1
- Civilização ou barbárie? Democracia ou ditadura dos “mercados”?
2
– Democracia de mercado
3
- Reforço da pulsão anti-democrática em curso
4
– Entre os pides, qual o pior? O que dá porrada ou o “compreensivo”?
5
– Qual a função do Estado?
6
- O papel das ideologias
7
- O partido
8
– Como construir uma alternativa?
1
- Civilização ou barbárie? Democracia ou ditadura dos “mercados”?
Em
“Pensar à esquerda sem vacas sagradas” (1) enunciámos um conjunto de dez
questões de inquestionável candência no mundo actual. Estava-se então, em
meados de 2010 e a derrapagem empobrecedora e anti-democrática já se achava em
curso; essa derrapagem acelerou e o plano inclinado em que se encontram as
sociedades europeias e, particularmente, as dos países do sul, aponta para um
verdadeiro desastre civilizacional. E Portugal, uma vez mais ressalta no mapa
por razões pouco confortáveis para os seus habitantes. Algumas das temáticas
ali referidas têm sido tratadas como modestos contributos para a agitação das
meninges dos nossos concidadãos; nomeadamente, o enquadramento geopolítico, o
militarismo, o Estado e a putrefacção que vem matando gradualmente os
resquícios que sobram da vida democrática, para além dos malefícios da gestão
capitalista sobre a esmagadora maioria do género humano.
A
consideração do lucro como um novo deus Moloch, tornou a fornalha dia a dia
mais exigente em sacrifícios humanos, permitindo que se aponte ao capitalismo a
responsabilidade pelo actual declínio civilizacional.
A
introdução dos alvores do capitalismo europeu no continente americano dizimou
povos e culturas de modo definitivo e substitui-os pela criação de outras,
muito menos diversificadas, juntando camponeses esfomeados vindos da Europa com
escravos africanos tomados como mercadoria. Os acasos da História colocaram
Portugal com um papel de relevo quer na exportação de famintos, quer no
comércio de escravos.
A
continuidade do capitalismo de hoje acentua essas características de destruição
numa escala muito maior, com a diferença que não havendo mais terras para
colonizar é a própria espécie humana que está a ser objecto de genocídio, para
construir a felicidade do deus Moloch da finança. Não havendo mais terras para
descobrir não há mais lugar para os famintos poderem emigrar, tornando-se
assim, novos escravos sem necessidade de conhecerem as “emoções” das viagens
transatlânticas amontoados nos porões dos galeões. Isto, sem qualquer
menosprezo por quantos procuram sair dos seus países à procura de uma
subsistência miserável, ligeiramente acima da sobrevivência. Ainda os acasos da
História voltam a colocar Portugal na mesa do laboratório como cobaia do
subdesenvolvimento europeu.
O
declínio civilizacional manifesta-se claramente pela mercantilização das
pessoas e das suas vidas, através de teias complexas engendradas por
multinacionais, pela economia do crime, em estreito amplexo com o sistema
financeiro, Essas teias são não apenas as que resultam dos vínculos económicos
mas, também as que envolvem os Estados, tomados como veículos inestimáveis de
acumulação capitalista, como instrumentos imprescindiveis de instalação do
autoritarismo e do genocídio; e ainda o aparelho ideológico que alia as
empresas, o Estado, os media e a escola numa mesma comunhão da inevitabilidade
da situação actual.
E,
todos procuram incutir uma esperança, uma saída de alegria e felicidade, com
mercadorias para todos, transformadas pessoas em objectos tecnológicos, prenhes
de inovação e empreendorismo. Os nazis também preparavam os presos em campos de
concentração para um banho reconfortante… de gás mortífero.
A
civilização corresponde ao primado dos direitos individuais e sociais, da
política sobre a economia; a um corte face aos tempos recuados em que grupos de
humanos, lutando arduamente pela sobrevivência, pouco curavam de direitos. A
mercantilização da vida e dos actos de todos nós é um recuo civilizacional que,
enquanto tal, subalterniza ou mesmo anula direitos, em nome dos “mercados”; é
um retorno aos tempos primitivos, da luta pela sobrevivência num mundo estranho
e hostil.
Neste
contexto, é preciso agir. E agir, tendo em consideração que:
- Não há saida dentro do sistema;
- Não há, sequer, saída alicerçada na ala “esquerda” do sistema, como referimos em “Esta esquerda é a tranquilidade da direita”(2);
- Não é plausível pensar num golpe de estado militar, como repetição do 25 de Abril, nem uma intervenção estrangeira salvadora
- Dificilmente surge um grupo restrito, de iluminados ou de heróis, que tome o poder em nome do povo;
- As alternativas são a manutenção do poder cleptocrático ou o povo, com a força do seu número e na sua extrema diversidade, acaba com o sistema.
2
– Democracia de mercado
A
democracia de mercado vai-se degradando mesmo nesses termos já degradados por
essência, enquanto democracia. Degrada-se mesmo quando se pressupõe como
virtuoso o domínio do mercado, da mercantilização de todas as relações sociais;
ainda que se pressuponha como berço da democracia actual o encontro entre a
oferta e a procura, do vendedor e do comprador, do fornecedor e do consumidor,
do trabalhador e do patrão.
Nessa
nebulosa acepção de democracia está inserto e obscurecido o domínio de grandes
empresas que promovem a transformação de pessoas em consumidores e na qual as necessidades humanas são subalternizadas
às necessidades de acumulação por parte do capitalismo; onde as pessoas se
tornam necessidades e custos empresariais.
Essa
democracia de mercado insere as escolhas políticas e dos candidatos à sua
execução num marketing agressivo em tudo semelhante à venda de bens e serviços,
no qual demasiadas vezes não é possível descortinar as vantagens de uma marca
de sabonete em relação a outra. E, portanto, as escolhas baseiam-se mais em
factores afectivos ou emocionais – a telegenia do candidato, a cor da sua
gravata, o sorriso, enfim a empatia ou o clubismo partidário e menos na
qualidade, idoneidade e realismo das suas propostas para a vida concreta das
pessoas. No entanto, incute-se na multidão a ideia de que as alternativas
apresentadas são, de facto, distintas, expostas para a sua escolha consciente e
não superficializada pela manipulação dos media, estes também submetidos às
regras do mercado e à concorrência entre grandes grupos económicos e financeiros.
O
afunilamento em grupos económicos torna-os cada vez mais restritos,
concentrados e poderosos, mormente
através do seu poder de criação virtual de capital, cuja existência exige uma
rápida rotação e transformação em capital líquido, dinheiro disponível. Esse
poder reforçado vem transformando o poder político, que deixou de ser apenas o
tradicional refém de alianças e correlações de forças entre esses grupos económicos,
o que permitia alguma capacidade aos mandarins para uma gestão política com
fortes laivos de equidistância e aparente neutralidade.
Por
outro lado, constituição de instituições
plurinacionais (Comissão Europeia ou BCE), ou de organismos internacionais (FMI
ou OMC) firmemente dirigidos por agentes dos gigantes financeiros e multinacionais,
corresponde à globalização, que integra as sociedades e as economias nacionais,
retirando-lhes parte desse carácter localizado e, portanto, de muita da
capacidade de decisão política autónoma.
Essas
instâncias globais vão procedendo a uma segmentação do tradicional poder de
decisão política dos Estados nacionais, assumindo as mais relevantes funções de
gestão global do capitalismo e relegando para os governos nacionais a autonomia
conveniente para a execução de aspectos de aplicação local, dimanados daquelas
instâncias ou, cuja relevância seja menor. Tal como acontece com os grupos
económicos e financeiros, objecto de uma constante re-hierarquização, também a
nível político se vai gizando uma hierarquização das instâncias decisórias;
umas vão cabendo a directórios ou instituições multinacionais ou internacionais,
outras ficam confinadas aos níveis nacionais, regionais e autárquicos.
Actualmente em Portugal vive-se uma quase total subordinação das instâncias
nacionais a essas instituições, mesmo em aspectos menores da organização
política e da administração pública.
A
concentração de capitais típica do capitalismo, bem com a sua centralização
assume, hoje, a forma de um domínio avassalador por parte do parasitário capital
financeiro sobre as instituições plurinacionais ou nacionais. Essa é a base que
sustenta a existência de um mandarinato
internacional, adestrado para o cumprimento dos desígnios do capital
financeiro, do neoliberalismo, nos meandros dos “mercados” e das dívidas
públicas, nas austeridades, na flexibilização dos mercados laborais,, na
competitividade, na aceitação acéfala dos “ratings” e imbecilidades do género.
São imbecilidades que num circo fariam rir mas, como o circo são as nossas
vidas e direitos, as manifestações de humor alteram-se radicalmente.
A
sucessiva passagem de funções políticas do âmbito nacional para o plurinacional
reforça a dimensão e o papel de um mandarinato internacional. Esse mandarinato
é recrutado, na Europa, entre os gangs nacionais dos partidos do PPE ou do PSE
(partidos, respectivamente popular e socialista europeus) ou entre jovens
“talentosos” dispostos a toda a subserviência para fazer carreira. Enxameiam a
Comissão Europeia, o BCE, o FMI, o FED, o Departamento do Tesouro dos EUA, com
passagens pelos governos nacionais, nas áreas económico-financeiras ou pelas
instituições financeiras mais relevantes do sistema.
