segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Fundo de Garantia Salarial, desvio de fundos públicos para empresários manhosos

Sumário

Enquadramento
O que é e como funciona o recurso ao FGS
Alguns elementos numéricos

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Enquadramento

A descapitalização do Estado e o seu correspondente endividamento é uma política consolidada do poder e uma necessidade absoluta do frágil capitalismo português.

A inserção na parte inferior da hierarquia do capitalismo global, por parte dos capitalistas lusos – empresas em geral e sistema financeiro em particular – tem vindo a acentuar a canibalização do seu próprio Estado, Esta, prossegue num quadro de corrupção endémica, protagonizada sobretudo pelo PSD/PS, através de fórmulas diversas – contratos ruinosos, facilidades fiscais, legislação criteriosamente publicada para beneficiar interesses privados, menosprezo pelo municiamento financeiro de despesas coletivas... Tudo isto, recentemente, agravado pela pressão do capitalismo global, mormente financeiro, que consubstancia o declínio periférico de Portugal e a perda do que ainda restava da sua secular (falta de) soberania.

A abordagem do Fundo de Garantia Social (FGS), embora com uma relevância menor no contexto do saque em curso, é revelador da forma como se procede à sistemática transferência de dinheiros públicos para mãos privadas. Afinal, o Estado serve para pouco mais, não?



O que é e como funciona o recurso ao FGS

O FGS criado em 1999, representa um exemplo de actuação formal da Segurança Social, na área da ação social. E, como se verá adiante, se constitui uma forma de, temporariamente, aliviar a má situação de muitos trabalhadores ameaçados de desemprego ou já nessa situação, a verdade é que configura também uma figura próxima do perdão de dívidas a empresários.

No âmbito do FGS (1), o Estado, enquanto gestor da Segurança Social, procura, de facto, atenuar a acuidade e a visibilidade da sinistra figura dos salários em atraso - muito típica e específica da formação política e económica portuguesa - substituindo-se ao empresário no pagamento do trabalho efetuado pelos trabalhadores e não pago por aquele. Deste modo, o Estado utiliza o erário público para satisfazer agudas necessidades de trabalhadores causadas pelo comportamento leviano ou criminoso dos empresários que, ao serem substituidos no cumprimento das suas mais elementares obrigações, beneficiam de toda a “compreensão” dos governos.

Paralelamente, o Estado evita a mobilização e a contestação social dos trabalhadores, zelando para a formação de uma imagem pública de ausência de conflitualidade social, como convém para apresentar no telejornal; essa ausência é, aliás, glosada com respeito e admiração pelos media internacionais, que comparam a paz lusitana com o comportamento dos “desordeiros” gregos.

Os trabalhadores podem requerer ao apoio do FGS desde que a empresa em que laboram ou laboraram lhes não pague - ou não tenha pago - os devidos salários, no contexto dos institutos jurídicos da insolvência ou da situação económica difícil. Mais especificamente, a empresa deverá ter sido judicialmente declarada insolvente, com ação de falência ou ainda, ter iniciado um PEC – procedimento extrajudicial de conciliação. Este último, é muito vantajoso para um empresário típico, pois a qualquer momento pode desistir do PEC, servindo este, entretanto, de subterfúgio para que o FGS pague aos trabalhadores, por sua conta.

O FGS garante os salários não pagos relativos a seis meses anteriores ou posteriores à proposta da ação de insolvência ou de requerimento para PEC, sabendo-se que a retribuição mensal não poderá ultrapassar três salários mínimos (€ 1455), na qual se subtrai a retenção de IRS e a quotização do trabalhador para a Segurança Social. A contribuição patronal é liquidada pelo FGS que se substitui, assim, ao “empregador”. É, sem dúvida magnânimo e igualitário este diploma legal pois o FGS paga não só os salários e as obrigações fiscais e contributivas dos trabalhadores, como ainda exime o distinto empresário de pagar a contribuição patronal para a Segurança Social.

Se o trabalhador tiver créditos laborais sobre a empresa, estes prescrevem passado um ano sobre a cessação do contrato, enquanto que a prescrição para as dívidas das empresas à Segurança Social é de cinco anos. O espírito igualitário evocado no parágrafo anterior deixa de funcionar, em detrimento dos direitos dos trabalhadores.

O limite dos seis meses para o apoio aos trabalhadores é uma almofadinha apenas pois, em regra, os prazos de decisão dos tribunais relativamente à liquidação da empresa e venda de bens são muito superiores e, por outro lado, o volume de salários em atraso pode ter um valor bem superior a seis meses de remuneração. Recentemente soube-se de um caso em que cerca de 200 trabalhadores esperaram doze anos por indemnizações (2).

Na realidade, os principais credores, nomeadamente os bancos detêm garantias reais sobre o património da empresa ou mesmo de sócios seus e esses direitos creditícios prevalecem sobre o dos credores sem esse tipo de garantias, como em regra, são os trabalhadores. Os bancos não aceitam bens móveis como penhor, locupletando-se essencialmente a imóveis ou títulos.

Os créditos dos trabalhadores só detêm privilégios sobre os bens móveis (equipamento, mobiliário…) da empresa que aliás são aqueles cuja venda e reutilização é menos valorizada em caso de venda no âmbito de liquidação. E isso, sem contar com vulgares conluios entre os responsáveis pela liquidação e venda dos bens e “empresários” compradores dos mesmos.

Em situação também desconfortável encontram-se os créditos de impostos ou de contribuições para a Segurança Social, dada a costumeira prática de laxismo fiscal face a capitalistas e que constitui elemento estruturante de um Estado com propensão totalitária perante uma população pouco reivindicativa de direitos.

