Sobre a democracia: A democracia e a sua usurpação (1ª
parte)
Sumário
1- Um
contexto civilizacional para mudança urgente
2- Estado
não rima com democracia
3- Exemplos
democráticos na Antiguidade
Ciro, o Grande, rei dos persas
A democracia ateniense
4 - Factores de neutralização da
participação democrática
1
- Um
contexto civilizacional para mudança urgente
A representatividade de todos
imputada a alguns, escolhidos por eleições é um princípio demasiado vago para
ser aceite, levianamente, sem observação detalhada. A sua aceitação, nesses
termos vagos é uma emboscada em que se quer fazer tropeçar a multidão para
perpetuar o domínio de todos por uns poucos, fazendo crer aos incautos que esse
domínio é benfazejo, tão natural quanto perene, a única forma de gestão da vida
pública. E que, portanto, deve ser despreocupadamente consentido.
Esse paradigma, como todos,
compreende uma dinâmica, resultante de interações várias, entre as quais:
- a pressão de forças sociais excluídas do sistema de representação;
- formas de racionalidade que tendem a forçar, se não a substituição desse paradigma por outro, pelo menos a sua contínua melhoria;
- fórmulas defensivas ou mistificatórias conducentes à manutenção, no poder, de castas ou grupos sociais privilegiados.
Raramente se fala da dimensão
temporal das fórmulas de representação actuais, sobretudo daquelas que vigoram
no chamado Ocidente e mais ou menos seguidas ou impostas aos países do Sul,
implicitamente considerados como bárbaros, com o dever de agradecida aceitação
da superioridade civilizacional do Ocidente. Imposição essa, se necessário,
através da fraude, do golpe de estado, do bombardeio ou do massacre, sempre e
naturalmente, em nome do progresso.
Esse complexo civilizacional é
uma herança do colonialismo, de se pretender, no Ocidente cristão, apontar a
todos os povos uma obrigatória repetição de todos as experiências ocidentais,
dadas como indiscutivelmente mais avançadas. Poucas décadas atrás - a título de
exemplo - no império colonial português, os africanos eram segmentados entre
assimilados (mais ou menos adoptantes da cultura do colonizador) e não
assimilados, “selvagens” destinados à ação dos missionários empenhados na
salvação das suas “almas”, do comerciante sequioso do produto do seu trabalho
ou, dos militares, de mão pesada para impor a lei e o respeito pela bandeira
aos recalcitrantes. Era o domínio dos três “M” na feliz expressão de René
Dumont (le missionaire, le militaire, le marchand), o triunvirato essencial do
domínio colonial.
Finalmente, os interesses
estratégicos ocidentais e das suas multinacionais sabem que o modelo de
representação ocidental tem grandes virtualidades na estabilização política e
na agilização da exploração dos povos, em comparação com modelos autoritários e
tiranias pessoais ou de cariz militar. No entanto, a geopolítica cava muitas
brechas nesse modelo, por exemplo, com a aceitação da “democracia saudita” e a
recusa do governo palestiniano saído de eleições sem mácula, com a legitimidade
dada ao corrupto Karzai e a diabolização do regime iraniano, entre muitos
outros exemplos.
2 - Estado não rima com
democracia
O modelo de representação
ocidental actual ainda não tem um tempo de vigência superior ao da democracia
directa grega, onde a mesma funcionou, mormente em Atenas. Nos casos mais
antigos, o modelo ocidental de representação remonta apenas à segunda metade do
século XVIII e apresenta cada vez mais nódoas de casos notáveis de excepções e
atropelos à democracia.
Mesmo nesse horizonte temporal, o
modelo ocidental, até tempos relativamente recentes, admitia demasiadas
limitações, para se considerar democrático. Na França de 1848 admitia-se apenas
a existência de 200 000 eleitores numa população de 30 M e, em 1867, o
recenseamento eleitoral abrangia apenas 30%
da população activa. No mesmo ano, o sufrágio para a totalidade dos
homens foi introduzido no Norte da Alemanha, adotado na Itália em 1912 e, na
Inglaterra, em 1918; curiosamente, o mesmo ano em que o sufrágio chegaria às
mulheres, na Alemanha. Em Portugal, o voto feminino surge em 1956, com muitas
limitações e a sua universalidade só chegou depois do 25 de Abril.
A deturpação democrática para
ganhar aceitação junto da multidão recorre a fórmulas diversas, de que se citam
adiante alguns exemplos. A inscrição de
um “in god we trust” impresso nas notas de dólar, revela que a Wall Street –
conhecida pelos seus pios comportamentos - utiliza o apoio divino para que os
mortais aceitem aqueles rectângulos de papel, essenciais à acumulação das
fortunas. Na democrática Inglaterra, não é permitido que os jornais ingleses
defendam a instauração da república no país; isto é, os ingleses são obrigados
a conviver “forever and ever” com a suserania simbólica da rica família
Windsor. Mais recentemente, os governos europeus ou as suas câmaras de
ressonância, os parlamentos, aprovaram o tratado de Lisboa, intervenções
militares várias, os PEC e planos de austeridade - que mais se assemelham a
extorsões - sem qualquer procedimento
democrático de consulta.
