A miséria da esquerda que anda por aí. Um “case study”, a Cimeira da NATO
Sumário
1 - Aspectos de ordem histórica para uma
fraca consciência anti-imperial e anti-militarista
1.1
– O passado colonial e uma soberania minguante
1.2
– A dívida eterna para com os militares de Abril
2 – O
enquistamento ideológico da esquerda institucional
2.1
- Hoje, o capitalismo está, essencialmente, globalizado
2.2
– A fusão entre funções policiais e militares
2.3 – A putrefacção do
sistema de representação e a anti-democracia
2.4
– A soberania nacional
2.5
– Notas sobre o culto da obediência e da hierarquia
3 - A Cimeira da NATO em Portugal e o
comportamento da esquerda institucional
3.1
- Atitudes da direcção do BE
3.2
- Atitudes do PCP ou das respectivas agências
Por
motivos e circunstâncias várias acompanhámos de muito perto todas as
vicissitudes que conduziram à realização dos eventos que marcaram a presença do
bando dos 28+1, na cimeira da NATO em Lisboa, nos dias19/20 de Novembro.
Desde
o princípio mantivemos muita curiosidade em observar o comportamento da
esquerda de esferovite que anda por aí a flutuar, bem instalada no fofo
conforto possibilitado pelos subsídios estatais ou pela utilização do dinheiro
das quotizações dos trabalhadores (ainda) sindicalizados.
1 - Aspectos de ordem histórica para uma
fraca consciência anti-imperial e anti-militarista
Vamos
referir apenas dois factores históricos que impedem que a esquerda
institucional, na sua indigência política e ideológica consiga perceber o carácter
imperial do sistema capitalista, o papel do militarismo e da guerra para o
esmagamento tanto das condições de vida da multidão, como da democracia. E pior
que tudo isso, o papel dessa dita esquerda, tresandando de tiques estalinistas,
na limitação da geração de movimentos de massas ou de opinião, independentes da
sua tutela.
1.1
– O passado colonial e uma soberania minguante
Quinhentos
anos de colonialismo, criaram em Portugal, entre os poderes do Estado, da
burguesia e do seu ignaro mandarinato, uma cultura imperialista, de pertença a uma
imaginária posição de grande ou média potência. Como é natural, essa postura,
criou na multidão, nos anos 60 e 70 uma aceitação resignada ou, de apoio tácito,
de guerras coloniais durante treze anos.
Mesmo
alguns anos depois do 25 de Abril, muitos se perguntavam se Portugal
sobreviveria à “perda” das suas colónias, talvez sem suspeitarem que as
colónias, em 1974, eram mais um fardo do que uma benesse; e o natural regresso
dos “pés-negros” (aqui designados por retornados) com o seu respeitável cortejo
de sofrimentos individuais, só contribuiu para essa ideia da difícil
sobrevivência.
Havia
então, quem imaginasse a existência mirífica de uma burguesia inteligente,
capaz e suficientemente poderosa, uma burguesia liberal interessada em edificar
em Portugal uma social-democracia de cariz europeu, em substituição da máquina
fascista. E, portanto, quem imaginasse a possibilidade de uma soberania
económica e política sob o domínio da burguesia mais débil da Europa ocidental.
Esse
projecto fantasioso é muito claro, no âmbito da esquerda portuguesa, através do
divertido (1) conceito de “revolução democrática e nacional” proposto por
Cunhal no seu “Rumo à Vitória”. Aí, o autor consegue divisar, em Portugal, uma
burguesia liberal e democrática, para além dos grupinhos de Soares e, mais
tarde, de Sá Carneiro, susceptivel de gerar uma unidade com as classes
trabalhadoras, contra o regime fascista.
Só nos sonhos de Cunhal, em Paris ou Moscovo, essa burguesia existiu.
Hoje, olhando para o PS/PSD como legítimos descendentes daqueles grupinhos de
advogados bem sucedidos, é bem visível como é reformista e democrático o seu carácter.
Não
estava nos planos da esquerda portuguesa, antes do 25 de Abril, a possibilidade
de um golpe militar que provocasse um movimento popular conducente à destruição
da grande burguesia portuguesa. Os manuais políticos de Lenin ou Mao não
contemplavam essa solução. O sempre clarividente PCP, em comunicado do CC de
Março de 1974, depois da intentona das Caldas, a 16, ainda referia “O governo e o regime não cairão por si
próprios, nem tão pouco pela acção de umas dezenas de oficiais do Exército,
mesmo que corajosos e patriotas. … é necessário um levantamento nacional, uma
insurreição popular armada… Todas as vias “putchistas” ou oportunistas… que não
vêem nas massas populares o papel
decisivo, todas as ilusões quanto a um fácil derrubamento da ditadura fascista,
não apressam mas retardam…”. Um mês depois o fascismo caia perante umas
centenas de militares corajosos, quase sem um tiro e sem o PCP ser metido ou
achado no assunto, como resulta óbvio das suas próprias palavras.
Por
seu turno, a grande burguesia portuguesa procurava uma solução para o regime
fascista e o alívio da carga colonial, para se aproximar da CEE, onde a tutelar
Inglaterra se havia integrado em 1973. Acreditava que poderia beneficiar da sua
elevada concentração de capitais e entrar na CEE que era, então, a soma de uma
pauta aduaneira favorável com uma política agrícola. E também sabia que teria
de criar o regime padrão de representação minimal, como o conhecemos hoje.
Para
os trabalhadores e a multidão dos residentes em Portugal, o que se seguiu, não
se traduz num balanço muito favorável, como resulta da mais meridiana
evidência.
