segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Um caso paradigmático de gestão obscura: a dívida fiscal

  1. Uma panorama negro criado pelo PS/PSD 
Em meados de Novembro fomos surpreendidos pela revelação de que a cobrança executiva da DGCI patinava e que se situaria 5,4% abaixo do objectivo dos 1600 M euros para 2007.

Ora ainda em Agosto, quando a cobrança executiva começou a amainar Teixeira dos Santos apresentava-se cheio de optimismo e Macedo, sempre tão mediático, preparando-se para a saida, não iria ensombrar a sua imagem anunciando que a maré começava a vazar.

Segundo elementos publicitados pelo governo, a dívida fiscal em execução era, em finais de Outubro 13 355 M euros, isto é, mais do que a cobrança líquida de IRS+IRC (12 566 M euros) ou de IVA (12 400 M euros), em 2006. Segundo outro documento interno da DGCI, a dívida seria de 21500 M euros, sem os cidadãos serem esclarecidos das razões de números tão distintos.

Descobre-se, entretanto, que cerca de 90% dos estabelecimentos de restauração, bares e cafés tem usado programas fraudulentos de facturação onde se contabilizam apenas 25% das vendas reais; e que essa prática deverá ter-se estendido largamente à venda a retalho de pronto a vestir e calçado.

Por seu turno, na Segurança Social, o último elemento presente em relatório refere-se a uma dívida de 2425 M euros em fins de 2003. Porém, em 2001 era de 2940 M euros (correspondentes a quase um quadrimestre de contribuições), calculando-se em 714 M euros o acréscimo de contribuições não cobradas naquele ano. A redução de 2003 deve-se, em parte, à titularização ordenada pela Ferreira Leite, para baixar o deficit, (esse tema,  será desenvolvido mais adiante), outra à barafunda contabilística que por lá grassa.

Ainda na Segurança Social, para se saber alguma coisa é preciso reunir informação dispersa, divulgada com intuitos laudatórios. Referem sempre os valores (crescentes) de cobrança anual mas, quanto à dívida exequenda só se sabe que até Janeiro de 2002 foram instaurados processos no valor total de 130 M euros e que em 2003 a instauração anual se cifrou em 222 M euros.

Sabendo-se, historicamente que as empresas em dificuldades deixam de pagar, em primeiro lugar, à Segurança Social e só numa fase posterior à DGCI, é de admitir um crescimento maior do que no caso da dívida fiscal. Por outro lado, em 2001, um estudo da Inspecção-Geral de Finanças apontava para 40% a parcela de dívida incobrável em processo executivo nas Finanças, relativo a créditos da Segurança Social.

Em suma, os sistemas de informação, quer na DGCI, quer na Segurança Social são um desastre; os dados são pouco fiáveis e não há uma informação regular e esclarecedora a quem paga, os contribuintes. O que se sabe é pouco, parcelar e misturado com a propaganda dos governos ou de mandarins desejosos de mostrar obra. O Tribunal de Contas é impotente, a imprensa cala-se e a AR dorme, à sombra da maioria absoluta do PS e ao comprometimento do PSD com o descalabro. Pior que tudo é a multidão pagar e pagar para apaziguar um deficit insaciável e abstracto, sem qualquer contrapartida em termos de melhoria de salários, pensões, saúde, educação, transportes…

2. As prescrições

As prescrições que vão sendo reveladas pelo mandarinato dão uma ideia do descalabro das contas públicas que beneficiam alguns mas, raramente quem trabalha.

A informatização dos processos executivos da DGCI dura há cerca de oito anos e vem sendo conseguida apesar da grande resistência da estrutura … mais simpatizante dos processos em papel geridos pelos diversos níveis da hierarquia. Assim, em todo esta longa marcha que ainda não acabou, há processos que ficam para trás, esquecidos e outros respeitam a contribuintes já falidos ou desaparecidos na voragem do tempo ou da crise económica. Processos que prescrevem, como o do Carrapatoso, da Vodafone, do PSD ou do Compromisso Portugal para o qual prescreveu uma dívida de 700000 euros de IRS.

De acordo com declarações do DGCI, até Outubro último haviam prescrito 78436 processos executivos no valor de 531 M euros e considerados incobráveis (declarados em falhas, mais tecnicamente) 134 750 processos no equivalente a 528 M euros. A soma corresponde a um oitavo da receita líquida de IRS em 2006; isto é, a oitava parte do que cada um de nós paga de IRS serve para tapar o buraco aberto pela deliberada incúria do gang PS/PSD.

Em 2006 as prescrições foram de 500,4 M euros dos quais 285 M relativamente a IVA, 89 M a  IRC e 65 M a IRS, contra 231,5 M euros em 2005, quase tudo dívida securitizada, cujo significado explicitaremos adiante. Na “ transparente” Segurança Social … parece que não há prescrições pois só se encontra, em 2005 um valor de 1,17 M euros, referido na Conta Geral do Estado!

3. A titularização ou securitização

Manuela Ferreira Leite ficará eternamente ligada a esta operação que em 2003 correspondeu à venda de 11447 M euros de dívidas dos contribuintes ao Estado ou à Segurança Social, por 1760 M euros. O comprador – o Citygroup, um dos maiores bancos mundiais – ficou com o direito a que lhe substituam os créditos incobráveis ou indevidos, por outros, cobráveis. Como a dívida cedida respeitava a valores anteriores a Setembro de 2003, as substituições iriam, forçosamente, ser feitas com dívida gerada nos 12 anos seguintes, reduzindo assim, a cobrança desses anos.

Como foi o Estado português que continuou com as tarefas de cobrança da dívida titularizada, por conta do Citygroup, os valores anunciados por aí relativos a cobrança executiva, são parcialmente para entregar ao banco internacional. Não são para reduzir o deficit, como anunciam os socratóides mas, para pagar a redução contabilizada naquele ano; nem, menos ainda, para investimento no bem estar da população.

A redução do deficit de 2003, foi uma operação de vistas curtas que salvou a honra do convento PS/PSD naquele ano mas, que onera o futuro, que tem custos elevadíssimos, operação exigida por Bruxelas no âmbito do PEC. Mais recentemente o Eurostat veio a demonstrar (e a inviabilizar futuramente novas operações) que a titularização não passou de um empréstimo que, de facto, transferiu para o futuro a redução do deficit contabilizada em 2003. Manuela lavou daí as mãos como Pilatos e terá pensado que quem vier atrás que feche a porta e apague as luzes.

Só de Janeiro de 2006 a Outubro último e apenas no que se refere à dívida titularizada administrada pela DGCI terão prescrito cerca de 730 M euros, isto é, quase 8% do valor nominal da dívida cedida inicialmente (9446 M euros). Desconhece-se o que se passa com a Segurança Social, ou a dívida anulada, por inexistente ou incobrável por outros motivos. No entanto, em todos os casos, o Citygroup receberá novos créditos, correspondente a dívidas de constituição recente.

4. Uma criminosa falta de transparência

No que respeita à DGCI, só a partir de 2005 as Contas Gerais do Estado divulgam alguma coisa sobre a dívida fiscal. Mas, com muitas lacunas pois aos contribuintes e cidadãos em geral somente cabe pagar e calar.

No caso da Segurança Social o secretismo ainda é maior. Existem há anos milhões de remunerações a lançar nos sistemas de onde nascem as contas correntes e estas foram iniciadas com valores muitas vezes lançados sem qualquer rigor técnico, qualquer controlo de qualidade ou auditoria. Não sabem o valor da dívida e há anos que o Tribunal de Contas se vem recusando a aprovar as contas definitivamente, tal é a confusão contabilística. O ministro, várias vezes referiu que brevemente se saberá o valor da dívida. Curiosamente, até há alguns anos a Segurança Social publicava regularmente enormes listas dos devedores de mais de 25000 euros e a dívida, ainda que com algumas falhas, era conhecida. Recentemente e a reboque da DGCI passaram a divulgar listas de devedores na Internet, no meio de grande alarido socratóide; actualmente estão lá 10 indivíduos e 57 empresas, o que é ridículo e revelador do descalabro.

No final de 2007 o Tribunal de Contas enviou para a AR uma queixa pela impossibilidade de validação das contas do Estado e da Segurança Social. Atesta assim a sua impotência e, na AR, os do costume verberarão contra este estado de coisas, sabendo-se que a maioria absoluta socratóide (com o apoio do PSD, se fosse necessário) manterá o statu quo. Apesar dos cães ladrarem, a caravana passa, impune…

O mesmo Estado que do alto da sua omnipotência exige verdade e transparência às contas das empresas e dos cidadãos recusa-se a apresentar essas características. Com que legitimidade se fala em deficit se não há rigor contabilístico? Com que legitimidade se exigem impostos crescentes e sacrifícios se, na realidade não se sabe para quê?