Essa omissão, essa escassa
legitimidade temporal, bem pontuada por excepções e limitações, pretende-se
ultrapassada com a propensão ocidental para apresentar a democracia de mercado
como o sistema de representação perfeito, a coroar o sistema económico
perfeito, o capitalismo neoliberal. Não está em causa que esse sistema seja
menos insalubre que as ditaduras saídas do desmoronamento da URSS na Ásia, os
regimes despóticos de reis e sultões árabes, dos antigos caudilhos
latino-americanos ou dos neo-sobas africanos (Obiang, Eduardo dos Santos, Mugabe).
Porém, isso não deve fazer esquecer que a democracia de mercado está longe de
ser modelar e não é propiciadora de atitudes de desleixo político e ideológico
quando andam por aí Berlusconis, Sarko(na)zys e miseráveis do mesmo jaez.
As formas dominantes do exercício
do poder de decisão através da História basearam-se em fórmulas em que a
questão da representatividade se colocava de modo exógeno à sociedade e
imanente a um grupo social específico, erigido e acantonado em torno do Estado,
construído para o efeito.
As revoluções americana e
francesa construíram fórmulas complexas de representatividade, potencialmente
democráticas, uma vez que desligadas de qualquer imanência, não instituídas em
função do nascimento, vontade divina ou pertença a grupos sociais
pré-definidos. Porém, em qualquer dos casos, a gestão colectiva dos problemas
sociais não prescindiu de um elemento externo, exógeno à sociedade, às pessoas
– o Estado. Atribuindo a este uma personalidade, prerrogativas próprias,
únicas, acima das pessoas, o Estado torna-se, tendencialmente, objecto de
cobiça e apropriação por grupos específicos que, através de solidariedades e
interesses mútuos decorrentes dessa apropriação, se transformam em grupo ou
classe social privilegiada. Estado esse que tende a proceder a uma falsa
intermediação entre todos os grupos sociais, a apresentar-se como um agregador
de interesses equidistantes, embora o seu papel histórico sempre tenha sido o
de favorecer aristocracias fundiárias, industriais ou financeiras.
Nos países ocidentais, promotores
actuais da democracia de mercado, aquela apropriação da representatividade cabe
a grupos sociais, divididos formalmente em partidos, apresentados como
alternativos uns dos outros e relativamente fechados. Por outro lado, onde
vigora o capitalismo de Estado (China…), a dimensão desses grupos sociais – em
regra unificados num só partido de caráter nacionalista - pelo seu número e
pela sua inserção no aparelho produtivo, administrativo, político e social
transformam-nos a eles próprios, em verdadeiras classes hegemónicas sem que, no
seu seio, deixem de se constituir gangs mais ou menos mafiosos, em disputas
aceradas pelo poder e pelo dinheiro.
Para os capitalistas, qualquer
que seja o formato político do seu domínio, o Estado é imprescindível. As
razões são muitas mas, podem resumir-se; veículo de acumulação capitalista,
instrumento multifacetado de perpetuidade do sistema de produção, adereço de
configuração ideológica, transformando os trabalhadores em alegres ou
resignados servos, monopólio da fixação da lei e da legitimação do uso da
força, de conveniente imposição da ideia de pátria, como forma de disfarçar as
diferenças entre possuidores e desprovidos dos meios de produção. Neste último
aspecto, é banal qualquer mandarim arengar no sentido da coesão nacional, no
sacrifício e na unidade de todos e falsidades semelhantes.
As actuais fracas capacidades de
criação de riqueza efectiva do capitalismo elevam o seu patamar de dependência
face ao Estado, de mobilização dos seus recursos para efeitos de acumulação de
riqueza. Essa procura de respostas por parte do Estado corresponde a uma
atitude deliberada e consciente dos capitalistas no sentido da sobrevivência do
seu sistema. Hilferding e Lenin sentir-se-iam, hoje, esmagados perante a força
da actual ligação do capitalismo global aos Estados.
Por seu turno, as dificuldades
inerentes á pobreza que, gradualmente, vem submergindo a multidão, obrigam a
uma procura, no seio desta, de acrescidas capacidades de intervenção por parte
dos Estados, coerente, aliás, com as constantes e abundantes referências das
leis e do discurso político ao papel do Estado como pai protetor, ainda que
severo. Esta procura de soluções junto do Estado por parte dos trabalhadores e
dos pobres, corresponde, de facto, à aceitação do Estado capitalista; e, na
realidade, a sua existência surge, conjunturalmente, como imprescindível para a
subsistência ou sobrevivência física para grande parte da população. No
balanço, há sempre uma insipiência, duplicidade ou parcialidade das respostas
dos poderes públicos, às necessidades da multidão, mesmo que o protesto social
seja elevado.
Sobra sempre, junto da multidão.
um descrédito enorme quanto às instituições do regime político existente,
descrédito esse, em regra, difuso e pouco conceptualizado, contrariamente ao
dos capitalistas quando desacreditam o Estado que os faz sobreviver e, desse
modo, acentuar a transferência de recursos públicos para mãos privadas. Faz
parte desse descrédito popular face ao Estado, o sentimento de distância face
às suas instituições, a consciência da sua pouca transparência e do seu domínio
por uma casta restrita (sistema de partidos ou um partido-Estado) que mais se
assemelham a gangs de mafiosos.
Esses gangs revelam-se
articulados e em osmose, em parcerias diversas, com outras práticas
anti-sociais ou criminosas levadas a cabo por grupos sociais muito
minoritários, como as confrarias judiciárias e os escritórios de advogados, as
omnipresentes empresas de consultadoria, os poderes mediáticos que manipulam a
informação, o alto funcionalismo público, as discretas altas esferas militares
e policiais.