- A queda do fascismo e a montagem do regime cleptocrático que está no terreno, efectua-se num momento em que o neoliberalismo se implantava nas meninges do capitalismo, em processo de globalização; e não facilitava em nada a afirmação de burguesias nacionais “democráticas e patrióticas”
- A globalização neoliberal que absorveu Portugal não foi aqui assumida por esse nome mas, foi levada a cabo através das intervenções do FMI (1977 e 1983); no seu seguimento, pelo processo de roubo a que se convencionou chamar de “privatizações” assinado, como tudo o que é negativo neste país, pelo PS/PSD, então sob a batuta de Constâncio e Cavaco ou vice-versa; e com a integração na futura UE em 1986;
- De permeio, em 1974/75, o movimento popular explodiu, apesar do papel do PCP, recém-implantado bombeiro, posteriormente indigitado responsável pelo controlo social e sindical após o 25 de Novembro, por acção inteligente de Melo Antunes; esse contrato vem sendo escrupulosamente cumprido há 35 anos;
- O movimento popular e o apoio dos militares de esquerda atrasou o processo de transição do regime de autarcia fascista para uma democracia de mercado. A “normalização” durou cerca de dez anos, para grande lástima de patrões e mandarins, sempre ávidos de estabilidade política;
- A grande burguesia de base lusitana sofreu um rude golpe com as nacionalizações, embora estas tenham sido parcialmente úteis para transferir para o Estado os custos da descolonização e permitir o financiamento público das inevitáveis concentrações de capital;
- A globalização e o fim dos chamados “gloriosos trinta anos” de crescimento económico geral frustrou qualquer possibilidade de um desenvolvimento económico autóctone, acentuando, pelo contrário, a debilidade da estrutura produtiva, a dependência face às multinacionais e ao sistema financeiro, bem como o aumento do peso da economia mafiosa.
Neste
contexto, Portugal hoje, tem a soberania inerente à posse de uma bandeira
(cromaticamente horrível), um hino (estupidamente guerreiro) mas, que pode
fechar as fronteiras… desde que autorizado pelos seus senhores acampados em
Lisboa, para preparar as próximas guerras. Obama, em Portugal, só conhece os
nomes do seu embaixador, do seu luso-Karzai (Sócrates hoje, talvez Passos
dentro de algum tempo) e o do motorista da embaixada. Nada mais. Não sendo o futebol
coisa popular nos EUA, Obama nem sequer ouviu falar de Mourinho ou do Ronaldo!
Esta
é a realidade embora vozes vindas dos túmulos da História gostem de mimar os
portugueses com uma ilusória importância de Portugal, para o diálogo entre o
Brasil ou as ex-colónias africanas, com a UE.
Em termos de política externa, a visibilidade de Portugal está apenas nos
pelotões de mercenários que vai distribuindo por aí, onde existirem as guerras
do império; e, esses factos não têm sido reflectidos na política interna que,
aliás, constitui quase toda a informação dos media, particularmente estreitos no
seu provincianismo.
1.2
– A dívida eterna para com os militares de Abril
Trata-se
de uma questão de elementar gratidão perante a História, a prestação de
homenagem aos militares que derrubaram uma ditadura fascista com 48 anos de
existência. Sabe-se também como os militares mais consequentes em secundar o
movimento popular que se seguiu ao dia 25 de Abril foram afastados, alguns
deles, após passarem meses na prisão “democrática” do regime PS/PSD, entretanto
inaugurado a 25 de Novembro de 1975.
Porém,
hoje, 35 anos após a “normalização” de Novembro, as forças armadas (FA)
portuguesas nada têm que as relacione com os militares de Abril. As FA de hoje,
têm muito mais as características que possuiam em tempos de fascismo, do que
semelhanças com os militares esforçados que derrubaram aquele regime.
As
FA em Portugal são um corpo estranho à sociedade, constituido por elementos contratados
e doutrinados na obediência cega aos valores canalizados através dos cursos
NATO a que são submetidos. Como casta, são profundamente elitistas,
considerando-se como que ungidos pela Pátria, acima do cidadão comum, dos
paisanos.
Por
outro lado, não tendo os portugueses conflitos com outros povos ou estados, as
FA são uma emanação do passado, cara e inútil; recorde-se que desde o êxito de
Chaimite (Moçambique), em 1895, contra o povo nguni, as FA portuguesas
evidenciaram-se mais em crimes de guerra do que em vitórias militares
meritórias. Actualmente, nem sequer conseguem uma fiscalização efectiva das
águas territoriais, espalhando-se a oficialidade por uma miríade de órgãos
burocráticos, com que justificam o seu elevado numero, os seus altos
rendimentos e as mordomias de que usufruem os mais graduados.
A
integração na NATO e, mais recentemente com a constituição da UE como estrutura
militar, as FA portuguesas passaram a ser apenas uma divisão lusitana daquelas
alianças militares agressivas, susceptíveis de tornar os portugueses como
partes não ouvidas em conflitos decretados pelo dispositivo militar-estratégico
ocidental – com os riscos inerentes para a sua segurança. E é nessa qualidade
que destacamentos militares, com nutridos salários, comparativamente às dificuldades
que a multidão vai arcando, vão servindo o capitalismo global, o império, no
Afeganistão, na Somália, no Kosovo, na Bósnia, no Uganda.
A
única atitude coerente de uma esquerda responsável, hoje, é defender a extinção
das FA, acompanhada da exigência de extinção da NATO e da renúncia à guerra
como forma de resolução de conflitos. Compete-lhe promover a integração dos militares
no reforço do policiamento das águas territoriais ou a sua incorporação no
dispositivo de protecção civil. Há já alguns anos defendemos esta posição
Compete
a uma esquerda defender estas posições e não refugiar-se num silêncio revelador
de efectivas posições de direita, patrioteiras, de objectiva concordância com a
militarização das sociedades, com a actual integração de funções policiais e
militares, com a existência de um corpo militar ao serviço do Pentágono e da
NATO (2).
Em
suma, cabe a uma esquerda realista, desenvolver permanentemente uma acção
anti-militarista, de desmistificação da relevância das FA, de análise e denúncia
da inutilidade da corporação e dos recursos com ela gastos. A conjuntura de
empobrecimento que se agudiza oferece condições favoráveis para essa acção. Combater o militarismo é
lutar pela democracia.
2
– O enquistamento ideológico da
esquerda institucional
Os
aspectos atrás referidos inserem-se nas concepções desactualizadas, erróneas ou
ignoradas da esquerda institucional portuguesa, como aliás acontece, na
generalidade das esquerdas europeias. A obediência civil é melhor paga que a
desobediência.
Em
Portugal, como na Grécia, há, no que se refere à esquerda institucional, um
problema adicional particularmente grave, que é o latente estalinismo, que se
revelou em todo o seu esplendor, durante o periodo que mediou o anúncio da
cimeira da NATO, em Lisboa e a concretização das acções de contestação aos
senhores da guerra; como mais à frente se descreverá. Como a desestalinização
do PCP nos anos 60 nunca foi feita, dadas as condições de clandestinidade e a
personalidade dominante de Cunhal, os diversos grupos de dissidentes dali
saídos foram sempre portadores de uma ganga ideológica e de uma prática
autoritária e inquisitorial ainda presente em muitos dos que compõem a esquerda
actual; mesmo quando, geracionalmente, não viveram naquele tempo.
