quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Para um novo paradigma político; a re-criação da democracia

Sumário

1 - Civilização ou barbárie? Democracia ou ditadura dos “mercados”?
2 – Democracia de mercado
3 - Reforço da pulsão anti-democrática em curso
4 – Entre os pides, qual o pior? O que dá porrada ou o “compreensivo”?
5 – Qual a função do Estado?
6 -  O papel das ideologias
7 -  O partido
8 – Como construir uma alternativa?



1 - Civilização ou barbárie? Democracia ou ditadura dos “mercados”?

Em “Pensar à esquerda sem vacas sagradas” (1) enunciámos um conjunto de dez questões de inquestionável candência no mundo actual. Estava-se então, em meados de 2010 e a derrapagem empobrecedora e anti-democrática já se achava em curso; essa derrapagem acelerou e o plano inclinado em que se encontram as sociedades europeias e, particularmente, as dos países do sul, aponta para um verdadeiro desastre civilizacional. E Portugal, uma vez mais ressalta no mapa por razões pouco confortáveis para os seus habitantes. Algumas das temáticas ali referidas têm sido tratadas como modestos contributos para a agitação das meninges dos nossos concidadãos; nomeadamente, o enquadramento geopolítico, o militarismo, o Estado e a putrefacção que vem matando gradualmente os resquícios que sobram da vida democrática, para além dos malefícios da gestão capitalista sobre a esmagadora maioria do género humano.

A consideração do lucro como um novo deus Moloch, tornou a fornalha dia a dia mais exigente em sacrifícios humanos, permitindo que se aponte ao capitalismo a responsabilidade pelo actual declínio civilizacional.

A introdução dos alvores do capitalismo europeu no continente americano dizimou povos e culturas de modo definitivo e substitui-os pela criação de outras, muito menos diversificadas, juntando camponeses esfomeados vindos da Europa com escravos africanos tomados como mercadoria. Os acasos da História colocaram Portugal com um papel de relevo quer na exportação de famintos, quer no comércio de escravos.

A continuidade do capitalismo de hoje acentua essas características de destruição numa escala muito maior, com a diferença que não havendo mais terras para colonizar é a própria espécie humana que está a ser objecto de genocídio, para construir a felicidade do deus Moloch da finança. Não havendo mais terras para descobrir não há mais lugar para os famintos poderem emigrar, tornando-se assim, novos escravos sem necessidade de conhecerem as “emoções” das viagens transatlânticas amontoados nos porões dos galeões. Isto, sem qualquer menosprezo por quantos procuram sair dos seus países à procura de uma subsistência miserável, ligeiramente acima da sobrevivência. Ainda os acasos da História voltam a colocar Portugal na mesa do laboratório como cobaia do subdesenvolvimento europeu.

O declínio civilizacional manifesta-se claramente pela mercantilização das pessoas e das suas vidas, através de teias complexas engendradas por multinacionais, pela economia do crime, em estreito amplexo com o sistema financeiro, Essas teias são não apenas as que resultam dos vínculos económicos mas, também as que envolvem os Estados, tomados como veículos inestimáveis de acumulação capitalista, como instrumentos imprescindiveis de instalação do autoritarismo e do genocídio; e ainda o aparelho ideológico que alia as empresas, o Estado, os media e a escola numa mesma comunhão da inevitabilidade da situação actual.

E, todos procuram incutir uma esperança, uma saída de alegria e felicidade, com mercadorias para todos, transformadas pessoas em objectos tecnológicos, prenhes de inovação e empreendorismo. Os nazis também preparavam os presos em campos de concentração para um banho reconfortante… de gás mortífero.

A civilização corresponde ao primado dos direitos individuais e sociais, da política sobre a economia; a um corte face aos tempos recuados em que grupos de humanos, lutando arduamente pela sobrevivência, pouco curavam de direitos. A mercantilização da vida e dos actos de todos nós é um recuo civilizacional que, enquanto tal, subalterniza ou mesmo anula direitos, em nome dos “mercados”; é um retorno aos tempos primitivos, da luta pela sobrevivência num mundo estranho e hostil.

Neste contexto, é preciso agir. E agir, tendo em consideração que:

  • Não há saida dentro do sistema;
  • Não há, sequer, saída alicerçada na ala “esquerda” do sistema, como referimos em “Esta esquerda é a tranquilidade da direita”(2);
  • Não é plausível pensar num golpe de estado militar, como repetição do 25 de Abril, nem uma intervenção estrangeira salvadora
  • Dificilmente surge um grupo restrito, de iluminados ou de heróis, que tome o poder em nome do povo;
  • As alternativas são a manutenção do poder cleptocrático ou o povo, com a força do seu número e na sua extrema diversidade, acaba com o sistema.

2 – Democracia de mercado

A democracia de mercado vai-se degradando mesmo nesses termos já degradados por essência, enquanto democracia. Degrada-se mesmo quando se pressupõe como virtuoso o domínio do mercado, da mercantilização de todas as relações sociais; ainda que se pressuponha como berço da democracia actual o encontro entre a oferta e a procura, do vendedor e do comprador, do fornecedor e do consumidor, do trabalhador e do patrão.

Nessa nebulosa acepção de democracia está inserto e obscurecido o domínio de grandes empresas que promovem a transformação de pessoas em consumidores e  na qual as necessidades humanas são subalternizadas às necessidades de acumulação por parte do capitalismo; onde as pessoas se tornam necessidades e custos empresariais.

Essa democracia de mercado insere as escolhas políticas e dos candidatos à sua execução num marketing agressivo em tudo semelhante à venda de bens e serviços, no qual demasiadas vezes não é possível descortinar as vantagens de uma marca de sabonete em relação a outra. E, portanto, as escolhas baseiam-se mais em factores afectivos ou emocionais – a telegenia do candidato, a cor da sua gravata, o sorriso, enfim a empatia ou o clubismo partidário e menos na qualidade, idoneidade e realismo das suas propostas para a vida concreta das pessoas. No entanto, incute-se na multidão a ideia de que as alternativas apresentadas são, de facto, distintas, expostas para a sua escolha consciente e não superficializada pela manipulação dos media, estes também submetidos às regras do mercado e à concorrência entre grandes grupos económicos e financeiros.

O afunilamento em grupos económicos torna-os cada vez mais restritos, concentrados  e poderosos, mormente através do seu poder de criação virtual de capital, cuja existência exige uma rápida rotação e transformação em capital líquido, dinheiro disponível. Esse poder reforçado vem transformando o poder político, que deixou de ser apenas o tradicional refém de alianças e correlações de forças entre esses grupos económicos, o que permitia alguma capacidade aos mandarins para uma gestão política com fortes laivos de equidistância e aparente neutralidade.

Por outro lado,  constituição de instituições plurinacionais (Comissão Europeia ou BCE), ou de organismos internacionais (FMI ou OMC) firmemente dirigidos por agentes dos gigantes financeiros e multinacionais, corresponde à globalização, que integra as sociedades e as economias nacionais, retirando-lhes parte desse carácter localizado e, portanto, de muita da capacidade de decisão política autónoma.

Essas instâncias globais vão procedendo a uma segmentação do tradicional poder de decisão política dos Estados nacionais, assumindo as mais relevantes funções de gestão global do capitalismo e relegando para os governos nacionais a autonomia conveniente para a execução de aspectos de aplicação local, dimanados daquelas instâncias ou, cuja relevância seja menor. Tal como acontece com os grupos económicos e financeiros, objecto de uma constante re-hierarquização, também a nível político se vai gizando uma hierarquização das instâncias decisórias; umas vão cabendo a directórios ou instituições multinacionais ou internacionais, outras ficam confinadas aos níveis nacionais, regionais e autárquicos. Actualmente em Portugal vive-se uma quase total subordinação das instâncias nacionais a essas instituições, mesmo em aspectos menores da organização política e da administração pública.

A concentração de capitais típica do capitalismo, bem com a sua centralização assume, hoje, a forma de um domínio avassalador por parte do parasitário capital financeiro sobre as instituições plurinacionais ou nacionais. Essa é a base que sustenta a existência de um mandarinato  internacional, adestrado para o cumprimento dos desígnios do capital financeiro, do neoliberalismo, nos meandros dos “mercados” e das dívidas públicas, nas austeridades, na flexibilização dos mercados laborais,, na competitividade, na aceitação acéfala dos “ratings” e imbecilidades do género. São imbecilidades que num circo fariam rir mas, como o circo são as nossas vidas e direitos, as manifestações de humor alteram-se radicalmente.

A sucessiva passagem de funções políticas do âmbito nacional para o plurinacional reforça a dimensão e o papel de um mandarinato internacional. Esse mandarinato é recrutado, na Europa, entre os gangs nacionais dos partidos do PPE ou do PSE (partidos, respectivamente popular e socialista europeus) ou entre jovens “talentosos” dispostos a toda a subserviência para fazer carreira. Enxameiam a Comissão Europeia, o BCE, o FMI, o FED, o Departamento do Tesouro dos EUA, com passagens pelos governos nacionais, nas áreas económico-financeiras ou pelas instituições financeiras mais relevantes do sistema.

Constituem coortes de gente ambiciosa e sem escrúpulos, distanciada da realidade social com a qual pouco interagem e que, salvo raras excepções, têm uma progressão de carreira assegurada de acordo com o grau de subserviência. As instituições plurinacionais têm ao seu serviço para as tarefas mais pesadas, duradouras ou com estadias fora de casa mais prolongadas, bandos de jovens mal pagos e a quem se exige muito trabalho e poucas ideias, tal como acontece nas consultoras internacionais, ou nos gabinetes ministeriais nacionais, por exemplo. No caso da Troika que governa Portugal, os elementos mediáticos deslocam-se aqui por poucos dias em cada mês, ficando no terreno esse “proletariado” instalado no Banco de Portugal e no Ministério das Finanças.

Esse domínio do capital financeiro não precisa de uma classe política competente e criativa, só precisa de executantes; a despeito da sua aparente diversidade, toda a classe política europeia depende, numa hierarquia não formal, dos interesses do sistema financeiro. A contrapartida dada aos mandarins, tem várias proveniências; é a cooptação a cargos dirigentes do próprio sistema financeiro ou a grandes grupos a ele associados, no caso dos que melhor desempenho tiveram, para os mandarins de topo; é o usufruto de mordomias várias, suficientes para servir de aliciante ao constante renovar da classe política – é curta a longevidade nos cargos políticos de topo; é a possibilidade de enriquecimento através da corrupção tornada impune pelo controlo sistémico dos aparelhos de justiça.

Dentro deste funcionamento de controlo apertado por parte de um sistema financeiro muito centralizado, já não é preciso que os mandarins sejam competentes técnica ou politicamente ou que sejam criativos, tenham ideias e conhecimentos. Apenas precisam de obedecer, replicar ad nauseam frases de apoio ao funcionamento do sistema, garantir a conservação do mesmo e, que tenham o conservadorismo como modo de funcionamento; precisam de apresentar uma imagem simpática, educada e atraente para garantir que a multidão continua a participar como figurante nos actos ditos eleitorais; e, se necessário, não hesitem em utilizar a repressão necessária e conveniente.

Esses mandarins, podem ser vacuidades, gente tão inculta e vulgar como Durão Barroso ou Cavaco; verdadeiros ineptos como Passos Coelho, uma espécie de powerpoint de primeiro-ministro; como o tonto Santana capaz de falar de tudo sem saber de nada, excepto fugir ao trabalho efectivo; a família alargada do padrinho AJJ; burlões bem protegidos como Dias Loureiro; aldrabões compulsivos como Sócrates; facínoras como Duarte Lima; e ainda Valentins, Isaltinos, Varas e toda uma vasta gama de advogados ilustres, especializados em tráfego de influências, que produzem leis como consultores pagos pelo Estado, vendendo depois os seus serviços de decifração dos conteúdos que prepararam a quem bem lhes pagar. Porém, dentro na sua grande diversidade de configuração psicológica e facies, para além da maior ou menor habilidade pessoal para fazer ilicitamente fortuna, todos se vergam ao dominante poder financeiro.

Os governos nacionais vão mantendo uma certa relação com o sufrágio popular, ainda que dentro das limitações e deturpações democráticas típicas dos sistemas eleitorais vigentes. Veja-se até, no caso do primeiro-ministro eleito Passos, como a sua influência é mínima, transferida para o funcionário internacional Gaspar ou para o inepto Álvaro (ambos não eleitos), sob a supervisão do mago Cavaco; todos, porém, sempre atentos e obedientes ao capital financeiro cumprindo os auspícios da “troika”, cujos funcionários não passaram por qualquer crivo eleitoral.

No que se refere ao mandarinato internacional, há apenas nomeações. Trata-se de gente escolhida entre os membros de gangs partidários nacionais, em regra funcionários obscuros que nunca foram objecto de eleição ou escrutínio, qualquer que seja a sede do mesmo. Esse verdadeiro poder político de âmbito europeu é, portanto hermético, fechado, circular, que actua e decide completamente à margem de qualquer representação obtida por eleição e com total desprezo pelo interesse da multidão.

3 - Reforço da pulsão anti-democrática em curso

Tal como o 11 de Setembro de 2001 em Nova York constituiu argumento para uma escalada militarista, com invasões, guerras e ocupações, violações dos direitos e reforço da tara securitária, a crise sistémica actual sob a forma de crise da dívida e do euro está a promover mudanças qualitativas favoráveis ao poder financeiro global.

Com o argumento do debelar da crise, assiste-se, na Europa, a uma brutal transferência de rendimentos da multidão para os capitalistas, imprescindivelmente mediada pelos Estados nacionais sob o impulso protector e impulsionador do Estado plurinacional sediado em Bruxelas e Frankfurt.  E com o mesmo argumento, o directório que dirige a UE, zelador dos interesses do sistema financeiro, determina um governo de união nacional na Grécia, com a participação da extrema direita, chefiado por um ex-presidente do BCE, um exemplar desse mandarinato internacional, de dedicados apóstolos da teologia dos “mercados”. A mesma paleta institucional determina também a queda do execrável Berlusconi, impondo um novo primeiro-ministro, Mário Monti, ex-comissário europeu (3) entretanto nomeado senador vitalício com uma pensão de € 30000 mensais, cujo contraponto com o projecto de despedimento de 300000 funcionários públicos italianos e o aumento da idade da reforma é inevitável) à frente de uma coligação de direita perante uma oposição italiana, anémica e sem ideias. Em nenhum destes casos foi sequer admitida a realização de referendo ou eleições; apenas porque isso não seria aceite pelos “mercados”, como se diz, com resignação. Em Portugal, Passos parece só pensar na tradução das ordens da Merkel e no apoio aos bancos, esquecidas há muito as suas promessas eleitorais e a existência de uma multidão de 10.5 milhões de pessoas, aconselhadas a emigrar por um biltre que dá pelo nome de Alexandre Mestre, cujo conselho, noutras latitudes, teria sido sinónimo de demissão.  Para quem tiver dúvidas sobre o carácter cosmético, de biombo da ditadura dos mercados, da democracia de mercado, estes casos são sintomáticos.

As constituições dos Estados tornam-se documentos ainda mais vazios e meros símbolos de soberanias evanescentes uma vez que o seu cumprimento seria inconveniente, uma perda de tempo, para aplacar as exigências dos mercados, para a estabilidade do euro, para a concretização da retoma, para a melhoria da competitividade externa, para o pagamento ou consolidação da dívida, etc. Anos antes e em nome da unidade e aprofundamento da “construção” europeia todas as tropelias foram permitidas para a aplicação dos tratados de Maastricht e de Lisboa, para a participação em guerras de agressão, etc (4). Como sempre, as constituições revelam a conjugação de forças na altura da sua aprovação mas, em regra, deixam sempre áreas nebulosas para a interpretação dos constitucionalistas de serviço, de imediato aplaudidos pelos mandarins e pelos seus mandantes.

Vive-se um verdadeiro estado de guerra contra os povos justificando a suspensão da aplicação das leis constitucionais, tudo indicando uma futura alteração da ordem constitucional no sentido da introdução de elementos fascizantes na prática política. É disso exemplo, a fixação de um deficit público máximo e penalizações inerentes à sua transgressão, quer de ordem pecuniária, quer no que se refere aos direitos dos estados no seio da UE, sabendo-se a forma obtusa e criminosa como as dificuldades económicas são repercutidas na multidão. Outro exemplo, é o modo como um povo pode ser envolvido em guerras decididas pelas instâncias comunitárias, provenientes da programação estratégica do Pentágono/NATO, sem qualquer envolvimento das populações e dos seus órgãos electivos. A nível nacional, em Portugal, esse estado de guerra é aproveitado para a revisão de leis no sentido do controlo da multidão, seja através da maior facilidade de regras de videovigilância e apagamento da comissão de proteção de dados, seja da maior domesticação da informação pública.

O projecto europeu nasceu na base da prevenção de uma nova guerra na Europa e os europeus foram aceitando a perda das soberanias nacionais enquanto isso significou uma melhoria das suas condições de vida e do usufruto de direitos sociais, laborais e civilizacionais. Agora que a democracia é sistematicamente ultrajada com a actuação das classes políticas plurinacional ou nacionais corruptas e ineptas e que os níveis de vida e os direitos estão a ser metodicamente reduzidos quando não demolidos, há várias questões que se podem colocar. O medo de um regresso a guerras na Europa irá sobrepor-se junto da multidão dos europeus ao ponto de estes continuarem a estar no projecto europeu, mesmo com as evidentes perdas individuais que vamos assistindo? Ou, porque o projecto europeu está em vias de soçobrar sobretudo nos seus impactos sobre a vida das pessoas, estas irão valorizar lógicas nacionalistas e racistas que irão ressuscitar rivalidades e disputas de fronteiras, com guerras tão impensáveis hoje, como o eram as da defunta Jugoslávia há uns 25 anos?

Perante a ausência de uma contestação de massa, a situação económica calamitosa,  as desigualdades enormes e a miséria galopante; perante a concentração do poder do sistema financeiro e o carácter claramente anti-democrático do poder político, está, de facto, em curso uma fascização das sociedades europeias. E, neste sentido, a estrondosa vitória de uma formação política como o PP espanhol revela a ilusão da multidão relativamente à necessidade de “ordem” para que os sacrifícios de “todos” sejam eficazes e a retoma, a prosperidade, o emprego ou a orgia consumista regresse. Em meados de 2007 escrevemos sobre este tema do novo fascismo que está em marcha (5) alertando para o facto de que o clima social e económico presente abre caminho a posturas de extrema-direita dentro dos actuais regimes cleptocráticos e não propriamente através do ressurgimento das liturgias fascistas dos anos 30 do século passado.

4 – Entre os pides, qual o pior? O que dá porrada ou o “compreensivo”?

Parece bastante claro, que nesta negra situação que se vive aqui, na Europa e, mais ou menos no resto do mundo, não há uma saída condigna dentro do actual sistema político e económico. As atitudes dominantes na multidão, contudo, oscilam entre uma crença, ou mesmo uma ténue esperança de que as coisas se podem compor dentro do sistema de representação e do ordenamento económico vigentes; e aqueles que se resignam à inevitabilidade da situação, sorvendo de modo passivo, o discurso do poder.

Pode-se ainda referir a posição daqueles que, estando perfeitamente dentro do sistema, apontam para alternativas dentro do mesmo, com uma linguagem radical e enganadora que favorece, naturalmente, o poder. Ou que apresentam alternativas inadequadas (quando não delirantes) face à situação, tanto no aspecto objectivo, como na subjectividade da multidão. Como diz Zizek, “os manifestantes (de Wall Street) devem ter cuidado não só com os  inimigos, mas também com amigos falsos que fingem apoiá-los, mas já estão trabalhando duro para diluir o protesto”  (6)

Tomando ainda de empréstimo as palavras de Zizek, “aquilo a que se deve resistir, nesta fase, é precisamente essa transição rápida da energia do protesto para um conjunto de pragmáticas propostas concretas”.

Se a questão é o sistema, é dispiciendo, de facto, uma preocupação dominante para alternativas concretas, a aplicar dentro do actual paradigma. E por várias razões;

  • São os órgãos do sistema (Estado e partidos, nomeadamente) que têm o acesso privilegiado, ou mesmo exclusivo, à informação relevante, o que não acontece com as pessoas comuns. E que benevolamente, deixam escorregar alguns elementos, parciais ou filtrados, de acordo com o princípio da opacidade suficiente;
  • Depois, não compete a quem repudia o sistema, a quem não atribui às instituições do sistema uma real representação da multidão, apresentar as soluções parciais que iriam perpetuar esse sistema. Para isso existe a “esquerda” institucional, os sindicatos e respectivas agências mais ou menos radicais; para isso, são objecto do financiamento público, que o poder financeiro dominante, prazenteiro, determina (7).
E, portanto, não cabe à contestação radical anti-sistema cair na armadilha colocada por elementos da classe política (caso de Pacheco Pereira) quando referem, irónica e desprezivelmente que os “indignados” não têm propostas alternativas. Essa posição corresponde à pressuposta superioridade de ungidos sacerdotes da massa ignara que, do alto dos altares mediáticos, decretam a inferioridade, a ausência de direitos de autonomia da multidão face a patrões ou mandarins.

De facto, não há um corpo único de alternativas, nem haverá, porquanto a contestação ao sistema é diversificada, constituida por grupos vários, com composição social e competências distintas, para mais, separados geograficamente. E, por muito estranho que isso seja, para a cabeça formatada dos mandarins e seus plumitivos, não há qualquer intenção de unificação e, menos ainda da constituição de uma estrutura partidária nova, como pretendem os subscritores de uma Convergência e Alternativa, recrutados entre renovadores comunistas, burocratas sindicais, ex-militantes do PS ou elementos da tendência social-democrata (Política XXI), por enquanto, ainda dentro do BE.

Porém, o que atrás se disse, não significa que o conjunto dos grupos anti-sistema não deva procurar ter um corpo inovador e abrangente de ideias, exigente de transformações radicais, a construir à medida que se proceda ao amadurecimento de cada grupo, do crescimento do número dos seus membros e do grau de articulação e troca de ideias entre todos. E é esse conjunto de propostas que é necessário; e, decerto, não apresentar propostas, alternativas potencialmente fáceis, dentro do sistema, como a taxa do IVA, a renegociação da dívida, propor a perda de um, em vez de dois subsídios, como que à procura de uma negociação, um compromisso com o sistema e os seus garantes, o capital financeiro e o mandarinato. (8)

Convém que se entenda que a construção de uma alternativa ao sistema é uma construção lenta, democrática, participada e não ditada por um guru ou por um grupo de iluminados. A realidade nas sociedades actuais é extremamente variada, mutável, corresponde a uma densa rede de factores que a influenciam, como nunca antes na História; e a sua interpretação e as alternativas construidas desse modo são, decerto, muito mais próximas das necessidades da multidão do que o produto dos gabinetes de estudos dos partidos, dos bancos ou das universidades. Essa constante reínterpretação incorpora, naturalmente toda a diversidade e experiência da multidão e toda a criatividade dos trabalhadores e dos pobres. Qualquer proposta que não seja saida da multidão, constantemente escrutinada, validada, re-escrita pela mesma, não interpreta o seu sentir, a genuinidade dos seus propósitos e, apresenta elevados riscos de produzir castas dirigentes, embriões de mandarins, com o subsequente retrocesso civilizacional ou, no mínimo, atrasos na consolidação da democracia directa, da autogestão.

Em suma, é necessário alimentar constantemente, renovar e engrandecer permanentemente um corpus de conhecimento e de alternativas ao sistema cleptocrático. Não para apresentar aos representantes do sistema financeiro e demais capitalistas, como forma construtiva de melhorarem o seu desempenho mas, para apresentar e mobilizar a multidão no sentido do afastamento daqueles que a não representam que a oprimem e roubam; para transformarem o sistema de representação, a definição das prioridades da gestão pública, de assumirem a organização da produção e da distribuição da riqueza.

Este texto visa apenas fornecer um contributo para a construção de alternativas metodológicas para a criação de uma sociedade liberta da canga do sistema financeiro e das suas dependências no campo económico e político.

Vai-se considerar em seguida o papel do Estado, da ideologia, e do partido na  organização política actual e num futuro de democracia verdadeira.

5 – Qual a função do Estado?

Cada pessoa tem um determinado tipo de necessidades e a vida em sociedade obriga a que muitas dessas necessidades sejam satisfeitas em conjunto, com a produção de todos para todos, seja a nível local, regional, continental ou mundial. A construção de uma estrada ou uma escola pode e deve ser decidida a nível local; a de uma universidade ou um hospital, porventura, a nível regional; uma rede de transportes de longa distância, ou a distribuição de energia só pode ser pensada num plano continental e, a produção de fármacos ou a gestão ambiental só fazem sentido se concebidas numa lógica global.

A questão que se pretende aqui tratar é de que forma, quais os instrumentos a utilizar para a satisfação dessas necessidades colectivas e de que forma eles devem ser geridos para a otimização do bem estar das pessoas e não dos lucros empresariais.

Esse instrumento deve existir como autónomo relativamente à colectividade das pessoas deixa de ser tomado como instrumento e passa a sujeito, com interesses e necessidades próprias, distintas da colectividade? Deve ser-lhe atribuido um carácter de autoridade geral sobre os indivíduos e o seu conjunto? Devem ser as pessoas que trabalham nesse veículo de concretização da satisfação das necessidades colectivas ter poderes, para além daqueles que a população beneficiária lhe confere especificamente para cada um dos seus actos?

Se se trata de serviços continuados, de rotina, como a recolha do lixo ou o fornecimento de água, a sua configuração poderá basear-se nos seguintes contornos:

  • Há um conjunto de trabalhadores que executam profissionalmente essas tarefas, em autogestão e, de acordo com as regras laborais e salariais da comunidade em que se inserem;
  • Essa gestão corrente é efectuada por esses trabalhadores podendo cada indivíduo da comunidade ter acesso, em todo o momento, a toda e qualquer informação que considere pertinente sobre o funcionamento do serviço público prestado;
  • a comunidade elegerá representantes seus, para, por periodo limitado (vg dois anos), acompanhar o desempenho desses serviços;
  • Esses representantes, podem ser substituidos a qualquer momento pela comunidade; terão um número limitado de mandatos seguidos (digamos dois, num total de três em toda a sua vida); auferirão, se a tempo inteiro, o salário que receberiam se estivessem no desempenho das suas funções profissionais e, não ao serviço da comunidade;
  • Esses serviços serão pagos pela comunidade, de forma a garantir a cobertura de custos e uma margem adequada para investimento, não havendo, naturalmente, propriedade ou gestão privadas;
  • No caso de investimentos, as decisões são tomadas pela população envolvida após debate detalhado sobre o tema, podendo esses debates e decisões ser tomadas de forma presencial, tradicional, ou através de fora na internet.
Com estes parâmetros, o exercício das funções públicas é constantemente monitorado pela população e todas as decisões cabem à mesma, directamente ou dos seus representantes eleitos especificamente para cada função concreta. Os serviços colectivos inserem-se na estrutura social e económica da comunidade e não funcionam como locais fechados, com gestão opaca e segurança à porta. A este propósito, sugerimos a audição de “As comissões” de Fausto Bordalo Dias, do album Madrugada dos Trapeiros, 1977 (9)

Daqui resulta a ausência de cabimento para um mandarinato político ou de gestores com poderes susceptíveis de se sobreporem aos da multidão; a extrema dificuldade de amiguismos, desvios de fundos e roubos, como actualmente vai acontecendo, associado à ausência de mordomias garante menores custos e, portanto uma maior racionalidade da parcela dos rendimentos individuais destinados ao funcionamento da res publica.

Esta abordagem para o caso de comunidades relativamente pequenas, levanta de imediato um paralelo com a gestão autárquica em Portugal, cujas características se resumem a:

  • Existência de uma máquina administrativa pesada e opaca, sem qualquer acesso da comunidade às contas públicas quer ex ante quer ex post;
  • Elenco de mandarins eleitos em listas fechadas de partidos, para mandatos generalistas que permitem total arbitrariedade na decisão e na execução das funções; para mais, sem qualquer possibilidade de a população exercer o seu direito de repúdio desse elenco ou de alguns dos seus membros;
  • Afastamento deliberado da comunidade face aos actos autárquicos, quer os mais comuns, quer os mais estruturantes, pese embora a existência de assembleias municipais ou de freguesia, escassamente participadas e onde a intervenção das pessoas não é incentivada; antes pelo contrário, são-lhes incutidas regras de redução da sua intervenção e, claro sem poder de decisão, uma vez que esta cabe exclusivamente a mandarins;
  • O autoritarismo imanente às leis em geral é totalmente assumido pelos mandarins autárquicos e tem como contraponto a submissão da multidão e o seu afastamento da gestão pública;
  • O poder estruturante dos mandarins permite uma enorme capacidade para a prática de actos de má gestão, sem responsabilidades pessoais, apenas eleitorais; e a gestão danosa ou corrupta fica ocultada nos arquivos autárquicos ou, quando sai à rua é amaciada ou branqueada pelas leis gerais da justiça ao serviço da cleptocracia. A forma descuidada como se recorre a empréstimos bancários, a urbanizações duvidosas e corruptas, a gastos sumptuários e recurso a contratos e consultadorias pouco transparentes, são exemplos dessa impunidade;
  • As estruturas administrativas tendem a ser empoladas para satisfazer clientelas partidárias, mafias locais ou clãs familiares quando não vaidades pessoais de imbecis rodeados permanentemente de séquitos, como se de senhores feudais ou neo-morgados se tratassem. Os projectos que se conhecem de promover elencos autárquicos “monocolores” só virão a acentuar o autoritarismo, a separação entre governantes e governados e a facilitar a corrupção e o compadrio.
Para as decisões que envolvem quadros territoriais mais vastos ou populações mais volumosas, o que atrás se apontou como fórmula de abordagem da satisfação das necessidades colectivas e da correspondente decisão é aplicável, na íntegra. Não sendo fácil, nem prático fazer assembleias com dezenas de milhar ou mesmo centenas de milhar de pessoas é, sem dúvida, possível segmentar essas multidões em assembleias mais pequenas onde seja possível a expressão das opiniões individuais e o esclarecimento comum.

Nada impede, nos casos de populações muito numerosas, que essas assembleias elejam representantes, com mandatos específicos para veicular as posições dos seus representados; como não é difícil a prática de fora na internet e votos electrónicos. Se a participação individual é livre e irrestrita e não mediatizada por organismos açambarcadores do poder de decisão como os partidos, a discussão pública, a decisão e a representação tornam-se mais transparentes, participadas, menos submetidas a manipulação, elevam e tornam mais extensiva a participação da multidão. Esta configuração obvia aos enormes custos com a manutenção de políticos profissionais, estruturas partidárias pesadas e tentaculares, órgãos permanentes de “representação” com milhares de agentes, transformados em classe social, em casta, com legiões de auxiliares sob várias designações (secretários, assessores, adjuntos…), como uma nova nobreza.

O estabelecimento de normas democráticas de gestão e decisão política, permite a ausência de profissionais da política com poderes de representação irrestritos, generalistas e irrevogáveis por parte dos representados. Note-se que a representação política como ela é praticada constitui uma excepção ou uma deturpação do instituto da representação; excepto, no âmbito da política institucional, ninguém nomeia um representante, sem o poder de lhe retirar essa categoria e inerentes capacidades delegadas, nem deixa de estatuir em que assuntos o mesmo detém os poderes de representação.

A existência de normas democráticas, a ausência de um corpo profissional e permanente que açambarca os poderes de representação, dificultará a constituição de mafias e a corrupção, desmantela o Estado enquanto órgão de cúpula, acima da multidão, autoritário, possuido por classes ou grupos sociais determinados e muito minoritários. Na sequência, a gestão das necessidades colectivas fica mais barata, mais transparente, democrática e aberta à criatividade da multidão, liberta do espartilho controlador e repressivo dos mandarins. Não existindo esse aparelho, fica drasticamente prejudicado o poder coercivo exercido por aquelas classes ou grupos,  como prejudicada fica a base material para a existência do mandarinato, verdadeiro alter ego do poder económico.

Não é difícil concluir que a luta por uma democracia verdadeira tende a abrir portas para a redução do poder do Estado, em concomitância com a maior educação democrática da multidão e o exercício directo das funções colectivas. Não é difícil de concluir que esse caminho constitui um plano inclinado que conduz à extinção do aparelho do Estado, nascido há vários milénios para assegurar que a esmagadora maioria das pessoas é forçada a sacrificar-se no seu bem-estar e nos seus direitos humanos, para benefício de uma elite de parasitas.

Esse caminho é gradativo e terá de ser percorrido em várias latitudes para que a repressão tenha dificultada o seu objectivo de jugular a pulsão democrática dos povos. E, nessa repressão, estarão todos os que beneficiam da existência do aparelho diferenciador do Estado, quer à direita, por tradição, quer nas esquerdas institucionais que padecem de uma tara estatista incurável.

6 -  O papel das ideologias

A democracia e o seu exercício de forma massiva por parte da multidão, não elimina a existência de ideologias mas, remete para o domínio do lixo da História, aquelas que se pretendem como portadoras da Verdade e portanto atribuem aos seus seguidores prerrogativas de imposição aos outros, tomados por ímpios, infiéis, atrasados ou incivilizados, merecedores de acções evangelizadoras que, em regra, passam pelas capacidades de convencimento da prisão, da tortura, da perseguição, da discriminação.

A tendência das ciências para a sistematização e tipificação da grande variedade das situações reais, gerou um conjunto de ideologias que, durante um longo periodo histórico, mesclavam num único sistema, escatologias, normas e comandos sociais para garantir hierarquias políticas e segmentações entre a multidão. E quando essas normas se mostravam injustas, lesivas ou estupidamente desajustadas da realidade, a sacralidade surgia para que a realidade se enquadrasse no dogma. Na sua maioria, esses sistemas assumiram-se como Verdades reveladas ou “científicas”, excludentes das concorrentes, recusando ainda as mutações sociais e, naturalmente, críticas ou denegações.

Muitas ideologias procuraram autonomizar-se dos destinos revelados pelas religiões mas, naturalmente, incorporaram a cultura em que estavam inseridas, sem prejuizo da evolução e adaptação posteriores; nomeadamente a pretensão da perenidade, de portadores do “fim da História”. E, no bojo desse pretensiosismo, a autoridade e a repressão através do Estado.

Naturalmente que cada pessoa é possuidora de um conjunto de conceitos sobre a vida, sobre a realidade política e económica, bem como de uma paleta de valores e de uma experiência de vida cuja articulação constitui a matriz lógica que utiliza para dialogar com os outros.

Porém, pouco importa a ideologia pessoal de cada um, seja ela mais difusa ou mais próxima do cardápio das ideologias ou, se está mais ou menos conceptualizada na mente de cada indivíduo. Cada pessoa tem mesmo o direito de tentar convencer os outros sobre a bondade do seu pensamento para a felicidade individual ou colectiva, seja aplicável à paróquia onde vive, seja a nível planetário. O problema surge apenas quando alguém ou um grupo pretende utilizar instrumentos materiais ou o exercício do poder para condicionar a liberdade de escolha de terceiros e da expressão livre dessas escolhas.

A utilização do poder de Estado, a possibilidade da utilização do poder coercivo resultante do monopólio da lei e do uso de tribunais e polícias tem sido um elemento essencial para a imposição de ideologias prosélitas. Aliás, qualquer ideologia assumida por um  Estado envolve uma lógica coerciva ou repressiva, de segmentação da multidão entre adeptos e não adeptos, patriotas e não patriotas, cumpridores da “lei” ou agitadores, terroristas…

Inversamente, um Estado adopta sempre uma ideologia, como suporte de uma ordem jurídica, necessária para se colocar acima dos indivíduos, para legitimar o uso da força. A ideologia adoptada pelo poder é sempre excludente daqueles que não estão próximos do poder, uma vez que estes são aqueles cuja missão está definida como a de servirem o poder e os grupos sociais que o constituem.

Nuns casos, essa ideologia reveste-se de conteúdos subreptícios, suaves mas, não sem deixarem de ser impositivos e insinuantes, pois apostam mais na incorporação desses conteúdos na cultura social do que na obrigatoriedade das demonstrações de fidelidade.