Constituem
coortes de gente ambiciosa e sem escrúpulos, distanciada da realidade social
com a qual pouco interagem e que, salvo raras excepções, têm uma progressão de
carreira assegurada de acordo com o grau de subserviência. As instituições
plurinacionais têm ao seu serviço para as tarefas mais pesadas, duradouras ou
com estadias fora de casa mais prolongadas, bandos de jovens mal pagos e a quem
se exige muito trabalho e poucas ideias, tal como acontece nas consultoras
internacionais, ou nos gabinetes ministeriais nacionais, por exemplo. No caso
da Troika que governa Portugal, os elementos mediáticos deslocam-se aqui por
poucos dias em cada mês, ficando no terreno esse “proletariado” instalado no
Banco de Portugal e no Ministério das Finanças.
Esse
domínio do capital financeiro não precisa de uma classe política competente e criativa,
só precisa de executantes; a despeito da sua aparente diversidade, toda a
classe política europeia depende, numa hierarquia não formal, dos interesses do
sistema financeiro. A contrapartida dada aos mandarins, tem várias
proveniências; é a cooptação a cargos dirigentes do próprio sistema financeiro
ou a grandes grupos a ele associados, no caso dos que melhor desempenho
tiveram, para os mandarins de topo; é o usufruto de mordomias várias,
suficientes para servir de aliciante ao constante renovar da classe política –
é curta a longevidade nos cargos políticos de topo; é a possibilidade de
enriquecimento através da corrupção tornada impune pelo controlo sistémico dos
aparelhos de justiça.
Dentro
deste funcionamento de controlo apertado por parte de um sistema financeiro muito
centralizado, já não é preciso que os mandarins sejam competentes técnica ou
politicamente ou que sejam criativos, tenham ideias e conhecimentos. Apenas
precisam de obedecer, replicar ad nauseam frases de apoio ao funcionamento do
sistema, garantir a conservação do mesmo e, que tenham o conservadorismo como
modo de funcionamento; precisam de apresentar uma imagem simpática, educada e
atraente para garantir que a multidão continua a participar como figurante nos
actos ditos eleitorais; e, se necessário, não hesitem em utilizar a repressão
necessária e conveniente.
Esses
mandarins, podem ser vacuidades, gente tão inculta e vulgar como Durão Barroso
ou Cavaco; verdadeiros ineptos como Passos Coelho, uma espécie de powerpoint de
primeiro-ministro; como o tonto Santana capaz de falar de tudo sem saber de nada,
excepto fugir ao trabalho efectivo; a família alargada do padrinho AJJ; burlões
bem protegidos como Dias Loureiro; aldrabões compulsivos como Sócrates; facínoras
como Duarte Lima; e ainda Valentins, Isaltinos, Varas e toda uma vasta gama de
advogados ilustres, especializados em tráfego de influências, que produzem leis
como consultores pagos pelo Estado, vendendo depois os seus serviços de
decifração dos conteúdos que prepararam a quem bem lhes pagar. Porém, dentro na
sua grande diversidade de configuração psicológica e facies, para além da maior
ou menor habilidade pessoal para fazer ilicitamente fortuna, todos se vergam ao
dominante poder financeiro.
Os
governos nacionais vão mantendo uma certa relação com o sufrágio popular, ainda
que dentro das limitações e deturpações democráticas típicas dos sistemas
eleitorais vigentes. Veja-se até, no caso do primeiro-ministro eleito Passos,
como a sua influência é mínima, transferida para o funcionário internacional
Gaspar ou para o inepto Álvaro (ambos não eleitos), sob a supervisão do mago
Cavaco; todos, porém, sempre atentos e obedientes ao capital financeiro cumprindo
os auspícios da “troika”, cujos funcionários não passaram por qualquer crivo
eleitoral.
No
que se refere ao mandarinato internacional, há apenas nomeações. Trata-se de
gente escolhida entre os membros de gangs partidários nacionais, em regra
funcionários obscuros que nunca foram objecto de eleição ou escrutínio, qualquer
que seja a sede do mesmo. Esse verdadeiro poder político de âmbito europeu é,
portanto hermético, fechado, circular, que actua e decide completamente à
margem de qualquer representação obtida por eleição e com total desprezo pelo
interesse da multidão.
3
- Reforço da pulsão anti-democrática em curso
Tal
como o 11 de Setembro de 2001 em Nova York constituiu argumento para uma
escalada militarista, com invasões, guerras e ocupações, violações dos direitos
e reforço da tara securitária, a crise sistémica actual sob a forma de crise da
dívida e do euro está a promover mudanças qualitativas favoráveis ao poder
financeiro global.
Com
o argumento do debelar da crise, assiste-se, na Europa, a uma brutal
transferência de rendimentos da multidão para os capitalistas,
imprescindivelmente mediada pelos Estados nacionais sob o impulso protector e
impulsionador do Estado plurinacional sediado em Bruxelas e Frankfurt. E com o mesmo argumento, o directório que
dirige a UE, zelador dos interesses do sistema financeiro, determina um governo
de união nacional na Grécia, com a participação da extrema direita, chefiado
por um ex-presidente do BCE, um exemplar desse mandarinato internacional, de
dedicados apóstolos da teologia dos “mercados”. A mesma paleta institucional
determina também a queda do execrável Berlusconi, impondo um novo primeiro-ministro,
Mário Monti, ex-comissário europeu (3) entretanto nomeado senador vitalício com
uma pensão de € 30000 mensais, cujo contraponto com o projecto de despedimento
de 300000 funcionários públicos italianos e o aumento da idade da reforma é
inevitável) à frente de uma coligação de direita perante uma oposição italiana,
anémica e sem ideias. Em nenhum destes casos foi sequer admitida a realização
de referendo ou eleições; apenas porque isso não seria aceite pelos “mercados”,
como se diz, com resignação. Em Portugal, Passos parece só pensar na tradução
das ordens da Merkel e no apoio aos bancos, esquecidas há muito as suas
promessas eleitorais e a existência de uma multidão de 10.5 milhões de pessoas,
aconselhadas a emigrar por um biltre que dá pelo nome de Alexandre Mestre, cujo
conselho, noutras latitudes, teria sido sinónimo de demissão. Para quem tiver dúvidas sobre o carácter
cosmético, de biombo da ditadura dos mercados, da democracia de mercado, estes
casos são sintomáticos.
As
constituições dos Estados tornam-se documentos ainda mais vazios e meros
símbolos de soberanias evanescentes uma vez que o seu cumprimento seria
inconveniente, uma perda de tempo, para aplacar as exigências dos mercados,
para a estabilidade do euro, para a concretização da retoma, para a melhoria da
competitividade externa, para o pagamento ou consolidação da dívida, etc. Anos
antes e em nome da unidade e aprofundamento da “construção” europeia todas as
tropelias foram permitidas para a aplicação dos tratados de Maastricht e de Lisboa,
para a participação em guerras de agressão, etc (4). Como sempre, as
constituições revelam a conjugação de forças na altura da sua aprovação mas, em
regra, deixam sempre áreas nebulosas para a interpretação dos
constitucionalistas de serviço, de imediato aplaudidos pelos mandarins e pelos seus
mandantes.
Vive-se
um verdadeiro estado de guerra contra os povos justificando a suspensão da
aplicação das leis constitucionais, tudo indicando uma futura alteração da
ordem constitucional no sentido da introdução de elementos fascizantes na
prática política. É disso exemplo, a fixação de um deficit público máximo e
penalizações inerentes à sua transgressão, quer de ordem pecuniária, quer no
que se refere aos direitos dos estados no seio da UE, sabendo-se a forma obtusa
e criminosa como as dificuldades económicas são repercutidas na multidão. Outro
exemplo, é o modo como um povo pode ser envolvido em guerras decididas pelas
instâncias comunitárias, provenientes da programação estratégica do
Pentágono/NATO, sem qualquer envolvimento das populações e dos seus órgãos
electivos. A nível nacional, em Portugal, esse estado de guerra é aproveitado
para a revisão de leis no sentido do controlo da multidão, seja através da
maior facilidade de regras de videovigilância e apagamento da comissão de
proteção de dados, seja da maior domesticação da informação pública.
O
projecto europeu nasceu na base da prevenção de uma nova guerra na Europa e os
europeus foram aceitando a perda das soberanias nacionais enquanto isso
significou uma melhoria das suas condições de vida e do usufruto de direitos
sociais, laborais e civilizacionais. Agora que a democracia é sistematicamente
ultrajada com a actuação das classes políticas plurinacional ou nacionais
corruptas e ineptas e que os níveis de vida e os direitos estão a ser
metodicamente reduzidos quando não demolidos, há várias questões que se podem
colocar. O medo de um regresso a guerras na Europa irá sobrepor-se junto da
multidão dos europeus ao ponto de estes continuarem a estar no projecto
europeu, mesmo com as evidentes perdas individuais que vamos assistindo? Ou,
porque o projecto europeu está em vias de soçobrar sobretudo nos seus impactos
sobre a vida das pessoas, estas irão valorizar lógicas nacionalistas e racistas
que irão ressuscitar rivalidades e disputas de fronteiras, com guerras tão
impensáveis hoje, como o eram as da defunta Jugoslávia há uns 25 anos?
