguimento definidas ajudas de pré-adesão no valor total de € 21000 M para aplicação em 2000/2006. Nesse âmbito, o programa PHARE visa a adopção do acervo comunitário e as infraestruturas de transportes… que agilizem as trocas, o comércio, como se sabe tomado como a mais virtuosa forma de gerar “desenvolvimento”; o programa SAPARD tem como objeto o desenvolvimento agrícola; e, finalmente, um Instrumento Estrutural de Pré-adesão inicia desde logo o financiamento de infraestruturas de transporte. Compare-se com as ajudas pré-adesão concedidas a Portugal (150 M de ecus) referidas mais atrás.

Curioso é o modo como a UE tem tratado a Turquia, candidato à integração desde 1987. Os argumentos para o eterno impasse já tornou os turcos mais orientados para uma integração regional próxima e, por outro lado, não ilustram a pretensa superioridade civilizacional europeia. Acrescente-se ainda que o crescimento da UE e os seus problemas económicos fizeram perder o entusiasmo turco.

As razões para o arrastar da situação não são muito éticas e revelam até tiques racistas. A Turquia, com 76 M de habitantes e uma taxa de natalidade elevada seria, desde já o segundo país mais populoso da UE, embora a dimensão populacional seja um argumento não utilizado para com os 45 M de ucranianos; a Turquia é muçulmana e não faz parte da civilização europeia, embora não se saiba bem o que esta última seja; a sua entrada iria envolver uma nova redistribuição dos fundos comunitários como já aconteceu, o que não interessa aos atuais membros da UE – os pagadores e os recebedores de fundos comunitários; a Alemanha, com alguns milhões de emigrantes turcos e seus descendentes, não quer o seu aumento, sobretudo sabendo que os acordos entre a Turquia e os países da Ásia Central com línguas turcófonas poderiam trazer mais uma vaga emigratória (azeris, turcomanos, uzbeques, kirguizes, cazaques, uigures…); a Turquia é demasiado pobre mas o argumento não foi brandido quando quando da absorção de países também bem pobres como a Bulgária ou a Roménia; finalmente, insinua-se que a Turquia tem o separatismo curdo no seu seio mas, nesse campo será que a UE tem as mãos limpas com a sua intervenção na ex-Jugoslávia e com a criação de um narco-estado chamado Kosovo?


6  A subalternidade é a porta para todas as desigualdades

As grandes desigualdades quanto às estruturas económicas, níveis de desenvolvimento, e interesses, já evidentes entre os primeiros 15 membros da UE, iriam certamente aumentar com os futuros alargamentos que se configuravam, sobretudo a Leste. Na realidade, quanto maiores e mais diversificados são os espaços geográficos, mais estratificados e desiguais acabam por se tornar, acentuando, pois a constante criação de desigualdades inerente ao capitalismo e favorecendo os processos de re-hierarquização de territórios e suas populações. E a maior concentração dos poderes de decisão a nível central com aparelhos de estado ou de super-estados tenderá, por seu turno. a acentuar esse pendor, anulando as possibilidades de políticas regionais, de proximidade, como se vem assistindo com as crises do euro e da dívida.

Para que a persistente existência dessas diferenças não levantasse obstáculos, foi criada em Amsterdão a possibilidade de “cooperação reforçada” entre estados que se queiram associar para ir mais além do previsto nos tratados, enformando o que mereceu os epítetos de Europa “a la carte”, em “diferentes velocidades” ou “de geometria variável”. Afirmou-se assim, a possibilidade de uns avançarem mais do que os outros, no processo de integração económica, constituindo os retardatários a base mínima e uniforme para a pertença à UE; exclui-se, por omissão, que alguns possam proceder a uma “cooperação aligeirada”, com alguns passos à retaguarda.

