sábado, 24 de dezembro de 2011

Administração pública - Ignorância, preconceitos e os jogos dos salteadores

A reforma da administração pública

A reforma da administração pública tem sido falada com uma frequência muito superior ao siso imanente às declarações emitidas sobre a mesma. Escasseiam, sobretudo, factos apontados com seriedade ou que apresentem sobre o assunto uma visão estruturante, ponderada e descomprometida acerca do assunto. Recorda-se a "brilhante" ideia, anos atrás, de Ludgero Marques em despedir 150000 funcionários públicos, cálculo actualizado recentemente pelo senil Cadilhe que já vai em 200000, na senda do preconizado pelo fascistóide Borges e que jornalistas ignaros e subservientes reproduzem a esmo e em parangonas. Que o primeiro, o "rei da torneira" não tenha pensado como iria funcionar o pais após tal sangria, percebe-se pois de economia só sabe a contabilização dos fundos públicos que têm beneficiado as suas empresas e as dos amigos; mas, do Cadilhe, economista, ex-ministro da Finanças a coisa é mais grave e passa para os níveis da psiquiatria. Bem, em qualquer dos casos subentende-se, naturalmente, que na mesma sangria seriam poupados os serviços que distribuem os fundos comunitários às empresas, os adjudicantes de obras públicas, trabalhos de consultadoria...

As preocupações dos iluminados no entanto parece que não têm razão de ser pois Portugal, afinal é um país rico, dado que dispõe de duas equipas de mandarins, naturalmente mutáveis, que se revezam na gestão da administração pública; uma, dominada pelo PSD, interpenetrada por PP, outra patrocinada pelo PS, recheadas ambas dos tais "independentes", nome que em Portugal se dá aos subservientes. Cada vez que há mudança de governo, a plateia assiste a uma revoada de demissões seguida de outra de nomeações; e, como sucedeu em 2002/03, ou recentemente, os vindouros poucas benfeitorias trazem ao sistema.

Os custos deste procedimento são vários. A inserção real de novos dirigentes leva tempo, a reinserção dos ex-demitidos nem sempre se faz nas áreas de actuação anterior ou, mesmo que isso aconteça, há sempre desactualizações que demoram a suprir. Depois, cada equipa entende a organização da máquina à sua maneira e logo surgem fusões, autonomizações e novas leis orgânicas de ministérios, institutos, direcções-gerais, etc. E, cada reorganização conduz a uma revisão dos procedimentos e reestruturações dos serviços, com a elevada participação de consultores externos, muito dextros na apresentação de facturas gordas. Em suma, tudo se altera mas, muito pouco para além da cosmética.

Como é sabido, as mudanças têm custos e o próprio anúncio das mudanças, sobretudo enquanto estas não são conhecidas em detalhe, nem definido um tempo de execução geram instabilidade, desconexão de equipas de trabalho, ausência de perspectivas, desmobilização. É no mínimo, espantoso, como um gestor experimentado (Bagão Félix) manteve a Segurança Social suspensa de uma reestruturação durante dois anos ! E o que saiu, afinal,  não passou de um aborto que Vieira da Silva vem apadrinhando, com novos mandarins ao serviço.

Num contexto capitalista, a verdadeira reforma da administração pública passa pela sua autonomização face aos aparelhos partidários, em que os dirigentes não vivam com o credo na boca temendo a não recondução ou a demissão, praticando a subserviência e o imobilismo como regra e a iniciativa ou o espírito crítico, como excepção; atitudes essas que depois se repercutem, como um vírus, pela hierarquia abaixo.

Veja-se o caso da Inglaterra em que uma mudança de governo apenas altera os ministros, os secretários de estado e os respectivos assessores. Recorde-se ainda que foram administrações públicas fortes, profissionalizadas que constituíram um suporte essencial no desenvolvimento de países como o Japão, Singapura, Coreia e países escandinavos. E, decerto, ninguém pensará que o capitalismo ali se acha menos apurado ou que a burguesia portuguesa tem ideias úteis no que respeita à teoria da acumulação capitalista.