Perante
a ausência de uma contestação de massa, a situação económica calamitosa, as desigualdades enormes e a miséria galopante;
perante a concentração do poder do sistema financeiro e o carácter claramente
anti-democrático do poder político, está, de facto, em curso uma fascização das
sociedades europeias. E, neste sentido, a estrondosa vitória de uma formação
política como o PP espanhol revela a ilusão da multidão relativamente à
necessidade de “ordem” para que os sacrifícios de “todos” sejam eficazes e a
retoma, a prosperidade, o emprego ou a orgia consumista regresse. Em meados de
2007 escrevemos sobre este tema do novo fascismo que está em marcha (5)
alertando para o facto de que o clima social e económico presente abre caminho
a posturas de extrema-direita dentro dos actuais regimes cleptocráticos e não
propriamente através do ressurgimento das liturgias fascistas dos anos 30 do
século passado.
4
– Entre os pides, qual o pior? O que dá porrada ou o “compreensivo”?
Parece
bastante claro, que nesta negra situação que se vive aqui, na Europa e, mais ou
menos no resto do mundo, não há uma saída condigna dentro do actual sistema
político e económico. As atitudes dominantes na multidão, contudo, oscilam
entre uma crença, ou mesmo uma ténue esperança de que as coisas se podem compor
dentro do sistema de representação e do ordenamento económico vigentes; e
aqueles que se resignam à inevitabilidade da situação, sorvendo de modo
passivo, o discurso do poder.
Pode-se
ainda referir a posição daqueles que, estando perfeitamente dentro do sistema,
apontam para alternativas dentro do mesmo, com uma linguagem radical e
enganadora que favorece, naturalmente, o poder. Ou que apresentam alternativas
inadequadas (quando não delirantes) face à situação, tanto no aspecto
objectivo, como na subjectividade da multidão. Como diz Zizek, “os
manifestantes (de Wall Street) devem ter cuidado não só com os inimigos, mas também com amigos falsos que
fingem apoiá-los, mas já estão trabalhando duro para diluir o protesto” (6)
Tomando
ainda de empréstimo as palavras de Zizek, “aquilo a que se deve resistir, nesta
fase, é precisamente essa transição rápida da energia do protesto para um
conjunto de pragmáticas propostas concretas”.
Se
a questão é o sistema, é dispiciendo, de facto, uma preocupação dominante para
alternativas concretas, a aplicar dentro do actual paradigma. E por várias
razões;
- São os órgãos do sistema (Estado e partidos, nomeadamente) que têm o acesso privilegiado, ou mesmo exclusivo, à informação relevante, o que não acontece com as pessoas comuns. E que benevolamente, deixam escorregar alguns elementos, parciais ou filtrados, de acordo com o princípio da opacidade suficiente;
- Depois, não compete a quem repudia o sistema, a quem não atribui às instituições do sistema uma real representação da multidão, apresentar as soluções parciais que iriam perpetuar esse sistema. Para isso existe a “esquerda” institucional, os sindicatos e respectivas agências mais ou menos radicais; para isso, são objecto do financiamento público, que o poder financeiro dominante, prazenteiro, determina (7).
E,
portanto, não cabe à contestação radical anti-sistema cair na armadilha
colocada por elementos da classe política (caso de Pacheco Pereira) quando
referem, irónica e desprezivelmente que os “indignados” não têm propostas
alternativas. Essa posição corresponde à pressuposta superioridade de ungidos
sacerdotes da massa ignara que, do alto dos altares mediáticos, decretam a
inferioridade, a ausência de direitos de autonomia da multidão face a patrões
ou mandarins.
De
facto, não há um corpo único de alternativas, nem haverá, porquanto a
contestação ao sistema é diversificada, constituida por grupos vários, com
composição social e competências distintas, para mais, separados
geograficamente. E, por muito estranho que isso seja, para a cabeça formatada
dos mandarins e seus plumitivos, não há qualquer intenção de unificação e,
menos ainda da constituição de uma estrutura partidária nova, como pretendem os
subscritores de uma Convergência e Alternativa, recrutados entre renovadores
comunistas, burocratas sindicais, ex-militantes do PS ou elementos da tendência
social-democrata (Política XXI), por enquanto, ainda dentro do BE.
Porém,
o que atrás se disse, não significa que o conjunto dos grupos anti-sistema não
deva procurar ter um corpo inovador e abrangente de ideias, exigente de
transformações radicais, a construir à medida que se proceda ao amadurecimento
de cada grupo, do crescimento do número dos seus membros e do grau de
articulação e troca de ideias entre todos. E é esse conjunto de propostas que é
necessário; e, decerto, não apresentar propostas, alternativas potencialmente
fáceis, dentro do sistema, como a taxa do IVA, a renegociação da dívida, propor
a perda de um, em vez de dois subsídios, como que à procura de uma negociação,
um compromisso com o sistema e os seus garantes, o capital financeiro e o
mandarinato. (8)
Convém
que se entenda que a construção de uma alternativa ao sistema é uma construção
lenta, democrática, participada e não ditada por um guru ou por um grupo de iluminados.
A realidade nas sociedades actuais é extremamente variada, mutável, corresponde
a uma densa rede de factores que a influenciam, como nunca antes na História; e
a sua interpretação e as alternativas construidas desse modo são, decerto,
muito mais próximas das necessidades da multidão do que o produto dos gabinetes
de estudos dos partidos, dos bancos ou das universidades. Essa constante
reínterpretação incorpora, naturalmente toda a diversidade e experiência da
multidão e toda a criatividade dos trabalhadores e dos pobres. Qualquer
proposta que não seja saida da multidão, constantemente escrutinada, validada,
re-escrita pela mesma, não interpreta o seu sentir, a genuinidade dos seus
propósitos e, apresenta elevados riscos de produzir castas dirigentes, embriões
de mandarins, com o subsequente retrocesso civilizacional ou, no mínimo,
atrasos na consolidação da democracia directa, da autogestão.
Em
suma, é necessário alimentar constantemente, renovar e engrandecer
permanentemente um corpus de conhecimento e de alternativas ao sistema
cleptocrático. Não para apresentar aos representantes do sistema financeiro e
demais capitalistas, como forma construtiva de melhorarem o seu desempenho mas,
para apresentar e mobilizar a multidão no sentido do afastamento daqueles que a
não representam que a oprimem e roubam; para transformarem o sistema de
representação, a definição das prioridades da gestão pública, de assumirem a
organização da produção e da distribuição da riqueza.
Este
texto visa apenas fornecer um contributo para a construção de alternativas metodológicas
para a criação de uma sociedade liberta da canga do sistema financeiro e das
suas dependências no campo económico e político.
Vai-se
considerar em seguida o papel do Estado, da ideologia, e do partido na organização política actual e num futuro de
democracia verdadeira.
5
– Qual a função do Estado?
Cada
pessoa tem um determinado tipo de necessidades e a vida em sociedade obriga a
que muitas dessas necessidades sejam satisfeitas em conjunto, com a produção de
todos para todos, seja a nível local, regional, continental ou mundial. A
construção de uma estrada ou uma escola pode e deve ser decidida a nível local;
a de uma universidade ou um hospital, porventura, a nível regional; uma rede de
transportes de longa distância, ou a distribuição de energia só pode ser
pensada num plano continental e, a produção de fármacos ou a gestão ambiental
só fazem sentido se concebidas numa lógica global.
A
questão que se pretende aqui tratar é de que forma, quais os instrumentos a
utilizar para a satisfação dessas necessidades colectivas e de que forma eles devem
ser geridos para a otimização do bem estar das pessoas e não dos lucros
empresariais.
Esse
instrumento deve existir como autónomo relativamente à colectividade das
pessoas deixa de ser tomado como instrumento e passa a sujeito, com interesses
e necessidades próprias, distintas da colectividade? Deve ser-lhe atribuido um
carácter de autoridade geral sobre os indivíduos e o seu conjunto? Devem ser as
pessoas que trabalham nesse veículo de concretização da satisfação das
necessidades colectivas ter poderes, para além daqueles que a população
beneficiária lhe confere especificamente para cada um dos seus actos?
Se
se trata de serviços continuados, de rotina, como a recolha do lixo ou o
fornecimento de água, a sua configuração poderá basear-se nos seguintes
contornos:
- Há um conjunto de trabalhadores que executam profissionalmente essas tarefas, em autogestão e, de acordo com as regras laborais e salariais da comunidade em que se inserem;
- Essa gestão corrente é efectuada por esses trabalhadores podendo cada indivíduo da comunidade ter acesso, em todo o momento, a toda e qualquer informação que considere pertinente sobre o funcionamento do serviço público prestado;
- a comunidade elegerá representantes seus, para, por periodo limitado (vg dois anos), acompanhar o desempenho desses serviços;
- Esses representantes, podem ser substituidos a qualquer momento pela comunidade; terão um número limitado de mandatos seguidos (digamos dois, num total de três em toda a sua vida); auferirão, se a tempo inteiro, o salário que receberiam se estivessem no desempenho das suas funções profissionais e, não ao serviço da comunidade;
- Esses serviços serão pagos pela comunidade, de forma a garantir a cobertura de custos e uma margem adequada para investimento, não havendo, naturalmente, propriedade ou gestão privadas;
- No caso de investimentos, as decisões são tomadas pela população envolvida após debate detalhado sobre o tema, podendo esses debates e decisões ser tomadas de forma presencial, tradicional, ou através de fora na internet.
