Reflexões sobre a intervenção do Estado na actual crise do capitalismo
A
passagem de mais um aniversário do 11 de Março e do 25 de Abril deve constituir
um factor de reflexão sobre o papel do Estado na configuração das sociedades e
na estruturação do poder, sobretudo, se se pensar que a actual crise do
capitalismo está a trazer duas consequências, que se conjugam. À direita, a
aceitação aberta de uma profunda intervenção do Estado em apoio dos capitais
privados, na garantia da sua viabilização e rendabilidade; e, em alguma
esquerda, uma renovada esperança de que essa intervenção se possa fazer a favor
dos trabalhadores e da população em geral.
Quando
se evidencia uma clara convergência entre a direita e essa esquerda, estamos
mais inclinados a considerar que esta última se engana quanto ao carácter
progressista da intervenção do Estado, do que a pensar que os capitalistas e os
seus agentes não curam devidamente da sua sobrevivência. Em
suma, vemos claramente que o aplauso pela intervenção do Estado é a condição de
sobrevivência material e ideológica de ambas; quer do capitalismo real, no
formato neoliberal, quer do projecto reformista, social-democrata.
O Estado – nadador-salvador em mar
encapelado
1.
As notícias vão-se sucedendo e revelam claramente o
papel do Estado no apoio ao capital. Desde que se desencadeou a crise
financeira actual, com o subprime americano, os porta-vozes do chamado
“mercado” desdobram-se em afirmações e propostas para todos os gostos mas, com
uma postura comum: encobrindo com sorrisos e poses serenas o pânico e a
incapacidade para equilibrar o barco.
Como sabemos, há já bastantes
anos que o “mercado” vem vivendo mais da especulação que valoriza activos
rapidamente e com menos riscos do que imaginar negócios, efectuar estudos
financeiros, prospecções de mercado, arriscar numa rendabilidade a longo prazo
e outras coisas chatas que, para quem tem dinheiro a rodos, falta a paciência.
O risco é apenas um tema de propaganda para o exterior pois, de facto, os
capitalistas detestam-no e fogem dele, como o diabo da cruz, como se costuma
dizer.
O endeusamento do funcionamento
do mercado tornou obrigatório aceitar como tautológica a maior competência da
gestão privada comparativamente à pública; que os serviços de carácter colectivo
podem ser melhor servidos por empresas privadas (sobretudo se financiadas com
fundos públicos, em paralelo com aumentos de preços e estratificação dos
utilizadores); e até inventaram a palavra modernaça do “empreendorismo” cuja
ausência num discurso de mandarim situa o autor no tempo da pedra lascada.
2.
A capacidade de previsão das instituições mais
sagradas do capitalismo é de uma ineficácia hilariante. Há um ano, o BCE, subia
as taxas de juro para conter a inflação e menosprezava a recessão e o contágio
do subprime americano, esquecendo que o sistema financeiro é um sistema
mundial, de total promiscuidade. A Comissão Europeia continuava com a sua
fixação no tratado de Lisboa, na forma de vigarizar os irlandeses, no deficit e
no cumprimento do PEC que agora adiou, para já, até 2010. Essa ineficácia
mistificadora deve merecer de todos uma leitura desconfiada e divertida dos
oráculos, emitidos com ar sério, pompa e circunstância, pelos seus porta-vozes.
Há um ano, todos os mandarins
disseram que o “subprime” era passageiro e localizado, com poucos impactos no
resto do mundo, nomeadamente na Eurolândia, para além de algumas instituições
mais expostas. Com a recessão implantada, o coçar de cabeça dos mesmos
mandarins, sugere que a Eurolândia se terá transformado em … Eurolêndia.
3.
Discretamente, os governos ocidentais, com os EUA à
cabeça, vão tomando medidas “socialistas”, “colectivistas” que noutras
latitudes são consideradas como limitadoras da livre iniciativa, promovidas por
entes sociais hediondos, a soldo do Chavez, do Irão ou dos novos czares russos.
Primeiro, os liberais governos
ocidentais injectaram liquidez nos mercados para aguentarem os bancos à beira
da falência e evitar que a onda se propagasse. Não por acaso, alguns distintos
e impolutos banqueiros, não resistiram em acentuar as suas dificuldades para
beneficiar mais largamente do dinheiro dos bancos centrais. Como se sabe,
capital e vigarice formam um sólido casamento e os casos Maddof, BPN, BPP ou os
encobrimentos das “poupanças” de Pinochet, pelo discreto BES, dão razão a
Balzac quando dizia: “por detrás de uma grande fortuna está um grande crime”.
Mas as coisas não ficaram por
aí. Foram precisas intervenções governamentais directas, coisa horrorosa em
termos da teologia neoliberal, entretanto esquecida ou agilizada na sua
formulação. Surgiram as nacionalizações! Os mandarins da Eurolândia reuniram-se
e decretaram a nacionalização de instituições financeiras, sempre que
necessário, para estabilizar o “mercado”, na peugada dos seus mentores americanos.
