Um pano de fundo
Todos sabemos que o momento é
delicado. O desencadear da crise financeira, com os novos episódios que se lhe
seguirão demonstra, na prática, a falência do neoliberalismo. Falido e
francamente desacreditado ideologicamente mas, não morto ou enterrado.
Esta crise, seguindo-se a várias
outras mais localizadas umas (colapso da banca japonesa em 1995, crise russa de
1998, entre outras) ou, mais alargadas, outras (a dos “tigres asiáticos” em 1997, a bolha dos “dot.com”
em 2000/2004, por exemplo) era francamente previsível quer por analistas
anticapitalistas e, mais envergonhadamente, por defensores do modelo keynesiano
do capitalismo. Entre os primeiros, esta crise e a dimensão que assumiu, vem
acelerar a necessidade de crítica do sistema capitalista, agora em fase de
readaptação e recuperação dos seus próprios fracassos. Entre os que defendem a
utilização maciça da intervenção de medidas de carácter keynesiano destacam-se
os conceituados Krugman e Stiglitz. Na sua senda atropelam-se em pânico, os
naufragados mandarins, os seus mandantes da alta finança, os “investidores”. A
questão que discutem é se iremos ter uma combinação de neoliberalismo com um
tempero de keynesianismo (os mais à direita) ou de keynesianismo com concessões
neoliberais (os menos à direita).
Na nossa opinião, apesar de
desgastado como modelo de gestão do capitalismo, o neoliberalismo irá manter-se
vivo, uma vez que é o único modelo que, hoje, permite a rápida acumulação
capitalista. Pretendemos sublinhar, de modo bem claro, que a maciça
intervenção dos Estados nacionais ou plurinacionais constitui apenas e tão
somente um reforço da capacidade operacional do neoliberalismo e jamais um
retorno a qualquer modelo do tipo social-democrata. Embora isso esteja nos
planos de muitos elementos das esquerdas institucionais sempre em busca de
argumentos para se arrumarem no doce recato dos partidos ditos socialistas, há
muito convertidos em liberais.
É, evidentemente, menos difícil
haver consenso entre anticapitalistas e keynesianos quanto à análise da crise
actual do que, naturalmente quanto às receitas a aplicar. Os primeiros, entre
os quais nos encontramos, defendem a destruição do capitalismo, sabendo de
antemão que essa destruição exige sacrifícios, acerbos conflitos e, nesse
contexto, muitas vidas humanas sendo, porém, uma destruição criativa. Já os
segundos, procuram medidas para um capitalismo menos desumano, com mais
preocupações sociais, num modelo entre a social-democracia e um assistencialismo
que nada mudam e que perpetuarão o sacrifício de milhões de pessoas através do
desemprego, da guerra, da fome, da doença, dos desastres ambientais, etc.
Há, naturalmente, quem já
procedeu à sua reciclagem para posturas menos associadas ao descalabro actual
e, os próximos tempos serão férteis nessas mudanças oportunistas e despudoradas
de casaca. Vamos assistindo, mais lentamente, à reconversão do jurássico
pensamento de muitos académicos, mormente da área da economia. Os mesmos
empresários que despedem e promovem leis laborais adoptam um vocabulário mais
“social” e clamam, emocionados, por apoios públicos ao pagamento de salários.
Nas colunas dos jornais os notáveis dizem que desde sempre apontaram para os
perigos do neoliberalismo, mesmo lambuzando a gamela do poder, como sempre. E,
finalmente, mandarins como o pantomineiro Sócrates passam a afirmar as virtudes
do papel do Estado, depois de passarem todo o seu tempo a privatizar,
desregulamentar, favorecer o sistema financeiro e a elogiar o lucro fácil e
fraudulento; a multidão, por seu turno, continua a ser ensinada a aceitar a
virtuosa via do sacrifício, pois há tempos difíceis no horizonte e a contenção
do deficit é um desígnio patriótico.
Sempre que se está em época de
mudança eles, como os répteis, mudam de pele. Em 26 de Abril de 1974, foi
espantoso como debaixo da cada pedra saltavam firmes defensores da democracia,
do socialismo, do comunismo, adoptando as roupagens ideológicas que condenavam
dois dias antes. O mais caricato talvez seja o CDS ter chegado a defender uma
sociedade sem classes, por ocasião das nacionalizações de 1975!
Uma postura anti-capitalista
para encarar a crise actual
Já neste blog afirmámos que a
esquerda não detém ainda um corpus teórico capaz de produzir um modelo de análise
global da crise capitalista de hoje, e, menos ainda de um leque de soluções
globais exequíveis. E, isso, nomeadamente, porque entre as esquerdas e a grande
massa da multidão há um fosso quanto à compreensão da realidade e às formas de
a modificar.