As causas das coisas

Se as coisas assim funcionam não é por acaso. Para uma burguesia fraca, ignorante, habituada ao baixo salário, temerosa ou incapaz de se impor pelo domínio dos processos produtivos ou pelo uso criativo da tecnologia, o favor público é determinante para a sua existência. A burguesia portuguesa não tem capacidade para utilizar o aparelho de estado como elemento federador dos seus interesses colectivos e olha para esse estado como para uma galinha de ovos de ouro, privilegiando o saque.

Como consequência, é necessária a ligação corrupta entre empresas-partidos-dignitários da administração pública para o despacho casuístico, para o fechar de olhos complacente, para a inércia (que designam por estabilidade), para o financiamento público de negócios privados, para a assunção de custos pelo OE, com as contrapartidas que se conhecem em termos de financiamento dos partidos, da corrupção de mandarins da administração central ou de autarcas.

Um elemento fundamental deste tráfego entre grupos financeiros e o governo é a intermediação levada a cabo por sociedades de advogados, que para o efeito destacam os seus membros para a infestação de gabinetes ministeriais e dos corredores de S. Bento. Emanação mais visível desse tráfego é a próspera venda de imobiliário de luxo ou os enormes montantes depositados em paraísos fiscais. E, decerto que ao falar-se de economia paralela ninguém pensará que ela se alimenta apenas de electricistas ou trolhas biscateiros ou, que são estes os  acantonados naqueles condomínios fechados que por aí proliferam.

Sintomática também é a tolerância legal e o populismo que alicia fatias importantes da população - sob a forma de bairrismo e que mascara as dificuldades causadas pela crise económica - nos casos Felgueiras, Isaltino e Valentim. Ou o silêncio que se fez sobre Nobre Guedes e o caso dos sobreiros do grupo Espírito Santo.

As consultoras

As modas ideológicas seriam inofensivas se não conduzissem a ineficiências diversas com implicações imensas no badalado deficit público. Começou a gizar-se há anos uma política de despojamento das unidades de "inteligência" na administração pública. E, em contrapartida, intensificou-se o recurso a consultoras, a propósito de tudo, criando-se, de facto, estruturas externas à administração pública que trabalham em permanência para a mesma, instalados até nos locais físicos dos serviços, durante anos.

Essas consultoras cobram, naturalmente preços elevados (350/500 euros por dia, por quadro) o que naturalmente ultrapassa em muito o que realmente pagam aos seus trabalhadores e que corresponde a quase tanto ao que muitos funcionários públicos levam para casa, no final do mês. Muitas vezes, essas consultoras, desconhecedoras do "negócio" recrutam técnicos da própria entidade adjudicante, como profissionais liberais, para os ajudarem a fazer o trabalho. E o "grande gestor", o invertebrado Teixeira dos Santos que tanto se afadiga para impor 1,5% de aumento para os funcionários públicos ainda não ordenou nenhum inquérito aos contratos de consultadoria que há anos se sucedem com as mesmas empresas. E Vieira da Silva que todas as semanas anuncia milhões de euros em fraudes de desempregados ou doentes mostra-se calado face ao incumprimento contributivo das empresas.

Não é difícil encontrar consultoras que propõem hoje uma solução a uma equipa de gestão e amanhã outra, radicalmente distinta, à equipa sucessora, do outro partido. Quanto aos custos destas guinadas organizativas, estamos entendidos. Amiudadamente, cada equipa de gestão fornece a documentação necessária e as suas próprias ideias à consultora que se limita a inscrevê-las ou imprimi-las em papel com o seu próprio timbre. A consultora emite a factura e a equipa de gestão apresenta um parecer técnico de uma entidade externa:”isenta”, naturalmente.

Cada ministério trabalha com várias consultoras, cada qual com os seus métodos e programas próprios e raramente se acautelam as compatibilidades e a coerência do funcionamento global. E, claro que quem chega trata logo de promover novos estudos, novas aplicações informáticas, etc, porque a equipa anterior, naturalmente fez asneira, por definição. Por exemplo, a construção de uma aplicação de contas correntes para a Segurança Social foi suspensa durante nove meses por Bagão Félix que, entretanto, arranjou uma consultora para aferir o trabalho da concorrente. No entanto, em 6 anos, a instituição vai na criação da 5ª aplicação de contas correntes a qual ainda está longe de fiável e acabada.

Uma política de recursos humanos caricata

Todos sabem que há uma irracional distribuição de recursos humanos na administração pública e isso, porque não há uma lógica integrada; não há planos de afectação de recursos a nível cada ministério, nem é habitual que a mesma exista ao nível de cada serviço. Se se perguntar a qualquer responsável se tem falta de pessoal a resposta, será afirmativa, por sistema; ninguém assumirá que tem pessoal excedentário. Na lógica do imobilismo gerado pelo sistema cleptocrático, quem for responsável por 10 funcionários é menos importante do que o colega que tiver 11.

Existem carências mais ou menos permanentes de gente para proceder ao tratamento elementar de informação, por exemplo. Como as admissões estão congeladas é preciso recorrer ao trabalho temporário, através de empresas dessa natureza e, por cada trabalhador que recebe o salário mínimo, a empresa contratada recebe do Estado cerca de três vezes mais. É assim tão difícil criar uma bolsa de funcionários públicos para cumprir essas tarefas, permanentes, em locais variáveis, de acordo com as necessidades ?

Quem se dirija a qualquer serviço público logo encontrará, à entrada, a figura incontornável de um elemento de portaria/segurança com o rótulo de uma empresa privada de fornecimento de serviços. Qual a parcela que esse trabalhador receberá daquilo que o Estado paga à sua entidade patronal ?

Em toda a parte do mundo económico se fazem contas de comparação entre os custos do recrutamento de pessoal próprio e os de "outsourcing". Alguém na administração pública fará essas contas ou segue-se apenas a moda ? E como não sabem ou não querem fazer as contas ficam espantados a olhar para o deficit e a procurar agilmente fórmulas práticas de apresentar a factura à população em geral.

Dois mitos demagógicos

Um dos mitos mais comuns, que só preconceitos ideológicos ou ignorância permitem a constante repercussão na imprensa é o do peso do Estado em Portugal. Não vale a pena sobrecarregar este texto com números que demonstram a falsidade desse argumento mas antes ver as coisas a partir de outro ângulo.

Não é o Estado que pesa muito (sem prejuízo de necessidades óbvias de reformulações inteligentes) mas o sector privado que se mostra incapaz de desenvolver o país, criar actividades que aumentem o peso específico de Portugal no contexto global e gerar riqueza susceptível de, através dos impostos cobrados propiciar, por exemplo, sistemas de saúde e educação decentes. E isto historicamente. E isto ainda, após 20 anos de fundos comunitários que somente fomentaram o alcatrão. E isto, finalmente, talvez devido a décadas de evasão fiscal, em regra proporcionais à posse de ferraris e quejandos que subdesenvolveram o país.

O outro mito, revelador da ignorância de quem o elege como factor crítico da administração pública é o de uma grande parcela de funcionários trabalhar na prestação interna de serviços (Ferreira Leite). Quem se escandaliza com isso só conhece da administração pública os balcões das repartições das finanças e pouco da vida das empresas em plena sociedade da informação. Até num restaurante, metade das pessoas trabalham na cozinha, a municiar os empregados de mesa que nos trazem a comida. Perguntem ao Bill Gates qual a parcela de pessoas que tem ao balcão e quantos são os trabalhadores cujo trabalho consiste na recolha, transformação e municiamento de informação. Se for mais fácil, consultem Robert Reich ou, mais perto ainda, verifiquem se a PT ou a EDP terão a maioria do pessoal por detrás de guichets.

O que fazer, entretanto ?

Muitos funcionários públicos conhecem os compadrios, as contratações estranhas, os enriquecimentos rápidos, os despachos e favorecimentos escusos. Também se sabe o desrespeito impune dos responsáveis da administração pública em proceder à informação de deputados, jornalistas e público em geral. Sabe-se, finalmente, como a própria informação estatística é precária, inconsistente quando não manipulada.

Compete, portanto, a todos os trabalhadores a divulgação de documentos e factos reveladores das irregularidades do mandarinato. Essa divulgação pode fazer-se, de modo anónimo, junto da imprensa, através da internet, em mensagens de SMS e das próprias instituições vocacionadas para a investigação criminal, apesar de manietadas quando convém. Podem mesmo fazer-se panfletos a distribuir anonimamente nos locais onde se passam os acontecimentos, clamando por vigilância face às acções dos corruptos e dos actos de delapidação do erário público. Esquerda Desalinhada pode mesmo colaborar na difusão dos actos e dos protagonistas do saque.

Janeiro 2006

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