Por outro lado, a complexidade da
realidade económica e social, a variedade e o grau de especialização dos
recursos técnicos e tecnológicos necessários para a abordagem das questões
sociais e económicas, inviabiliza que a gestão social, da vida comum, se
concentre num grupo limitado de pessoas, obrigadas a ser generalistas por
impossibilidade de um conhecimento totalmente abrangente. Sem dúvida que se
socorrem desses conhecimentos especializados junto de trabalhadores, para a sua
tomada de decisão, procurando manter-se nessa situação privilegiada, alicerçada
em hierarquias pesadas e anti-democráticas, que pretendem perpetuar, uma vez
que associam à sua tomada de decisão um carácter de eleição, de direito.
Ora, se os mandarins nada
conseguem, globalmente discernir, sem a intervenção de trabalhadores
conhecedores dos processos técnicos, sem o conhecimento veiculado por estes;
se, quando tomam decisões, isso resulta da junção de elementos produzidos por
aqueles, aglutinados de forma capciosa para favorecer os interesses do
capitalismo, então qual a utilidade dos mandarins? Inversamente, se são os trabalhadores que detêm
os conhecimentos, porque não sairão dos seus colectivos as decisões
consensualizadas e democraticamente tomadas? E, uma vez mais, nesse contexto,
para que servirá o mandarim? (1) (2)
Sendo complexa a gestão social,
exige-se para o efeito uma articulação interdisciplinar crescente. E a concentração
dos poderes de decisão política a que hoje se assiste, em grupos fechados,
tendencialmente herméticos, iniciáticos, configura figuras de monopolização e
de incompetência, no mínimo ou, de compadrio e distribuição corrupta de
recursos, em muitos casos. Essa prática, bem visível, encontra-se em absoluta
contradição com ideias elitistas, eventualmente bem intencionadas, sobre a
possível bondade da actuação do Estado capitalista, de defesa de despotismos
esclarecidos, que têm redundado em ditaduras sob disfarce democrático. E, como
se sabe, a perpetuidade dessa concentração, com a ausência prática do
escrutínio popular, é a mãe de todo o autoritarismo, das desigualdades e
dificuldades que minam as sociedades de hoje.
Por muito crente que se seja nos
mecanismos da democracia de mercado, com os seus mecanismos de concentração de
poder e de decisão, as suas formas de desinteressamento das pessoas comuns pela
ação política (dos assuntos da “polis”) fácil se torna observar que a sequência
de actos eleitorais nada transforma de substantivo. Tudo não passa de uma
encenação para a legitimação da perpetuidade da dominação de quase todos por
alguns; mesmo que fisicamente, não sejam os mesmos, todos os mandarins se
inserem em idêntica lógica de poder, promoção pessoal ou grupal, de
interligação com os donos do dinheiro. (2) (3) (4)
Não é possível encarar a
democracia e as inerentes formas de tomada de decisão, a liberdade de expressão
e de intervenção na gestão social, o acesso de todos aos bens e serviços
propiciados pela civilização, sem colocar em causa o papel do Estado.
Justifica-se que sejam discutidos aspectos relativos a direitos individuais, à
decisão sobre a gestão social que, em democracia deve ser praticada em toda a
sua plenitude, como veículo para a afirmação da anarquia (o governo de todos
para todos).
A questão do Estado arrasta
consigo a existência de um subproduto, a classe dos profissionais da política;
esta, coloca na primeira linha de uma alternativa democrática, a sua anulação,
com substituição por uma repartição não coerciva, nem materialmente lucrativa
das tarefas, assumida pela coletividade. A execução das tarefas inerentes ao
comum, terá de ser encarada como se fosse a resolução de um problema técnico,
necessário para o bem-estar coletivo.
Disse-se atrás que as formas
dominantes da tomada de decisão nos assuntos sociais têm tido como elemento
comum a existência de factores exógenos à própria sociedade, mormente o Estado.
Nem sempre assim foi e há experiências concretas e historicamente recentes, em
regra afogadas em sangue, que demonstram a viabilidade e necessidade da
democracia; contudo, neste texto cingirmo-nos a duas experiências vividas na
Antiguidade.
3 - Exemplos democráticos na
Antiguidade
Ciro, o Grande, rei dos persas
Ciro o Grande (559-530 AC), rei
dos persas, após ter entrado em Babilónia, sem combate, deixou escrito, no
chamado Cilindro de Ciro, o que se pode considerar como a primeira carta dos
direitos humanos. Contrariamente aos hábitos da época, poupava os adversários
vencidos e até os utilizava em cargos administrativos do império, reconhecendo
implicitamente que o capital humano é o mais precioso, contrariamente às atuais
práticas genocidas do capitalismo, relativamente a populações envelhecidas,
desempregados, indigentes, etc.
Ali se apontava para a liberdade
religiosa e étnica, a proibição da escravatura e de toda e qualquer opressão,
bem como da apropriação forçada de bens ou, sem o devido pagamento. Depois de
permitir que os exilados em Babilónia (5) voltassem às suas terras, Ciro
decretou que qualquer um dos 23 estados componentes do império persa tinha o
direito de secessão, que lhes era garantida a manutenção das instituições
locais, bem como os seus próprios dirigentes, tendo ainda Ciro renunciado ao
uso da guerra para reinar. Contudo, os seus sucessores não levaram muito a
sério tais afirmações, atacando as cidades gregas da Ásia Menor (e depois a
própria Grécia) por aquelas não estarem dispostas a pagar tributo.
