Pensar à esquerda, sem vacas sagradas
Para um debate que construa uma esquerda viva e mobilizadora da multidão
Sumário
- Ponto
de partida
- O
pensamento único
- O
modelo social europeu
- O
fim das nações
- União
Europeia
- O
Estado
- Uma
democracia para consumidores
- Um
autoritarismo crescente
- Os
excedentes de vidas humanas
- Militarismo
- A deriva ambiental
Ponto
de partida
Ter
certezas é reconfortante.
Ter
dúvidas é prova de vida. É prova de que se está atento às mudanças, que se está
inserido no infinito processo de dúvidas que se tornam certezas e de certezas
que são abaladas por dúvidas. O conforto das certezas favorece o
desenvolvimento da fé; e a fé não se discute.
Há
demasiadas certezas à esquerda, demasiada fé. E quando a realidade desmente as
certezas é a realidade que está errada, porque não se acha prescrita no
receituário de um pensador político, diminuido ao papel de guru, pelo clero da
esquerda.
Pode
extrair-se uma amostra de dimensão variável a partir do enxame de questões que
a esquerda das rotinas não sabe ou, sobranceira, ignora, porque não incluida
nos manuais; ou, pior que tudo, não coloca, por conveniência material dos seus
mandarins. Essa esquerda para gozar do conforto do encosto aos financiamentos
públicos, rodeia-se, empanzina-se de certezas.
De
facto, não se pode ter tudo: e essa esquerda prefere, decididamente, a barriga
cheia e a cabeça vazia. Do lado de fora, no mundo, milhares de milhões
trabalham e sofrem, ignorando-a quando não a desprezam. Para gáudio dos poderes
do capitalismo.
Sabemos
todos que o capitalismo não é eterno; sobretudo quando a suas incapacidades o
transformam em cataclismo. No seu âmago, o capitalismo tem a perfeita noção das
suas dificuldades e joga decididamente, tudo na sua sobrevivência, como em
medidas para que a multidão se distraia dessa realidade.
Compete
à esquerda criar e acelerar as condições para que o capitalismo seja visto como
dejecto e a multidão decida, sobre ele, puxar o autoclismo da História.
Entre
o acima referido enxame de questões que necessitam de ser colocadas e
discutidas para o reforço da ligação da esquerda com os movimentos sociais,
seleccionaram-se dez questões:
O
pensamento único
A
grande concentração da produção de informação e de conteúdos pretende gerar uma
forma única de pensamento, alicerçado na inelutabilidade do capitalismo,
sobretudo na sua versão neoliberal, de endeusamento da concorrência, do
espírito empresarial e do mercado.
Pretende-se
um mundo configurado e feliz na adopção daquele pensamento único, ocultando-se
a contestação ou, quando tal não é possível qualificando-a de terrorismo. A
grande aposta dos media são “fait-divers”, as desgraças ocasionais ou a vida
cor-de-rosa da “beautiful people” e debates políticos semelhantes à discussão
das virtudes da água benta sobre a água comum.
A
escola, mormente o ensino universitário, pretende colocar no mercado “produtos”
reprodutores desse pensamento único e onde prepondera a ausência de espírito
criativo e crítico.
O
principal veículo de liberdade informativa e de pensamento está na internet
que, por isso, está a ser objecto de formas engenhosas de controlo, por parte
de uma aliança entre os governos e as indústrias de conteúdos.
O
modelo social europeu
Durante
umas décadas o capitalismo deu um tratamento de excepção aos povos ocidentais,
violentando muito mais e matando alegremente os restantes. Com a globalização e
as deslocalizações, está em curso uma homogeneização da exclusão e da
exploração a nível global, pelo que o modelo social europeu faz parte da
História.
Propor
um modelo especial privilegiado para os europeus, não extensível aos outros
povos é a aceitação das divisões e da hierarquia promovida pelo capitalismo. É
um comportamento aristocrático, neocolonial, racista.
Porque
não um projecto de modelo social mundial, baseado na extinção do capitalismo?
O
fim das nações
O
que existe realmente são os povos e as suas culturas, enquadrados tardiamente
em nações para que as burguesias pudessem apossar-se do trabalho de um vasto
conjunto de gente, privatizando-os, separando-os dos do outro lado da
fronteira.
Com
as nações vieram os nacionalismos para irmanarem trabalhadores e capitalistas
sob uma mesma bandeira, mas nunca iguais quer no capítulo dos sacrifícios quer
no dos rendimentos.
As
esquerdas tradicionais sorveram lentamente o veneno patrioteiro, reproduzem-no
e praticam um internacionalismo folclórico e hipócrita quando ostentam um “proletários de todos os países, uni-vos”.