Esse vanguardismo que não admite recuos viria a evitar a estagnação do processo de adopção do euro em 1999, uma vez que uns não cumpririam os critérios Maastricht (na realidade a Grécia e a Suécia) e outros iriam manter um distanciamento para com a união monetária (Dinamarca e Inglaterra). A Grécia viria a aderir em 2001 mas, no entanto, à Bélgica e à Itália, não foram levantados problemas no capítulo das suas dívidas públicas, muito acima dos critérios exigidos por razões menos técnicas e mais esfarrapadas, como serem fundadores da antiga CEE, um porque hospeda a sede da UE, outro porque é um dos grandes países… Pior que uma Europa “à la carte”, é a manta de retalhos, a discricionaridade assumida, como se prefira.

Esta disposição da “cooperação reforçada” aprofunda a hierarquia entre os países membros, pressupõe a existência de um núcleo motor, dominado pela Alemanha, que dirige e traça as regras, dado que a França vem assumindo um papel cada vez mais subalterno desde 1989 e a Itália se mantém com graves problemas económicos e políticos que lhe retiram qualquer protagonismo europeu. A Inglaterra, ancorada na sua City, tem dispensado esse reforço de  cooperação como produto do equilíbrio entre eurocépticos e euro-entusiastas.

Depois da criação do euro e da integração quase inicial da Grécia (2001), outros países de pequena dimensão económica se atrelaram ao combóio, por efeito da sua força centrípeta; Eslovénia (2007), Chipre e Malta (2008), Eslováquia (2009), Estónia (2011) e Letónia (2014), esta última, por “sugestão” da intervenção do FMI, que endossou a responsabilidade pelos desequilíbrios letões ao BCE. Ingressando na UE, em 2004, no mesmo pacote dos anteriores, a Hungria, a Lituânia, a Polónia e a República Checa, mantêm as suas moedas próprias.

Mesmo considerando o economicismo imanente aos objetivos da moeda única, - e sem esquecer a ausência de democracia na decisão de nível europeu - só gente distraída ou mentirosa não detetará o fracasso no cumprimento dos desideratos propostos pelos funcionários do capital financeiro:

·      Pretendia-se criar com o euro uma estabilidade económica e financeira. A crise do euro, o custo da estabilização financeira com que alguns estados têm evitado[5] a falência dos bancos, a roda livre dos mercados especulativos, a transferência de produtos tóxicos para as contas públicas indiretos geradores de medidas de austeridade, são factos que falam por si;

·     Entendia-se que o euro iria impulsionar o crescimento económico. No entanto, o crescimento tem sido anémico e desigual revelando-se, de facto, perdas do poder de compra das populações e verdadeiros vórtices de empobrecimento em Portugal, Grécia, Irlanda, Espanha, Letónia…;

·     Procurava-se com o euro potenciar a criação e o funcionamento do mercado único. Na realidade, esse mercado tem promovido o alargamento dos fossos entre Centro e Periferias, acentuando as diferenças entre beneficiários e prejudicados com o mercado único;

·     Entendia-se que o euro iria aumentar o nível de integração económica e europeia. Porém, as desigualdades acentuam-se, o euro mantém-se de fora de 10 estados e, mesmo entre os 18 integrados, as desigualdades têm aumentado gerando-se na realidade uma Europa a várias velocidades;

·    Acreditava-se que o euro iria fortalecer o papel da economia europeia no contexto da economia internacional. Na realidade, a economia internacional vem sendo animada pelo dinamismo dos “países emergentes”, com relevo para a China e, com o alto patrocínio do BCE há vários “países imergentes” no seio da UE e da zona euro.

No capítulo de uma projetada cidadania europeia, colocada mais explicitamente a partir de Maastricht, os sucessos da UE também não são famosos. A liberdade de circulação no seio da UE é vantajosa para as viagens e para alimentar o negócio turístico mas, quanto ao trabalho e à residência, mantêm-se barreiras difíceis de ultrapassar, como a relutância em aceitar estrangeiros, mesmo quando oriundos da UE ou até xenofobia e racismo quando se trata de ciganos provenientes da Roménia, por ex. A emigração continua a ser controlada e objeto de discriminações no acesso ao trabalho, à residência e de natureza salarial.