O Cilindro de Ciro, um volume em
argila com escrita cuneiforme, está presente no Museu Britânico de Londres,
obviamente rapinado nas aventuras imperiais dos ingleses. O seu enorme
simbolismo faz com que haja uma réplica na sede da ONU em Nova York.
A democracia ateniense
"Vivemos sob a forma de governo que não se baseia
nas instituições de nossos vizinhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns
ao invés de imitar os outros. Seu nome, como tudo o que depende não de poucos,
mas da maioria, é democracia"
Péricles, Oração
fúnebre, in Tucidides:
A Guerra do Peloponeso, Livro II, 37.
Estava, assim bem definida a
diferença entre o “governo pelo demos (povo)” e a aristocracia (governo dos
notáveis da sociedade) ou a plutocracia (governo dos ricos), uma vez que nas
cidades gregas a figura do “basileus” (rei) era coisa de um passado já então, remoto.
Nos tempos que correm, os
sistemas políticos evoluíram, refinaram-se e tendem a corresponder a um novo
modelo - a cleptocracia (governo dos ladrões). Nenhum poder instituído,
exercido por alguns sobre a grande maioria, assume essa designação e, por isso,
os governos contemporâneos se arrogam, para efeitos de imagem, a reivindicar a
designação de democracias aos seus regimes, mesmo quando se trata das mais
evidentes e cruéis ditaduras. Em Portugal, Salazar e Caetano referiam-se ao seu
regime corporativo (teorizado pelo segundo) como “democracia orgânica” e os
países ditos socialistas falam de “democracia popular, proletária ou operária”
para mascarar o domínio do partido único.
Foi Atenas que mais desenvolveu o
funcionamento da democracia, termo que, modernamente, só no século XVIII, foi
redescoberto, 24 séculos após a sua criação. Para além de Atenas, mais ou menos
paralelamente, funcionarem sistemas políticos semelhantes em Mileto, Mágara,
Samnos ou Quios, desde inícios do século VI AC. Em torno de Atenas e com
regimes políticos semelhantes formou-se a simaquia de Delos, uma confederação
de cidades que se opunha à simaquia do Peloponeso, comandada por Esparta. Esta
última tornou-se o exemplo do domínio de uma aristocracia militarista e
eugenista avant la lettre que parece
constituir o modelo dos burocratas europeus e dos seus cúmplices nacionais.
Em 508 AC, Clístenes, depois dos
maus resultados dos reformadores Drácon e Sólon, é chamado pelo povo de Atenas,
que impôs o seu regresso do exílio, para onde havia sido enviado pelo partido
dos ricos, em aliança com Esparta. Até então, a grande maioria da população não
tinha direitos políticos, sociais ou civis.
Dado o descrédito do regime dos
tiranos (palavra que significava árbitro), figuras mais ou menos carismáticas,
autoritárias ou populistas, bem como a fraqueza da aristocracia tradicional, o
povo de Atenas tinha condições para criar um novo regime político, diretamente
emanado do seu seio. Tratava-se de um momento histórico semelhante ao
verificado ao tempo da Comuna de Paris, nos primeiros anos da revolução de
Outubro, durante a República espanhola ou, recentemente, em Oaxaca. Hoje, a
situação calamitosa do mundo, do ponto de vista político, social, económico e
ambiental, exige que se debata e aplique a democracia; e que se não permita a
palavra seja utilizada para definir os regimes cleptocráticos, de
“representação”, centrados em gangs de alterne, onde a pulsão autoritária se
vem acentuando (os tratados de Lisboa ou do reforço da disciplina fiscal, o arrastamento
para estruturas e aventuras militares, as drásticas reduções de direitos e
rendimentos a propósito do deficit, etc).
Clístenes repartiu a Ática em
cerca de cem circunscrições onde todos os cidadãos participavam sem
considerações de estatuto social ou poder económico, onde cada qual podia zelar
pelos seus interesses e participar na vida política. A inclusão dos camponeses
constituiu um elemento fundamental para o exercício da (nascente) democracia.
Péricles, seguidamente,
desenvolveu e consolidou o sistema, nomeadamente permitindo que houvesse uma
participação efectiva dos cidadãos no governo. Uma vez que os cargos políticos
não eram remunerados, havia uma tendência para que os ricos mais facilmente
pudessem exercer os cargos pelo que Péricles aplicou uma parcela dos impostos
sobre os metecos (os estrangeiros que no século V AC eram cerca de 20000) e a
exploração mineira, para remunerar os intérpretes de funções públicas.
A democracia ateniense baseava-se
em três instituições, que nos habituámos a reconhecer como criadas pela
Revolução Francesa:
·
o poder
legislativo que competia à Ecclesia
ou Assembleia Popular, constituída por todos os cidadãos, que aprovava as leis,
decidia a guerra ou a paz, elegia ou sorteava os membros das outras
instituições e votava cidadãos ao ostracismo (exílio). Reunia umas quatro vezes
por mês;
o
a Bulé era um conselho de 500 membros que
mudavam anualmente, constituído por cidadãos com mais de 30 anos e que não
poderiam integrar aquele conselho mais do que duas vezes em toda a sua vida.