E vão repetindo as práticas nacionais de contestação, evitando a conjugação e
articulação das lutas nos diversos países, entreabrindo portas por onde se
esgueira o chauvinismo e o racismo.
O
carácter global da produção de bens e serviços, segmentada em termos de
processo técnico e geograficamente une, como nunca antes na História, todos os
trabalhadores do planeta, tornando dispiciendas as razões iniciais da
constituição das nações. Estas, no entanto vão subsistindo como elementos
essenciais de fragmentação e estratificação dos trabalhadores, como
instrumentos de controlo da multidão; mas, enquadradas por instituições
internacionais, onde se tomam as decisões estruturantes do capitalismo global.
União
Europeia
A
UE constitui uma experiência pioneira da globalização, criando uma hierarquia
de povos tendo no vértice instituições irrelevantes (parlamento europeu) ou
profundamente anti-democráticas (as restantes), sob o alto comando dos capitais
financeiros alemães e franceses (zona euro) e ingleses.
À
medida que se vão desenvolvendo áreas comuns mais aberrante se torna a
configuração política e a gestão económica da UE, baseada nos sacrossantos
princípios da bondade do funcionamento do mercado e da concorrència. Não admira
que nunca tenha havido uma verdadeira solidariedade geradora de redução das
desigualdades regionais ou sociais; que a crise financeira se tenha articulado
com o baixo crescimento impulsionado pelas deslocalizações, criando
dificuldades novas nas periferias sul e leste; que seja incipiente o sentimento
europeu por parte dos povos integrados na UE.
A
saída do euro ou da UE, sendo opções cujos impactos reais não estão estudados nem
discutidos, sobretudo à esquerda. Na entrada na UE, a esquerda pouco se fez
ouvir, apesar dos princípios anti-democráticos da decisão e vigentes nas
instituições integrantes, também tocada pelo espírito desenvolvimentista,
“moderno”, adoçado pela promessa dos milhões de ajudas, rapidamente malbaratadas,
por um patronato culturalmente indigente e um mandarinato tão cúpido quanto
impune.
É
estranho agora, num momento particularmente difícil, de rápido empobrecimento
colectivo, que a esquerda não coloque aquelas questões na agenda.
O
Estado
Nada
se faz ou acontece sem a presença voraz e autoritária do Estado e dos seus
corruptos e ineptos donos. Como capitalista colectivo sempre foi o elemento
viabilizador da rendabilidade dos grandes negócios do capitalismo privado, de
hierarquização dos capitalistas.
Mesmo
num contexto de crise em que o Estado se assume como um carrasco da multidão,
há uma esquerda que piamente defende um virtuoso Estado de bons, expulsos os
maus, como nas histórias infantis.
Essa
pretensa separação entre o Estado e os capitalistas, essa esperança face ao
comportamento do Estado gera na multidão uma tolerância que desarma as lutas
contra o capitalismo e de que este é o único beneficiado.
Entretanto
o Estado cresce, rapina, torna-se avaro no cumprimento das suas obrigações
sociais estatuidas solenemente nas leis, sempre em nome de princípios e
prioridades onde os cidadãos não constam
Uma
democracia para consumidores
Os
cidadãos, no modelo vigente, dito democrático, não escolhem alternativas
políticas de organização social; escolhem pacotes de vigaristas que, como coisa
mais óbvia e trivial, lhes pedem um cheque em branco, em troca de promessas que
nunca cumprem. Quando se escolhe um desses pacotes, durante anos a única
intervenção que aos cidadãos é concedida é a de assistir aos falsificados torneios
televisivos, entre dois actos de consumo.
Há
uma esquerda que aceita passivamente que se confunda este rodopio de carrossel
com democracia, assumindo também a postura messiânica de ungidos pelo voto,
sabendo-se de antemão, que os parlamentos são câmaras de ressonância,
alimentadas pelos Estados com mordomias e recursos financeiros. Nessas
instituições pastam mandarins de vários partidos, sóbrios e apartidários (?)
zeladores das leis e “corruptus vulgaris” para todos os gostos e tonalidades,
em constante rotação de cargos.
Um
autoritarismo crescente
À
vigência de uma democracia de plástico corresponde um crescente autoritarismo
da parte do Estado e nos locais de trabalho; um tempo de chumbo que prenuncia
um novo fascismo. O empobrecimento, o desemprego em massa, repressão laboral
sob a forma de lei, o encarecimento do acesso à educação, à saúde e há
habitação, a ausência de segurança na doença e na velhice, a juntar ao
endividamento para toda a vida acentuam a precariedade da vida, muito para além
da inerente à biologia.