Entende-se
que a compreensão das insuficiências da esquerda institucional, nomeadamente
quanto às características do capitalismo actual, tornarão mais claras as razões
das suas atitudes no âmbito dos propósitos deste texto – os eventos de
contestação à NATO – e as causas da sua manifesta inoperância, da ineficácia da
sua acção, perante as medidas empobrecedoras e repressivas que se abatem sobre
a multidão, em Portugal.
Alarguemos,
pois os horizontes, na senda de artigos recentes, nomeadamente “Pensar à
esquerda, sem vacas sagradas” (3).
1
– Hoje, o capitalismo está,
essencialmente, globalizado
Há
um capitalismo global constituido pelas multinacionais, o sistema financeiro e
o capital mafioso que cria e enforma as suas próprias instituições
regulatórias, todas elas, formalmente, com um âmbito supranacional. Nesse
capitalismo global, nesse sistema imperial, não correspondente a um espaço
nacional hegemónico, domina uma casta de grandes gestores, banqueiros,
detentores de capital especulativo e dos media globais, mandarins e militares
de alto coturno.
Este
sistema global contém uma hierarquia de burguesias nacionais, com as suas
rivalidades e conflitos mas, já não se pode confundir com o sistema
primordialmente composto por rivalidades inter-imperialistas, entre burguesias
nacionais, com pretensões hegemónicas, como aconteceu, sensivelmente até ao
final da Guerra Fria. Contudo, a existência das nações serve, como desde
sempre, para dividir os trabalhadores, para alimentar os antagonismos convenientes
para beneficiar o capital.
A
constituição de um capitalismo global, integrante das nações e, unificando no
essencial, as burguesias nacionais num complexo alargado de poder não foi ainda
incorporado pela esquerda portuguesa, que continua apenas a actuar contra o seu
governo, isolado no seu território. Como aliás as suas congéneres europeias e
apesar da (virtual) criação de um Partido da Esquerda Europeia. Apetece dizer,
abaixo os organismos de cúpula, vivam os orgasmos de cópula, memorável frase
escrita nas paredes de Lisboa durante o Prec.
Acontece
que há muito o poder económico tomou conta do poder político; e como esse poder
económico é global, o poder político nacional é a agência local do capitalismo
global, do império. É, particularmente claro, no momento presente, o escasso
poder do governo português, de Sócrates ou do seu sósia Passos, meros robots
dos “mercados” e das tutelas do BCE, da Comissão Europeia, do FMI, da
comissária Merkel.
E,
consequentemente, não está presente na prática da esquerda social-democrata –
como na das esquerdas institucionais europeias – uma visão internacionalista da
luta social e política, que dê prioridade à unidade dos povos europeus contra o
capital. Há mesmo quem procure (PC) aliciar, explicitamente, os trabalhadores
para um patriotismo ridículo, serôdio, enganador e suicida.
2.2
– A fusão entre funções policiais e
militares
Como
o capitalismo é global predomina no seu seio o antagonismo entre o capital globalizado
e o trabalho, protagonizado pela multidão mundial e são subalternas as disputas
entre as potências; portanto, serão sempre regionais ou localizadas as guerras
do império. Nesse contexto, observa-se a integração das funções militares com
as funções policiais e dos serviços secretos, todos conjugados contra a
multidão, sobretudo os trabalhadores do mundo, sendo este um dos muitos
aspectos que desenham a actualidade que as esquerdas institucionais não
incorporam.
Está
constituido um dispositivo militar-estratégico ocidental, para salvaguarda do
poder ocidental (europeu e norte-americano) e das suas multinacionais, que
pretende conservar o seu predomínio sobre o resto do planeta, iniciado no século
XVI. São os interesses ocidentais que, pretendendo controlar as fontes
energéticas e os corredores de transporte (nomeadamente no Médio Oriente e no Índico),
se querem tornar nos árbitros definidores do desenvolvimento dos outros povos,
nomeadamente chinês, indiano e japonês, aqueles que são considerados como os
adversários mais temidos.
Esse
dispositivo tem o seu cérebro no Pentágono e dois importantes braços em duas
alianças militares, a NATO e a UE, ambas, como o seu controleiro, com propensão
para a intervenção militar e outras agressões em qualquer parte do mundo. E
isso, directamente, com a intervenção própria ou, por intermédio de outras
agências, como a União Africana, a ONU, Israel, a Active Endeavour, o Conselho
de Coordenação do Golfo, etc.
A
integração das funções militares e policiais resulta da integração do mundo num
só sistema capitalista, global, definidor das regras e de um pensamento único, pretenso
herdeiro do papismo inquisitorial durante largos séculos dominante na Europa ou,
do marxista-leninista, cientologia oficial na antiga URSS.
As
guerras, sendo internas ao sistema global, confundem-se com operações de ordem
interna, vulgarmente designadas como policiais; e daí resultam os conceitos de
“nation building” a aplicar a países invadidos, a contratação de muitos
milhares de mercenários civis para o exercício de funções de apoio aos
militares “strictu senso”, nos cenários de guerra, para o exercício da
repressão e enquadramento das populações. A recente operação militarizada nas
favelas do Rio de Janeiro, para preparação de um ambiente favorável à vinda de
turistas em 2014 mostra bem essa sintonia, essa fusão. Na paróquia lusa, quem
assistiu à manifestação anti-NATO de dia 20 de Novembro terá visto mais aparato
militar do que prevenção policial junto dos manifestantes denunciados pelo PC como
perigosos díscolos, só por não terem prestado vassalagem ao seu comité central.
Esta
integração entre funções militares e policiais, ainda não foi descoberta pela
esquerda portuguesa ou então, só é discutida entre iniciados e considerada
inconveniente para incorporação na prática política.
2.3
– A putrefacção do sistema de representação e a anti-democracia
Parcela
significativa da população mundial é considerada excedentária relativamente às
capacidades do sistema capitalista global e ir-se-á acentuar a pressão sobre as
condições de vida e de sobrevivência de milhões de trabalhadores desempregados,
com baixas qualificações, precários, bem como de aposentados, pobres e
minorias. A financiarização e a criação de riqueza através da especulação
financeira tende a estabelecer uma economia de jogo, de casino, cuja
rendabilidade fácil e de curto prazo, desvia os capitais da actividade
produtiva e dos erários públicos, impossibilitando o investimento no bem-estar
da multidão que, por esse motivo se revela excessiva para o sistema capitalista
global.