Competia ao Bulé preparar os
projectos de lei votados na Ecclesia,
da qual constitui uma espécie de corpo técnico.
·
o poder executivo
tinha por competência a de fazer cumprir as leis provenientes da Ecclesia e era constituído por dez
arcontes e dez estrategos. Os arcontes presidiam à organização dos tribunais,
tratavam do culto dos deuses e eram sorteados por períodos de um ano. Os
estrategos chefiavam as forças armadas e intervinham nas decisões importantes
da politica interna, sendo eleitos pelos cidadãos; Péricles era um estratego.
·
O poder judicial
para os crimes comuns era exercido no Helieu
ou Tribunal Popular composto por 6000 juizes sorteados por periodos de um ano.
Uma instância superior, o Areópago, era um tribunal constituído por todos os
ex-arcontes e tratava os crimes religiosos ou de morte.
Nas assembleias de cidadãos, na Ágora, recorria-se excepcionalmente a
peritos quando a matéria assim o exigia. Mas não era o técnico a decidir; ele
apenas informava ou apontava soluções que o coletivo decisor poderia acatar ou
não, chamando, por exemplo, outro técnico, para uma melhor certificação quanto
à decisão.
Hoje, neste campo dos
conhecimentos técnicos, a complexidade da realidade social é muito grande e os
técnicos teriam de ser ouvidos com mais frequência. Os media, aliás, fazem isso
mesmo, chamando especialistas para abordar as questões que exigem maior especialização.
As questões mais complexas, em regra, só se colocam para grandes grupos humanos
que, à partida englobam maior número de competências e mais qualificações no
seu âmbito, sem que com isso se dispense, de todo, a consulta de técnicos.
A comparação com os tempos
modernos deve ser efectuada apenas quanto ao método de tomada de decisões e de
execução das mesmas e, não mecanicamente, uma vez que no capítulo da capacidade
cívica e política as coisas eram diversas do modo como hoje essa capacidade é entendida.
Por outro lado, se Aristóteles definia o homem como um “zoón politkón”, isto é, animal político, dada a sua capacidade de
gestão colectiva e democrática, o contraste com as sociedades actuais é
manifesto; o mandarinato, como se pode observar, sonega informação, deturpa,
gera a confusão, rouba, num esforço constante de se reproduzir oferecendo
alguns resultados para que a multidão se mantenha afastada da política,
apolítica.
Tomando a acepção de Aristóteles,
a forçada ignorância política e o apoliticismo, significa, na realidade, a
desvalorização dos humanos para categorias inferiores às de animal político,
apenas com o direito ao fornecimento de força de trabalho e de riqueza, para a
gestão e apropriação de bandos de ungidos – donos dos bens de produção e os
seus auxiliares, mandarins, polícias, militares, juízes e outras figuras
menores.
Atenas, foi a cidade grega mais
emblemática e a dominante durante algum tempo; no entanto, tratava-se de uma
sociedade esclavagista e patriarcal, sendo excluídos do exercício de funções
políticas os escravos, as mulheres e os estrangeiros (gregos e não gregos) que,
em Atenas eram muitos, dado o papel da cidade no comércio mediterrânico. A sua
estrutura social baseava-se num total de 40000 cidadãos comuns passíveis de
serem chamados a governar, entre os quais eram cerca de 6000 os que
habitualmente se reuniam em assembleia na Ágora, para discutir os temas da
gestão pública, como pessoas livres e iguais.
A riqueza de Atenas, derivada do
comércio mediterrânico, habilitava-a a ter um enorme número de escravos. No
século V AC havia, em média 18 escravos por cada homem livre e, um século mais
tarde 21000 atenienses detinham 500 mil escravos. Essa característica, própria
de todas as sociedades da época, convivia com a liberdade religiosa. O culto
dos deuses oficiais, não excluía outros deuses e o ateísmo foi importante até
aos finais do século V AC, como adiante se explicitará.
As vitórias sobre os persas
(490-480 AC), afastando o perigo de invasão fortaleceu o apego dos atenienses
ao seu sistema político cujo modelo foi seguido por muitas outras das 230
cidades que passaram a pagar tributo a Atenas devido ao seu papel contra os
persas.
Não havendo partidos nem
representantes, não havia eleições como elas se desenrolam atualmente, em
massa, muito espaçadamente, atribuindo-se aos partidos e aos eleitos por seu
intermédio, poderes vagos, genéricos e sem qualquer obrigação específica de
prestação de contas. As decisões
tomavam-se por maioria, no capitulo de cada assunto e, o debate político,
dependia essencialmente dos conhecimentos dos intervenientes mas, também da sua
capacidade de argumentação. As habilidades oratórias eram cultivadas e
exploradas pelos discípulos dos sofistas para influenciarem as decisões, havendo
mesmo casos de cidadãos condenados injustamente ao ostracismo, por razões
meramente políticas.
A necessidade do domínio da
oratória desenvolveu a riqueza da linguagem
e promoveu o grande apuro técnico da língua grega. Sendo a língua a
trave mestra de uma cultura, a Grécia viveu no chamado século de Péricles um
periodo excepcional no domínio das artes. As tragédias, as comédias, as peças
teatrais abordavam questões da vida, cruzando-as com a mitologia, com as
histórias de heróis e deuses e tornaram-se espectáculos abertos a toda a
gente. A liberdade pessoal, as opções
sexuais, tornaram-se também objecto de grande tolerância, sobretudo para as
mulheres, a despeito da sua subalternidade. A democracia enriquece.
