quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O Kosovo e os perigos da política comunitária

O direito e o direito internacional

O direito internacional, como todos os ramos do direito, espelha os interesses dos mais fortes.

No direito civil o princípio mais acautelado é o da propriedade, ficando secundarizados os direitos de quem não tem propriedade ou as questões sem uma valorização económica. O caso mais paradigmático é o do contrato de casamento muito detalhado nos regimes de bens e na herança mas, deixando para uma relativa tolerância legal, a violência doméstica, a recusa dos casamentos entre homossexuais, a pedofilia.

Nos ramos económicos do direito, vem-se afirmando o primado das chamadas pessoas colectivas, mormente das empresas, face aos indivíduos, em paralelo com a ocultação e desresponsabilização dos donos ou executores dos actos das ditas pessoas colectivas. Um exemplo está na forma como empresas majestáticas como as EDPs, as PTs, as Brisas lidam com as pessoas, com a sobranceria própria de quem está “por cima”, com o apoio da lei construída à sua medida. Outro exemplo, é vermos se algum dos cinzentos responsáveis do BCP envolvidos nas fraudes é preso, a despeito dos prejuízos causados à instituição.

No plano internacional, as relações entre indivíduos e as ditas pessoas colectivas e entre estas, são pautadas, em primeiro lugar, pelos interesses do sistema financeiro e das multinacionais, estabelecendo-se, hierarquicamente diversas esferas, de acordo com a relevância económica dos interesses em presença.

Na política internacional torna-se, eventualmente, mais transparente, a dinâmica de adaptação das regras ao interesse dos mais fortes. Como os protagonistas são estados e organizações estatais há uma maior visibilidade dessas regras e das suas modificações, para as pessoas comuns; por outro lado, tendo em conta a dimensão das forças em presença, pela conjugação de interesses de diversa ordem, a variabilidade, a volatilidade dessas regras é maior; finalmente, a sua aplicação atinge um volume enorme de indivíduos, pelo que mais dificilmente pode ser negligenciado o seu conhecimento.

A História regista a preocupação de criar uma ordem estável entre os Estados, admitindo-se com isso que os povos neles inseridos ficariam felizes e contentes e que os Estados seriam os impolutos representantes de todos os seus nacionais, esquecidos dos seus antagonismos sociais domésticos. Essa preocupação, em regra, tem constado na criação de um ordenamento jurídico que acautele os interesses dominantes, em detrimento dos Estados concorrentes, rivais ou subalternos.

A declaração universal dos direitos do Homem, os princípios da coexistência pacífica, da não agressão, da não ingerência nos assuntos internos têm tantos atropelos que pelo seu número, transformam o que deveria ser excepção a sancionar, em regra. São exemplos, Guantanamo, o bloqueio a Cuba, as invasões recentes do Afeganistão ou do Iraque, a Tchetchénia ou a Palestina, o Kosovo enfim.

Como não somos ingénuos, não acreditamos na construção de uma Humanidade decente na base de Estados nacionais e patrioteirismos mais ou menos arrebatados, de aparelhos de Estado mais ou menos autoritários, isto é, num quadro de capitalismo. Mas não é isso que nos move, no contexto destas linhas.

Kosovo: coerência ou incoerência da “comunidade internacional”

Como a Jugoslávia era um Estado atípico, destruído o chamado equilíbrio da guerra fria, tornou-se pasto para a expansão do capital ocidental, mormente alemão, que se apressou a inaugurar a implosão da federação dos eslavos do sul, com a secessão da Eslovénia e da Croácia, com o apoio entusiástico do Vaticano (da dupla Wojtyla/Ratzinger) desejosos de recuperar o rebanho católico das antigas possessões austro-húngaras. Seguiu-se a guerra da (ou pela) Bósnia, a criação da Macedónia ou do Montenegro e a “humanitária” intervenção da Nato no Kosovo, dirigida por Clinton.