É
dos livros que, onde as necessidades da carne estão presentes, há revolta; e
que o poder, em geral, utiliza o Estado e a repressão pelo último
protagonizada, para procurar debelar ou prevenir essa revolta. Uma das formas
de dominar ou ocultar essa revolta é a usurpação da democracia, a apropriação
da representação da multidão.
O
sistema capitalista globalizado vem desenvolvendo sistemas políticos cada vez
mais autoritários em que, mesmo a pobre democracia de mercado se torna totalmente
cosmética. As decisões de ordem política, no capítulo do trabalho, das
condições de vida, das finanças públicas são tomadas por directórios
partidários fechados, mediocres e corruptos, sem qualquer escrutínio popular.
As instâncias comunitárias mostram-se igualmente exemplares, no seu conteúdo
anti-democrático, dedicando-se apenas à criação de factos e regulamentos que
favorecem o capital financeiro, os negócios das multinacionais e das empresas
em geral.
A
assunção da legitimidade da intervenção militar onde existam ameaças está
subjacente à prática dos EUA e dos seus aliados europeus desde o final da Guerra
Fria e acaba de ser consagrado na FIL no seio do Conceito Estratégico da NATO. Neste
se consideram como argumentos de intervenção militar, conflitos internos ou
externos, problemas ambientais, crime organizado e narcotráfego, imigração
clandestina, cibercrime, entre outros, onde avulta a pérola das ameaças, o
terrorismo. Assim, fica colocado, como compromisso multilateral, o militarismo
dentro das sociedades, como ameaça óbvia à multidão de todos os países e, com
uma pluralidade de pretextos.
Perante
a crise económica que se vem desenhando e o agravamento das condições de vida
da multidão, sobretudo na Europa, não é preciso muito para de observar como o
militarismo e a redução da democracia, constituem peças centrais de um mesmo
puzzle. Sobre estas questões a esquerda institucional, cala-se; e, prefere
continuar a credibilizar sistemas políticos autoritários, considerando a
actividade parlamentar e institucional, como o centro da sua actividade.
2.4
– A soberania nacional
Bem
recentemente abordámos esta questão a propósito do “visto prévio” da UE à
aprovação do orçamento na UE e dos protestos patrióticos de alguns grilos
falantes (4)
Integrado
em várias esferas de dependência – Comissão Europeia, BCE, “mercados”, FMI,
NATO, UE, EUA, OMC e das importações espanholas, Portugal não existe em termos
de soberania. São os humores da Merkel e dos “mercados” que determinam as
nossas vidas, dando os devidos recados ao Sócrates ou ao Passos, os sacripantas
de serviço. O Burkina Faso ou o Sri Lanka terão, porventura, maior autonomia,
como países, uma vez que é menor a confluência de institutos da globalização
sobre as suas populações, como também será menor a sua integração no chamado mercado
global.
Elementos
factuais como o do parágrafo anterior,
antes de serem valoradas como bons ou maus, têm de ser consideradas como
factos; e é a partir de factos que assenta o presente e se constrói o futuro.
A
multidão em Portugal percebeu há muito que pertencer à UE tal como a submissão
aos “mercados” não garantiram uma eficaz aplicação dos fundos comunitários, o
aumento da dimensão do mercado interno, a reestruturação do tecido produtivo,
um sistema educativo decente, nem evitou a instalação dos gangs mafiosos. Pertencer
à UE não garante progresso, modernidade, evolução em paz e com crescente
bem-estar, pesem embora as expectativas iniciais, largamente exageradas pelo
mandarinato. Garante, isso sim, uns poucos de milhões de consumidores para os
exportadores alemães e espanhóis e uns volumosos arredondamentos nos
rendimentos dos beneficiários financeiros da entrada dos fundos comunitários.
Nunca
– e agora, isso é particularmente claro – houve qualquer fórmula de
solidariedade entre os países europeus ou, propósitos de uma real redução das
desigualdades internas, de construção de uma Europa como união solidária de
culturas e povos. O que sempre existiu foi um projecto de criação de um mercado
alargado a centenas de milhões de pessoas, como instrumento de centralização de
capitais, de criação de um grande feudo para os capitais europeus. E isso, a
despeito dos fundos de coesão, sociais, dos QCA, do QREN e outras fábulas que
só não o foram totalmente, pois esses fundos cairam direitinhos nas contas
“offshore” de empresários e mandarins que agora clamam por uma democratização
dos sacrifícios. Em Portugal, como na Grécia, na Irlanda, em Espanha, na
Letónia…
Sabe-se
que a construção da UE foi, de certo modo, precursora e ensaio regional da
globalização, tal como ela hoje se apresenta. E a globalização é um facto inelutável
e subalterniza, ao mesmo tempo que une, as nações e os capitalistas nacionais, contra
a multidão e os povos, constituindo aquilo a que Negri chama “o comunismo do
capital”.
Portanto,
a presença no seio da UE não tem, seriamente, uma alternativa como não tem
alternativa a fuga à inserção no capitalismo global; o capitalismo não admite
fugas, contempla apenas como objectivo sério, a sua destruição.
O
capitalismo global, sendo um sistema integrado que abrange todo o planeta não
irá voltar atrás, a fórmulas autárcicas de autonomização dos espaços de manobra
das burguesias nacionais, dos patronatos indígenas, cada qual com o seu rebanho
de trabalhadores. Da mesma forma que não é nada provável um retorno ao feudalismo,
que foi suplantado pela criação de nações, em resposta à necessidade de alargamento
de mercado próprio e da criação de uma reserva de mão de obra, por parte dos
capitalismos regionais; que, criando as nações, se metamorfosearam em
burguesias nacionais.
A
globalização da produção de bens e serviços, promoveu uma extrema integração e
complexização dos processos produtivos, desenvolveu uma matriz muito densa e
diversificada de trocas de bens acabados e produtos em vias de fabrico, pois as
multinacionais segmentaram a produção em termos regionais para se aproveitarem
das diferenças salariais e nos quadros ambiental, político e educacional. Resulta
daqui que o capitalismo vem acentuando a transformação da produção mundial num
conjunto único.
Este
elemento objectivo, de carácter técnico do próprio modo de produção capitalista
e, que se acelerou, por mãos europeias a partir do século XVI, junta-se à tendência
permanente para a concentração de capitais e para a centralização das decisões.