Toda esta produção cultural, para
além da filosofia, foi adoptada e desenvolvida pelos romanos e transmitida,
após longo hiato obscurantista, à Europa, a partir do século XIV, tornando-se
peça fundamental na história da arte e das ideias europeias.
A nível cultural, o contraste com
grande massa das populações modernas é pois, muito grande. Basta que se observe
a qualidade da expressão escrita ou oral dos media, a imensa quantidade de
publicações tão pouco diferenciadas como imbecilizantes, indutoras de uma
elevada iliteracia e pobreza de linguagem; ou que se recorde que nas televisões
toda a comunicação se baseia numas escassas centenas de palavras (400, nas
cadeias “populares” dos EUA).
Quando a Guerra do Peloponeso
rebentou, em 431 AC, Péricles reuniu os residentes da Ática dentro das muralhas
de Atenas e permitiu que o exército espartano saqueasse as áreas rurais. No ano
seguinte (430 a. C.) a cidade, superpovoada, foi assolada pela peste, ficando
abalada a sua auto-confiança; Péricles foi deposto, julgado e multado por uso
impróprio dos fundos públicos. Em 429 a. C., no entanto, foi reeleito, vindo a
falecer pouco tempo depois.
Sublinhe-se esta prática de
responsabilização pessoal que obriga a uma ponderação muito criteriosa das
decisões tomadas no exercício de funções públicas. E como isso se acha, hoje,
bem longe das leis e dos comportamentos dos mandarins dos regimes
cleptocráticos. Aliás, se essa responsabilização existisse seria, porventura,
abusivo chamar cleptocráticos aos sistemas políticos actuais.
Em Portugal, os numerosos casos
de gestão danosa - os estádios de
futebol, os contratos com a Lusoponte, a Brisa ou as SCUT, a compra dos
submarinos, a gestão do SNS, - são
exemplos claros, entre a leviandade e a corrupção, sem consequências para os
responsáveis. Na Andaluzia, recentemente, uma sentença do Tribunal de Justiça
da Andaluzia (TSJA) optou por embargar bens pessoais de autarcas responsáveis
por um endividamento autárquico desmedido e leviano resultante de contratos com
empresas privadas (6).
A prática democrática na Grécia, teve
ainda outras consequências:
·
Tornou inviável a formação de um corpo de
profissionais e de burocratas, de escribas detentores do conhecimento da lei
que, tenderiam a aplicar a seu contento; em Atenas, a escrita não constituía monopólio
do Estado, de mandarins e escribas sendo, pelo contrário, do conhecimento das pessoas,
que não prescindiam de ser instruídas para poderem participar na gestão
pública;
·
Na antiga Grécia democrática não existiu uma
religião de Estado, utilizada por uma casta no poder, para impor a sua vontade
à multidão. Portanto, foi dispensada a existência de um clero, de uma classe
sacerdotal para instituir e instruir o poder, baseado nos “desígnios dos
deuses”; essa religião de Estado só viria a ser definida na primeira metade do
século IV AC, com grande protagonismo para Platão;
·
Não havendo religião de Estado, havia uma grande
proximidade entre deuses e humanos e forte presença de ateus e agnósticos na
sociedade ateniense. Os deuses gregos e os heróis, para além dos poderes sobrenaturais
que lhes eram atribuídos, como forma de interpretação dos fenómenos naturais,
tinham um comportamento muito humano, com paixões, amores, caprichos,
devaneios, etc. Muito longe, portanto, da omnipotência, da distância, da
crueldade de muitos deuses do mundo antigo, exigentes de sacrifícios humanos; e
também da crueldade sádica e caprichosa contida nas crenças emanadas da
tradição judaica e que vieram a impor-se em grande parte do planeta;
·
Não havendo religião obrigatória, nem teologias
e, menos ainda Verdade, a liberdade de pensamento e discussão dos assuntos era
livre e os deuses gregos, humanizados, eram tomados como pouco preocupados com
a organização social dos mortais que, paralelamente, se sentiam pouco
constrangidos pelas vontades divinas para a condução da vida política e
pessoal;
·
A figura típica do rei divinizado e objecto de
culto, em relação directa e privilegiada com o ignoto, desapareceu muito cedo
no mundo grego, nos tempos homéricos, talvez no século IX AC. Embora trazendo importantes
conhecimentos através do comércio com o Egipto faraónico, os gregos nunca
adoptaram o seu modelo político;
·
A auto-organização ateniense foi um contributo
decisivo para as vantagens comparativas da cidade em relação a outras, com
modelos políticos centralizados ou aristocráticos. O potencial criador da
multidão, esse energia criativa da multidão quando entregue a si mesma, livre
do controlo social do Estado ou de bandos de mandarins, está sempre presente
nas experiências revolucionárias, como na revolta dos escravos de Spartacus, na
comuna de Paris, nos primeiros tempos da revolução bolchevique, na Barcelona
dos tempos da guerra civil, em Chiapas, locais onde a história e as decisões
cabiam à grande massa da população.
