O direito e o direito internacional
O direito internacional, como
todos os ramos do direito, espelha os interesses dos mais fortes.
No direito civil o princípio
mais acautelado é o da propriedade, ficando secundarizados os direitos de quem
não tem propriedade ou as questões sem uma valorização económica. O caso mais
paradigmático é o do contrato de casamento muito detalhado nos regimes de bens
e na herança mas, deixando para uma relativa tolerância legal, a violência
doméstica, a recusa dos casamentos entre homossexuais, a pedofilia.
Nos ramos económicos do
direito, vem-se afirmando o primado das chamadas pessoas colectivas, mormente
das empresas, face aos indivíduos, em paralelo com a ocultação e desresponsabilização
dos donos ou executores dos actos das ditas pessoas colectivas. Um exemplo está
na forma como empresas majestáticas como as EDPs, as PTs, as Brisas lidam com
as pessoas, com a sobranceria própria de quem está “por cima”, com o apoio da
lei construída à sua medida. Outro exemplo, é vermos se algum dos cinzentos responsáveis
do BCP envolvidos nas fraudes é preso, a despeito dos prejuízos causados à
instituição.
No plano internacional, as
relações entre indivíduos e as ditas pessoas colectivas e entre estas, são
pautadas, em primeiro lugar, pelos interesses do sistema financeiro e das
multinacionais, estabelecendo-se, hierarquicamente diversas esferas, de acordo
com a relevância económica dos interesses em presença.
Na política internacional
torna-se, eventualmente, mais transparente, a dinâmica de adaptação das regras
ao interesse dos mais fortes. Como os protagonistas são estados e organizações
estatais há uma maior visibilidade dessas regras e das suas modificações, para
as pessoas comuns; por outro lado, tendo em conta a dimensão das forças em
presença, pela conjugação de interesses de diversa ordem, a variabilidade, a
volatilidade dessas regras é maior; finalmente, a sua aplicação atinge um
volume enorme de indivíduos, pelo que mais dificilmente pode ser negligenciado
o seu conhecimento.
A História regista a
preocupação de criar uma ordem estável entre os Estados, admitindo-se com isso
que os povos neles inseridos ficariam felizes e contentes e que os Estados
seriam os impolutos representantes de todos os seus nacionais, esquecidos dos
seus antagonismos sociais domésticos. Essa preocupação, em regra, tem constado
na criação de um ordenamento jurídico que acautele os interesses dominantes, em
detrimento dos Estados concorrentes, rivais ou subalternos.
A declaração universal dos
direitos do Homem, os princípios da coexistência pacífica, da não agressão, da
não ingerência nos assuntos internos têm tantos atropelos que pelo seu número,
transformam o que deveria ser excepção a sancionar, em regra. São exemplos, Guantanamo,
o bloqueio a Cuba, as invasões recentes do Afeganistão ou do Iraque, a
Tchetchénia ou a Palestina, o Kosovo enfim.
Como não somos ingénuos, não
acreditamos na construção de uma Humanidade decente na base de Estados
nacionais e patrioteirismos mais ou menos arrebatados, de aparelhos de Estado
mais ou menos autoritários, isto é, num quadro de capitalismo. Mas não é isso
que nos move, no contexto destas linhas.
Kosovo: coerência ou
incoerência da “comunidade internacional”
Como a Jugoslávia era um
Estado atípico, destruído o chamado equilíbrio da guerra fria, tornou-se pasto
para a expansão do capital ocidental, mormente alemão, que se apressou a inaugurar
a implosão da federação dos eslavos do sul, com a secessão da Eslovénia e da
Croácia, com o apoio entusiástico do Vaticano (da dupla Wojtyla/Ratzinger) desejosos
de recuperar o rebanho católico das antigas possessões austro-húngaras. Seguiu-se
a guerra da (ou pela) Bósnia, a criação da Macedónia ou do Montenegro e a
“humanitária” intervenção da Nato no Kosovo, dirigida por Clinton.