Como é óbvio, os governos
neoliberais utilizam a nacionalização como instrumento capitalista de recurso
para sanar os problemas do capitalismo, agindo através do Estado, o tal
capitalista colectivo que bem se conhece. Porém, essas nacionalizações só
contemplam uma intervenção parcial, pontual e indirecta no sistema financeiro.
Pretendem apenas aguentar os bancos para permitirem o financiamento da economia
sem acréscimos exagerados nas taxas de juro. Mas…
4.
Depois do sistema financeiro a outra prioridade é o
desemprego, não por comiseração com a sorte dos milhões de trabalhadores
atingidos mas, para evitar agitação social. O despedimento em massa está em
curso e os governos até já começaram a obter alguma contenção da parte de
alguns capitalistas mais cautelosos quanto à salvaguarda dos seus interesses de
longo prazo. Mas, no caso de pequenas e médias empresas, mesmo que haja essa
visão, os recursos detidos não permitem suportar o nível do emprego, quando as
encomendas escasseiam e a banca se torna mais retraida no fornecimento de crédito.
Esses novos desempregados vêm
juntar-se à grande bolsa de desemprego crónico gerada antes da actual crise,
elevando os custos sociais e psicológicos, o estado de revolta dos
trabalhadores, não sendo garantido que os sindicatos, de direita ou dominados
pela esquerda social-democrata, consigam manter a moderação dos protestos, que
lhes está conferida como missão principal; como não conseguiram na Grécia,
recentemente, por exemplo.
Para conter o descontentamento
e a revolta latente, os governos, como o do sacripanta Sócrates (para mais em
vésperas de eleições), avançam com pagamentos reforçados aos desempregados, com
o alívio aos que têm prestações da casa para pagar ou filhos a estudar, apoios
acrescidos aos pensionistas na compra de medicamentos, milhões para os
indigentes e sem-abrigo, linhas de crédito para empresas, redução das
contribuições para a segurança social para conter algum potencial desemprego. É
o que se chama o bodo aos pobres que se segue ao banquete dos ricos.
5.
Nada disto altera, na essência a situação; os
governos limitam-se a ministrar meros anti-piréticos enquanto esperam que a
doença passe. Pretendem que acreditemos que a salvação virá com a reanimação da
exportação ou gastos faraónicos com projectos emblemáticos cuja oportunidade,
ou viabilidade, são muito discutíveis. Enquanto essa salvação não vier, é
preciso manter a multidão mansa e os pobres, manietados com migalhas, custe o
que custar; há que aguentar e orar para que o mercado, qual santo milagreiro,
se decida a realizar o prodígio de criar um capitalismo suficientemente pujante
para continuar a engordar os ricos e contentar os que trabalham, com a sua
mansa e distraída magreza.
O
programa que se segue
6.
Esta incapacidade do poder político, a todos os
níveis, vem sendo paga com o endividamento público, com a mobilização de
dinheiro dos impostos para a ajuda às empresas e financiamento dos apoios
sociais. O governo acaba mesmo de anunciar uma quebra das receitas fiscas na
ordem dos 9,4 M euros por dia e que em finais de Fevereiro o deficit era 12
vezes superior ao verificado um ano antes. Neste contexto, a palavra deficit
vai voltar em força ao palavreado dos mandarins e aos noticiários
Evolução recente e perspectivas
para 2009
|
|||||||
PIB
(var %)
|
Deficit público
(% PIB)
|
Deficit externo
(% PIB)
|
|||||
2008
|
2009
|
2008
|
2009
|
2008
|
2009
|
||
Portugal
|
0,2
|
-1,6
|
-2,2
|
-4,6
|
-10,2
|
-8,2
|
|
Espanha
|
1,2
|
-2,0
|
-3,4
|
-6,2
|
-9,0
|
-6,7
|
|
Itália
|
-0,6
|
-2,0
|
-2,8
|
-3,8
|
-2,2
|
-1,2
|
|
Grécia
|
-2,9
|
0,2
|
-3,4
|
-3,7
|
-11,7
|
-11,2
|
|
Irlanda
|
-2,0
|
-5,0
|
-6,3
|
-11,0
|
-5,7
|
-3,3
|
Dívida pública
(% PIB)
|
Desemprego
(%)
|
|||
2008
|
2009
|
2008
|
2009
|
|
Portugal
|
64,6
|
68,2
|
7,8
|
8,8
|
Espanha
|
39,8
|
46,9
|
11,3
|
16,1
|
Itália
|
105,7
|
109,3
|
6,7
|
8,2
|
Grécia
|
94,0
|
96,2
|
8,3
|
9,0
|
Irlanda
|
40,8
|
54,8
|
6,5
|
9,7
|
Fonte: Comissão Europeia
|
7. Como se vê, perante a crise estarão em breve
criadas as condições para a retoma da agenda neoliberal da redução do deficit e
da dívida pública e, portanto para a abertura de uma renovada escalada das medidas
anti-sociais, a favor precariezação do trabalho, da redução dos seus custos, da
mercantilização dos serviços públicos, da mais estreita lógica contabilistíca
na gestão da sociedade. Subirá de novo, o tom da ladainha que os mandarins vêm
entoando, momentaneamente, em privado: a moderação salarial para alimentar a
competitividade externa e evitar o retorno da crise, a flexisegurança ou um
sucedâneo que inventem, os incomportáveis subsídios de desemprego, as pensões
que tornam os sistemas de segurança social em perigo, os trabalhadores do
Estado excedentários e madraços… Uma ladainha de que ninguém ainda se esqueceu.