A decadência da democracia ateniense
teve como contraponto a criação e o reforço do Estado enquanto ente autónomo,
desligado dos cidadãos, com capacidades de imposição e sobreposição aos
interesses da maioria das pessoas. E a criação de burocratas, mandarins
necessitados da construção de uma ideologia para se alcandorarem a grupo social
privilegiado, exercerem o seu domínio sobre a multidão, estabelecendo a
hierarquia entre governantes e governados. Para esse efeito, para a criação
doutrinal do poder de Estado registou-se o surgimento de filósofos menos
interessados na interpretação do mundo e mais interessados em teorizar a forma
como as sociedades e as pessoas se deveriam comportar – e aqui destacamos
Platão, cujo pendor anti-democrático é pouco divulgado.
É de bom tom dizer que o modelo de
representação política vigente no Ocidente (e com pretensões ao universalismo)
é uma emanação directa da democracia vivida pelos gregos antigos. Essa
afirmação genérica radica na tradição renascentista de adopção da cultura
greco-latina em geral mas, exige algumas ressalvas que, de certa forma lhe
retiram alguma da sua carga idílica; são as que revelam, também na Grécia
antiga, a fatal preponderância do autoritarismo, como instrumento de imposição
do Estado à generalidade das pessoas.
- Primeiro, a Grécia não era uma nação, como hoje mas, um conjunto de cidades diferenciadas e autónomas devido às dificuldades de comunicação trazidas pela orografia, pela existência de penínsulas e ilhas, indutoras dessa diferenciação. E, assim, coexistiam regimes políticos democráticos, aristocracias e regimes tirânicos. É bastante conhecido o contraste entre Atenas e Esparta; na Grécia antiga, havia várias “grécias” do ponto de vista político;
- Em 432 AC, quando tudo prenunciava o início da guerra do Peloponeso que dividiu as cidades gregas em dois campos opostos, o de Atenas e o de Esparta, foi proclamado na, até então democrática Atenas, o decreto de Diopeites que previa a perseguição de todos os que não acreditassem nos deuses reconhecidos pelo Estado. Anaxágoras, cuja filosofia punha em perigo a corporação dos adivinhos a que Diopeites pertencia estreou a aplicação da lei e parece que só salvou a pele por intervenção de Péricles de quem tinha sido mestre;
- Já durante a guerra com os espartanos, em 415 AC, em Atenas, um rico aristocrata Pitodoros acusou o filósofo céptico Protágoras de impiedade (em tempo de guerra todos tinham de se vergar às razões, ou aos deuses do Estado) e o último foi expulso da cidade com os seus livros queimados, inaugurando-se assim, a sinistra figura do auto de fé. No mesmo ano, Diágoras, considerado o primeiro ateu, escapou à morte porque, prudentemente, fugiu;
- Sócrates é condenado à morte em 399 AC por não acreditar nos deuses reconhecidos pelo Estado ateniense que, vencido e humilhado na guerra finda cinco anos antes, precisava de reforçar a unidade entre as suas gentes e esconjurar as ideias que afectassem o patriotismo ateniense. É de todas as eras e latitudes, que o conservadorismo inerente aos aparelhos estatais, perante as dificuldades, clame por unidade e não por rupturas sociais e apele ao nacionalismo tacanho, contra o universalismo;
- Platão, na primeira metade do século IV AC define, pela primeira vez, a figura de um Estado autoritário e acima das pessoas comuns. Assim, o governante domina o conhecimento e a razão; os soldados, entre os quais sobressaem a vontade e a coragem, guardam a pátria; e, finalmente, na parte inferior da escala social estão os trabalhadores que mais não têm que a sensibilidade física e aos quais o Estado exige … temperança. Este modelo, classista e anti-democrático foi quase decalcado, no século XVII por Hobbes e, com as devidas adaptações terminológicas, está bastante presente nas teorias políticas de hoje, por todos quantos defendem a figura do Estado, mais autoritário ou mais benevolente, bem como a hierarquização da Humanidade em ricos e pobres, patrões e trabalhadores, brancos e menos brancos, “nós” e os outros, bons e maus;
- Platão definiu claramente uma religião oficial do Estado, obrigatória, com a severa punição de qualquer pensamento desviante. Para o efeito, inventou o campo de concentração, uma moda duradoura que os seus discípulos nos EUA de hoje, continuam a aplicar com grande zelo e fervor, tal como os israelitas atuam face a Gaza, na senda de Auschwitz e do Gulag.
Nessas
prisões, denominadas Casas de Arrependimento, os condenados por delito de
opinião sofriam um isolamento total durante cinco anos e eram objecto da devida
reeducação por parte de um Conselho Nocturno. Nos casos mais graves, o preso
era isolado num local deserto, com os cuidados adequados para que morresse; e,
então seria lançado, insepulto para lá da fronteira. O nosso Platão teve até o
requinte de contemplar a perseguição e punição de quem sepultasse o infeliz
dissidente; Hitler e Stalin não chegaram a tanto;
·
Pode dizer-se que a pioneira intolerância do
decreto de Diopeites teve uma cópia muito mais ampliada em termos geográficos e
históricos quando o imperador romano Teodósio I, em 395 decretou o cristianismo
como religião única legal, acabando assim com a tradicional liberdade
religiosa, inerente à grande diversidade de povos integrados no império e como
condição para a sua coesão. Essa via restritiva havia sido escancarada quando
Constantino impôs, enquanto chefe de todas as confissões religiosas do império,
no concílio de Niceia (325), aos padres cristãos uma efémera unidade ideológica
do cristianismo, em benefício da visão ariana que propunha ser Cristo, não
divino mas, o mais perfeito dos humanos, epíteto que assentava como uma luva no
augusto imperador;
·
Constantino embora, de facto, nunca tenha sido
um cristão, aproveitou-se, oportunisticamente, da estrutura do cristianismo,
para combater os evidentes sinais de decadência e desagregação do império.