As
resistências activas ou passivas e as possibilidades tecnológicas de controlo
social (bases de dados, videovigilâncias, a utilização de cartões diversos em
actos triviais) evidenciam a grande desconfiança e insegurança por parte dos
poderes.
Por
outro lado, o crescimento económico anémico que caracteriza o Ocidente há muito
tempo, contribui para a acentuação das desigualdades e o desenvolvimento de um
vasto e diversificado sistema securitário físico, legal e incorporado
psicologicamente, a que se chama sociedade de controlo.
Os
excedentes de vidas humanas
As
possibilidades do capitalismo em gerar meios em quantidade e qualidade
evidenciam-se parcas, apesar dos imensos recursos físicos e tecnológicos
existentes. Assim, o volume actual de pessoas e o aumento da sua longevidade,
torna a população humana exagerada para a satisfação da infinita cobiça do
capital.
Há
toda uma lógica de redução da população do planeta, já definida em planos
nacionais e na prospectiva demográfica, sendo instrumentos para o efeito: a
redução da natalidade, a privatização, a rarefação e o encarecimento dos
cuidados de saúde, o aumento das jornadas de trabalho e da idade de saída da
vida laboral, a “neutralização” como seres humanos de aposentados,
desempregados e pobres, objecto de todas as discriminações e abandonos, o
desinteresse por enormes massas urbanas constituidas por gente expelida dos campos,
ou por populações atingidas por doenças como a sida ou a malária
Está
em curso um redimensionamento da população mundial que, embora de aplicação a
longo prazo, tem vertentes que constituem um verdadeiro genocídio, lento e não
mediatizado, que tem o seu ponto mais visível na Palestina e em Gaza, mais
particularmente.
Militarismo
Onde
a UE se vem mostrando activa é no capítulo da militarização, da interpenetração
das funções militares com as áreas da segurança, todas sob o chapéu largo, mas
roto, da ameaça terrorista, arquitectada no Pentágono e materializada num
produto fora de prazo, a NATO, entre outras instâncias.
À
medida que a supremacia ocidental sobre os recursos mundiais é contestada pela
pujança económica dos chamados BRIC, a superioridade militar da NATO, onde
avulta o domínio dos EUA, torna-se cada vez mais, o instrumento essencial da
procura do controlo dos recursos energéticos para a manutenção daquela
supremacia.
Essa
militarização tem subjacente uma elevada concentração da indústria de
armamento, uma subalternização do aparelho policial e de segurança interno, um
crescimento dos gastos militares e a banalização da utilização de armas de
destruição massiva, mormente nucleares. Tudo como forma de controlo dos
abastecimentos energéticos e dos corredores
de transporte das potências ditas emergentes.
O
cerco da China e da Rússia, as ameaças veladas ao Brasil já lançaram ou poderão
lançar novas guerras e conflitos nas suas proximidades.
A
preponderância de uma lógica nacionalista e provinciana torna a esquerda
institucional alheia à ligação entre a crise económica, a ofensiva anti-laboral
e a militarização das sociedades.
A
deriva ambiental
Um
sistema económico e social cujos protagonistas são capazes de, paulatinamente,
irem destruindo o habitat humano é irracional e, esses protagonistas são estúpidos.
Se
existe um campo vasto de aplicação de energias renováveis para a produção de
electricidade e aquecimento, a mesma é retardada pela intervenção dos Estados a
favor das grandes empresas eléctricas e dos bancos, impedindo a democratização
da sua utilização.
A
segmentação da produção mundial e o menosprezo pela utilização dos recursos
locais promove enormes gastos energéticos no transporte, sobretudo de
combustíveis fósseis. De modo idêntico, o primado dos interesses capitalistas
conduz a formas de mobilidade urbana altamente poluentes, consumidoras de
energia, promotoras de um urbanismo caótico e que culmina na redução da fluidez
dessa mesma mobilidade.
Finalmente,
a utilização da água, a sua contaminação, o esgotamento dos solos, a
desflorestação, a desertificação, o degelo, revelam a incapacidade de um
sistema social baseado no lucro de tornar, a longo prazo, sustentável a vida no planeta.
- - - -
Não
há verdadeiras soluções dentro do capitalismo. E toda a análise dos problemas
actuais, todas as formas de actuação da multidão e das organizações políticas e
sociais devem ter, como pano de fundo, a existência do capitalismo e como
instrumento de actuação a ligação dos vários problemas entre si e uma
perspectiva anti-capitalista.
Este
e outros textos também em:
http://www.slideshare.net/durgarrai
Julho 2010
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