A reforma da administração pública
A reforma da
administração pública tem sido falada com uma frequência muito superior ao siso
imanente às declarações emitidas sobre a mesma. Escasseiam, sobretudo, factos
apontados com seriedade ou que apresentem sobre o assunto uma visão
estruturante, ponderada e descomprometida acerca do assunto. Recorda-se a
"brilhante" ideia, anos atrás, de Ludgero Marques em despedir 150000
funcionários públicos, cálculo actualizado recentemente pelo senil Cadilhe que
já vai em 200000, na senda do preconizado pelo fascistóide Borges e que
jornalistas ignaros e subservientes reproduzem a esmo e em parangonas. Que o
primeiro, o "rei da torneira" não tenha pensado como iria funcionar o
pais após tal sangria, percebe-se pois de economia só sabe a contabilização dos
fundos públicos que têm beneficiado as suas empresas e as dos amigos; mas, do
Cadilhe, economista, ex-ministro da Finanças a coisa é mais grave e passa para
os níveis da psiquiatria. Bem, em qualquer dos casos subentende-se,
naturalmente, que na mesma sangria seriam poupados os serviços que distribuem
os fundos comunitários às empresas, os adjudicantes de obras públicas, trabalhos
de consultadoria...
As preocupações dos
iluminados no entanto parece que não têm razão de ser pois Portugal, afinal é
um país rico, dado que dispõe de duas equipas de mandarins, naturalmente
mutáveis, que se revezam na gestão da administração pública; uma, dominada pelo
PSD, interpenetrada por PP, outra patrocinada pelo PS, recheadas ambas dos tais
"independentes", nome que em Portugal se dá aos subservientes. Cada
vez que há mudança de governo, a plateia assiste a uma revoada de demissões
seguida de outra de nomeações; e, como sucedeu em 2002/03, ou recentemente, os
vindouros poucas benfeitorias trazem ao sistema.
Os custos deste
procedimento são vários. A inserção real de novos dirigentes leva tempo, a
reinserção dos ex-demitidos nem sempre se faz nas áreas de actuação anterior
ou, mesmo que isso aconteça, há sempre desactualizações que demoram a suprir.
Depois, cada equipa entende a organização da máquina à sua maneira e logo
surgem fusões, autonomizações e novas leis orgânicas de ministérios,
institutos, direcções-gerais, etc. E, cada reorganização conduz a uma revisão
dos procedimentos e reestruturações dos serviços, com a elevada participação de
consultores externos, muito dextros na apresentação de facturas gordas. Em
suma, tudo se altera mas, muito pouco para além da cosmética.
Como é sabido, as
mudanças têm custos e o próprio anúncio das mudanças, sobretudo enquanto estas
não são conhecidas em detalhe, nem definido um tempo de execução geram
instabilidade, desconexão de equipas de trabalho, ausência de perspectivas,
desmobilização. É no mínimo, espantoso, como um gestor experimentado (Bagão
Félix) manteve a Segurança Social suspensa de uma reestruturação durante dois
anos ! E o que saiu, afinal, não passou
de um aborto que Vieira da Silva vem apadrinhando, com novos mandarins ao
serviço.
Num contexto
capitalista, a verdadeira reforma da administração pública passa pela sua
autonomização face aos aparelhos partidários, em que os dirigentes não vivam
com o credo na boca temendo a não recondução ou a demissão, praticando a
subserviência e o imobilismo como regra e a iniciativa ou o espírito crítico,
como excepção; atitudes essas que depois se repercutem, como um vírus, pela
hierarquia abaixo.
Veja-se o caso da
Inglaterra em que uma mudança de governo apenas altera os ministros, os
secretários de estado e os respectivos assessores. Recorde-se ainda que foram
administrações públicas fortes, profissionalizadas que constituíram um suporte
essencial no desenvolvimento de países como o Japão, Singapura, Coreia e países
escandinavos. E, decerto, ninguém pensará que o capitalismo ali se acha menos
apurado ou que a burguesia portuguesa tem ideias úteis no que respeita à teoria
da acumulação capitalista.
As causas das coisas
Se as coisas assim funcionam
não é por acaso. Para uma burguesia fraca, ignorante, habituada ao baixo
salário, temerosa ou incapaz de se impor pelo domínio dos processos produtivos
ou pelo uso criativo da tecnologia, o favor público é determinante para a sua
existência. A burguesia portuguesa não tem capacidade para utilizar o aparelho
de estado como elemento federador dos seus interesses colectivos e olha para
esse estado como para uma galinha de ovos de ouro, privilegiando o saque.