Com
estes parâmetros, o exercício das funções públicas é constantemente monitorado
pela população e todas as decisões cabem à mesma, directamente ou dos seus
representantes eleitos especificamente para cada função concreta. Os serviços
colectivos inserem-se na estrutura social e económica da comunidade e não
funcionam como locais fechados, com gestão opaca e segurança à porta. A este
propósito, sugerimos a audição de “As comissões” de Fausto Bordalo Dias, do
album Madrugada dos Trapeiros, 1977 (9)
Daqui
resulta a ausência de cabimento para um mandarinato político ou de gestores com
poderes susceptíveis de se sobreporem aos da multidão; a extrema dificuldade de
amiguismos, desvios de fundos e roubos, como actualmente vai acontecendo, associado
à ausência de mordomias garante menores custos e, portanto uma maior
racionalidade da parcela dos rendimentos individuais destinados ao
funcionamento da res publica.
Esta
abordagem para o caso de comunidades relativamente pequenas, levanta de imediato
um paralelo com a gestão autárquica em Portugal, cujas características se
resumem a:
- Existência de uma máquina administrativa pesada e opaca, sem qualquer acesso da comunidade às contas públicas quer ex ante quer ex post;
- Elenco de mandarins eleitos em listas fechadas de partidos, para mandatos generalistas que permitem total arbitrariedade na decisão e na execução das funções; para mais, sem qualquer possibilidade de a população exercer o seu direito de repúdio desse elenco ou de alguns dos seus membros;
- Afastamento deliberado da comunidade face aos actos autárquicos, quer os mais comuns, quer os mais estruturantes, pese embora a existência de assembleias municipais ou de freguesia, escassamente participadas e onde a intervenção das pessoas não é incentivada; antes pelo contrário, são-lhes incutidas regras de redução da sua intervenção e, claro sem poder de decisão, uma vez que esta cabe exclusivamente a mandarins;
- O autoritarismo imanente às leis em geral é totalmente assumido pelos mandarins autárquicos e tem como contraponto a submissão da multidão e o seu afastamento da gestão pública;
- O poder estruturante dos mandarins permite uma enorme capacidade para a prática de actos de má gestão, sem responsabilidades pessoais, apenas eleitorais; e a gestão danosa ou corrupta fica ocultada nos arquivos autárquicos ou, quando sai à rua é amaciada ou branqueada pelas leis gerais da justiça ao serviço da cleptocracia. A forma descuidada como se recorre a empréstimos bancários, a urbanizações duvidosas e corruptas, a gastos sumptuários e recurso a contratos e consultadorias pouco transparentes, são exemplos dessa impunidade;
- As estruturas administrativas tendem a ser empoladas para satisfazer clientelas partidárias, mafias locais ou clãs familiares quando não vaidades pessoais de imbecis rodeados permanentemente de séquitos, como se de senhores feudais ou neo-morgados se tratassem. Os projectos que se conhecem de promover elencos autárquicos “monocolores” só virão a acentuar o autoritarismo, a separação entre governantes e governados e a facilitar a corrupção e o compadrio.
Para
as decisões que envolvem quadros territoriais mais vastos ou populações mais
volumosas, o que atrás se apontou como fórmula de abordagem da satisfação das
necessidades colectivas e da correspondente decisão é aplicável, na íntegra.
Não sendo fácil, nem prático fazer assembleias com dezenas de milhar ou mesmo
centenas de milhar de pessoas é, sem dúvida, possível segmentar essas multidões
em assembleias mais pequenas onde seja possível a expressão das opiniões
individuais e o esclarecimento comum.
Nada
impede, nos casos de populações muito numerosas, que essas assembleias elejam
representantes, com mandatos específicos para veicular as posições dos seus
representados; como não é difícil a prática de fora na internet e votos
electrónicos. Se a participação individual é livre e irrestrita e não
mediatizada por organismos açambarcadores do poder de decisão como os partidos,
a discussão pública, a decisão e a representação tornam-se mais transparentes,
participadas, menos submetidas a manipulação, elevam e tornam mais extensiva a
participação da multidão. Esta configuração obvia aos enormes custos com a
manutenção de políticos profissionais, estruturas partidárias pesadas e
tentaculares, órgãos permanentes de “representação” com milhares de agentes,
transformados em classe social, em casta, com legiões de auxiliares sob várias
designações (secretários, assessores, adjuntos…), como uma nova nobreza.
O
estabelecimento de normas democráticas de gestão e decisão política, permite a
ausência de profissionais da política com poderes de representação irrestritos,
generalistas e irrevogáveis por parte dos representados. Note-se que a
representação política como ela é praticada constitui uma excepção ou uma
deturpação do instituto da representação; excepto, no âmbito da política
institucional, ninguém nomeia um representante, sem o poder de lhe retirar essa
categoria e inerentes capacidades delegadas, nem deixa de estatuir em que
assuntos o mesmo detém os poderes de representação.
A
existência de normas democráticas, a ausência de um corpo profissional e
permanente que açambarca os poderes de representação, dificultará a
constituição de mafias e a corrupção, desmantela o Estado enquanto órgão de
cúpula, acima da multidão, autoritário, possuido por classes ou grupos sociais
determinados e muito minoritários. Na sequência, a gestão das necessidades
colectivas fica mais barata, mais transparente, democrática e aberta à
criatividade da multidão, liberta do espartilho controlador e repressivo dos
mandarins. Não existindo esse aparelho, fica drasticamente prejudicado o poder
coercivo exercido por aquelas classes ou grupos, como prejudicada fica a base material para a
existência do mandarinato, verdadeiro alter ego do poder económico.
Não
é difícil concluir que a luta por uma democracia verdadeira tende a abrir
portas para a redução do poder do Estado, em concomitância com a maior educação
democrática da multidão e o exercício directo das funções colectivas. Não é
difícil de concluir que esse caminho constitui um plano inclinado que conduz à
extinção do aparelho do Estado, nascido há vários milénios para assegurar que a
esmagadora maioria das pessoas é forçada a sacrificar-se no seu bem-estar e nos
seus direitos humanos, para benefício de uma elite de parasitas.
Esse
caminho é gradativo e terá de ser percorrido em várias latitudes para que a
repressão tenha dificultada o seu objectivo de jugular a pulsão democrática dos
povos. E, nessa repressão, estarão todos os que beneficiam da existência do
aparelho diferenciador do Estado, quer à direita, por tradição, quer nas
esquerdas institucionais que padecem de uma tara estatista incurável.
6
- O papel das ideologias
A
democracia e o seu exercício de forma massiva por parte da multidão, não
elimina a existência de ideologias mas, remete para o domínio do lixo da
História, aquelas que se pretendem como portadoras da Verdade e portanto
atribuem aos seus seguidores prerrogativas de imposição aos outros, tomados por
ímpios, infiéis, atrasados ou incivilizados, merecedores de acções
evangelizadoras que, em regra, passam pelas capacidades de convencimento da
prisão, da tortura, da perseguição, da discriminação.
A
tendência das ciências para a sistematização e tipificação da grande variedade
das situações reais, gerou um conjunto de ideologias que, durante um longo
periodo histórico, mesclavam num único sistema, escatologias, normas e comandos
sociais para garantir hierarquias políticas e segmentações entre a multidão. E
quando essas normas se mostravam injustas, lesivas ou estupidamente
desajustadas da realidade, a sacralidade surgia para que a realidade se
enquadrasse no dogma. Na sua maioria, esses sistemas assumiram-se como Verdades
reveladas ou “científicas”, excludentes das concorrentes, recusando ainda as
mutações sociais e, naturalmente, críticas ou denegações.
Muitas
ideologias procuraram autonomizar-se dos destinos revelados pelas religiões
mas, naturalmente, incorporaram a cultura em que estavam inseridas, sem prejuizo
da evolução e adaptação posteriores; nomeadamente a pretensão da perenidade, de
portadores do “fim da História”. E, no bojo desse pretensiosismo, a autoridade
e a repressão através do Estado.
Naturalmente
que cada pessoa é possuidora de um conjunto de conceitos sobre a vida, sobre a
realidade política e económica, bem como de uma paleta de valores e de uma
experiência de vida cuja articulação constitui a matriz lógica que utiliza para
dialogar com os outros.
Porém,
pouco importa a ideologia pessoal de cada um, seja ela mais difusa ou mais próxima
do cardápio das ideologias ou, se está mais ou menos conceptualizada na mente
de cada indivíduo. Cada pessoa tem mesmo o direito de tentar convencer os
outros sobre a bondade do seu pensamento para a felicidade individual ou
colectiva, seja aplicável à paróquia onde vive, seja a nível planetário. O
problema surge apenas quando alguém ou um grupo pretende utilizar instrumentos
materiais ou o exercício do poder para condicionar a liberdade de escolha de
terceiros e da expressão livre dessas escolhas.
A
utilização do poder de Estado, a possibilidade da utilização do poder coercivo
resultante do monopólio da lei e do uso de tribunais e polícias tem sido um
elemento essencial para a imposição de ideologias prosélitas. Aliás, qualquer
ideologia assumida por um Estado envolve
uma lógica coerciva ou repressiva, de segmentação da multidão entre adeptos e
não adeptos, patriotas e não patriotas, cumpridores da “lei” ou agitadores,
terroristas…
Inversamente,
um Estado adopta sempre uma ideologia, como suporte de uma ordem jurídica, necessária
para se colocar acima dos indivíduos, para legitimar o uso da força. A
ideologia adoptada pelo poder é sempre excludente daqueles que não estão
próximos do poder, uma vez que estes são aqueles cuja missão está definida como
a de servirem o poder e os grupos sociais que o constituem.
