Nas tendências dominantes na gestão
das empresas por parte do neoliberalismo destacam-se sumariamente duas
características: a incúria na criação de riqueza e a manipulação dos resultados.
A estagnação económica global gera um
"salve-se quem puder", uma lei da selva em que a sobrevivência
depende mais das capacidades predatórias e da mistificação contabilística e
publicitária, do que de uma real criação de riqueza. E como os governos se
mostram, cada vez mais, simples agentes dos diversos grupos económicos,
financeiros e mafiosos, deixa de haver gestão global. Dito de outro modo, a
gestão global do planeta é a resultante aleatória de interesses divergentes, de
antagonismos exacerbados, de manobrismos que têm a falsificação e o roubo por
base: os economistas ortodoxos chamam-lhe o mercado.
Se toda a monumental trapaça que é o
funcionamento do mercado fosse apenas o conluio ou o cambão entre os principais
actores com a maior ou menor interpenetração de condições artificiosas geradas
pelos governos, o assunto teria apenas o carácter lúdico da assistência ao jogo
entre batoteiros numa tasca de bairro. Mas não, dessa batota global depende o
bem estar social da multidão, o nível de emprego, os níveis salariais, a
cultura e a própria democracia. E por isso, essa batota é um assunto global e
compete à multidão acabar com ela e com os seus “players”… para utilizar um termo comum na liturgia
anglo-saxónica.
Onde está a incúria na gestão das empresas
?
A formação das taxas de lucro sempre
constituiu um elemento central para o interesse na detenção de acções de uma
empresa. Porém, à medida que as empresas, hoje, se inserem no mercado de
capitais, deixam de ser determinadas, na sua gestão, por objectivos de
médio/longo prazo e a fixação das taxas de lucro assumiu uma relevância quase
exclusiva induzindo, de facto, uma "navegação à vista", para a
gestão.
Os actos de gestão tornam-se,
portanto, determinados pela pressão de accionistas que nada mais pretendem que
um rendimento maximizado e imediato; portanto, tornam-se predominantes os actos
geradores de rendabilidade garantida a curto prazo e subalternizadas as
políticas de investigação, de inovação, de consolidação de um elenco estável de
pessoal e de avaliação segura e credível das expectativas.
O predomínio dos fundos de pensões,
nomeadamente americanos, no conjunto dos grandes operadores mundiais no mercado
de capitais representa um elevado desinteresse pela gestão estratégica das
empresas: apenas conta a recolha maximizada de dividendos para fazer face às
responsabilidades face aos seus subscritores.
Mesmo que exista um "núcleo
duro" no conjunto dos detentores de capital, com perspectivas mais
duradouras de permanência na empresa, as
alternativas de maior rendabilidade a curto prazo mantêm-se, pois a penalização
provocada nas cotações por taxas menos boas de lucro também os afecta,
traduzindo-se numa avaliação inconveniente dos seus próprios activos.
Tornados os gestores eles próprios elementos
submetidos ao julgamento divino, perdão, do mercado, tornam-se eles também
interessados na valorização rápida do capital, na apresentação de elevadas
taxas de lucro para recolherem as boas graças dos accionistas predatórios. E,
por outro lado, sabendo que a prazo, tal desiderato não é duradouro e que serão
demitidos, tratam de amealhar em "stock options", sorver as mordomias
do lugar e negociar/impor condições milionárias em caso de despedimento (ex,
Messier), tornando-se também, um factor de aceleração da predação, conivente na
mesma visão de curto prazo.
A actividade de uma empresa torna-se,
portanto, totalmente presa dos resultados apresentados a curto prazo valendo
para tal a cosmética mediática (se necessário comprando os serviços de alguns
jornalistas), os serviços de consultores corrompidos, a publicidade, a
divulgação de planos, projectos, entrevistas e resultados fantasistas.
Nessa enorme pressão pela
apresentação de resultados imediatos valem distorções da concorrência ou abuso
de poder, com preços de monopólio garantidos pelo Estado (PT, EDP, Brisa, por
aqui) para inflaccionar as receitas; banalizam-se políticas laborais
agressivas, com despedimentos, precaridade, revisão em baixa de condições
contratuais, extensão de horários; menosprezam-se as obrigações ambientais,
quer directas, quer pela dependência de práticas logísticas com grande peso de
transporte; transferem-se para o erário público investimentos com investigação
(veja-se o papel do Pentágono ou da Nasa na investigação americana e a génese
da internet) ou encargos de reestruturações internas (caso recente da ideia de
transferência dos fundos de pensões dos bancários para a segurança social
pública ou, dos fundos de pensões de empresas para a CGA, em 2004).
Outro dos aspectos negativos da
pressão para a distribuição de dividendos é a tendência para a não formação de
poupanças (lucros retidos) e portanto, a colocação do investimento num baixo
nível, bem como uma maior dependência das empresas face aos capitais alheios.
Do ponto de vista global, o nível do investimento fica determinado pela
iniciativa das famílias, mormente no que se refere à habitação e pelo
investimento público, ambos submetidos a claras pressões para a contenção.
E onde está a mistificação ?
Para cúmulo do desnorte gerado pela
cupidez que caracteriza a gestão económica, social e ambiental do planeta, há
uma mistificação que tende a empolar artificialmente os lucros das empresas,
através da instituição de técnicas da manipulação contabilística.
Durante décadas, as regras de
prudência e realismo na apresentação das contas das empresas representavam a
consideração nos balanços das menos-valias mas não as mais-valias potenciais:
estas só eram registadas após concretização em vil metal ou num seu
equivalente. Pretendia-se com isso apresentar um quadro de verdade, confiança e
transparência para com financiadores, fornecedores e accionistas. Sucede que há
um ano entraram em vigor na UE, por inspiração divina, perdão, do mercado, as
normas dum tal IASB (International Accounting Standards Board), segundo as
quais:
a. É possível uma
empresa compradora de outra não amortizar como custo as mais valias pagas ao
vendedor, a título de "goodwill", por conta de vendas futuras,
parcialmente geradas pelos seus ex-titulares. Numa época em que fusões e
incorporações são muito frequentes, em que é elevada a volatilidade dos
mercados financeiros e que campeia a estagnação económica, tal prática pode
inflacionar irrealisticamente o valor de uma empresa que considere como um
activo consolidado, resultados futuros, meramente potenciais ou imaginários.
b. Ninguém fica obrigado
a registar as perdas potenciais nem é impedido de registar mais-valias
igualmente potenciais. Assim, os gestores podem ocultar uma menos-valia para
que isso não desvalorize as acções de empresa nem o desempenho dos seus
executivos; e podem contabilizar mais-valias sempre que isso abrilhante a sua
gestão, contribua para melhorar a cotação da empresa e ofereça melhores
resultados e dividendos. