A auditoria cidadã foi formalmente apresentada numa pomposa Convenção nos dias 16 e 17 de Dezembro, e foram apresentados os nomes que pertencem à Comissão da Auditoria, muitos deles bastante mediáticos. Há no entanto algumas questões que é premente colocar pois parece não ter havido o debate necessário sobre a importante opção estratégica de direccionar a contestação para uma iniciativa deste tipo, que irá certamente ocupar uma boa parte dos esforços e recursos do protesto nos próximos tempos. O mínimo denominador comum é o de que a auditoria mal não fará, mas pode não ser bem assim. Vejamos então algumas dessas questões que é necessário ponderar:
Questões de ordem política
1. Trata-se de uma iniciativa dita “unitária”, mas onde é evidente o domínio da ala esquerda da Assembleia da República (AR), PCP/CGTP e BE;
2. Foram excluídas pessoas que associam a auditoria a uma prévia defesa do não pagamento da dívida. Desta forma, replica-se a habitual fórmula de não conceberem estar em iniciativas em pé de igualdade com outrem, iniciativas que não controlem, mostrando a habitual aversão à diversidade política e ideológica (mesmo quando essas iniciativas são apresentadas publicamente como sendo “unitárias”);
3. Estão presentes na Comissão da Auditoria pelo menos duas figuras do PS, partido com credenciais firmadas na manutenção da situação, e do qual não consta que tivessem saído. Qual a razão para lá estarem? São um chamariz para o eleitorado dessa área política, à qual interessa fazer agora todo o tipo de oposição ao governo?
4. Olhando para a lista dos membros da Comissão parece ter havido uma distribuição criteriosa dos lugares, com quotas por peso relativo de cada força política, o que se distancia da pretensão de ser esta uma iniciativa cidadã e certamente não abona a favor da credibilidade do evento;
5. É preocupante pensar o que acontecerá no caso da auditoria não ir para a frente, ou de não obter os resultados esperados, o que pode acontecer por um sem número de razões, algumas delas desenvolvidas nos pontos abaixo. Se neste momento se argumenta que é preciso uma auditoria para sabermos o que temos e o que não temos de pagar, com um falhanço da auditoria não perderão os seus adeptos grande parte da legitimidade de contestar a dívida? O que irão fazer? Continuar a reclamar a renegociação? Que alternativas têm?
6. A renegociação irá acontecer, forçosamente, desde há muito que sabemos da sua inevitabilidade. O problema é que em breve não será uma bandeira apenas da ala esquerda da AR, mas ser-lhes-á útil para reclamarem uma vitória e obter dividendos partidários. Faz lembrar os feiticeiros que clamam por chuva para depois dizerem que os deuses foram sensíveis aos seus esforços quando começa a chover;
Questões de ordem técnica
1. Para fazer uma auditoria às contas públicas é preciso um acesso ao detalhe dos dossiers, o que só é possível em duas situações:
1.1. Quando é um novo poder que quer saber o que foi feito pelos seus antecessores e cria uma comissão de auditoria, como Rafael Correa fez no Equador, contrariando os burocratas e corruptos instalados na máquina estatal herdada;
1.2. Quando há uma forte mobilização popular que a exige;
Nem um caso, nem o outro, estão à vista em Portugal. Passos Coelho, antes das eleições aludiu a uma auditoria das contas públicas de Sócrates mas ter-se-á esquecido, após conversações com Angela Merkel;
2. Admitindo boa vontade no governo Passos, serão disponibilizadas coisas que, por exemplo, comprometam a gestão Sócrates e não prejudiquem "interesses" especiais - conjunção nada fácil de encontrar - ou coisas mais ou menos irrelevantes;
3. Por outro lado, a máquina do Estado e as contas estão num verdadeiro caos, sendo poucas as instituições públicas com uma contabilidade transparente e escorreita; e, portanto, mesmo com boa vontade, Passos Coelho não terá muita coisa que possa dar. O caos em que se encontram os registos financeiros e dos instrumentos jurídicos de suporte, porém, não resulta apenas de incúria e desorganização ou de incompetência dos sucessivos agentes partidários que vêm gerindo as instituições públicas. Esse caos é INTENCIONAL e um instrumento essencial para que o saque dos dinheiros públicos passe incólume e de quase impossível desmascaramento. Há uma relação íntima entre o Estado e interesses vários – empresas de regime, sistema bancário e financeiro em geral, máfias partidárias e outras, para além das cunhas vulgares a favor dos habituais empresários - isto é condição da sobrevivência do capitalismo em geral e do português, em particular;
4. Quais as competências técnicas para executar ou montar um processo de auditoria, da parte dos membros que constituem a sua Comissão?
4.1. Na Comissão há pelo menos onze economistas, o que é muito pouco para tão ciclópica tarefa de auditoria. Por outro lado, tanto quanto sabemos, na sua larga maioria são macroeconomistas keynesianos sem formação especial em contabilidade ou finanças públicas, sem experiência nas engenharias financeiras que só técnicos de topo do sistema financeiro conhecem; e essas, são largamente utilizadas nos negócios chorudos, nos contratos de milhões de euros, como no dos submarinos, por exemplo;
4.2. Detectamos apenas dois juristas na referida Comissão. Serão especialistas em quê? Haverá especialistas em direito internacional privado, capacidade para analisar a rede de contratos e protocolos urdidos em cada negócio, entre entes nacionais e estrangeiros, empresas e endereços offshore? Terão os auditores noção das viagens que terão de efectuar para consultar elementos no estrangeiro… se estiverem disponíveis?
4.3. Contempla a Comissão contratar os escritórios de advogados que participam nesses contratos por conta do Estado ou os "staffs" dos bancos? E quem pagará todas estas despesas? E, já agora, quem pagou o aluguer do S.Jorge, as deslocações, alojamento e refeições dos ilustres convidados (cuja competência não está em causa)?
4.4. Conta a Comissão com dotação para a contratação de técnicos estrangeiros especializados como o Toussaint e a Fattorelli e, eventualmente, tradutores?
4.5. Têm disponíveis assim tantos voluntários para gratuitamente estudarem dossiers durante meses, dez horas por dia? Para fazerem buscas na Internet, elaborarem relatórios, procederem a cálculos, para gastarem horas nos ministérios a falar com técnicos locais? (E, atenção, porque para isso o cartão do partido é fraca competência!);
4.6. É preciso elaborar acções de formação específica, proceder a reuniões frequentes de coordenação. E já agora quem serão os coordenadores do projecto? E onde vão ser instalados os auditores? E, não esqueçam de manter publicamente a lista dos financiadores ou doadores para que os cidadãos possam ver que as coisas estão a ser feitas com transparência e não financiadas por interesses alheios aos objectivos da auditoria;
5. "A ideia é que durante o primeiro semestre de 2012 este trabalho fosse realizado e concluído, o que não impede que dentro de um a dois meses não possam ter alguns dados sectoriais já razoavelmente completos". São palavras do ex-deputado do Bloco de Esquerda, José Gusmão, actualmente no Parlamento Europeu e que decerto, terá algum tempo disponível para auditar durante as viagens de ida e volta entre Estrasburgo e Lisboa. Ana Benavente também falou em seis meses. Mesmo que possam proceder a um número mediático com mais sucesso que o do último fim de semana, seis meses é um prazo ridiculamente curto para fazer uma auditoria, mesmo com uma forte, numerosa e experiente equipa de trabalho.
Em jeito de conclusão, parece não existir para já uma equipa com competências à altura da tarefa, nem a infraestrutura que se fará necessária. Brandir a Constituição não garante coisa nenhuma quando temos dezenas de anos do seu impune incumprimento. Para que o projecto de auditoria apresente um processo e resultados credíveis, terá que passar pela definição pública de todos os seus passos, detalhando o processo construtivo da infraestrutura logística, técnica e financeira. O que parece estar acontecer até ao momento é a criação artificial de um facto político feito à medida da agenda da oposição parlamentar, sob o signo de uma mobilização popular participada e abrangente que na verdade não existe.
A opção por esta iniciativa levará a que nos próximos meses, muitos meses, o grosso da contestação à dívida e à austeridade passe por esta auditoria, que não é sequer aproveitável para atacar em força a direita e o governo, que se escudará sempre no passado socialista da governação. E desviará a contestação de formas de luta mais radicais que apontam directamente ao não pagamento da dívida, ou pelo menos à suspensão do seu pagamento, e que podem com muito mais facilidade incorporar em si uma crítica ao capitalismo.
Inserto no blog
Se eu não puder, 19 de Dezembro de 2011
http://seeunaopuder.blogspot.com/2011/12/precisa-se-espirito-critico-sobre-esta.html
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