Quando um conceito é endogeneizado pela multidão, como natural, verdadeiro, irrecusável e insofismável, como valor, ao poder apenas importa medir até que ponto os indivíduos ou as ideias desviantes são susceptíveis de se tornar subversivas. Estão neste caso as diversas formas de ideologia do poder actualmente mais utilizadas e que dão por designações tão genéricas e vazias, como economia (social) de mercado, democracia representativa, neoliberalismo ou, como preferimos, democracia de mercado.

A crise sistémica de acumulação capitalista que hoje se vive, ao gerar dificuldades não imaginadas pela multidão há poucos anos atrás – desemprego em massa, banalização do despedimento, redução de direitos sociais, quebras salariais e no poder de compra, etc – leva à elevação do espirito crítico face ao actual sistema político, com a inerente contestação e a procura de alternativas. E, em resposta, os poderes nacionais e as esferas globais do poder vão criando excepções ao carácter permissivo da democracia de mercado, afunilando a informação disponível, procurando controlar os movimentos físicos ou das ideias da multidão, manipulando as suas próprias regras de escolhas governativas , impondo uma real fusão das actividades dos agentes das guerras no exterior e no interior, com o reforço acelerado das polícias, quer em armamento, quer nas modalidades de uso da repressão.

Em paralelo, precisam de incorporar na ideologia do poder, o medo irracional, a insegurança, a ameaça permanente a partir de fontes indefinidas, como o “outro”, o terrorismo, o conformismo que se agarra à tara patriótica. Esta, faz cada um sentir-se caloteiro só porque existe um problema de dÍvida pública e a aceitar a acusação capciosa de que “vivemos acima das nossas posses”; e essa incorporação, para gáudio dos patrocinadores do sistema, faz o poder político passar das mãos de um desqualificado Sócrates para um invertebrado Passos. Tudo a par com a glorificação de um sistema “democrático” no qual as escassas diferenças face a uma ditadura, pouco vão além da actual inexistência de uma pide a bater à porta durante a noite.

E, pretendem esconder a presença de grupos sociais e económicos beneficiários, como promotores dessa ideologia, em simbiose com o poder de Estado, em detrimento do resto da população, já não se sabendo onde acaba a acção política de um mandarim e começa a sua actuação como defensor de um interesse económico concreto.

Os nomes dessas ideologias podem ser vários, tendo nas suas designações vocábulos construidos com o sufixo “ismo”; embora nas situações atrás referidas ela seja deliberadamente difusa, pretenda constituir-se como cultura de massas,

Em certos regimes políticos a ideologia é bem marcada, definida com um carácter programático que se pretende emanar do povo, da nação, com um conteúdo bem definido, unificador, tomado como uma verdadeira escatologia laica; e para a realização da qual se exige também a unidade do povo com os seus dirigentes; os pintos sob a tutela protectora das bicadas da galinha. Pode ser a “pancasila”(10) dos indonésios, o “socialismo do século XXI” de Chavez, o marxismo-leninismo da gerontocracia cubana, a ideologia “juche” da dinastia norte-coreana (11), da “democracia florescente em disciplina” da ditadura militar de Myanmar e outras tantas originalidades semânticas cujo ridículo não deve obnubilar a necessidade de enquadramento da legitimidade de grupos usurpadores da democracia.

Curiosamente, à medida que a utilização de fórmulas ideológicas precisas e estreitas vão sendo substituidas por aproximações às democracias de mercado emanadas do Ocidente - com maior subtileza na condução da multidão e da sua pacificação - verifica-se um abastardamento dessas democracias de mercado na Europa, com a paulatina introdução de elementos autoritários e de empobrecimento colectivo para salvação do sistema bancário e da sua ordem monetária. Apesar dessa degradação, os missionários da NATO empenham-se em levar a boa nova da democracia de mercado sob a forma de drones e bombas aos povos incompreensivelmente pouco agradecidos; em paralelo, os mandarins ocidentais apresentam, por aí, a superioridade do seu degradado modelo.

Será que se verifica uma aproximação entre os regimes de vocação totalitária com máscaras democráticas (China, Rússia e monarquias árabes, por exemplo) e regimes formalmente democráticos em plena instalação de fórmulas repressivas e de desarmamento do exercício de direitos individuais e políticos (EUA e UE) ? Acreditamos que sim.

Para o capitalismo, a utilização de uma norma de gestão pública, do ordenamento político e económico não é um fim em si mas, um instrumento para a prossecução dos seus interesses; a escolha a que se procede é apenas a mais conveniente para maximizar a acumulação capitalista, a escolha que mais pacifica a multidão, aquela que mais facilita a exploração do trabalho alheio. E a ideologia utilizada insere-se nesse utilitarismo, uma cortina de fumo, nada mais. Pelo contrário, para a multidão, a democracia é condição necessária para a sua realização como colectividade humana, na escala global como na escala local, para a maximização do bem-estar colectivo e individual.

Então qual deverá ser a ideologia do poder se a utilização dos vários “ismos”, de pesado conteúdo programático não tem apresentado resultados, tal como se vai esboroando a imagem de gestão eficiente e democrática propagandeada pelos defensores da democracia de mercado?

Assiste-se, por um lado, à existência de quadros políticos de partidos únicos de pretensos iluminados, divididos em gangs dissonantes e fulanizados que disputam o poder, dispensando, por omnisciência, a opinião da multidão e a democracia; e por outro, apresentam-se os regimes de democracia de mercado com partidos quase iguais, alternantes através de romarias eleitorais que não passam de actos de legitimação, perpetuação do regime. A dispensa formal ou encapotada da democracia, estabelece diferenças tão essenciais num comum modelo de domínio político em que alguns vivem  da exploração do trabalho da grande maioria?

Os regimes de partido único desenvolvem aparelhos de burocratas corruptos mantidos por forças repressivas de mão pesada; os regimes onde vigora uma aparente imagem de tolerância e igualitarismo, tornaram-se ditaduras de funcionários nomeados pelo poder financeiro, corruptos, autoritários, apostados na separação clara entre senhores e servos. Alguma das fórmulas apontadas é uma real alternativa para a multidão?

Na nossa opinião, a gestão colectiva não precisa de ideologia alguma mas, tão somente tratar das questões concretas que constituem as necessidades da multidão e de materializar a satisfação das mesmas. A resolução das necessidades colectivas não precisa de ser capeada por uma ideologia e, menos ainda, da existência de intermediários profissionais que, com ar pungente, se apresentam como sacrificados sacerdotes da satisfação dos interesses populares.

Não é difícil aceitar um elenco de necessidades humanas, transversais, independentes de “raças”, conceitos religiosos, línguas, lastro histórico,  culturas. Mesmo que a capacidade de comunicação seja dificultada por diferenças marcadas entre essas culturas distintas, será difícil não encontrar uma margem enorme de similitude na essência de objectivos de vida e das ambições de bem-estar, entre um somali e um chileno? Entre um indiano e um inuit? Um chinês e um norueguês?

Todos os seres humanos estão em sintonia quanto à esmagadora maioria das necessidades para a sua existência; são as necessidades da “carne” como designadas por Spinoza e mais algumas que, entretanto, surgiram devido aos malefícios que o capitalismo tem promovido, sensivelmente, nos últimos dois séculos.

  • Algum ser humano prescinde de estar satisfatoriamente alimentado, sobretudo sabendo-se que as capacidades de o planeta o permitir, na base das técnicas actuais, vão muito para além dos 7000 M de humanos que existem?
  • Algum ser humano considera a sua saúde e a dos seus como elemento dispiciendo na sua existência, sabendo-se que os cuidados higiénicos e os fármacos disponíveis permitem alcançar uma longevidade que se vai aproximando da centena de anos?
  • A existência de um habitat saudável que abrigue cada um da chuva ou do frio, do sol ou do calor e que permita a sua privacidade é um pormenor na nossa vida?
  • O acesso à educação e à cultura, ao usufruto da arte e do desporto, para mais no contexto actual de facilidade (imaterial) de troca não será precisamente um veículo de avanço civilizacional e, ao mesmo tempo, de enriquecimento ético e estético de cada um?
  • O trabalho para todos e um rendimento justo pelo seu exercício, desempenhado com economia de esforço e sem danos para a saúde, que permita sem sobressaltos materiais, sem carências, terá de ser considerado um bem escasso quando são inventariáveis inexplicáveis e e extensíssimas massas humanas com escandalosas necessidades ao nível alimentar, da saúde, da educação, da habitação, por satisfazer? Será digna a existência de um aviltante “mercado de trabalho” como existe a lei da oferta e da procura da batata frita?
  • A satisfação das necessidades humanas exige a destruição do meio ambiente que conspurca e torna insalubre parte crescente do planeta? As alterações climáticas susceptíves de invialbilizar a vida na Terra são objectivo aceitável para alguém cam sanidade mental?
  • A apologia da violência e da guerra, na sua essência, é motivada pelo espírito de apropriação privada das riquezas materiais e da capacidade alheia de trabalho. Quem sofre as destruições daí resultantes sente nisso algum benefício? E os agentes agressores estão sempre seguros de que vão escapar de serem, eles proprios, vítimas da reação dos agredidos?
  • E, para terminar este elenco, algo de mais intrinsecamente humano. Algum ser humano prescinde ou considera despicienda a faculdade de amar e ser amado e dispensa a existência das condições materiais e subjectivas para esses objectivos?
É a resolução destas questões comuns que constitui ou deve constituir a gestão colectiva, com base em opções decididas democraticamente entre todos, com um espírito de cooperação e solidariedade e não de concorrência pela apropriação de bens e direitos acima das suas necessidades individuais, com a utilização desse excesso para alicerçar poder e domínio sobre os que, com essa desigual distribuição, ficarão desapossados ou carenciados.