O capitalismo tentando despejar
as suas deficiências sobre a multidão, aumenta o deficit para nos salvar da
recessão; ou, abre a porta à recessão para colmatar o deficit, comprimindo o
poder de compra. Dispensamos tanto altruismo. Este ciclo de
dificuldades para a espécie humana e para o planeta faz parte do ciclo e, só a eliminação do
capitalismo pode terminar com esses sacrifícios constantes, embora com causas
variáveis.
O que
revelam as projecções demográficas do INE para 2060
8.
Estas dificuldades causadas pela manutenção do
capitalismo, mormente na sua forma actual são evidenciadas, implicitamente, nas
recentes projecções do INE para a população residente em 2060. Essas projecções
consideram apenas variáveis demográficas – natalidade, mortalidade e migrações
– tendo em conta a evolução recente e, excluindo “factores não demográficos
(tais como factores políticos, económicos…)”.
Essa exclusão não nos parece
descabida pois, num horizonte de 50 anos, considerar, quantificando, tais
varíáveis seria um exercício com resultados aleatórios: porém, a extrapolação
das tendências actuais é suficientemente reveladora do desastre que está em
curso para os residentes na “ocidental praia lusitana”.
A partir da estimativa de 10,62
M de residentes no início de 2008, o INE formulou as seguintes projecções:
·
Cenário elevado – 11,99 M
·
Cenário central – 10,36 M
·
Cenário baixo – 8,91 M
·
Cenário sem migrações – 8,11 M
9.
A consideração de um só cenário em que a população
cresce, em relação à sua dimensão actual, deve-se porventura, a uma opção
técnica formal, a efectivação de um género de “leão lusitano” já que o tigre
celta entrou em coma; um cenário resultante de demasiadas variáveis a evoluir
favoravelmente no futuro. Sucede, que um crescimento populacional resulta
sempre de níveis de confiança face ao futuro, associados a condições favoráveis
de vida por parte dos residentes e/ou da atração que essas condições de trabalho
e de vida exercem sobre gente com proveniência no exterior.
10. Para os
cenários mais baixos podem contribuir, de facto, vários factores de ordem
política e económica, hoje bem presentes no terreno. A continuidade da
globalização financeira; a contínua pressão para a degradação das condições de
vida dos trabalhadores e pensionistas, bem como dos jovens, potenciais
fornecedores de descendência e dos idosos com uma longevidade a decair a médio
prazo; a pouca capacidade, no contexto da referida globalização, para a atração
de investimento promotor de bons salários; a presença de um modelo económico
cuja aceitação está implícita na actuação da burguesia portuguesa, pouco
interessada num sistema de ensino adequado; a redução ou extinção dos fundos
comunitários, etc…
Divisões
entre trabalhadores: temporários e menos temporários
11.
Veio a instituir-se no quadro da recessão, da
ameaça do desemprego, das insuficiências da luta dos trabalhadores, uma lógica
assustadora e perversa. Quando uma empresa anuncia dificuldades inclui
dispensas de pessoal; e para aliviar a cor negra da mensagem informa,
sorridente e benévola, que os dispensados são “apenas” trabalhadores
temporários. Na realidade, essa opção faz-se porque é mais barata para os
capitalistas, uma vez que não confere direito a indemnizações.
12.
Essa pretensa benevolência é dirigida inteirinha
aos trabalhadores com vínculo dito permanente e tem subjacente três aspectos.
Um, é que a condição de temporário não é em nada marginal pois, por exemplo, em
Portugal, abrange 2 M trabalhadores; depois, porque trabalhador temporário
ou precário é gente como qualquer outra, que precisa de comer, vestir, ter
família, viver a tempo inteiro; finalmente porque, os que se julgam mais
seguros por não serem precários, ao aceitar essa hierarquia definida pelo
capital, ou são parvos julgando que escapam por maior consideração do patrão,
ou encolhem-se, procurando passar despercebidos, para não serem incluidos na
onda de dispensas.
Na PSA de Mangualde dos 1200
trabalhadores existentes há pouco tempo, 500 (temporários) foram despedidos o
que aliviou os sobrantes; na lógica da miséria, do salve-se quem puder, roer um
pão duro é riqueza perante quem não tem nada. O facto de o capital (com o
entusiático apoio do Estado) saber distinguir e utilizar as diferenças entre
trabalhadores com vínculo mais permanente e outros com menor permanência não
significa que, os trabalhadores, no seu conjunto, se diferenciem e assumam a
distinção criada pelo capital, para exclusiva conveniência deste último.
23/3/2009
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