Como temos afirmado nestas páginas, isso desemboca em dois aspectos
importantíssimos de carácter político;
- Unifica a multidão mundial, como entidade produtiva, para além das barreiras e propagandas nacionalistas, que se tornam obsoletas;
- Essa unificação cria as condições para lutas sociais, reivindicativas e políticas de carácter novo e de conteúdo, pelo menos, supra-nacional, cujo amadurecimento conduzirá certamente a uma mundialização paralela à do próprio capitalismo;
- Essa unificação encontra diversíssimos e poderosos escolhos, entre os quais não são menores, o poder das burocracias sindicais e dos partidos ditos de esquerda, cuja sobrevivência exige o refrear da criatividade dos movimentos sociais, a manutenção das taras patrioteiras e o apoio mais ou menos óbvio aos capitalismos nacionais e aos mandarinatos indígenas.
- Refira-se ainda que a multidão mundial, como resultado da imensa complexidade técnica da produção global e da dependência que esta tem do factor conhecimento torna absolutamente desnecessária a existência do capitalista. Sendo o conhecimento o elemento fulcral da produção de bens e serviços de hoje, pelas suas características, é elemento que fica sempre na posse do trabalhador e não apropriável pelo capitalista, contrariamente ao tempo em que o capital fixo fornecido pelo capitalista era a base técnica da típica produção fordista, ao qual se atrelavam trabalhadores, com funções simples, repetitivas e estupidificantes. (5)
Por outro lado, como a
produção moderna é constituida pela integração e interacção de múltiplas,
constantes e micro-decisões, levadas a cabo pelos trabalhadores, nos seus
postos de trabalho, munidos de um conhecimento não transferível para o
capitalista, está-se criando a base para uma produção comum, de bens ou
serviços, produzidos sem a contribuição necessária ou útil do capitalista, uma
vez que a posse do capital fixo deixou de ser o determinante da produção. E
sendo a produção um bem comum aos trabalhadores de uma empresa que, por sua vez
está ligada a uma pluralidade de outros colectivos de trabalhadores, é toda a
produção mundial que se tornou um bem comum. Em suma, tendo a produção um
carácter global e comum, a soberania que deve existir é a da multidão mundial enquanto
as soberanias nacionais tenderão a representar algo do passado, das fases
inicial ou imperialista do capitalismo; tão pertencentes ao passado como os
domínios do duque de Borgonha.
Não
há condições para avanços revolucionários que não para vastas massas de
territórios, com abundantes recursos, população abundante e boas capacidades em
termos de conhecimento científico, técnico e tecnológico. Nenhum território com
uma população reduzida, em termos globais, poderá ser viável num processo de
ruptura com o “mercado global” uma vez que o cerco político e económico, ou
mesmo a intervenção militar do império, tornariam insustentável a sua posição.
Essas massas populacionais encontram-se na Europa, nos EUA, na Rússia/Eurásia,
na China ou na Índia ou no desenvolvimento da integração sul-americana; “só”
falta a criação de movimento social integrado, transformador da infraestrutura
produtiva e do sistema financeiro em bens comuns; que, entenda-se, não
corresponde à estafada fórmula da nacionalização, à inserção num aparelho de
Estado, à passagem para um capitalismo de Estado.
Há
sistematicamente variações entre o papel das várias regiões do mundo, dos
vários países na produção global, observando-se mutações dos mesmos na
hierarquia da relevância na produção mundial. Assim, há regiões e países que
vão decaindo nessa hierarquia, em constante transformação e, outros que sobem
degraus nessa mesma hierarquia. Não custa perceber que a Europa e os EUA estão
perdendo pontos e posições nessa escala e que países como a China, a Índia mas,
também o Brasil, o Irão ou a Turquia melhoram o seu posicionamento relativo.
Pode mesmo referir-se que há uma mudança histórica, de carácter “tectónico” de
ressurgimento do Oriente (cujas civilizações superavam os rústicos europeus até
ao século XV) e um apagamento do designado Ocidente; como se já assistira ao
domínio dos EUA face à Europa colonialista, depois da I Guerra Mundial, em
detrimento da Inglaterra.
Deste
ponto de vista de projecção histórica e geo-estratégica, qual o papel de
Portugal? O declínio iniciado no final do século XVI nunca deixou de se
verificar, em detrimento de outras potências, comparativamente às zonas de
capitalismo avançado. Não vamos inventariar aqui as causas dessa decadência
mas, sem dúvida que o futuro, na próxima década, não será muito distinto de uma
integração formal ou informal num estado ibérico com centro em Madrid, estado
esse que, por sua vez, estará contido numa Europa, alicerçada num núcleo duro,
em torno dum eixo franco-alemão, com ramificações para o Benelux, para o norte
da Itália e incluindo a Suiça.
Neste
contexto será manifestação de elementar inteligência, para se sair do marasmo
actual, a criação de lutas ibéricas, de cooperação e colaboração entre os
movimentos e trabalhadores das várias entidades ibéricas; e, partir daí para
uma unidade europeia contra o inimigo comum. Naturalmente que nada disto será
concebível no seio da CES ou do chamado Partido da Esquerda Europeu, cúpula de
partidos nacionais mais ou menos representados no Parlamento Europeu, sem
qualquer enraizamento na multidão; e, sem qualquer perspectiva de criação de
rupturas com o mandarinato comunitário e as suas instituições.
Não
acreditamos na viabilidade de Portugal sair da UE, pelo seu próprio pé, como
modo de remediar a marcha acelerada do empobrecimento. Porém, pelo contrário, existe
uma probabilidade razoável de o directório que domina a UE decidir que Portugal
prejudica o euro, a bem-aventurança da União e dos “mercados”, fazer os
portugueses regressar a uma moeda própria, a elevadas taxas de inflação,
dificuldades ainda maiores no financiamento externo, com uma suspensão
indefinidamente temporária da democracia restante, como proposto pela Ferreira
Leite, no contexto de um filme negro com o FMI em rédea solta na imposição da
“estabilização”.
É
bom que a esquerda gaste alguns neurónios em perceber isto. Portugal é o seu
povo, a sua capacidade de trabalho, a sua língua e a sua cultura; tudo o mais é
ficção. E, aproveite as suas capacidades de mobilização popular (aliás,
minguantes devido ao seu descrédito) para inverter as tendências actuais.
2.5
– Notas sobre o culto da obediência e da hierarquia
A
esquerda portuguesa como ainda não saiu das relações de produção fordistas, da
reivindicação tácita ou expressa do defunto “modelo social europeu” trata de reproduzir
a cultura hierárquica, de obediência e resignação, que muito marca a sociedade
portuguesa e a sua História, de matriz católica e rural.