Esse fosso é alimentado por
ilusionistas da redenção no seio da “democracia” representativa das forças do
mercado, a partir das virtudes de um aparelho de Estado nas mãos de “gente
séria”; quaisquer ungidos na qualidade de redentores da humanidade não são
aceitáveis para a multidão, que cada vez mais exige que a gestão social seja
feita por gente normal e não por profissionais da política. Mesmo que gente
séria e eleita democraticamente, ninguém se pode erigir num lugar acima dos
demais, num qualquer aparelho de Estado alicerçado na violência e na
autoridade.
A exequibilidade de um conjunto
real de soluções da crise capitalista de hoje não passa pela intervenção maciça
do Estado, da mobilização das receitas fiscais, ou de acordos políticos entre
dirigentes políticos baseados numa legitimidade assente numa representação
abusiva, consentida e não conquistada.
Politicamente, as sondagens
lisonjeiras para a esquerda tradicional não dão relevo a duas coisas fulcrais.
Uma é a grande margem de abstencionistas que retiram legitimidade aos partidos,
no seu conjunto e que revelam o desinteresse, a desconfiança e a rejeição pelas
suas propostas. Outra, é que o avanço da esquerda institucional é muito mais
um custo calculado de Sócrates para proceder às tais “reformas” do que o
produto de um enraizamento popular dessa esquerda. A esquerda
institucional, privilegiando essa actuação nas instâncias do Estado e dos media
corre o risco de ser esvaziada quando a conjuntura melhorar, como sucedeu
durante a ascensão de Cavaco como primeiro-ministro e gerar, por conseguinte,
um acrescido desânimo na multidão.
Para o evitar há que construir na
base social uma cultura de protesto e desobediência, de boicote e perturbação
do funcionamento das várias instâncias da máquina de acumulação e de sacrifício
da vida de todos, em favor do interesse de uns poucos; e nesse contexto,
aproveitar a crise económica, as dificuldades do capitalismo, para consolidar
forças, habituar um grande número de pessoas, sobretudo jovens, trabalhadores e
desempregados, à contestação, à luta, a uma cultura de exigência e desafio.
Não há soluções reais à margem da
multidão, soluções que não sejam emanadas e testadas pela prática social, dos
povos em luta por uma sociedade radicalmente diferente. Nenhuma solução pode
surgir enquanto não houver uma grande faixa das classes trabalhadoras
empenhadas e confiantes nas transformações exigidas; enquanto não surgir uma
multiplicidade de forças sociais unidas num protagonismo colectivo e articulado
de transformação social. E, em termos mais gerais e a longo prazo, nenhuma
solução se pode tornar duradoura se confinada a um pequeno recanto do mundo; o
princípio dessa transformação, para se consolidar, precisa de uma massa crítica
de território, de população, de recursos capaz de fazer frente a todos os
boicotes e atitudes agressivas do capitalismo, mesmo que este se encontre
enfraquecido.
Não é grande compensação, no
cenário actual, que as instituições capitalistas e os seus mandarins não tenham
também verdadeiras alternativas para uma oleada continuidade do roubo
organizado, como antes vinha ocorrendo. Na sobranceria neoliberal, atingido o
fim da História (?) o Estado pretendia-se mínimo e, nesse contexto, o
mandarinato pretendia-se constituído, basicamente, por instrumentos acéfalos,
verdadeiras pegas, em ambas as acepções da palavra. E agora, vêm-se patetas
sorridentes e impotentes, centuriões sem visão, à procura de soluções;
Sarkozys, Merkels, Berlusconis burlões, o poliglota Barroso… e irá sentir-se,
em breve, entre eles, a ausência da erudição do Bush!
Na ausência do tal corpus teórico
à esquerda, é preciso combater os espíritos simples ou messiânicos que vierem
anunciar a morte breve do capitalismo, que soube sobreviver à crise de 1929/33
com o New Deal, que soube construir o capitalismo de Estado, abafando as brasas
da revolução de Outubro, que aproveitou a reconstrução do segundo pós-guerra
para construir um temporário “modelo social europeu”, que contornou as ânsias
libertadoras dos povos colonizados para gerar o neocolonialismo, etc.
Cautelarmente diremos como Brecht, “devemos tomar o inimigo pelo seu lado mais
forte”, para evitar sermos “comidos pelos percevejos”, também segundo Brecht.
Janeiro 2009
Janeiro 2009
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