Que ideologia é necessária colectivamente para a solução daquelas questões? Todas se definem como possuidoras de uma chave para a resolução dos problemas e todas exigem o poder de Estado, o monopólio ou a preponderância coerciva do exercício das escolhas aos seus prosélitos, para o bem estar da multidão; em suma, todas assumem a segmentação da multidão entre um conjunto de entes capazes de utilizar aquela chave (os senhores) e de outro conjunto, em regra muito maioritário (os servos), de indivíduos que se devem considerar como insusceptíves de compreender as coisas, a forma de resolver os seus problemas colectivos e que, portanto devem ceder essa prerrogativa aos iluminados  por essa ideologia. Todas aceitam como base, a perpetuidade de sistemas de desigualdade política e económica.

Por outro lado, admitir-se que haverá uma ideologia que abarque, que possa representar, na sua plenitude, as concepções existentes na multidão, caracterizada precisamente, pela sua imensa heterogeneidade, é irrealista.
A gestão dos interesses comuns da multidão só pode realizar-se através da discussão colectiva de problemas concretos e decisão também colectiva sobre a forma de os resolver.

Fora do exposto, é a interferência de uns quantos na vida da maioria, a apropriação privada por um ente estranho e colocado acima da vida de cada um – o Estado – da análise sobre o comum e do poder de decisão sobre o mesmo. Para a perpetuidade dessa apropriação é necessária a criação ou adopção de uma ideologia que a legitime; e que, de permeio, trate de legitimar o poder coercivo inerente ao Estado para este promover o bem comum, do alto do seu critério de ente separado do colectivo dos indivíduos. Dito de outro modo, criado o monstro, ele sustenta-se fartamente das vítimas que vai reproduzindo; dispensamos o monstro e a sua imagem no espelho.

Tendo no bolso essa legitimação incutida pela ideologia, por infestação das mentes ou por coerção, os que se apropriam desse poder de Estado, selam uma unidade de actuação assente na fixação de privilégios materiais, como compensação “legítima” da sua excelsa missão, dos sacrifícos (?) a que se submetem…: transformam-se em casta ou classe. Tranformando-se em grupo separado da multidão, com interesses próprios e distintos dos indivíduos, escondem-se atrás de uma ideologia de gestão do bem comum e entregam-se à evangelização da multidão, de modo adequado a que esta aceite o esbulho da democracia, o desvio de recursos para a boa vida de uns senhores e para o pagamento dos pretorianos que asseguram pela força o seu predomínio. Esse roubo permite ainda pagar a existência de um aparelho mediático que visa a promoção do sistema corrupto e cleptocrático, como destino inelutável de gestão pública. A ideologia é uma necessidade para quem se apropria do Estado e do seu poder coercivo para se impor à vontade da multidão, para a desapossar do seu direito de, autonomamente, decidir sobre a sua vida colectiva, sem intermediários, sem mandarins.

Voltando à questão da ideologia. Para o entendimento humano na satisfação das necessidades colectivas como espécie, com respeito para com a necessária e imensa variedade de seres vivos que constituem a equilibram a vida na Terra, que ideologia é necessária?

A ideologia como revestimento do Estado é um instrumento de apropriação privada da decisão popular, serve para justificar a existência daquele e torna obrigatória a defesa da existência de agrupamentos (partidos) para o concurso à apropriação do aparelho de Estado. Por isso, todos os partidos, defendem a tomada do poder de Estado, para o gerir e jamais para o desmembrar, destruir, como forma de devolver o poder ao povo, à multidão; e, quando o fazem (ou faziam, pois já não se atrevem a tal, dados os precedentes históricos) é, como instrumento de publicidade enganosa.

7 - O partido

Viu-se atrás como os partidos são instrumentos organizativos concorrentes ao domínio do Estado, da sua impar coercividade, do seu direito de aplicar a punção fiscal de modo generalista, irrestrito e unilateral, sem contrapartidas claras e mensuráveis para os contribuintes. A gestão do Estado não pode deixar de ser opaca, fora do escrutínio da multidão para que esta se mantenha afastada do conhecimento concreto dos negócios, dos contratos, da redistribuição que é feita do dinheiro dos impostos, dos compromissos financeiros assumidos.

A transparência dos actos públicos e a possibilidade do seu escrutínio por parte da multidão constitui uma sabotagem ao poder dos mandarins, a retirada da sua capacidade de dispor arbitráriamente dos dinheiros públicos. Essa transparência seria a morte do mandarinato e dos partidos comensais habituais à mesa do orçamento. A necessidade dessa transparência evidência que a multidão terá de assumir nas suas mãos a gestão dos problemas colectivos, autonomamente, sem intermediários instituidos em casta ou classe; enquanto isso não acontecer a carga fiscal cresce, o rendimento disponível reduz-se e o dinheiro da punção fiscal desaparece sem que seja facilmente detectado o seu rasto.

Um exemplo concreto prende-se com uma tão mediática quanto vazia campanha por uma “auditoria cidadã” à dívida, patrocinada pela CGTP/BE e pequenos grupos satélites. Para além de questões de ordem técnica e operacional que são desprezadas e que inviabilizam a concretização do objectivo proposto – tornando-o portanto uma mera operação de publicidade enganosa – convém que se interprete essa questão no plano político que aqui se vem colocando. As únicas auditorias possíveis são as internas, promovidas dentro do próprio sistema cleptocrático e executadas pelos consultores habituais cuja relação promíscua com o aparelho do Estado é conhecida, por órgãos do próprio Estado (Tribunal de Contas, Inspecção Geral de Finanças e outras inspecções), no final, dependentes da assinatura de um ministro, ou ainda se ordenadas pela “troika”, no âmbito dos sagrados e superiores interesses do capital financeiro global.

Uma auditoria à dívida existente numa certa data, a ser efectuada por cidadãos encontra todas as resistências do mandarinato com funções de governação, como de toda a burocracia estatal envolvida e, portanto, só terá viabilidade num contexto de ruptura política ou institucional. Por outro lado, a formação de dívida insere-se no contexto do funcionamento clássico e habitual do Estado e da relação promíscua que o mesmo tem com o capital em geral, com o capital financeiro e as empresas de regime em particular. E, portanto uma auditoria limitada à dívida deixaria incólume toda a máquina da promiscuidade que gera a dívida e, sem dúvida iria exigir auditorias regulares ad aeternum.

A questão essencial é que por razões imanentes à sua própria essência, ao partidos, sendo institucionais, inseridos e beneficiários do regime cleptocrático, no governo ou na oposição, são defensores arreigados do Estado, do seu aparelho e do seu funcionamento de lubrificação do capital privado e do mandarinato. E por isso não falam sequer (nem podem falar) numa auditoria ao funcionamento do Estado português que envolveria todo o sistema de financiamento público de empresas privados, de contratos e actos administrativos que favorecem gangs privados, partidários e familiares, nas suas ligações com o Estado, nas sua versão nacional, regional e autárquica.

Os partidos políticos, como qualquer instituição estão inseridos na marcha da História, desde que foram inventados no século XIX; isto é são produtos de conjunturas políticas e sociais específicas e submetidos, na sua vida, às vicissitudes resultantes da passagem do tempo sobre as estruturas políticas económicas e sociais. Assim, uns desaparecem apenas ficando o registo da sua efémera existência nos livros especializados, como todos aqueles que foram criados no seguimento do 25 de Abril em Portugal e que se extinguiram, sem acção de relevo passados poucos meses; outros têm uma vida mais prolongada, um papel histórico de relevo mas, extinguiram-se por inaptação às mudanças do tempo, como a Democracia Cristã italiana ou o PCUS.

A passagem do tempo naqueles que vão conseguindo manter a sua existência obriga, naturalmente, a uma cuidada atenção às mudanças, por razões de sobrevivência. Entre os partidos que sempre foram de direita essa adequação faz-se de modo regular e sem grandes atropelos face aos seus propósitos e práticas iniciais, como intérpretes de interesses de classes e grupos sociais específicos e poderosos, como é o caso dos “tories ingleses” ou da CDU alemã.

Porém, naqueles que nasceram como de esquerda, revolucionários até, a evolução é bem mais curiosa. Suponha-se o caso dos partidos nascidos com programas de transformação radical, potencialmente intérpretes dos interesses de classes ou grupos de deserdados e marginalizados na paleta social. Para chegarem ao poder, essa chegada pode revestir duas formas: por participação em plataformas de vários partidos ou por tomada revolucionária do poder.