Só
por periodos breves é que se observou desobediência de massa e uma cultura de
autonomia dos trabalhadores – o primeiro quartel do século XX, com toda a
profusão movimentos anarquistas e de rebeldia contra as dificuldades provocadas
pela carestia e a guerra; sabe-se como terminou esta erupção, com a ditadura
clerical-fascista de Salazar. E também, de modo mais fugaz, em 1974/75 debelada
pela normalização novembrista dos generais e de toda a direita liderada por
Mário Soares, com a conivência do PC, “eleito” para a diversão das massas e para
o esmagamento dos “esquerdistas”, seus inimigos de estimação, desde os anos 60.
Esta última via que se vive hoje, entra em fase de putrefacção com a ditadura
dos “mercados” e a instituição de um poder cleptocrático e musculado.
O
espírito hierárquico, historicamente recente, emana directamente da estrutura
do poder da fábrica e da empresa, como expressão do poder do capital. A
obediência, por seu turno, cala fundo num povo pobre, com pouca instrução,
perante um Estado omnipresente, totalitário (e portante omnisciente), tão hábil
a manejar o cacete, como a gerar leis, regulamentos, despachos para manter os
paisanos a trabalhar serenamente… tal como serenamente se estabelecem as redes
mafiosas.
A
esquerda institucional insere-se no esquema de poder acima referido, incutindo
um respeito reverencial para com a lei, o sistema judiciário e o corpo
legislativo que não pára de se estender e de se tornar crescentemente
incoerente e confuso para facilitar a actuação do Estado e dos que o manipulam.
Citamos estes casos: (6)
- A própria legislação do trabalho que, naturalmente, merece toda a atenção das esquerdas e dos sindicatos, estabeleceu a figura do trabalhador subordinado o que, sendo aberrante, introduz a figura medievalesca da sujeição pessoal;
- Ao relevar de forma as figuras da ofensa da honra e da injúria como fontes de processo criminal, a propósito de tudo e qualquer facto menor – contra todas as tendências do direito moderno – a lei portuguesa dá ao Estado um poder repressivo imenso que fere, de facto a liberdade de expressão. Aconselhamos a esquerda institucional a explorar esta questão
- Para terminar este parêntesis com uma ilustração, refira-se que um desembargador foi a entidade que teve de emitir um acórdão que teve como base inicial uma queixa da digna colecção de mandarins que dá pelo nome de Associação dos Municípios do Algarve contra o presidente do Instituto de Meteorologia só porque uma previsão deste… não se concretizou! Um sistema legislativo e judiciário que permite a colocação destes “problemas” e nele envolve avultados recursos públicos, merece o caixote do lixo. Porém, se assim é, por que não apresentar queixa das promessas eleitorais não cumpridas pelos mandarins?
Está
claro que este sistema não é de todo desconfortável ao poder nem às burocracias
pois o emperramento das decisões e o seu arrastar no tempo são excelentes
válvulas de descompressão da conflitualidade social. E de perpetuação das
sujeições, da obediência às hierarquias, ad seculum seculorum…
As
tais esquerdas apostam também, como peça central, no primado da lei, no
cumprimento da legalidade, nos pareceres técnicos, nas competências de
gabinetes jurídicos para a resolução de conflitos sociais, jogando
exclusivamente no terreno montado e armadilhado pelo Estado e pelo poder
económico. Desviam a luta do quadro político, do conflito social entre
dominantes e dominados e conduzem-na para o campo técnico, para o quarto
escuro, estreito e fedorento da legalidade do Estado dos mandarins e do
patronato. Em resumo, colocam todos os ovos na cesta do capital, que agradece.
Quanto
ao aproveitamento da conflitualidade social para gerar resistências,
desobediências, desrespeito pelo Estado e pelos seus aparelhos, para colocar
abundantes “pauzinhos na engrenagem” ou, para a criação de alternativas
fomentadoras de auto-confiança por parte da multidão, observa-se uma total
indisponibilidade da esquerda institucional.
Exemplo
lapidar é o da aceitação do corporativismo montado na Concertação Social onde a
santa aliança governo-patronato vai impondo regras, sucessivamente mais lesivas
dos trabalhadores e da multidão em geral. Aos mandarins sindicais cabe obter
umas concessões daquele dueto, aceitar (regra UGT) ou refilar e não aceitar
(regra CGTP). No entanto, a caravana dos bandidos, passa. Não nos recordamos de
ver uma manifestação convocada para junto do profícuo conclave…
Talvez
não se tenha ainda descoberto a diferença entre legalidade e legitimidade. Se
essa distinção estivesse clara e em prática a contestação legal seria
articulada com formas de protesto ou desobediência, que envolvesse directamente
os interessados, com modelos construtores da unidade dos cidadãos em luta, do
reforço da sua auto-confiança e de pressão sobre o poder político e económico.
Os
partidos da esquerda institucional, criaram nos seus aparelhos um funcionalismo
de dirigentes e capatazes tal como uma empresa o faz, criando estruturas locais
sem autonomia ou iniciativa que não as provenientes do topo, como numa
estrutura militar. Essas secções locais, subalternas, servem para veicular as
instruções dos “de cima” ou, para convocar uns quantos basbaques que baterão
palmas perante os altos conhecimentos dos deputados ou dos chefes. Trata-se de
um caciquismo ambulatório, representação de um anel mais largo do que o
caciquismo paroquial, local, concelhio, distrital. A promoção por mérito, nas
cliques partidárias em geral, produz varas, duarteslimas, diasloureiros e
alguns milhares mais, menos mediáticos.
Os
sindicatos, por seu turno, também inventaram estruturas intermédias de
burocratas que nunca foram sindicalistas ou que já estão esquecidos desse tempo.
Para perpetuarem o seu poder e manter os trabalhadores como pagantes passivos de
quotas sindicais, instituiram estatutos bloqueados a qualquer oposição, mesmo
que isso promova o desinteresse da multidão pelo activismo sindical e mesmo um
alheamento das transformações na área do trabalho, observadas nas últimas
décadas de definhamento do fordismo. O importante é que se reproduza a
separação entre as direcções sindicais e a massa dos trabalhadores, para que se
perpetue o modelo da obediência dos últimos perante os primeiros.