Como consequência, é
necessária a ligação corrupta entre empresas-partidos-dignitários da
administração pública para o despacho casuístico, para o fechar de olhos
complacente, para a inércia (que designam por estabilidade), para o
financiamento público de negócios privados, para a assunção de custos pelo OE,
com as contrapartidas que se conhecem em termos de financiamento dos partidos,
da corrupção de mandarins da administração central ou de autarcas.
Um elemento
fundamental deste tráfego entre grupos financeiros e o governo é a
intermediação levada a cabo por sociedades de advogados, que para o efeito
destacam os seus membros para a infestação de gabinetes ministeriais e dos
corredores de S. Bento. Emanação mais visível desse tráfego é a próspera venda
de imobiliário de luxo ou os enormes montantes depositados em paraísos fiscais.
E, decerto que ao falar-se de economia paralela ninguém pensará que ela se
alimenta apenas de electricistas ou trolhas biscateiros ou, que são estes
os acantonados naqueles condomínios
fechados que por aí proliferam.
Sintomática também é
a tolerância legal e o populismo que alicia fatias importantes da população -
sob a forma de bairrismo e que mascara as dificuldades causadas pela crise
económica - nos casos Felgueiras, Isaltino e Valentim. Ou o silêncio que
se fez sobre Nobre Guedes e o caso dos sobreiros do grupo Espírito Santo.
As consultoras
As modas ideológicas
seriam inofensivas se não conduzissem a ineficiências diversas com implicações
imensas no badalado deficit público. Começou a gizar-se há anos uma política de
despojamento das unidades de "inteligência" na administração pública.
E, em contrapartida, intensificou-se o recurso a consultoras, a propósito de
tudo, criando-se, de facto, estruturas externas à administração pública que
trabalham em permanência para a mesma, instalados até nos locais físicos dos
serviços, durante anos.
Essas consultoras
cobram, naturalmente preços elevados (350/500 euros por dia, por quadro) o que
naturalmente ultrapassa em muito o que realmente pagam aos seus trabalhadores e
que corresponde a quase tanto ao que muitos funcionários públicos levam para
casa, no final do mês. Muitas vezes, essas consultoras, desconhecedoras do
"negócio" recrutam técnicos da própria entidade adjudicante, como
profissionais liberais, para os ajudarem a fazer o trabalho. E o "grande
gestor", o invertebrado Teixeira dos Santos que tanto se afadiga para
impor 1,5% de aumento para os funcionários públicos ainda não ordenou nenhum
inquérito aos contratos de consultadoria que há anos se sucedem com as mesmas
empresas. E Vieira da Silva que todas as semanas anuncia milhões de euros em
fraudes de desempregados ou doentes mostra-se calado face ao incumprimento
contributivo das empresas.
Não é difícil
encontrar consultoras que propõem hoje uma solução a uma equipa de gestão e
amanhã outra, radicalmente distinta, à equipa sucessora, do outro partido.
Quanto aos custos destas guinadas organizativas, estamos entendidos.
Amiudadamente, cada equipa de gestão fornece a documentação necessária e as
suas próprias ideias à consultora que se limita a inscrevê-las ou imprimi-las
em papel com o seu próprio timbre. A consultora emite a factura e a equipa de
gestão apresenta um parecer técnico de uma entidade externa:”isenta”, naturalmente.
Cada ministério
trabalha com várias consultoras, cada qual com os seus métodos e programas
próprios e raramente se acautelam as compatibilidades e a coerência do
funcionamento global. E, claro que quem chega trata logo de promover novos
estudos, novas aplicações informáticas, etc, porque a equipa anterior,
naturalmente fez asneira, por definição. Por exemplo, a construção de uma
aplicação de contas correntes para a Segurança Social foi suspensa durante nove
meses por Bagão Félix que, entretanto, arranjou uma consultora para aferir o trabalho
da concorrente. No entanto, em 6 anos, a instituição vai na criação da 5ª
aplicação de contas correntes a qual ainda está longe de fiável e acabada.