A aposta no jogo eleitoral, no circo parlamentar, na gestão pública, gera uma estrutura de políticos profissionais e coortes de pessoal auxiliar que rapidamente se assenhoreiam dos destinos da instituição, manipulando ou deturpando as esperanças dos seus apoiantes. Os privilégios normalmente atribuidos aos mandarins são, em regra apelativos para a manutenção de uma estrutura partidária, já não baseada na transformação do sistema político, na sua subversão mas, na conservação desses privilégios e a luta política passa, objectivamente, pela sua extensão, em termos monetários, susceptível de ampliar a máquina burocrática.

É sabido que quanto maior é a presença no aparelho estatal maior é a influência no mesmo, quer pelas maiores possibilidades de reprodução de agentes partidários em lugares nesse aparelho, quer pelas acrescidas possibilidades de protagonismo no tráfico de influências que, em regra não se desligam muito das práticas corruptas. Por outro lado, o acesso aos fundos públicos que financiam os partidos está legal e criteriosamente garantido, com actualizações generosas; o capitalismo há muito concluiu que a salvaguarda dos seus interesses passa, pela existência de um mandarinato pacificado, satisfeito, colaborante e disposto, avidamente a novos rendimentos e cargos, no aparelho do Estado ou em empresas privadas. Finalmente, como atrás se referiu, o capitalismo, hoje, não pretende mandarins competentes mas obedientes; e por isso, a paga não precisa ser particularmente elevada, ninguém estranhando o arredondamento de rendimentos com a recepção de dinheiro por tráfego de influências ou corrupção pura, nem o habitual estado de dormência do aparelho judicial para a sua proteção e branqueamento.

Os estratos intermédios e baixos dos partidos, almejando melhorias nas suas vidas, a ascensão na hierarquia partidária e o seu quinhão de lugares no aparelho estatal, inserem-se perfeitamente nessa hierarquia. As coisas podem gerar instabilidade interna quando, como produto de perdas eleitorais, o número de cargos e prebendas se reduz, causando re-hierarquização interna entre os vários candidatos ao mandarinato. E quanto maior é o número de mandarins dos vários escalões, maior é o afunilamento na dependência do Estado e do tráfico de influências, maior é o afastamento dos interesses da massa eleitoral.

Esse afastamento associado às necessidades de captação de eleitorado que permita o statu quo, torna os programas partidários, explícitos ou implícitos (quando não passam de elencos simplistas de medidas mediáticas, sem coerência interna), vagos e inter-classistas, virados para serem aceites por qualquer um que possa ser sensível ao marketing e dar o seu apoio ao partido.

Nessa situação, os programas eleitorais dos partidos acabam por se tornar muito semelhantes, de apoio ao sistema, diferenciados por questões conjunturais menores, meramente quantitativas ou sectoriais. E, na sofreguidão pelo voto, as pessoas deixam de ser consideradas como objectos da governação mas, simples instrumentos de ajuste interno entre os vários partidos concorrentes aos subsídios públicos e aos poderes de Estado. A pertença a grupos sociais distintos, mesmo com interesses antagónicos relativamente ao sistema cleptocrático, é apenas objecto de análise sociológica para efeitos de campanhas de marketing, para a captação do voto e esquecida logo após o depósito do boletim de voto na urna (curioso nome que parece adequado à morte da democracia, típico dos escrutínios eleitorais nas democracias de mercado).

As pessoas participam apenas numa encenação de atribuição de representação nos seus eleitos; são actores, marionetas e passam à designação esclarecedora da sua massificação - eleitorado. Na democracia de mercado, do ponto de vista económico, não há pessoas mas, consumidores e do ponto de vista político, continua a não haver pessoas, apenas eleitores.

A estagnação ou a putrefação do sistema político em Portugal é bastante nítida no gráfico seguinte, onde verdadeiramente, o único elemento dinâmico nas últimas décadas é o do conjunto daqueles que não se mostram apoiantes do sistema partidário. Neste gráfico considera-se direita tradicional, o PS/PSD e os pequenos grupos com ideários próximos, direita xenófoba, o CDS/PP, o PNR e afins e esquerda, o PC, o BE (ou os grupos que lhe deram origem) e os grupos mais pequenos que vêm concorrendo. Note-se que a estagnação dos votos em partidos e o crescimento daqueles que não suportam o sistema partidário são realidades intimamente ligadas à degradação das condições de vida e das garantias democráticas expostas na lei fundamental que o próprio regime pariu.


O sistema partidário funciona no sentido da perpetuação conjunta e solidária dos seus participantes fomentando a inevitabilidade da sua existência, a  ausência de alternativas que ultrapassem as combinações dos seus membros, embora, de facto, tudo aponte para a centragem, com um rotativismo propiciador de ilusões de mudança, de um rotativismo que assegure a “estabilidade”.  Claro que nessa estabilidade não se engloba a da multidão, a manutenção ou o desenvolvimento dos seus direitos, a melhoria das suas condições de vida; por estabilidade. entende-se apenas aquela que agrada aos “investidores” e aos mercados. a estabilidade do elenco governativo que garanta a fluidez da punção fiscal a favor dos capitalistas.

De facto, sempre que há alteração nos gangs no poder, há sempre modificação nos grupos agilizadores e beneficiários da corrupção, das cadeias de canalização e facilitação dos interesses mafiosos e de disputa dos dinheiros e actos da máquina governativa. Daí a ênfase colocada por mandarins e “empresários” na estabilidade política.

Essa é a instabilidade que lhes não interessa mas que rapidamente se recompõe, com o auxílio da transição de assessores e adjuntos de uma para outra equipa governativa, com a mudança de emblema de altos funcionários, com os solícitos serviços prestados por escritórios de advogados e outros agentes de “lobbying”, de aproximação, de apresentação dos novos mandarins de serviço aos interessados nos seus serviços.

Não há instituições eternas e a evolução social e tecnológica, nomeadamente, permite que se coloquem alternativas à quase monopolização dos partidos nas decisões políticas. Por um lado, os organismos que desempenham funções de satisfação de necessidades colectivas podem funcionar em autogestão, com as decisões tomadas pelo colectivo dos seus trabalhadores, sob acompanhamento de órgãos políticos baseados na eleição directa de pessoas, nos termos acima descritos (5 – Qual a função do Estado?). Desde já, pode ser expandida a intervenção e a decisão colectiva em várias instâncias, sobretudo na área autárquica, anulando-se, desde logo, a margem de compadrios e corrupção que atravessa actualmente a gestão autárquica. Desde já pode ser agilizada a utilização de referendos por iniciativa popular, sem a interferência do mandarinato na sua viabilização e execução que, vergonhosamente, só foi utilizado por três vezes, em quase quatro décadas e ignorado em situações tão estruturantes como a adesão à UE, a adopção dos tratados de Maastricht e Lisboa,  na introdução do euro, para a aceitação ou não do programa da “troika”. É que mesmo ocupando a quase totalidade do espaço mediático e da informação contida nos órgãos públicos, o sistema partidário pretende manter-se com a tutela absoluta do debate e da decisão política, relegando para o papel de espectadores a esmagadora maioria da população.

É desejável alterar o sistema político no sentido de ser viável, por iniciativa popular afastar responsáveis políticos eleitos, sejam eles autarcas, deputados, ministros, primeiros-ministros ou o presidente da república.

É imperioso estabelecer fórmulas efectivas de limitação do número de mandatos dos responsáveis políticos, ou de anos de exercício, bem como de responsabilização e criminalização dos responsáveis por actos danosos ou corruptos no exercício de funções públicas.

8 - Como construir uma alternativa?

Vive-se um estado de deliquescência da vida política, com pouco prestígio das instituições políticas e dos seus membros, em associação ao papel fulcral que vêm desempenhando no processo de empobrecimento colectivo a que se assiste (por acção ou omissão) e na evidência de um futuro de muitos anos de recessão e dificuldades a que só escapam os ricos. Nesse contexto, é imperioso construir alternativas.

A construção de alternativas é, mesmo condição de sobrevivência para a vida de muitos milhões de residentes em Portugal, para aqueles que não podem sequer emigrar, como sugeriu o biltre Mestre e o seu chefe Relvas.

Nenhuma alternativa pode ser construida a partir do sistema partidário, incapaz de contrariar a satisfação do capital internacional, com base na salvação do capital financeiro português ou da cupidez do empresariato mais incapaz da Europa. Também não é de esperar que do exterior surjam mecenas ou, agentes libertadores que, por espírito de missão ou altruísmo se venham substituir à inércia dos portugueses na realização das transformações necessárias; ou que venha do exterior uma “troika” solidária com as dificuldades da multidão.

Qualquer alternativa terá de sair da auto-organização de todos, tanto quanto possível, em consonância e articulação com os outros povos europeus, mormente dos povos de Espanha, por razões de similitude de problemas, de contiguidade geográfica e proximidade cultural. Não se considera viável ou mesmo desejável qualquer saída nacionalista do fundo do poço.

Qualquer alternativa a construir poderá ter de passar por diversas fases:

a) Indignação

Esta é a fase em que se encontra, ainda, a maioria da população, incomodada, sofredora, consciente de que a situação só se pode agravar; e que vai, contudo, aceitando a segmentação a que, claramente, o poder procede. Essa partição separa, por um lado, os pagadores de todos os sacrifícios – trabalhadores, desempregados, reformados, jovens, idosos e pobres em geral – e por outro, os isentos de contributos para o minorar das dificuldades da esmagadora maioria – os grandes empresários, os rentistas, os banqueiros, os especuladores, os ricos que, na propaganda do governo, são definidos como os “investidores”; embora se saiba que são mais exportadores de capital para “offshores” do que criadores de riqueza e empregos.