O Estado, para não ferir os  interesses do capital, assume como natural a socialização das perdas promovidas por empresários irresponsáveis mas, em regra, com património privado blindado à sua utilização como forma de suprir os débitos da empresa em dificuldades. Há muitas formas de isso acontecer, como casamentos com separação de bens, divórcios com partilhas a favor de quem possa ficar de fora de responsabilidades, depósitos em paraísos fiscais, em nome de sobrinhos ou testas de ferro, por exemplo.

Essa assunção de socialização, não encontra atitudes de repúdio por parte da multidão, nem sequer pelas divertidas agremiações ditas de esquerda, catequizados e viciados na normalidade da intervenção do Estado. E tal revela a insipiência de um real espírito anticapitalista na multidão, em Portugal.

É essa mesma insipiência que permite se considere ser um direito inalienável, da ordem “natural” das coisas, que os empresários se apossem dos lucros e que se arroguem - caso o negócio não corra de feição - a chamar o Estado em seu socorro, proclamando esse apoio também como um seu inquestionável direito.

Formalmente – ninguém leva a palma ao rigor jurídico do legislador português - o FGS tem direito de regresso junto das empresas em falta pelos valores pagos aos trabalhadores, acrescidos de juros de mora (6.351% por ano). Se por qualquer razão a empresa não vier a reembolsar o FGS do dinheiro avançado aos trabalhadores, o FGS poderá requerer judicialmente esse reembolso junto da empresa. Muito justo mas, tal não parece causar grandes preocupações aos empresários, conhecedores profundos da tradicional benevolência do Estado e da administração fiscal ou da Segurança Social, face às obrigações das empresas e dos sacrificados empresários; porque todos conhecem o empastelamento burocrático em que se movem os homens e mulheres da toga; e ainda que, no final da liquidação da empresa pouco irá sobrar para o ressarcimento dos credores Estado e Segurança Social.



Alguns elementos numéricos

Não são públicos elementos sistemáticos sobre o FGS. A sua gestão cabe ao IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social  mas, como fundo autónomo terá uma contabilidade própria, que se não conhece. Somente se dispõe de elementos avulsos extraidos das Contas da Segurança Social e uma auditoria efetuada pelo Tribunal de contas relativamente ao triénio 2006/08. É a proverbial e estrutural opacidade dos aparelhos de estado correspondente à atitude dos mandarins, como donos do Estado, tratando a multidão como uma massa de entes ignorantes que terão delegado o exercício dos seus direitos no sapiente mandarinato.

É manifesto o crescimento do dispêndio anual do FGS, como elemento substituto dos empresários no pagamento aos trabalhadores, para obviar à contabilização de salários em atraso. Um caso, entre muitos, da habitual função do Estado como financiador dos capitalistas.

Esse crescimento retrata a degradação a que se vem assistindo na economia portuguesa e das condições de vida dos trabalhadores, desde o princípio do século. Esse aumento do dispêndio corresponde ao crescimento dos requerimentos deferidos; no entanto, o valor médio por deferimento estabiliza a partir de 2005.



pagamentos (1000 euros)
requerimentos deferidos
pagamento/
requerim. (€)
2001
709
nd
nd
2002
10.966
3.875
2.830
2003
17.985
4.503
3.994
2004
21.986
5.705
3.854
2005
39.975
8.386
4.767
2006
40.134
9.530
4.211
2007
52.988
12.220
4.336
2008
70.476
14.120
4.991
2009
81.568
18.265
4.466
2010
110.374
22.952
4.809
                                                     Fonte: Contas da Segurança Social


No quadro seguinte observa-se a evolução ou melhor, a acumulação da dívida das empresas ao FGS, como resultado dos adiantamentos deste para pagamento de salários a que as empresas não procederam, por dificuldades financeiras. Essas dívidas no periodo considerado cresceram mais de 14 vezes.

Como se viu atrás, os valores adiantados pelo FGS deverão ser reembolsados pelas empresas, se recolocadas em condições de viabilidade ou através do produto da venda em processo de falência. Na realidade, esse reembolso tem pouco significado, tudo indicando que jamais acontecerá.

                                                                                    (1000 euros)

Dividas das empresas (acumul)
Valores recuperados
2003
29.532
nd
2004
51.277
219
2005
91.251
471
2006
130.246
671
2007
180.517
nd
2008
246.964
4.029
2009
316.608
5.958
2010
421.358
nd
                                                        Fonte: Contas da Segurança Social

De facto, “dada a característica deste Fundo e face ao elevado risco de cobrança associado às entidades que a ele recorrem, é constituída uma provisão para cobranças duvidosas de 100% dos valores pagos.” (3) . De modo ainda mais claro, a Segurança Social, considera nulas as possibilidades de reembolso por parte das empresas e dos seus responsáveis, das verbas adiantadas pelo FGS, por conta das empresas, a título de salários.

Neste contexto, os € 421 M contabilizados em finais de 2010 como dívidas das empresas por pagamento de salários por sua conta são perdidos e constituem uma assunção pelo FGS e pela Segurança Social de responsabilidades dos capitalistas que, no discurso oficial, são virtuosos empreendedores a merecer todos os apoios. Na realidade, não só não pagam os débitos de que são titulares, como através de falências e encerramentos das suas empresas, contribuem claramente para o avolumar do desemprego. E continuam com o património pessoal a bom recato, o que não acontece com os desempregados, rapidamente assaltados pelos bancos que lhes extorquem as habitações, sem apelo e pela pressão empobrecedora do governo.


Notas

     1)      Artigo 380º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Dezembro, Artigo 316º a 326º da Regulamentação do Código do Trabalho, aprovada pela Lei 35/2004, de 29 de Julho



      3)      pag 22 dos Anexos às Demonstrações Financeiras de 2009 ou pag 190 da CSS 2010


 
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