Protegeu os cristãos, deu-lhes benesses e tornou os bispos autoridades com
prerrogativas estatais, em sintonia com a redução dos poderes do Senado e a
nomeação pelo imperador dos altos cargos da administração. A união entre o
sagrado e o profano estava em tempos felizes; o sanguinário Constantino sentiu
que através do cristianismo e do seu clero podia executar um cerrar de fileiras
em torno de um Estado autoritário, ditatorial, dotado de um pensamento único. A
hierarquia cristã aceitou o seu papel como uma via privilegiada de se tornar a zeladora
desse pensamento único, com as compensações terrenas que se conhecem;
·
Este pensamento único, veio a impor-se, muito
para além do fim do império, durante mais de mil anos, na Europa, à custa de
uma férrea repressão de qualquer pensamento minimamente reticente, de
genocídios, ghetos, guerras e expulsões, levadas a cabo pelo feliz casamento
entre a cruz e a espada. Os factos vieram pois, a tornar Constantino como a
figura mais importante da história do cristianismo uma vez que sem a sua
intervenção aquela crença continuaria a concorrer com muitas outras, não tendo
garantida a preponderância que lhe foi outorgada pelo Estado romano; que, no
entanto, não logrou evitar a sua desagregação, um século depois.
4 - Factores de neutralização
da participação democrática
Nas sociedades actuais o poder
encontrou modos bem subtis de domínio, sem a obrigatória utilização de formas
brutais, primárias, que passam pela proibição, a prisão ou o espancamento, em
massa. O controlo biopolítico procede a uma endogeneização das limitações do
exercício da democracia que evita a actuação constante do aparelho repressivo na
vida das pessoas; gera dentro de cada um a natural aceitação da sua própria
submissão e alienação.
A geração do apolítico ou do
antipolítico são formas de promoção do afastamento da atenção, da ação e da gestão
da vida colectivo, da participação activa em sociedade, da entrega de contributos
reais para a vida social; em benefício óbvio das oligarquias económicas e
políticas.
Com a promoção de uma imagem de
mistério para a gestão social, muito para além da complexidade que aquela tem,
visa-se afirmar um carácter iniciático na ação política, implicitamente inatingível
pelas pessoas comuns, tomadas como incapazes, incompetentes e egoístas pouco
dispostas ao sacrifício exigido pelo exercício da vida pública a que, os
mandarins, abnegadamente, se submetem, devido ao seu enternecedor amor pelos
seus concidadãos.
Por outro lado, a imagem de
corrupção, nepotismo, autoritarismo que dimana da generalidade dos mandarins,
constitui um outro factor de afastamento da ação política. Para muitas pessoas,
a presença nos meandros da classe política só permite a cooptação pelo sistema
cleptocrático ou a marginalização e o bloqueio de qualquer intuito construtivo
e sério; costuma dizer-se que o binómio inteligência e honestidade não carateriza
os mandarins. Pior sentimento é o da atitude resignada de quem considera a
relativa perpetuidade da existência dos gangs no poder.
Excluídas as pessoas, por um
comodismo irresponsável ou por um liminar afastamento, aumenta a capacidade dos
mandarins adulterarem, mentirem, enganarem e se corromperem, uma vez que, mais
facilmente passam incólumes diante da multidão de gente mal informada,
desmotivada e estupidamente confiante na eficácia de entidades reguladoras,
tribunais e outras entidades formadas e instruídas pelo mandarinato ou por
agentes por si escolhidos.
As atitudes passivas e meramente
emocionais dos que se auto-designam de apolíticos em nada os torna imunes aos
malefícios da existência do sistema cleptocrático; nem essa posição os dota de
um benefício fiscal, nem de uma situação vantajosa em termos de salários, na
pensão de reforma, na precariedade, no despedimento, ou de uma maior consideração
pelos capitalistas e do seu Estado.
Finalmente, refiram-se algumas
razões sociológicas para o desinteresse face ao exercício da democracia e
a gestão do comum. São eles, o habitat
actual da maioria dos trabalhadores, nomeadamente nos meios urbanos, com fracas
relações de vizinhança e associado a cansativas viagens pendulares diárias; a
pressão patronal e a competitividade no trabalho, reduzem as trocas de ideias
no ambiente de trabalho; o hábito do confinamento dos tempos livres perante o
aparelho de televisão, com a inerente anestesia promovida pela aliança entre o
mandarinato e os media.
Notas:
(5) É
curioso verificar como, nas análises históricas correntes, a influência da
tradição judaico-cristã repercute o empolamento que os escritos bíblicos fazem
da relevância dos estados judaicos e consideram ter o povo israelita sido
deportado, da sua terra para Babilónia. Ao que parece a deportação teria
atingido apenas a família real do reino de Judá, acompanhada de várias pessoas instruídas,
levadas para Babilónia para aí se adestrarem na administração do império, (conferir
“The Empires of the Word”, Nicholas Ostler)
(6) http://www.exvagos.es/paginas-interiores/166915-justicia-empieza-embargar-bienes-personales-alcaldes.html
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