A escassos dias do último natal, a DGCI decidiu enviar 238 000 mensagens electrónicas a outros tantos devedores, numa tentativa desesperada de cumprir as metas de cobrança executiva. Então qual a eficácia das tão propagandeadas penhoras de contas bancárias e de automóveis? Como estamos de colaboração dos bancos se a DGCI dà instruções aos seu pessoal para recolher dados sobre contas bancárias aos seus inspectores de visita às empresas ? E qual a margem de erro de comunicações com os contribuintes por correio electrónico sabendo-se que este endereço é, em regra bastante variável ? É só porque não têm tempo para envios de cartas ? Porque é mais barato? E os que não têm endereço electrónico são isentados? E quantos serão? Pânico ou desespero ?

No número acima referido incluem-se 153 000 devedores de IRS, 54 000 de IRC e 29 000 de IMI. Este último aspecto é revelador da crise social que acampou em Portugal pois atesta a existência de muitas famílias que não podem pagar o imposto das casas onde habitam que, em regra não têm valores muito elevados.

A DGCI não tem tido na sua prática uma fiscalização efectiva das grandes empresas, pois acredita que em Portugal não há Arthur Andersons, nem Enrons nem, obviamente, 25 anos de prisão para prevaricadores desse gabarito.

Mas, afinal parece que há, de acordo com o secretário de estado Amaral Tomás; e é para isso que servem consultoras financeiras, certos escritórios de advogados e a figura do planeamento fiscal. O actual caso dos favorecimentos por parte do BCP revela que a DGCI, o Banco de Portugal, a CMVM (do PSD Carlos Tavares, sucessor do seu amigo, Teixeira dos Santos, ministro PS), não passam de tigres de papel, muito lestos em apanhar pardais sem tocar nos abutres.

O plasmódio que se intitula Ministro do Trabalho e da Segurança Social exulta sempre que divulga dados sobre baixas fraudulentas ou desempregados com subsídios indevidos, tal como o seu sádico colega da Saúde ao dificultar o acesso a consultas ou a encarecer os medicamentos para os trabalhadores e reformados.

Foram surpresa as afirmações de Amaral Tomás, sobre a fraude fiscal que (imagine-se!) também está presente nas grandes empresas, com relevo nas de construção e obras públicas. O van Zeller, da CIP subscreveu e a federação dos empresários da construção saiu daquela patriótica instituição.

Amaral Tomás, entalado entre a cobrança que não cresce e as obrigações de cumprimento das metas orçamentais, estrebucha, referindo a falta de meios, a utilização da artilharia pesada da PJ e do DIAP, a PGR e alicia a plebe com a promessa do IVA voltar aos 19% se a balda fiscal se reduzisse, corroborado pelo ministro que baixaria o IRS em 38% ou 25% o IVA se todos pagassem os seus impostos. Banha da cobra e rançosa.

Para mostrar serviço terão apanhado irregularidades numa empresa de comércio de bacalhau da região Centro e na Iberomoldes. Esta última, geralmente apontada como um modelo de internacionalização e inovação tecnológica pertence a Henrique Neto, ex-deputado do PS, crítico de Sócrates, o que decerto será … coincidência. Numa telenovela cai bem uma cena de vingança.

5. Os tempos (mais) difíceis que se avizinham

No tempo de Cavaco, os excedentes da Segurança Social foram utilizados para financiar o Estado central e foi adoptada uma política de facilitismo para que as empresas se financiassem não pagando as contribuições da Segurança Social, durante a recessão de 1993-95. A bandalheira foi tal que surgiu o chamado “Plano Mateus” para que se cobrasse algum, com isenções de juros de mora, fórmula que Ferreira Leite repetiu, com menos êxito, em finais de 2002. Porém, a crise agora é muito mais funda e duradoura, a Segurança Social deixou de ser maná e existe um PEC – Programa de Estabilidade e Crescimento decretado em Bruxelas, no qual ninguém vê onde está o crescimento e onde o E parece corresponder à letra inicial de estagnação.

Há dois tipos de fuga fiscal. Uma, é constituída pela evasão ilegal e a fraude grosseira de pequenos e médios empresários, ainda que largamente impune porque considerada implicitamente como uma política de amortecimento da crise económica; forma o principal entretenimento dos órgãos públicos de fiscalização e polícia, como a mediática ASAE.