Refira-se, a talhe de foice,
que Clinton era admirado por certa esquerda europeia e foi apoiado pelo Joshka
Fischer ex-esquerdista alemão como ministro rendido às virtudes do
expansionismo teutónico. Essa é a mesma esquerda de plástico que agora mantém
grandes esperanças no Obama, acreditando que pode chegar à presidência dos EUA
um candidato anti-sistema. Ora, se há instituições no planeta controladas pelo
capital, a presidência dos EUA é a primeira e, portanto, é impensável a eleição
de um candidato anti-sistema; por outro lado, Obama não o é.
A administração Bush adoptou
a figura do “state-building” da autoria de Fukuyama, género de reeengenharia de
povos e territórios, legítima desde que entregue a dirigentes “de confiança”
que assegurem a segurança dos investimentos das multinacionais, a liberdade dos
movimentos de capitais e a democracia de mercado, com eleições periódicas,
mesmo que pouco transparentes ou grosseiramente fraudulentas (Musharraf, Shakashvili
na Geórgia, Kibaki no Quénia…). Num passado recente o impagável Reagan
propagara a figura bíblica do eixo do mal e o conceito de estados-pária.
Há vários locais onde se vão construindo Estados, em situações e sob
formas muito dispares.
- No Afeganistão, a Nato – fora da área dos seus membros e sem qualquer ameaça visível aos mesmos - mantém os senhores da guerra de sempre e a florescente cultura da papoila, impondo como suserano um Karzai que mais não é que o autarca de Cabul, depois de ter sido funcionário de uma petrolífera americana; e ao que parece, a coisa não corre pelo melhor, passados quase sete anos de intervenção.
- Na Palestina, os EUA e a UE compraram um Abu Abbas, chefe de um bando de corruptos para viabilizar um bantustão ao serviço da excrescência israelita e, claro está, não punem as agressões de Israel que colocam os palestinianos entre a escravidão e o genocídio.
- O Curdistão iraquiano é um verdadeiro estado protegido pelos EUA que calam com dólares o governo fantoche de Bagdad. O facto, não é assumido para não prejudicar as relações com a Turquia, também com um “problema curdo” mas, que tem a chave dos Dardanelos e do Bósforo. A mesma Turquia tem, por conseguinte, autorização para bombardear os curdos da Turquia tão curdos como os do Iraque, vassalos dos EUA. Um modelo de coerência, com se vê.
- Há mais de trinta anos, a Turquia invadiu o norte de Chipre, criou uma república só por si reconhecida (e paga) e que ninguém mais reconhece. Os paralelos com o Kosovo são evidentes mas a solução é distinta.
- No Sahara os acidentais aceitaram a invasão e a ocupação marroquina mas como o sultão é de confiança… nada a opor.
Sem dúvida que não existe um critério uniformemente aplicável para a
criação de Estados; as diferenças étnicas, religiosas e linguísticas não são determinantes;
existem 5000 a
7000 povos sem Estado e, não parece defensável a sua criação, a não ser para a
formação de estados vassalos como acontece com o Kosovo e, mais pacificamente
com o Nauru, as ilhas Marshall, o Vanuatu, Timor… Ou, como o Vaticano, única
multinacional constituída como Estado.
A Checoslováquia dissolveu-se sem dramas entre as suas principais
componentes. Com o exemplo kosovar, a Rússia pode invadir a Transdniéstria e
libertá-la da Moldávia? Ou apenas pode esmagar os tchetchenos? A despeito das
suas identidades, Euskadi ou a Catalunha, a Córsega, os turcos da Bulgária, os
húngaros romenos, a Padânia do Bossi, um qualquer cantão suíço, podem arranjar
um UÇK com um mafioso Thaci à frente e pedir a intervenção da Nato?