Uma
das apostas mais divertidas dos sindicatos. é no excursionismo a Lisboa a
propósito das manifestações, onde os passageiros se mantêm alinhados e juntinhos
por grupos geográficos e profissionais que mais fazem parecer, quando desfilam
em procissão pela avenida abaixo, uma representação teatral das antigas
corporações de artes e ofícios. Essas procissões, qual reprodução de liturgias
religiosas várias, termina junto do altar, onde o sacerdote – num plano mais
elevado que a multidão - perorará as vacuidades do costume e fará o elenco das
vitórias conseguidas, oferecendo a garantia de que os crentes serão contemplados
com a bem-aventurança eterna. Sobre essa vacuidade, um dos elementos mais
recentes é o comunicado do CC do PCP, de 29/11 último que seria apenas hilariante,
se não fosse também trágico pela influência que irá ter sobre o comportamento
de muitos trabalhadores.
Neste
contexto, quem falar de desobediência civil toca em algo que assusta os boiardos
da esquerda institucional. Porque, se há coisa que os partidos não gostam é da
iniciativa que vem de baixo, susceptível de perturbar o sossego e a rotina dos
de cima. De facto, é arriscado se os de baixo, se unem, em acções concretas de
desobediência, com elementos de outros partidos ou sem partido e descobrem as maravilhas
da unidade na base, em vez de estarem à espera que os diversos directórios se
entendam para a construir. E se os activistas conseguirem resultados positivos
dessas lutas, construirem movimento social e concluirem não precisar de
mandarins para nada? Percebe-se porque razão esses mandarins preferem estar
todos juntinhos na AR, nas câmaras, nos sindicatos, a simular luta e
contestação. A sua mediação apaziguadora perder-se-ia e a sua boa vida estaria
em causa.
Papel
importante neste contexto é o da imprensa. Por um lado, encontrando-se nas mãos
de grupos económicos têm um interesse objectivo em que a multidão se quede
mansa e obediente. E, para a maioria dos jornalistas, dentro do quadro da
autonomia informativa de que possam dispor, é mais cómodo manter a rotina com
as frases feitas dos mandarins e os seus jogos florais, do que obter informação
qualificada sobre o que pensa a multidão e os seus movimentos. Como
consequência disso, sempre que algo foge dessa rotina – caso dos assuntos NATO
– em que os mandarins nada sabem ou querem saber, foi descortinável a
ignorância da imprensa sobre o assunto, daí resultando um péssimo serviço
informativo prestado ao público.
3
- A Cimeira da NATO em Portugal e o comportamento da esquerda institucional
Foi
durante a assembleia constituinte da PAGAN (30/9/2009) (7) que publicamente se
soube em Portugal haver em finais de 2010 a Cimeira da NATO. É que o mundo do
activismo anti-militarista europeu, das redes de intervenção a nível político
ou de desobediência civil, teve de encetar contactos com activistas individuais
portugueses, pois ninguém referenciava, o PC ou o BE como possuidores dessa
vertente. Assim, na reunião de Berlim (Outubro de 2009) da Coligação “No to
War, No to NATO”, só a PAGAN esteve representada.
Para
aquele acto constituinte da PAGAN, foram convidadas todas as pessoas, grupos e
partidos com potencial interesse em construir uma unidade anti-guerra e
anti-NATO, sem que a esquerda institucional cá da paróquia se tenha feito
representar. Até ao princípio do ano corrente, o site do CPPC, por exemplo,
estava francamente desactualizado, abandonado.
Em
síntese, o comportamento do BE e do PCP, diversificado, caracterizou-se pelos
seguintes factos:
3.1
- Atitudes da direcção do BE
Em
Dezembro de 2009, o actual deputado Jorge Costa - pertencente à seita trotskista
PSR, (inscrita numa tal quarta internacional) e integrada no BE - anunciou na
primeira reunião Pagan/ICC (International Coordinating Commitee da Coligação
“No to War, No to NATO”), o apoio da direcção do BE ao projecto PAGAN, o que
nunca se efectivou. No entanto, alguns militantes ingressaram na PAGAN, onde se
mantêm.
O
BE não divulgou um baixo-assinado, promovido pela PAGAN para a saída de tropas
portugueses do Afeganistão e foi-se recusando a promover sessões públicas de
esclarecimento e debate, com a PAGAN (excepto em Torres Vedras onde os
militantes locais em Novembro último, tomaram uma atitude digna).
Em
Outubro, a direcção do BE lembrou-se que tinha de fazer algo a propósito da
Cimeira da NATO e organizou uma conferência internacional, através de uma das
suas agências (Cultra). Procurou garantir a presença, no evento, de membros
estrangeiros da Coligação mas, recusou a de membros da PAGAN; isto é, uma
atitude xenófoba invertida, uma atitude de pacóvios deslumbrados com “produto”
estrangeiro.
Quando
começou a campanha de criminalização da PAGAN, a direcção do BE assustada,
reuniu e mandou retirar da PAGAN um seu funcionário (membro do PSR) que,
sublinhe-se, não foi seguido por mais nenhum dos membros do BE, simultaneamente
activistas do colectivo anti-militarista.
Durante
a Contra-Cimeira, os dirigentes do BE e os seus deputados (excepto José Soeiro)
não apareceram, ficando por saber se por já saberem tudo sobre a NATO ou por
não lhes terem sido oferecidos lugares no pódio. Ou ainda, por se inserirem na
categoria típica da esquerda portuguesa, pouco atenta aos problemas globais e
do militarismo.
Na
realidade, o BE manteve-se perto da PAGAN, para ver o que aquilo daria e dar
uma satisfação à esmagadora maioria dos seus militantes que simpatizam com o
projecto. Porém, a obsessão da direcção do BE com Alegre (que é a favor da NATO)
obrigou a direcção do BE a navegar entre duas águas, com todas as contradições
que daí advieram.
Nesse
desnorte, acabaram por se enquadrar na manifestação do dia 20, entre os
credenciados, no redil controlado pelo PC, defendidos pelos gorilas que
defendiam a turba contra a violência dos … “black block”, dos “anarquistas” dos
“violentos”, da PAGAN, do ICC, do WRI, de deputados europeus, do parlamento
inglês e outros perigosos díscolos, capazes de perturbar a ordem social vigente.
Para um partido maioritário à esquerda, portaram-se como mais uma daquelas
secções locais do aparelho do PC, com os respectivos pendões e bandeiras. A
direcção do BE comportou-se como o filho pródigo regressado a casa do pai PC,
arrependido de anos de desvario.