Refira-se, a talhe de foice, que Clinton era admirado por certa esquerda europeia e foi apoiado pelo Joshka Fischer ex-esquerdista alemão como ministro rendido às virtudes do expansionismo teutónico. Essa é a mesma esquerda de plástico que agora mantém grandes esperanças no Obama, acreditando que pode chegar à presidência dos EUA um candidato anti-sistema. Ora, se há instituições no planeta controladas pelo capital, a presidência dos EUA é a primeira e, portanto, é impensável a eleição de um candidato anti-sistema; por outro lado, Obama não o é.

A administração Bush adoptou a figura do “state-building” da autoria de Fukuyama, género de reeengenharia de povos e territórios, legítima desde que entregue a dirigentes “de confiança” que assegurem a segurança dos investimentos das multinacionais, a liberdade dos movimentos de capitais e a democracia de mercado, com eleições periódicas, mesmo que pouco transparentes ou grosseiramente fraudulentas (Musharraf, Shakashvili na Geórgia, Kibaki no Quénia…). Num passado recente o impagável Reagan propagara a figura bíblica do eixo do mal e o conceito de estados-pária.

Há vários locais onde se vão construindo Estados, em situações e sob formas muito dispares.

  • No Afeganistão, a Nato – fora da área dos seus membros e sem qualquer ameaça visível aos mesmos -  mantém os senhores da guerra de sempre e a florescente cultura da papoila, impondo como suserano um Karzai que mais não é que o autarca de Cabul, depois de ter sido funcionário de uma petrolífera americana; e ao que parece, a coisa não corre pelo melhor, passados quase sete anos de intervenção.

  • Na Palestina, os EUA e a UE compraram um Abu Abbas, chefe de um bando de corruptos para viabilizar um bantustão ao serviço da excrescência israelita e, claro está, não punem as agressões de Israel que colocam os palestinianos entre a escravidão e o genocídio.

  • O Curdistão iraquiano é um verdadeiro estado protegido pelos EUA que calam com dólares o governo fantoche de Bagdad. O facto, não é assumido para não prejudicar as relações com a Turquia, também com um “problema curdo” mas, que tem a chave dos Dardanelos e do Bósforo. A mesma Turquia tem, por conseguinte, autorização para bombardear os curdos da Turquia tão curdos como os do Iraque, vassalos dos EUA. Um modelo de coerência, com se vê.

  • Há mais de trinta anos, a Turquia invadiu o norte de Chipre, criou uma república só por si reconhecida (e paga) e que ninguém mais reconhece. Os paralelos com o Kosovo são evidentes mas a solução é distinta.

  • No Sahara os acidentais aceitaram a invasão e a ocupação marroquina mas como o sultão é de confiança… nada a opor.

Sem dúvida que não existe um critério uniformemente aplicável para a criação de Estados; as diferenças étnicas, religiosas e linguísticas não são determinantes; existem 5000 a 7000 povos sem Estado e, não parece defensável a sua criação, a não ser para a formação de estados vassalos como acontece com o Kosovo e, mais pacificamente com o Nauru, as ilhas Marshall, o Vanuatu, Timor… Ou, como o Vaticano, única multinacional constituída como Estado.

A Checoslováquia dissolveu-se sem dramas entre as suas principais componentes. Com o exemplo kosovar, a Rússia pode invadir a Transdniéstria e libertá-la da Moldávia? Ou apenas pode esmagar os tchetchenos? A despeito das suas identidades, Euskadi ou a Catalunha, a Córsega, os turcos da Bulgária, os húngaros romenos, a Padânia do Bossi, um qualquer cantão suíço, podem arranjar um UÇK com um mafioso Thaci à frente e pedir a intervenção da Nato?