Nuns
casos, essa ideologia reveste-se de conteúdos subreptícios, suaves mas, não sem
deixarem de ser impositivos e insinuantes, pois apostam mais na incorporação desses
conteúdos na cultura social do que na obrigatoriedade das demonstrações de
fidelidade.
Quando
um conceito é endogeneizado pela multidão, como natural, verdadeiro,
irrecusável e insofismável, como valor, ao poder apenas importa medir até que
ponto os indivíduos ou as ideias desviantes são susceptíveis de se tornar
subversivas. Estão neste caso as diversas formas de ideologia do poder
actualmente mais utilizadas e que dão por designações tão genéricas e vazias, como
economia (social) de mercado, democracia representativa, neoliberalismo ou,
como preferimos, democracia de mercado.
A
crise sistémica de acumulação capitalista que hoje se vive, ao gerar
dificuldades não imaginadas pela multidão há poucos anos atrás – desemprego em
massa, banalização do despedimento, redução de direitos sociais, quebras
salariais e no poder de compra, etc – leva à elevação do espirito crítico face
ao actual sistema político, com a inerente contestação e a procura de
alternativas. E, em resposta, os poderes nacionais e as esferas globais do
poder vão criando excepções ao carácter permissivo da democracia de mercado,
afunilando a informação disponível, procurando controlar os movimentos físicos
ou das ideias da multidão, manipulando as suas próprias regras de escolhas
governativas , impondo uma real fusão das actividades dos agentes das guerras
no exterior e no interior, com o reforço acelerado das polícias, quer em
armamento, quer nas modalidades de uso da repressão.
Em
paralelo, precisam de incorporar na ideologia do poder, o medo irracional, a
insegurança, a ameaça permanente a partir de fontes indefinidas, como o “outro”,
o terrorismo, o conformismo que se agarra à tara patriótica. Esta, faz cada um
sentir-se caloteiro só porque existe um problema de dÍvida pública e a aceitar a
acusação capciosa de que “vivemos acima das nossas posses”; e essa incorporação,
para gáudio dos patrocinadores do sistema, faz o poder político passar das mãos
de um desqualificado Sócrates para um invertebrado Passos. Tudo a par com a glorificação
de um sistema “democrático” no qual as escassas diferenças face a uma ditadura,
pouco vão além da actual inexistência de uma pide a bater à porta durante a
noite.
E,
pretendem esconder a presença de grupos sociais e económicos beneficiários, como
promotores dessa ideologia, em simbiose com o poder de Estado, em detrimento do
resto da população, já não se sabendo onde acaba a acção política de um
mandarim e começa a sua actuação como defensor de um interesse económico
concreto.
Os
nomes dessas ideologias podem ser vários, tendo nas suas designações vocábulos
construidos com o sufixo “ismo”; embora nas situações atrás referidas ela seja
deliberadamente difusa, pretenda constituir-se como cultura de massas,
Em
certos regimes políticos a ideologia é bem marcada, definida com um carácter
programático que se pretende emanar do povo, da nação, com um conteúdo bem
definido, unificador, tomado como uma verdadeira escatologia laica; e para a
realização da qual se exige também a unidade do povo com os seus dirigentes; os
pintos sob a tutela protectora das bicadas da galinha. Pode ser a “pancasila”(10)
dos indonésios, o “socialismo do século XXI” de Chavez, o marxismo-leninismo da
gerontocracia cubana, a ideologia “juche” da dinastia norte-coreana (11), da “democracia
florescente em disciplina” da ditadura militar de Myanmar e outras tantas
originalidades semânticas cujo ridículo não deve obnubilar a necessidade de
enquadramento da legitimidade de grupos usurpadores da democracia.
Curiosamente,
à medida que a utilização de fórmulas ideológicas precisas e estreitas vão
sendo substituidas por aproximações às democracias de mercado emanadas do
Ocidente - com maior subtileza na condução da multidão e da sua pacificação -
verifica-se um abastardamento dessas democracias de mercado na Europa, com a
paulatina introdução de elementos autoritários e de empobrecimento colectivo
para salvação do sistema bancário e da sua ordem monetária. Apesar dessa
degradação, os missionários da NATO empenham-se em levar a boa nova da
democracia de mercado sob a forma de drones e bombas aos povos
incompreensivelmente pouco agradecidos; em paralelo, os mandarins ocidentais
apresentam, por aí, a superioridade do seu degradado modelo.
Será
que se verifica uma aproximação entre os regimes de vocação totalitária com
máscaras democráticas (China, Rússia e monarquias árabes, por exemplo) e
regimes formalmente democráticos em plena instalação de fórmulas repressivas e
de desarmamento do exercício de direitos individuais e políticos (EUA e UE) ?
Acreditamos que sim.
Para
o capitalismo, a utilização de uma norma de gestão pública, do ordenamento
político e económico não é um fim em si mas, um instrumento para a prossecução
dos seus interesses; a escolha a que se procede é apenas a mais conveniente
para maximizar a acumulação capitalista, a escolha que mais pacifica a
multidão, aquela que mais facilita a exploração do trabalho alheio. E a
ideologia utilizada insere-se nesse utilitarismo, uma cortina de fumo, nada
mais. Pelo contrário, para a multidão, a democracia é condição necessária para
a sua realização como colectividade humana, na escala global como na escala
local, para a maximização do bem-estar colectivo e individual.
Então
qual deverá ser a ideologia do poder se a utilização dos vários “ismos”, de
pesado conteúdo programático não tem apresentado resultados, tal como se vai
esboroando a imagem de gestão eficiente e democrática propagandeada pelos
defensores da democracia de mercado?
Assiste-se,
por um lado, à existência de quadros políticos de partidos únicos de pretensos
iluminados, divididos em gangs dissonantes e fulanizados que disputam o poder, dispensando,
por omnisciência, a opinião da multidão e a democracia; e por outro,
apresentam-se os regimes de democracia de mercado com partidos quase iguais,
alternantes através de romarias eleitorais que não passam de actos de legitimação,
perpetuação do regime. A dispensa formal ou encapotada da democracia,
estabelece diferenças tão essenciais num comum modelo de domínio político em
que alguns vivem da exploração do
trabalho da grande maioria?
Os
regimes de partido único desenvolvem aparelhos de burocratas corruptos mantidos
por forças repressivas de mão pesada; os regimes onde vigora uma aparente
imagem de tolerância e igualitarismo, tornaram-se ditaduras de funcionários
nomeados pelo poder financeiro, corruptos, autoritários, apostados na separação
clara entre senhores e servos. Alguma das fórmulas apontadas é uma real
alternativa para a multidão?
Na
nossa opinião, a gestão colectiva não precisa de ideologia alguma mas, tão
somente tratar das questões concretas que constituem as necessidades da
multidão e de materializar a satisfação das mesmas. A resolução das
necessidades colectivas não precisa de ser capeada por uma ideologia e, menos ainda,
da existência de intermediários profissionais que, com ar pungente, se
apresentam como sacrificados sacerdotes da satisfação dos interesses populares.
Não
é difícil aceitar um elenco de necessidades humanas, transversais,
independentes de “raças”, conceitos religiosos, línguas, lastro histórico, culturas. Mesmo que a capacidade de
comunicação seja dificultada por diferenças marcadas entre essas culturas
distintas, será difícil não encontrar uma margem enorme de similitude na
essência de objectivos de vida e das ambições de bem-estar, entre um somali e
um chileno? Entre um indiano e um inuit? Um chinês e um norueguês?
Todos
os seres humanos estão em sintonia quanto à esmagadora maioria das necessidades
para a sua existência; são as necessidades da “carne” como designadas por
Spinoza e mais algumas que, entretanto, surgiram devido aos malefícios que o
capitalismo tem promovido, sensivelmente, nos últimos dois séculos.
- Algum ser humano prescinde de estar satisfatoriamente alimentado, sobretudo sabendo-se que as capacidades de o planeta o permitir, na base das técnicas actuais, vão muito para além dos 7000 M de humanos que existem?
- Algum ser humano considera a sua saúde e a dos seus como elemento dispiciendo na sua existência, sabendo-se que os cuidados higiénicos e os fármacos disponíveis permitem alcançar uma longevidade que se vai aproximando da centena de anos?
- A existência de um habitat saudável que abrigue cada um da chuva ou do frio, do sol ou do calor e que permita a sua privacidade é um pormenor na nossa vida?
- O acesso à educação e à cultura, ao usufruto da arte e do desporto, para mais no contexto actual de facilidade (imaterial) de troca não será precisamente um veículo de avanço civilizacional e, ao mesmo tempo, de enriquecimento ético e estético de cada um?
- O trabalho para todos e um rendimento justo pelo seu exercício, desempenhado com economia de esforço e sem danos para a saúde, que permita sem sobressaltos materiais, sem carências, terá de ser considerado um bem escasso quando são inventariáveis inexplicáveis e e extensíssimas massas humanas com escandalosas necessidades ao nível alimentar, da saúde, da educação, da habitação, por satisfazer? Será digna a existência de um aviltante “mercado de trabalho” como existe a lei da oferta e da procura da batata frita?
- A satisfação das necessidades humanas exige a destruição do meio ambiente que conspurca e torna insalubre parte crescente do planeta? As alterações climáticas susceptíves de invialbilizar a vida na Terra são objectivo aceitável para alguém cam sanidade mental?
- A apologia da violência e da guerra, na sua essência, é motivada pelo espírito de apropriação privada das riquezas materiais e da capacidade alheia de trabalho. Quem sofre as destruições daí resultantes sente nisso algum benefício? E os agentes agressores estão sempre seguros de que vão escapar de serem, eles proprios, vítimas da reação dos agredidos?