Essa consciência europeia, transversal às várias culturas, é difusa por vários motivos. Os mandarinatos nacionais para sobreviverem precisam de acentuar o nacionalismo, os egoísmos nacionais, as rivalidades geradas no passado para se mostrarem como eméritos defensores da pátria junto dos seus eleitorados; sem perderem de vista, nos seus espasmos teatrais a glória futura que vem a caminho com o projeto europeu que traz no bojo, essencialmente… a uniformização que convém ao capital financeiro. Aos mandarins nacionais importa manter a população desligada dos assuntos europeus para poderem vincar a sua relevância como “representantes” do povo contra a burocracia bruxelense, como intermediários dedicados e esforçados. Porém, são os mesmos mandarins os responsáveis pela remessa dos burocratas que se atropelam nas instituições europeias, que ninguém conhece ou, menos ainda elegeu, direta ou indiretamente, embora essa emissão se integre na divisão de poderes a nível europeu, mormente entre as grandes confederações partidárias europeias, o PPE e o PSE, géneros de mafias continentais.

A UE tem-se sentido mais na vida das pessoas, nos últimos tempos, em países específicos, através da atuação da troika ou de delegação direta dada ao FMI (Letónia), longe de se apresentar como gerador de algum europeísmo; antes pelo contrário, alimentando fervores nacionalistas (PCP em Portugal) ou mesmo fascistas (Grécia). Por outro lado, há países onde há uma forte sentimento identitário, pouco dado à homogeneização europeia (Inglaterra) ou por temores históricos de absorção por vizinhos poderosos (Dinamarca).

As eleições europeias são mais importantes para os leques partidários nacionais em disputa de lugares no PE, refletindo mais, lutas intestinas no seio dos partidos, do que para as pessoas; estas, bem sabem não só que o PE pouco bole com as suas vidas como sabem que as instituições comunitárias estão a léguas de distância, ocupadas por uma burocracia kafkiana e regulamentos cuja lógica é difícil de entender. Por isso e dentro da relatividade das situações, as pessoas continuam a dar mais importância à eleição dos corruptos para cargos locais ou nacionais. 

Engana-se quem pensar que as instituições europeias são independentes dos estados-membros e dos seus mandarins ou que gozam de poder sobre aqueles; isso só é verdade para os países mais pequenos ou subalternos. A Comissão Europeia depois de uma presidência forte (Delors) e da que lhe sucedeu (Santer) marcada pela corrupção, acolheu Durão Barroso, como um “menor mínimo comum”, precisamente pela sua falta de qualidade política. A esse  juntou-se mais recentemente outra figura cinzenta, o belga Rompuy, como figura protocolar decalcada da presidência da república alemã, para além da inoperante Catherine Ashton como responsável pela PESC – Política Externa e de Segurança Comum. Estas escolhas sucedem precisamente porque os maiores países da UE, nomeadamente a Alemanha e a França não pretendem subordinar os seus interesses próprios aos de qualquer Comissão Europeia; e daí que o verdadeiro órgão decisório seja o Conselho de Ministros da UE para definir estratégias e tomar grandes decisões. Todos vemos que é Merkel que traça o caminho a seguir para a UE e que Draghi tem mais poder que Barroso, tal como a França que, para conduzir a suas intervenções em África não se coloca sob os altos auspícios de Ashton.

Continuaremos a abordar em breve os temas de soberania, dependência, subalternidade, a partir desta questão:

Perante o fracasso da UE como estrutura democrática, solidária e harmonizadora das ligações entre os povos europeus, a alternativa é um retorno à Europa das pátrias?