O
BE, como o PC, colaborou com a polícia na concretização do cerco às centenas de
manifestantes “não credenciados”, onde se encontravam vários dos seus membros,
entre os quais se relevam o deputado já referido, Soeiro e o conhecido “major”
Tomé, também membro da PAGAN. Mesmo sem ter havido sangue na manifestação dos
“não credenciados”, ele espirrou na cara de Louçã e de Jerónimo.
3.2
- Atitudes do PCP ou das respectivas agências
A
posição do PC, relativamente à PAGAN foi sempre coerente e traduz-se pela
palavra repúdio.
Em
Dezembro de 2009, dois membros do PCF, membros da Coligação a que a PAGAN
pertence, encontraram-se na CPPC com responsáveis deste, em procura da unidade,
sem qualquer resultado. Em Junho outros dois membros (alemães) da Coligação
tiveram um encontro com o CPPC e daí surgiu o acordo de a PAGAN e os seus
companheiros estrangeiros participarem numa manifestação única contra a NATO;
esse acordo viria a ser rasgado pelo PCP, como se verá adiante.
Somente
em Fevereiro de 2010 se verificou um contacto PAGAN/CPPC, por intervenção de um
quadro do PC, pouco agradado com a rigidez acampada no CPPC. Aí, um tal Carlos
Carvalho, ao que sabemos graduado da CGTP, da USL, da CPPC, da coligação PSNN
(pelo menos…) afirmou taxativamente, a recusa das acções de desobediência civil
e da unidade com a Coligação “Not to War, No to NATO” porque não quereria estar
sob a obediência … de estrangeiros! Para um quadro de uma organização como o PC
que, durante dezenas de anos, registou a mais fiel obediência ao PCUS, essa
afirmação só não provocará gargalhadas em ignorantes ou recem-nascidos.
Recorde-se
que na sua vida de subserviência ao extinto PCUS e à política seguida pela URSS
(teoria da soberania limitada, formulada por Brejnev), o PC aceitou a invasão
da Checoslováquia em 1968, o golpe militar de Jaruzelski, na Polónia em 1981, (claramente
contra a mobilização da classe operária) e nunca considerou que a invasão
soviética do Afeganistão é tão condenável como a dos EUA e da NATO. Por isso, o
carácter anti-guerra e anti-imperialista do PC e, mais concretamente, do CPPC,
madura organização com uns trinta anos de letargia é parcial, coxo e só engana
quem quiser ser enganado.
Quando
foi anunciada a manifestação de dia 20 pela coligação do PC consigo próprio
(PSNN), a PAGAN, no seguimento do acordo de Junho passou a divulgar e a
convocar toda a gente para a mesma. Desde sempre foi inabalável a vontade, na
PAGAN e nos seus aliados estrangeiros que, perante a NATO, não haveria lugar a
divisões ou manifestações separadas. Como é óbvio, para quem tenha presente que
a dimensão e a perigosidade da NATO não se compadece com atitudes corporativas
e tentativas estúpidas de apropriação do movimento anti-NATO.
Em
meados de Outubro, do universo PCP sai a recusa, em comunicado, de manifestação
conjunta, a partir de argumentos ridículos, como a de convocatória de “outra”
manifestação para o Marquês de Pombal, para a mesma hora e dia, por parte da
PAGAN. Fica-se sabendo que a referida manifestação seria aberta a “todos os
portugueses” prova evidente de um nacionalismo saloio e de que não terem
percebido ser a NATO uma instituição condenada por muita gente, para além da
ocidental praia lusitana; e mesmo para os nativos desta… alguns não eram dignos
do aval do PC para participar.
De
seguida, a polícia convoca a PAGAN para duas reuniões, para aquilatar se havia
propósitos de violência por parte da Coligação. Soube-se entretanto que teria
havido uma queixa contra a PAGAN, apresentada pela USL – União dos Sindicatos
de Lisboa, que melhor teria feito se procurasse mobilizar os trabalhadores para
os problemas do capitalismo de hoje.
Na
véspera da manifestação, novo comunicado da constelação PCP procurando banir
das ruas de Lisboa, não somente a PAGAN mas a coordenação da Coligação, a War
Resistants International (nonagenária organização pacifista), a Bomspotting e,
com mais um pouco de desvario, o pai Natal também estaria incluido no rol.
Curiosamente, a linguagem utilizada no comunicado é muito semelhante à utilizada
pela pide. Esta, referia-se ao PC como o “chamado PCP” e agora, o PC refere-se
à “chamada PAGAN”; coincidências reveladoras.
A
manifestação propriamente dita constituiu um momento de vergonha para o PC,
como foi evidenciado na imprensa e por testemunhos diversos na internet. Foi
mesmo divulgada a foto de João Dias Coelho, membro do CC do PCP, visto a
orientar a polícia na determinação dos “não credenciados” a reprimir (8). Quando
tal miserável tarefa cabe a um dirigente do mais alto nível cabe perguntar onde
reside a capacidade de pensar no PCP?
No
entanto, os “não credenciados” desfilaram na Avenida, sob alto risco, entalados
entre a polícia do Estado cleptocrático português e os gorilas do PCP cujos
dentes rangiam pela impossibilidade de não terem um Gulag à mão para colocar os
“esquerdistas”.
Entretanto,
em todos aqueles conturbados dias, alguém viu o auto-proclamado e inflamado
lídimo defensor das liberdades democráticas – o PCP – protestar contra as
centenas de estrangeiros retidos na fronteira? Ou gritar pela libertação dos 42
activistas presos no Monsanto? Dos que chegaram de fora para abrilhantar os
eventos do PCP durante a cimeira da NATO, algum ficou retido na fronteira?
Para
terminar. As esquerdas institucionais portuguesa e europeia são como pedaços de
esferovovite na água; não se afundam, nem têm rumo.
Notas:
(1) divertido aqui não é sinónimo
de gerador de boa disposição, de alegria mas, de elemento de distração, de
chamada de atenção para algo não essencial ou erróneo
(2) http://www.slideshare.net/durgarrai/para-que-servem-as-foras-armadas
ou neste blog
(1) http://www.slideshare.net/durgarrai/pensar-esquerda-sem-vacas-sagradas
ou neste blog
(3) http://www.slideshare.net/durgarrai/portugal-os-mercados-e-o-empobrecimento-generalizado
ou neste blog
(2) Casos contidos em “Estado
contra Direito”, de José Preto, edição
Argonauta, 2010
7/12/2010
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