Uma política de recursos humanos
caricata
Todos sabem que há
uma irracional distribuição de recursos humanos na administração pública e
isso, porque não há uma lógica integrada; não há planos de afectação de
recursos a nível cada ministério, nem é habitual que a mesma exista ao nível de
cada serviço. Se se perguntar a qualquer responsável se tem falta de pessoal a
resposta, será afirmativa, por sistema; ninguém assumirá que tem pessoal
excedentário. Na lógica do imobilismo gerado pelo sistema cleptocrático, quem
for responsável por 10 funcionários é menos importante do que o colega que
tiver 11.
Existem carências
mais ou menos permanentes de gente para proceder ao tratamento elementar de
informação, por exemplo. Como as admissões estão congeladas é preciso recorrer
ao trabalho temporário, através de empresas dessa natureza e, por cada
trabalhador que recebe o salário mínimo, a empresa contratada recebe do Estado
cerca de três vezes mais. É assim tão difícil criar uma bolsa de funcionários
públicos para cumprir essas tarefas, permanentes, em locais variáveis, de
acordo com as necessidades ?
Quem se dirija a
qualquer serviço público logo encontrará, à entrada, a figura incontornável de
um elemento de portaria/segurança com o rótulo de uma empresa privada de
fornecimento de serviços. Qual a parcela que esse trabalhador receberá daquilo
que o Estado paga à sua entidade patronal ?
Em toda a parte do
mundo económico se fazem contas de comparação entre os custos do recrutamento
de pessoal próprio e os de "outsourcing". Alguém na administração
pública fará essas contas ou segue-se apenas a moda ? E como não sabem ou não
querem fazer as contas ficam espantados a olhar para o deficit e a procurar
agilmente fórmulas práticas de apresentar a factura à população em geral.
Dois mitos demagógicos
Um dos mitos mais
comuns, que só preconceitos ideológicos ou ignorância permitem a constante
repercussão na imprensa é o do peso do Estado em Portugal. Não vale a pena
sobrecarregar este texto com números que demonstram a falsidade desse argumento
mas antes ver as coisas a partir de outro ângulo.
Não é o Estado que pesa
muito (sem prejuízo de necessidades óbvias de reformulações inteligentes) mas o
sector privado que se mostra incapaz de desenvolver o país, criar actividades
que aumentem o peso específico de Portugal no contexto global e gerar riqueza
susceptível de, através dos impostos cobrados propiciar, por exemplo, sistemas
de saúde e educação decentes. E isto historicamente. E isto ainda, após 20 anos
de fundos comunitários que somente fomentaram o alcatrão. E isto, finalmente,
talvez devido a décadas de evasão fiscal, em regra proporcionais à posse de
ferraris e quejandos que subdesenvolveram o país.
O outro mito,
revelador da ignorância de quem o elege como factor crítico da administração
pública é o de uma grande parcela de funcionários trabalhar na prestação
interna de serviços (Ferreira Leite). Quem se escandaliza com isso só conhece
da administração pública os balcões das repartições das finanças e pouco da
vida das empresas em plena sociedade da informação. Até num restaurante, metade
das pessoas trabalham na cozinha, a municiar os empregados de mesa que nos
trazem a comida. Perguntem ao Bill Gates qual a parcela de pessoas que tem ao
balcão e quantos são os trabalhadores cujo trabalho consiste na recolha,
transformação e municiamento de informação. Se for mais fácil, consultem Robert
Reich ou, mais perto ainda, verifiquem se a PT ou a EDP terão a maioria do
pessoal por detrás de guichets.
O que fazer, entretanto ?
Muitos funcionários públicos conhecem
os compadrios, as contratações estranhas, os enriquecimentos rápidos, os
despachos e favorecimentos escusos. Também se sabe o desrespeito impune dos
responsáveis da administração pública em proceder à informação de deputados,
jornalistas e público em geral. Sabe-se, finalmente, como a própria informação
estatística é precária, inconsistente quando não manipulada.
Compete, portanto, a todos os
trabalhadores a divulgação de documentos e factos reveladores das
irregularidades do mandarinato. Essa divulgação pode fazer-se, de modo anónimo,
junto da imprensa, através da internet, em mensagens de SMS e das próprias
instituições vocacionadas para a investigação criminal, apesar de manietadas
quando convém. Podem mesmo fazer-se panfletos a distribuir anonimamente nos
locais onde se passam os acontecimentos, clamando por vigilância face às acções
dos corruptos e dos actos de delapidação do erário público. Esquerda
Desalinhada pode mesmo colaborar na difusão dos actos e dos protagonistas do
saque.
Janeiro 2006
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