A segunda é a evasão mais ou menos legal, praticada pelos chamados “investidores”, com a participação indispensável da banca e do sistema financeiro, que determina a configuração da legislação fiscal e as constantes alterações presentes nos orçamentos do Estado - à revelia do bom senso que aponta para a conveniência de um quadro estável das regras de tributação - assim transformadas num verdadeiro emaranhado, confuso, incoerente e onde pululam advogados mafiosos e consultoras financeiras internacionais. Englobam-se também aqui todas as técnicas de pagamentos salariais em espécie (carro, viagens, cartões de crédito, etc) de que beneficiam capitalistas, altos gestores e pequenos e médios quadros, assim aliciados para as vantagens da gestão capitalista e que redundam numa vultuosa fuga das contribuições para a Segurança Social e de IRS.

As relações do BCP com dezenas de sociedades off-shore são um exemplo da vigarice que vigora aos mais altos níveis do capitalismo luso e, decerto, não são exclusivo daquele banco. O seu conhecimento público não resultou de uma atitude do Estado no sentido de “moralizar” o funcionamento do “mercado”, abstracção assaz referida nos discursos e nos media. Resultou antes da zanga de comadres pelo controlo do banco, com os mandarins a arrastar os pés, contrariados, com o mediatismo com que o assunto se rodeou.

Pode pensar-se que, tecnicamente, deve ser exigível sejam divulgados, no que respeita ao Estado ou à Segurança Social alguns elementos sobre a dívida exequenda, retomando assim, o tema inicial deste texto. As contas públicas seriam menos opacas se se conhecesse com regularidade: o valor da dívida, por imposto relativo a 1 de Janeiro, a nova dívida gerada no ano, a dívida cobrada nesse ano, a dívida que prescreveu acompanhada de listagem dos beneficiários, a dívida anulada por outros motivos, a dívida a transitar para o ano seguinte, os anos a que se referem as dívidas cobradas, a parcela respeitante a acordos de regularização. Se existissem fórmulas legais reais de responsabilização criminal e pecuniário dos mandarins, desapareceria esse infame estatuto da imunidade. Que se soubessem os custos associados a cada euro de dívida recuperado, por imposto, cálculos que nunca se fazem. Que se conhecessem os consultores contratados e o valor dos contratos com a DGCI e com a Segurança Social, no âmbito dos sistemas de informação, sanguessugas instaladas há muitos anos nas próprias instalações públicas.

Estas exigências sumárias são exequíveis? Não são. O capitalismo sempre precisou de transgredir as suas próprias leis para agilizar o processo de acumulação; de discriminar positivamente alguns eleitos, impondo o rigor da lei à grande maioria. A lei é a materialização das regras que convêm aos poderosos. E, por isso, não há soluções técnicas aplicáveis, nem reformas políticas no quadro do capitalismo, que obstem ao roubo. Capitalista é sinónimo de ladrão.

Para mais, a burguesia portuguesa é francamente subalterna num contexto de acentuada globalização das actividades económicas e financeiras pelo que a manipulação das contas públicas lhe é absolutamente vital. O álibi do deficit tem sido uma ferramenta excelente para a redistribuição do rendimento em desfavor da multidão e quanto mais prolongado e difuso ele for, melhor.

O aparelho de Estado português está infestado de dirigentes mafiosos mormente PS/PSD, enquadrados por consultores atentos e pouco escrupulosos. E, para agravar, à omnipresença desse entulho, tem vindo a ser criado um ambiente de ameaça e intimação que paralisa as iniciativas de quadros e dirigentes honestos.

Em suma, não há uma verdadeira solução no âmbito da actual democracia de mercado, a resvalar para um autoritarismo fascizante, proporcional às dificuldades de acumulação e à resistência da multidão.

31/12/2007


Outros sobre os temas abordados neste artigo, presentes no blog:

  • A lista oculta dos devedores da Segurança Social
  • Administração pública - Ignorância, preconceitos e os jogos dos salteadores
  • Como se descapitaliza a Segurança Social portuguesa nas mãos do PS e do PSD
  • O Orçamento para 2008
  • Para que serve a burguesia portuguesa ?
  • O relatório de Outono do Banco de Portugal
  • Estratégia para um Sistema de Segurança Social favorável à multidão de trabalhadores e ex-trabalhadores 
  • Segurança Social; estudo preocupante divulgado recentemente


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