Documentos e textos em:    





[4]  Mas não irrelevante para os mandarins apreciadores do conforto das alcatifas de Estrasburgo; os habituais escolhidos pelo pentapartido luso e os afadigados patrocinadores da união das “esquerdas” – Manifesto 3D e Rui Tavares - despertos para essa questão, a cinco meses de eleições europeias. Aliás, a total ausência de ideias reveladas mostra bem os seus propósitos elitistas e oportunistas

3 comentários:

  1. Amigo Victor
    Claro que subscrevo o resumo histórico aqui desenvolvido, mas permito-me discordar de um ponto que me parece decisivo. Trata-se da questão da soberania e do papel dos estados-nação. É verdade que até tempos recentes sempre houve uma aliança evidente entre os grandes barões da finança internacional e os dirigentes dos estados que punham a soberania ao serviço dos interesses daqueles. Mas hoje o panorama é bastante diferente pois o paradigma mudou bastante. Actualmente, a soberania dos estados tem um cada vez maior valor apenas burocrático e muito menos real. As grandes decisões são tomadas crescentemente por elites desterritorializadas, com raio de acção global num movimento de envolvência mundial onde a soberania e a democracia são noções em clara degradação. Este movimento tem-se intensificado pela corrida a um novo tipo de tratados internacionais como o TPP e o TAFTA que, quando aprovados, selarão definitivamente o papel da soberania dos estados- nação, dos direitos dos cidadãos, do ambiente e da liberdade em geral. Parece-me fundamental não perder de vista esta perspectiva por constituir a maior ameaça jamais constituída contra os direitos da própria humanidade.
    Abraço
    Zé Manel

    ResponderEliminar
  2. Na história, factos são factos mas , a "leitura" desses factos pode ser divergente .
    O condado Portucalense era fronteiro . Certamente que Afonso Henriques teve nos nobres do condado o seu mais forte e poderoso aliado para ser rei . Na chamada "reconquista cristã" , os territórios conquistados , sendo pertença (?) do condado eram também do rei de quem Afonso Henriques era vassalo . Os nobres do condado sabiam que , se o conde Afonso Henriques fosse rei eles próprios poderiam ter a dignidade de condes nos territórios conquistados . Mais ou menos o mesmo que se passa numa empresa : Subindo o chefe criam-se as condições para haver mais chefes ,

    ResponderEliminar
  3. Síntese forte e bem estribada, salvo um ou outro detalhe.
    Pena perfilhar a visão niilista e negra da história portuguesa que virou moda após o 25A.
    A Economia do transporte é vista como algo indigno e medíocre. O costume, desde António Sérgio.
    Mas porque é que descobrir novas rotas, montar entrepostos em sítios hostis e fazer transporte longínquo a terríveis custos humanos tem essa indignidade toda?
    Por essa ordem de ideias todas as multinacionais atuais deviam fechar, porque o que elas fazem é parecido com o antigo transporte – elas pegam nos materiais pelos quatro cantos do mundo, exploram à bruta a plebe, juntam as peças e põem-lhe um rótulo, vendendo por bom preço. Parece que ganham muito dinheiro,
    Mas os portugueses sempre foram uns burros em fazer... a mesma coisa, mais ou menos, e pelos vistos nunca souberam ganhar dinheiro. Ou então, quando ganharam (porque para construir todos esses palácios e mosteiros, algum devem ter ganho) então aí é foram esclavagistas, só faziam matar índios e africanos, e mais isto e aquilo.

    Parece que dá azar nascer no retângulo. Outros fazem coisas parecidas, mas são os maiores. Veneza, Florença, a civilização árabe no seu apogeu, não foram todos eles comerciantes e transportadores? Ah... mas esses eram geniais porque... glup... não falavam Português (?)

    Fora isso, o texto é marcado por uma visão fortemente marxista, tentando fazer toda a leitura pela matriz da luta de classes, o que só pode dar uma leitura pobre da História.

    Para não me alongar, e para tratamento mais rigoroso, espero tratar este assunto (luta de classes como "motor da História") num texto do meu próprio blogue. Depois aviso o pessoal.

    Apesar de tudo, é positivo haver quem tente esta visão integrada e não fragmentária dos acontecimentos. Nesse aspeto, aplaudo este texto como um estimulo para novos voos.

    ResponderEliminar