- E, para terminar este elenco, algo de mais intrinsecamente humano. Algum ser humano prescinde ou considera despicienda a faculdade de amar e ser amado e dispensa a existência das condições materiais e subjectivas para esses objectivos?
É
a resolução destas questões comuns que constitui ou deve constituir a gestão
colectiva, com base em opções decididas democraticamente entre todos, com um
espírito de cooperação e solidariedade e não de concorrência pela apropriação
de bens e direitos acima das suas necessidades individuais, com a utilização
desse excesso para alicerçar poder e domínio sobre os que, com essa desigual
distribuição, ficarão desapossados ou carenciados.
Que
ideologia é necessária colectivamente para a solução daquelas questões? Todas
se definem como possuidoras de uma chave para a resolução dos problemas e todas
exigem o poder de Estado, o monopólio ou a preponderância coerciva do exercício
das escolhas aos seus prosélitos, para o bem estar da multidão; em suma, todas assumem
a segmentação da multidão entre um conjunto de entes capazes de utilizar aquela
chave (os senhores) e de outro conjunto, em regra muito maioritário (os servos),
de indivíduos que se devem considerar como insusceptíves de compreender as
coisas, a forma de resolver os seus problemas colectivos e que, portanto devem
ceder essa prerrogativa aos iluminados
por essa ideologia. Todas aceitam como base, a perpetuidade de sistemas
de desigualdade política e económica.
Por
outro lado, admitir-se que haverá uma ideologia que abarque, que possa
representar, na sua plenitude, as concepções existentes na multidão,
caracterizada precisamente, pela sua imensa heterogeneidade, é irrealista.
A
gestão dos interesses comuns da multidão só pode realizar-se através da
discussão colectiva de problemas concretos e decisão também colectiva sobre a
forma de os resolver.
Fora
do exposto, é a interferência de uns quantos na vida da maioria, a apropriação privada
por um ente estranho e colocado acima da vida de cada um – o Estado – da
análise sobre o comum e do poder de decisão sobre o mesmo. Para a perpetuidade
dessa apropriação é necessária a criação ou adopção de uma ideologia que a
legitime; e que, de permeio, trate de legitimar o poder coercivo inerente ao
Estado para este promover o bem comum, do alto do seu critério de ente separado
do colectivo dos indivíduos. Dito de outro modo, criado o monstro, ele
sustenta-se fartamente das vítimas que vai reproduzindo; dispensamos o monstro
e a sua imagem no espelho.
Tendo
no bolso essa legitimação incutida pela ideologia, por infestação das mentes ou
por coerção, os que se apropriam desse poder de Estado, selam uma unidade de
actuação assente na fixação de privilégios materiais, como compensação
“legítima” da sua excelsa missão, dos sacrifícos (?) a que se submetem…:
transformam-se em casta ou classe. Tranformando-se em grupo separado da
multidão, com interesses próprios e distintos dos indivíduos, escondem-se atrás
de uma ideologia de gestão do bem comum e entregam-se à evangelização da
multidão, de modo adequado a que esta aceite o esbulho da democracia, o desvio
de recursos para a boa vida de uns senhores e para o pagamento dos pretorianos
que asseguram pela força o seu predomínio. Esse roubo permite ainda pagar a
existência de um aparelho mediático que visa a promoção do sistema corrupto e
cleptocrático, como destino inelutável de gestão pública. A ideologia é uma
necessidade para quem se apropria do Estado e do seu poder coercivo para se
impor à vontade da multidão, para a desapossar do seu direito de,
autonomamente, decidir sobre a sua vida colectiva, sem intermediários, sem
mandarins.
Voltando
à questão da ideologia. Para o entendimento humano na satisfação das
necessidades colectivas como espécie, com respeito para com a necessária e
imensa variedade de seres vivos que constituem a equilibram a vida na Terra,
que ideologia é necessária?
A
ideologia como revestimento do Estado é um instrumento de apropriação privada
da decisão popular, serve para justificar a existência daquele e torna
obrigatória a defesa da existência de agrupamentos (partidos) para o concurso à
apropriação do aparelho de Estado. Por isso, todos os partidos, defendem a
tomada do poder de Estado, para o gerir e jamais para o desmembrar, destruir,
como forma de devolver o poder ao povo, à multidão; e, quando o fazem (ou
faziam, pois já não se atrevem a tal, dados os precedentes históricos) é, como
instrumento de publicidade enganosa.
7
- O partido
Viu-se
atrás como os partidos são instrumentos organizativos concorrentes ao domínio
do Estado, da sua impar coercividade, do seu direito de aplicar a punção fiscal
de modo generalista, irrestrito e unilateral, sem contrapartidas claras e
mensuráveis para os contribuintes. A gestão do Estado não pode deixar de ser
opaca, fora do escrutínio da multidão para que esta se mantenha afastada do
conhecimento concreto dos negócios, dos contratos, da redistribuição que é
feita do dinheiro dos impostos, dos compromissos financeiros assumidos.
A
transparência dos actos públicos e a possibilidade do seu escrutínio por parte
da multidão constitui uma sabotagem ao poder dos mandarins, a retirada da sua
capacidade de dispor arbitráriamente dos dinheiros públicos. Essa transparência
seria a morte do mandarinato e dos partidos comensais habituais à mesa do
orçamento. A necessidade dessa transparência evidência que a multidão terá de
assumir nas suas mãos a gestão dos problemas colectivos, autonomamente, sem
intermediários instituidos em casta ou classe; enquanto isso não acontecer a
carga fiscal cresce, o rendimento disponível reduz-se e o dinheiro da punção
fiscal desaparece sem que seja facilmente detectado o seu rasto.
Um
exemplo concreto prende-se com uma tão mediática quanto vazia campanha por uma
“auditoria cidadã” à dívida, patrocinada pela CGTP/BE e pequenos grupos
satélites. Para além de questões de ordem técnica e operacional que são
desprezadas e que inviabilizam a concretização do objectivo proposto –
tornando-o portanto uma mera operação de publicidade enganosa – convém que se
interprete essa questão no plano político que aqui se vem colocando. As únicas
auditorias possíveis são as internas, promovidas dentro do próprio sistema
cleptocrático e executadas pelos consultores habituais cuja relação promíscua
com o aparelho do Estado é conhecida, por órgãos do próprio Estado (Tribunal de
Contas, Inspecção Geral de Finanças e outras inspecções), no final, dependentes
da assinatura de um ministro, ou ainda se ordenadas pela “troika”, no âmbito
dos sagrados e superiores interesses do capital financeiro global.
Uma
auditoria à dívida existente numa certa data, a ser efectuada por cidadãos
encontra todas as resistências do mandarinato com funções de governação, como
de toda a burocracia estatal envolvida e, portanto, só terá viabilidade num
contexto de ruptura política ou institucional. Por outro lado, a formação de
dívida insere-se no contexto do funcionamento clássico e habitual do Estado e
da relação promíscua que o mesmo tem com o capital em geral, com o capital
financeiro e as empresas de regime em particular. E, portanto uma auditoria
limitada à dívida deixaria incólume toda a máquina da promiscuidade que gera a
dívida e, sem dúvida iria exigir auditorias regulares ad aeternum.
A
questão essencial é que por razões imanentes à sua própria essência, ao
partidos, sendo institucionais, inseridos e beneficiários do regime
cleptocrático, no governo ou na oposição, são defensores arreigados do Estado,
do seu aparelho e do seu funcionamento de lubrificação do capital privado e do
mandarinato. E por isso não falam sequer (nem podem falar) numa auditoria ao
funcionamento do Estado português que envolveria todo o sistema de financiamento
público de empresas privados, de contratos e actos administrativos que
favorecem gangs privados, partidários e familiares, nas suas ligações com o
Estado, nas sua versão nacional, regional e autárquica.
Os
partidos políticos, como qualquer instituição estão inseridos na marcha da
História, desde que foram inventados no século XIX; isto é são produtos de
conjunturas políticas e sociais específicas e submetidos, na sua vida, às
vicissitudes resultantes da passagem do tempo sobre as estruturas políticas económicas
e sociais. Assim, uns desaparecem apenas ficando o registo da sua efémera
existência nos livros especializados, como todos aqueles que foram criados no
seguimento do 25 de Abril em Portugal e que se extinguiram, sem acção de relevo
passados poucos meses; outros têm uma vida mais prolongada, um papel histórico
de relevo mas, extinguiram-se por inaptação às mudanças do tempo, como a
Democracia Cristã italiana ou o PCUS.
A
passagem do tempo naqueles que vão conseguindo manter a sua existência obriga,
naturalmente, a uma cuidada atenção às mudanças, por razões de sobrevivência.
Entre os partidos que sempre foram de direita essa adequação faz-se de modo
regular e sem grandes atropelos face aos seus propósitos e práticas iniciais, como
intérpretes de interesses de classes e grupos sociais específicos e poderosos, como
é o caso dos “tories ingleses” ou da CDU alemã.
Porém,
naqueles que nasceram como de esquerda, revolucionários até, a evolução é bem
mais curiosa. Suponha-se o caso dos partidos nascidos com programas de
transformação radical, potencialmente intérpretes dos interesses de classes ou
grupos de deserdados e marginalizados na paleta social. Para chegarem ao poder,
essa chegada pode revestir duas formas: por participação em plataformas de
vários partidos ou por tomada revolucionária do poder.