E, ainda no contexto da ex-Jugoslávia, os albaneses da Macedónia podem
unir-se aos outros? E os do Sandjak ? E os sérvios que estão no Kosovo podem
fazer secessão ou, se o não fizerem podem dormir descansados face a um governo
kosovar de albaneses de peito inchado pelo apoio do binómio EUA/UE? Poderão os
sérvios bósnios juntar-se aos seus irmãos de Belgrado, a Croácia apoderar-se da
Krajina e da Herzegovina reduzindo-se, assim, a Bósnia a pouco mais do que
Serajevo, obviamente purificada, “muçulmana”, identidade que os ocidentais
criaram para acirrar os ânimos naquelas paragens.
E, como ninguém parece preocupado com a viabilidade dos Estados (Timor
é um exemplo muito conhecido), cada um de nós, alegando as diferenças face ao
Socratistão pode, no limite, arranjar um hino, uma bandeira e declarar a
independência que, decerto, será acarinhada por Bruxelas e Washington, pois
representará a libertação da canga genocida do governo português.
Aliás a Madeira do Bokassa Jardim exultou com a “libertação” do Kosovo
e os húngaros da Voivodina, inscrita na Sérvia até terão mais hipóteses que os
outros porque… estão sofrendo (?) penosamente a tirania de Belgrado.
A UE: pulsão fragmentária e pulsão centrípeta. As novas
desigualdades
Esta política fragmentária e irresponsável está prenhe de dúvidas,
perplexidades, incertezas e perigos.
Um separatismo criado pela invasão de um pequeno Estado, empobrecido
pela guerra civil, pela liderança do inábil útil Milosevic, (comodamente
falecido antes do julgamento pois teria muitas coisas interessantes a revelar
sobre as jogadas dos EUA e da UE) é um elemento novo na História recente. A
Nato repete Hitler quando, em 1938, “libertou” os perseguidos sudetas, criando
um estado vassalo (Eslováquia) e um protectorado (Boémia); agora, é só mudar os
nomes.
No que se refere a estas aparentes incoerências veja-se como jogam, no
plano político (para quem acredite na possibilidade de princípios nas relações
entre Estados), a pulsão fragmentária para o outro lado da fronteira externa da
UE e a pulsão centrípeta, intramuros.
Por um lado, fomenta-se a necessidade de criar o caos ou o vazio à
volta da UE, para absorver em rodadas sucessivas, novos territórios,
fragilizados, atomizados, empobrecidos, a quem se oferece, durante alguns anos,
um prato de lentilhas (também se designa por fundos comunitários…), a troco da
liberdade dos capitais, da flexisegurança e da incineração de qualquer
resquício de política social no forno da contenção do gasto público. Aí está a
pulsão fragmentária para o exterior.
Por outro lado, a pulsão centrípeta evidencia-se nas uniformidades
construídas através da moeda única, do BCE, da PESC, da PESD, das políticas
securitárias (exército único, Schengen, controlo da imigração) e de um tratado
constitucional (dito de Lisboa para deixar Sócrates na História). Cria-se
assim, por intermédio de alargamentos territoriais sucessivos, um espaço enorme
(chama-se mercado, em “economês”) incrivelmente diversificado em termos
culturais, sociais, económicos e linguísticos. Nesse espaço, a globalização, a
flexisegurança, a deriva neoliberal vão causando novas desigualdades, novas
clivagens sociais e geográficas, nas quais Portugal é um evidente caso de
insucesso, como país aderente. Assim, a UE parece um balão que incha, incha até
que rebenta, um buraco negro onde a densidade de desigualdades pode criar uma
implosão ou o recurso a fórmulas fascizantes de estancar os protestos da
multidão (como no caso da aprovação do tratado constitucional, sem referendos).
O fulcro dessa vertigem conquistadora está
politicamente centrado na Alemanha e é economicamente impulsionada pelas
multinacionais. Há cerca de vinte anos, a direcção foi a da Europa do Sul,
depois a bússola virou-se para Norte, mais recentemente guinou para Leste (as
novas jogadas desenham-se agora na Ucrânia, em concorrência com a Rússia) e,
novamente a sul, ao Mediterrâneo, com os protagonismos recentes e concorrentes
de Zapatero e Sarkozy. Os Balcãs
continuam a ser o ventre mole da Europa.
Fevereiro 2008
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