E, ainda no contexto da ex-Jugoslávia, os albaneses da Macedónia podem unir-se aos outros? E os do Sandjak ? E os sérvios que estão no Kosovo podem fazer secessão ou, se o não fizerem podem dormir descansados face a um governo kosovar de albaneses de peito inchado pelo apoio do binómio EUA/UE? Poderão os sérvios bósnios juntar-se aos seus irmãos de Belgrado, a Croácia apoderar-se da Krajina e da Herzegovina reduzindo-se, assim, a Bósnia a pouco mais do que Serajevo, obviamente purificada, “muçulmana”, identidade que os ocidentais criaram para acirrar os ânimos naquelas paragens.

E, como ninguém parece preocupado com a viabilidade dos Estados (Timor é um exemplo muito conhecido), cada um de nós, alegando as diferenças face ao Socratistão pode, no limite, arranjar um hino, uma bandeira e declarar a independência que, decerto, será acarinhada por Bruxelas e Washington, pois representará a libertação da canga genocida do governo português.

Aliás a Madeira do Bokassa Jardim exultou com a “libertação” do Kosovo e os húngaros da Voivodina, inscrita na Sérvia até terão mais hipóteses que os outros porque… estão sofrendo (?) penosamente a tirania de Belgrado.

A UE: pulsão fragmentária e pulsão centrípeta. As novas desigualdades

Esta política fragmentária e irresponsável está prenhe de dúvidas, perplexidades, incertezas e perigos.

Um separatismo criado pela invasão de um pequeno Estado, empobrecido pela guerra civil, pela liderança do inábil útil Milosevic, (comodamente falecido antes do julgamento pois teria muitas coisas interessantes a revelar sobre as jogadas dos EUA e da UE) é um elemento novo na História recente. A Nato repete Hitler quando, em 1938, “libertou” os perseguidos sudetas, criando um estado vassalo (Eslováquia) e um protectorado (Boémia); agora, é só mudar os nomes.

No que se refere a estas aparentes incoerências veja-se como jogam, no plano político (para quem acredite na possibilidade de princípios nas relações entre Estados), a pulsão fragmentária para o outro lado da fronteira externa da UE e a pulsão centrípeta, intramuros.

Por um lado, fomenta-se a necessidade de criar o caos ou o vazio à volta da UE, para absorver em rodadas sucessivas, novos territórios, fragilizados, atomizados, empobrecidos, a quem se oferece, durante alguns anos, um prato de lentilhas (também se designa por fundos comunitários…), a troco da liberdade dos capitais, da flexisegurança e da incineração de qualquer resquício de política social no forno da contenção do gasto público. Aí está a pulsão fragmentária para o exterior.

Por outro lado, a pulsão centrípeta evidencia-se nas uniformidades construídas através da moeda única, do BCE, da PESC, da PESD, das políticas securitárias (exército único, Schengen, controlo da imigração) e de um tratado constitucional (dito de Lisboa para deixar Sócrates na História). Cria-se assim, por intermédio de alargamentos territoriais sucessivos, um espaço enorme (chama-se mercado, em “economês”) incrivelmente diversificado em termos culturais, sociais, económicos e linguísticos. Nesse espaço, a globalização, a flexisegurança, a deriva neoliberal vão causando novas desigualdades, novas clivagens sociais e geográficas, nas quais Portugal é um evidente caso de insucesso, como país aderente. Assim, a UE parece um balão que incha, incha até que rebenta, um buraco negro onde a densidade de desigualdades pode criar uma implosão ou o recurso a fórmulas fascizantes de estancar os protestos da multidão (como no caso da aprovação do tratado constitucional, sem referendos).

O fulcro dessa vertigem conquistadora está politicamente centrado na Alemanha e é economicamente impulsionada pelas multinacionais. Há cerca de vinte anos, a direcção foi a da Europa do Sul, depois a bússola virou-se para Norte, mais recentemente guinou para Leste (as novas jogadas desenham-se agora na Ucrânia, em concorrência com a Rússia) e, novamente a sul, ao Mediterrâneo, com os protagonismos recentes e concorrentes de Zapatero e Sarkozy. Os Balcãs
continuam a ser o ventre mole da Europa.

Fevereiro 2008

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