A
aposta no jogo eleitoral, no circo parlamentar, na gestão pública, gera uma
estrutura de políticos profissionais e coortes de pessoal auxiliar que
rapidamente se assenhoreiam dos destinos da instituição, manipulando ou
deturpando as esperanças dos seus apoiantes. Os privilégios normalmente
atribuidos aos mandarins são, em regra apelativos para a manutenção de uma
estrutura partidária, já não baseada na transformação do sistema político, na
sua subversão mas, na conservação desses privilégios e a luta política passa,
objectivamente, pela sua extensão, em termos monetários, susceptível de ampliar
a máquina burocrática.
É
sabido que quanto maior é a presença no aparelho estatal maior é a influência
no mesmo, quer pelas maiores possibilidades de reprodução de agentes
partidários em lugares nesse aparelho, quer pelas acrescidas possibilidades de
protagonismo no tráfico de influências que, em regra não se desligam muito das
práticas corruptas. Por outro lado, o acesso aos fundos públicos que financiam
os partidos está legal e criteriosamente garantido, com actualizações
generosas; o capitalismo há muito concluiu que a salvaguarda dos seus
interesses passa, pela existência de um mandarinato pacificado, satisfeito,
colaborante e disposto, avidamente a novos rendimentos e cargos, no aparelho do
Estado ou em empresas privadas. Finalmente, como atrás se referiu, o
capitalismo, hoje, não pretende mandarins competentes mas obedientes; e por
isso, a paga não precisa ser particularmente elevada, ninguém estranhando o
arredondamento de rendimentos com a recepção de dinheiro por tráfego de
influências ou corrupção pura, nem o habitual estado de dormência do aparelho
judicial para a sua proteção e branqueamento.
Os
estratos intermédios e baixos dos partidos, almejando melhorias nas suas vidas,
a ascensão na hierarquia partidária e o seu quinhão de lugares no aparelho
estatal, inserem-se perfeitamente nessa hierarquia. As coisas podem gerar
instabilidade interna quando, como produto de perdas eleitorais, o número de
cargos e prebendas se reduz, causando re-hierarquização interna entre os vários
candidatos ao mandarinato. E quanto maior é o número de mandarins dos vários
escalões, maior é o afunilamento na dependência do Estado e do tráfico de
influências, maior é o afastamento dos interesses da massa eleitoral.
Esse
afastamento associado às necessidades de captação de eleitorado que permita o
statu quo, torna os programas partidários, explícitos ou implícitos (quando não
passam de elencos simplistas de medidas mediáticas, sem coerência interna),
vagos e inter-classistas, virados para serem aceites por qualquer um que possa ser
sensível ao marketing e dar o seu apoio ao partido.
Nessa
situação, os programas eleitorais dos partidos acabam por se tornar muito
semelhantes, de apoio ao sistema, diferenciados por questões conjunturais
menores, meramente quantitativas ou sectoriais. E, na sofreguidão pelo voto, as
pessoas deixam de ser consideradas como objectos da governação mas, simples
instrumentos de ajuste interno entre os vários partidos concorrentes aos
subsídios públicos e aos poderes de Estado. A pertença a grupos sociais
distintos, mesmo com interesses antagónicos relativamente ao sistema
cleptocrático, é apenas objecto de análise sociológica para efeitos de
campanhas de marketing, para a captação do voto e esquecida logo após o
depósito do boletim de voto na urna (curioso nome que parece adequado à morte
da democracia, típico dos escrutínios eleitorais nas democracias de mercado).
As
pessoas participam apenas numa encenação de atribuição de representação nos
seus eleitos; são actores, marionetas e passam à designação esclarecedora da
sua massificação - eleitorado. Na democracia de mercado, do ponto de vista
económico, não há pessoas mas, consumidores e do ponto de vista político, continua
a não haver pessoas, apenas eleitores.
A
estagnação ou a putrefação do sistema político em Portugal é bastante nítida no
gráfico seguinte, onde verdadeiramente, o único elemento dinâmico nas últimas
décadas é o do conjunto daqueles que não se mostram apoiantes do sistema
partidário. Neste gráfico considera-se direita tradicional, o PS/PSD e os
pequenos grupos com ideários próximos, direita xenófoba, o CDS/PP, o PNR e
afins e esquerda, o PC, o BE (ou os grupos que lhe deram origem) e os grupos
mais pequenos que vêm concorrendo. Note-se que a estagnação dos votos em
partidos e o crescimento daqueles que não suportam o sistema partidário são
realidades intimamente ligadas à degradação das condições de vida e das
garantias democráticas expostas na lei fundamental que o próprio regime pariu.
O
sistema partidário funciona no sentido da perpetuação conjunta e solidária dos
seus participantes fomentando a inevitabilidade da sua existência, a ausência de alternativas que ultrapassem as
combinações dos seus membros, embora, de facto, tudo aponte para a centragem,
com um rotativismo propiciador de ilusões de mudança, de um rotativismo que
assegure a “estabilidade”. Claro que
nessa estabilidade não se engloba a da multidão, a manutenção ou o
desenvolvimento dos seus direitos, a melhoria das suas condições de vida; por
estabilidade. entende-se apenas aquela que agrada aos “investidores” e aos
mercados. a estabilidade do elenco governativo que garanta a fluidez da punção
fiscal a favor dos capitalistas.
De
facto, sempre que há alteração nos gangs no poder, há sempre modificação nos
grupos agilizadores e beneficiários da corrupção, das cadeias de canalização e
facilitação dos interesses mafiosos e de disputa dos dinheiros e actos da
máquina governativa. Daí a ênfase colocada por mandarins e “empresários” na
estabilidade política.
Essa
é a instabilidade que lhes não interessa mas que rapidamente se recompõe, com o
auxílio da transição de assessores e adjuntos de uma para outra equipa
governativa, com a mudança de emblema de altos funcionários, com os solícitos
serviços prestados por escritórios de advogados e outros agentes de “lobbying”,
de aproximação, de apresentação dos novos mandarins de serviço aos interessados
nos seus serviços.
Não
há instituições eternas e a evolução social e tecnológica, nomeadamente,
permite que se coloquem alternativas à quase monopolização dos partidos nas
decisões políticas. Por um lado, os organismos que desempenham funções de
satisfação de necessidades colectivas podem funcionar em autogestão, com as
decisões tomadas pelo colectivo dos seus trabalhadores, sob acompanhamento de
órgãos políticos baseados na eleição directa de pessoas, nos termos acima
descritos (5 – Qual a função do Estado?). Desde já, pode ser expandida a
intervenção e a decisão colectiva em várias instâncias, sobretudo na área
autárquica, anulando-se, desde logo, a margem de compadrios e corrupção que
atravessa actualmente a gestão autárquica. Desde já pode ser agilizada a
utilização de referendos por iniciativa popular, sem a interferência do
mandarinato na sua viabilização e execução que, vergonhosamente, só foi
utilizado por três vezes, em quase quatro décadas e ignorado em situações tão
estruturantes como a adesão à UE, a adopção dos tratados de Maastricht e
Lisboa, na introdução do euro, para a
aceitação ou não do programa da “troika”. É que mesmo ocupando a quase
totalidade do espaço mediático e da informação contida nos órgãos públicos, o
sistema partidário pretende manter-se com a tutela absoluta do debate e da
decisão política, relegando para o papel de espectadores a esmagadora maioria
da população.
É
desejável alterar o sistema político no sentido de ser viável, por iniciativa
popular afastar responsáveis políticos eleitos, sejam eles autarcas, deputados,
ministros, primeiros-ministros ou o presidente da república.
É
imperioso estabelecer fórmulas efectivas de limitação do número de mandatos dos
responsáveis políticos, ou de anos de exercício, bem como de responsabilização
e criminalização dos responsáveis por actos danosos ou corruptos no exercício
de funções públicas.
8
- Como construir uma alternativa?
Vive-se
um estado de deliquescência da vida política, com pouco prestígio das instituições
políticas e dos seus membros, em associação ao papel fulcral que vêm
desempenhando no processo de empobrecimento colectivo a que se assiste (por
acção ou omissão) e na evidência de um futuro de muitos anos de recessão e
dificuldades a que só escapam os ricos. Nesse contexto, é imperioso construir
alternativas.
A
construção de alternativas é, mesmo condição de sobrevivência para a vida de
muitos milhões de residentes em Portugal, para aqueles que não podem sequer
emigrar, como sugeriu o biltre Mestre e o seu chefe Relvas.
Nenhuma
alternativa pode ser construida a partir do sistema partidário, incapaz de
contrariar a satisfação do capital internacional, com base na salvação do
capital financeiro português ou da cupidez do empresariato mais incapaz da
Europa. Também não é de esperar que do exterior surjam mecenas ou, agentes
libertadores que, por espírito de missão ou altruísmo se venham substituir à
inércia dos portugueses na realização das transformações necessárias; ou que
venha do exterior uma “troika” solidária com as dificuldades da multidão.
Qualquer
alternativa terá de sair da auto-organização de todos, tanto quanto possível,
em consonância e articulação com os outros povos europeus, mormente dos povos
de Espanha, por razões de similitude de problemas, de contiguidade geográfica e
proximidade cultural. Não se considera viável ou mesmo desejável qualquer saída
nacionalista do fundo do poço.