Esta indignação é contudo, individualizada, isolada, descontextualizada de qualquer acção consciente de protesto; revela revolta mas, também pode mostrar conformismo, resignação, atitudes nacionalistas facilmente enquadráveis pelo sistema, mormente pela direita.

b) – Protesto

Pretende-se com esta designação incluir qualquer acção espontânea ou não, que envolva um grupo de pessoas que se encontram numa situação susceptível de gerar reclamação pública e visível, capaz de gerar a adesão ou a atenção de outras pessoas. A sua função poderá ser a do incentivo a pessoas que, num estado de indignação, se sintam capazes de se unir a essas acções de protesto, que possam sair de uma situação de isolamento e portanto, sentir que as suas queixas, as suas dificuldades são comuns, desinibindo-se para manifestar publicamente o seu desagrado.

São acções que, quando organizadas, sirvam de incentivo pelo exemplo, chamada de atenção como flash mobs, pequenos desfiles com distribuição de panfletos ou cartazes com frases de protesto. Podem realizar-se nas filas para a compra de passes dos transportes, nos centros de saúde por ausência de médicos, junto de centros de (des)emprego, etc. Podem revestir também a forma de pichagens, colocação de cartazes com frases anti-sistémicas.

c) – Mobilização

Consiste na sucessão de manifestações junto de instituições do poder e das sedes dos partidos governamentais, de desfiles onde haja um número mínimo de pessoas; concentrações locais e nos bairros, para discussão da situação e das dificuldades existentes com a construção de alternativas para as superar. Essa dispersão visa aumentar a visibilidade dos protestos, para além da cobertura pouco imparcial das televisões e, incentivar as pessoas a participar sem terem de se deslocar aos locais e dias rituais das manifestações institucionais. Por outro lado, a sua dispersão provocará dificuldades de acompanhamento por parte do aparelho repressivo, apesar das novas tácticas criativas de infiltração e actuação provocatória em massa, orientada para grandes manifestações.

Convém, porém, não confiar na lógica piedosa de que a polícia também está a ser sacrificada com os cortes e, portanto, menos motivada para provocar, punir e agredir activistas e manifestantes. A polícia é uma organização profundamente hierarquizada e os seus corpos e membros vocacionados para a repressão violenta são submetidos a uma forte pressão para a agressão fácil e cobarde sobre gente desarmada e indefesa. Para mais, a nivel governamental, encontra incentivos e cobertura para todos os desmandos.

Os muitos grupos nas redes sociais são um instrumento fundamental para a difusão dos eventos, para a troca de experiências e de propostas de alternativas. Os SMS e o email são canais que deverão estar sempre disponíveis e em uso, porquanto em caso de desespero, o poder pode intervir junto das operadoras de telecomunicações (que por coincidência são empresas do regime) e promover cortes na disponibilidade de alguns dos meios electrónicos de comunicação.

A partir desta fase da mobilização torna-se imperiosa a execução de lógicas de crescente coordenação local/regional preparativas de passos mais avançados na contestação do sistema. A acompanhar essa contestação deverão ser criadas listagens de reivindicações e de fórmulas de exercício da democracia directa que não passem por instituições do poder, nem pela integração em lógicas partidárias ou sindicais.

É nesta fase de mobilização que poderão surgir problemas com os elementos mais sectários da “esquerda” institucional, mormente dos seus grupos trotsko-estalinistas sempre ansiosos de protagonismo e controlo partidário dos movimentos populares. Essas tentativas de controlo devem ser denunciadas e combatidas como equivalentes a provocações policiais; porém, a atenção a este perigo não deverá significar o repúdio liminar de militantes partidários só por esta razão, uma vez que na base, muitos desses militantes são pessoas comuns em dificuldades como a população em geral.

d) Desobediência

Esta fase poderá materializar-se na geração de dificuldades ao funcionamento normal de locais como agências bancárias, repartições de finanças, centros de (des)emprego, centros de saúde, concentrações de transportes, cortes na circulação nas estradas, por exemplo, com marchas lentas, call centers e empresas de trabalho temporário, através de acções temporárias de ocupação por grupos autónomos de activistas que divulgarão propostas alternativas de organização social.

Estas acções deverão ser realizadas em paralelo com a realização diversificada de manifestações e concentrações de protesto e construção de propostas de alternativas.

A desobediência civil está na ordem do dia e tornou-se trivial a defesa de acções com esse cariz, como as efectuadas por Boaventura Sousa Santos (12) ou pelo padre Mário da Lixa (13). Acrescenta-se aqui um manual de desobediência civil e de fazer face à repressão policial (14)

e) Revolta

Pode configurar-se como uma movimentação duradoura e generalizada da multidão para o cerco e ocupação das principais instituições do poder de Estado até à demissão dos mandarins e encerramento das sedes partidos governamentais.

Em paralelo proceder-se-á ao desenvolvimento de uma sucessão de assembleias populares locais, regionais e nacional para o desenho da futura organização política, na base da democracia directa em que os representantes eleitos delas saídos são portadores de mandatos precisos, que podem ser retirados em assembleias posteriores. Tendo em conta experiências recentes em países árabes há que promover a não colocação de mandarins arrependidos e reciclados como democratas de cepa, prontos a utilizar as suas experiências e competências de gestão. As transformações sociais radicais são férteis no surgimento de oportunistas dispostos a fazer o papel de novas moscas à procura da mesma merda.

Como é evidente, estas ideias de faseamento constituem um mero exercício exemplificativo, sabendo-se que a criatividade da multidão saberá encontrar novas fórmulas de se manifestar e organizar, diante dos desafios criados pelas circunstâncias.

Notas:


(2)    http://www.slideshare.net/durgarrai/esta-esquerda-a-tranquilidade-da-direita  ou neste blog

(3)    Mário Monti foi, previamente, nomeado senador vitalício, com uma pensão de € 30000 mensais, cuja comparação com o projecto de despedimento de 300000 funcionários públicos italianos e o aumento da idade da reforma é inevitável


(5)    http://www.scribd.com/doc/5571733/O-novo-fascismo-que-esta-em-marcha   ou neste blog


(7)     O novo valor do salário mínimo é um logro  http://esquerda_desalinhada.blogs.sapo.pt/3567.html    ou neste blog

(8)     Uma questão que os opositores ao sistema cleptocrático devem ter em consideração é a intromissão desviante da “esquerda”, nomeadamente através dos vários grupos trotsko-estalinistas. Primeiro, porque a capacidade política ou as competências técnicas dos seus membros deixam muito a desejar e raramente ultrapassam, por ignorância ou seguidismo às suas matrizes ideológicas, o que é defendido pela esquerda institucional. Essa ignorância gera, como defesa, um forte sectarismo e este, porque fomenta o fechamento ideológico, alicerça a ignorância, numa influência recíproca.

Depois, porque consistindo de pequenas seitas organizadas, dentro do BE (PSR ou Ruptura/FER), procuram angariar novos membros, com o seu radicalismo ridículo, decalcado de outras eras e das obras escolhidas dos seus santos milagreiros. Essa fobia pelo controlo, arrasta, perdas para o desenvolvimento dos movimentos sociais, que se pretendem plurais e livres de tutelas políticas.

Em terceiro lugar e decorrendo do ponto anterior, procuram apresentar (em acerba concorrência) o controlo dos grupos de contestação anti-sistémica como trunfos na política interna dos seus partidos ou para ganharem relevo (ou emprego) junto da CGTP (M12M ou Precários Inflexíveis, sigla que encobre, de facto, os trotskistas do PSR). Estes e outros, todos com uma forte componente de um activismo que não ultrapassa a tarefa prática, com as suas atitudes sectárias e a preocupação do controlo, provocam danos nos grupos em que se infiltram que decerto, poupam recursos ao SIS. Em regra, o seu activismo cinge-se à manifestação, ao panfleto… panfletário, à sua distribuição; tudo, sempre sem estratégia autónoma ou, como réplica da esquerda institucional e dos seus caciques.

(9)  http://www.songzilla.co.uk/search.php?q=As+Comiss%C3%B5es&t=title

(10)  Pancasila ou os “Cinco Princípios” constituem a base fundadora da Indonésia. Consistem em: crença num e um só Deus, uma Humanidade justa e civilizada, a unidade da Indonésia, uma democracia conduzida pela sabedoria interior saída da unanimidade decorrente das deliberações dos representantes e, justiça social para todo o povo indonésio

(11)  A ideologia juche engloba a defesa da independência nacional, a colectivização da indústria e da agricultura, o culto de personalidade, a militarização da política (songun), o voluntarismo, o nacionalismo e defesa da etnia e respeito pela cultura tradicional. Aspecto caricato é o calendário se iniciar no ano de 1912, aniversário de Kim Il-Sung



(14)   http://www.slideshare.net/durgarrai/pequeno-manual-do-manifestante-em-portugal   ou neste blog

 dezembro 2011
 - - - - - -
Este e outros textos em:





Sem comentários:

Enviar um comentário