Qualquer
alternativa a construir poderá ter de passar por diversas fases:
a)
Indignação
Esta
é a fase em que se encontra, ainda, a maioria da população, incomodada,
sofredora, consciente de que a situação só se pode agravar; e que vai, contudo,
aceitando a segmentação a que, claramente, o poder procede. Essa partição
separa, por um lado, os pagadores de todos os sacrifícios – trabalhadores,
desempregados, reformados, jovens, idosos e pobres em geral – e por outro, os
isentos de contributos para o minorar das dificuldades da esmagadora maioria –
os grandes empresários, os rentistas, os banqueiros, os especuladores, os ricos
que, na propaganda do governo, são definidos como os “investidores”; embora se
saiba que são mais exportadores de capital para “offshores” do que criadores de
riqueza e empregos.
Esta
indignação é contudo, individualizada, isolada, descontextualizada de qualquer
acção consciente de protesto; revela revolta mas, também pode mostrar
conformismo, resignação, atitudes nacionalistas facilmente enquadráveis pelo
sistema, mormente pela direita.
b)
– Protesto
Pretende-se
com esta designação incluir qualquer acção espontânea ou não, que envolva um
grupo de pessoas que se encontram numa situação susceptível de gerar reclamação
pública e visível, capaz de gerar a adesão ou a atenção de outras pessoas. A
sua função poderá ser a do incentivo a pessoas que, num estado de indignação,
se sintam capazes de se unir a essas acções de protesto, que possam sair de uma
situação de isolamento e portanto, sentir que as suas queixas, as suas
dificuldades são comuns, desinibindo-se para manifestar publicamente o seu
desagrado.
São
acções que, quando organizadas, sirvam de incentivo pelo exemplo, chamada de
atenção como flash mobs, pequenos desfiles com distribuição de panfletos ou
cartazes com frases de protesto. Podem realizar-se nas filas para a compra de
passes dos transportes, nos centros de saúde por ausência de médicos, junto de
centros de (des)emprego, etc. Podem revestir também a forma de pichagens,
colocação de cartazes com frases anti-sistémicas.
c)
– Mobilização
Consiste
na sucessão de manifestações junto de instituições do poder e das sedes dos
partidos governamentais, de desfiles onde haja um número mínimo de pessoas;
concentrações locais e nos bairros, para discussão da situação e das
dificuldades existentes com a construção de alternativas para as superar. Essa
dispersão visa aumentar a visibilidade dos protestos, para além da cobertura
pouco imparcial das televisões e, incentivar as pessoas a participar sem terem
de se deslocar aos locais e dias rituais das manifestações institucionais. Por
outro lado, a sua dispersão provocará dificuldades de acompanhamento por parte
do aparelho repressivo, apesar das novas tácticas criativas de infiltração e
actuação provocatória em massa, orientada para grandes manifestações.
Convém,
porém, não confiar na lógica piedosa de que a polícia também está a ser
sacrificada com os cortes e, portanto, menos motivada para provocar, punir e
agredir activistas e manifestantes. A polícia é uma organização profundamente
hierarquizada e os seus corpos e membros vocacionados para a repressão violenta
são submetidos a uma forte pressão para a agressão fácil e cobarde sobre gente
desarmada e indefesa. Para mais, a nivel governamental, encontra incentivos e
cobertura para todos os desmandos.
Os
muitos grupos nas redes sociais são um instrumento fundamental para a difusão
dos eventos, para a troca de experiências e de propostas de alternativas. Os
SMS e o email são canais que deverão estar sempre disponíveis e em uso,
porquanto em caso de desespero, o poder pode intervir junto das operadoras de telecomunicações
(que por coincidência são empresas do regime) e promover cortes na
disponibilidade de alguns dos meios electrónicos de comunicação.
A
partir desta fase da mobilização torna-se imperiosa a execução de lógicas de crescente
coordenação local/regional preparativas de passos mais avançados na contestação
do sistema. A acompanhar essa contestação deverão ser criadas listagens de
reivindicações e de fórmulas de exercício da democracia directa que não passem
por instituições do poder, nem pela integração em lógicas partidárias ou
sindicais.
É
nesta fase de mobilização que poderão surgir problemas com os elementos mais
sectários da “esquerda” institucional, mormente dos seus grupos
trotsko-estalinistas sempre ansiosos de protagonismo e controlo partidário dos
movimentos populares. Essas tentativas de controlo devem ser denunciadas e
combatidas como equivalentes a provocações policiais; porém, a atenção a este
perigo não deverá significar o repúdio liminar de militantes partidários só por
esta razão, uma vez que na base, muitos desses militantes são pessoas comuns em
dificuldades como a população em geral.
d)
Desobediência
Esta
fase poderá materializar-se na geração de dificuldades ao funcionamento normal
de locais como agências bancárias, repartições de finanças, centros de
(des)emprego, centros de saúde, concentrações de transportes, cortes na
circulação nas estradas, por exemplo, com marchas lentas, call centers e empresas
de trabalho temporário, através de acções temporárias de ocupação por grupos autónomos
de activistas que divulgarão propostas alternativas de organização social.
Estas
acções deverão ser realizadas em paralelo com a realização diversificada de
manifestações e concentrações de protesto e construção de propostas de
alternativas.
A
desobediência civil está na ordem do dia e tornou-se trivial a defesa de acções
com esse cariz, como as efectuadas por Boaventura Sousa Santos (12) ou pelo
padre Mário da Lixa (13). Acrescenta-se aqui um manual de desobediência civil e
de fazer face à repressão policial (14)
e)
Revolta
Pode
configurar-se como uma movimentação duradoura e generalizada da multidão para o
cerco e ocupação das principais instituições do poder de Estado até à demissão
dos mandarins e encerramento das sedes partidos governamentais.
Em
paralelo proceder-se-á ao desenvolvimento de uma sucessão de assembleias populares
locais, regionais e nacional para o desenho da futura organização política, na
base da democracia directa em que os representantes eleitos delas saídos são
portadores de mandatos precisos, que podem ser retirados em assembleias
posteriores. Tendo em conta experiências recentes em países árabes há que
promover a não colocação de mandarins arrependidos e reciclados como democratas
de cepa, prontos a utilizar as suas experiências e competências de gestão. As
transformações sociais radicais são férteis no surgimento de oportunistas
dispostos a fazer o papel de novas moscas à procura da mesma merda.
Como
é evidente, estas ideias de faseamento constituem um mero exercício exemplificativo,
sabendo-se que a criatividade da multidão saberá encontrar novas fórmulas de se
manifestar e organizar, diante dos desafios criados pelas circunstâncias.
Notas:
(3) Mário Monti foi,
previamente, nomeado senador vitalício, com uma pensão de € 30000 mensais, cuja
comparação com o projecto de despedimento de 300000 funcionários públicos
italianos e o aumento da idade da reforma é inevitável
(7)
O novo valor do salário mínimo é um logro http://esquerda_desalinhada.blogs.sapo.pt/3567.html ou neste blog
(8)
Uma questão que os opositores ao
sistema cleptocrático devem ter em consideração é a intromissão desviante da
“esquerda”, nomeadamente através dos vários grupos trotsko-estalinistas.
Primeiro, porque a capacidade política ou as competências técnicas dos seus
membros deixam muito a desejar e raramente ultrapassam, por ignorância ou
seguidismo às suas matrizes ideológicas, o que é defendido pela esquerda
institucional. Essa ignorância gera, como defesa, um forte sectarismo e este,
porque fomenta o fechamento ideológico, alicerça a ignorância, numa influência
recíproca.
Depois, porque
consistindo de pequenas seitas organizadas, dentro do BE (PSR ou Ruptura/FER),
procuram angariar novos membros, com o seu radicalismo ridículo, decalcado de
outras eras e das obras escolhidas dos seus santos milagreiros. Essa fobia pelo
controlo, arrasta, perdas para o desenvolvimento dos movimentos sociais, que se
pretendem plurais e livres de tutelas políticas.
Em terceiro lugar e
decorrendo do ponto anterior, procuram apresentar (em acerba concorrência) o
controlo dos grupos de contestação anti-sistémica como trunfos na política
interna dos seus partidos ou para ganharem relevo (ou emprego) junto da CGTP
(M12M ou Precários Inflexíveis, sigla que encobre, de facto, os trotskistas do
PSR). Estes e outros, todos com uma forte componente de um activismo que não
ultrapassa a tarefa prática, com as suas atitudes sectárias e a preocupação do
controlo, provocam danos nos grupos em que se infiltram que decerto, poupam
recursos ao SIS. Em regra, o seu activismo cinge-se à manifestação, ao
panfleto… panfletário, à sua distribuição; tudo, sempre sem estratégia autónoma
ou, como réplica da esquerda institucional e dos seus caciques.
(9) http://www.songzilla.co.uk/search.php?q=As+Comiss%C3%B5es&t=title
(10)
Pancasila ou os “Cinco Princípios”
constituem a base fundadora da Indonésia. Consistem em: crença num e um só
Deus, uma Humanidade justa e civilizada, a unidade da Indonésia, uma democracia
conduzida pela sabedoria interior saída da unanimidade decorrente das
deliberações dos representantes e, justiça social para todo o povo indonésio
(11)
A ideologia juche engloba a defesa da
independência nacional, a colectivização da indústria e da agricultura, o culto
de personalidade, a militarização da política (songun), o voluntarismo, o
nacionalismo e defesa da etnia e respeito pela cultura tradicional. Aspecto
caricato é o calendário se iniciar no ano de 1912, aniversário de Kim Il-Sung
dezembro 2011
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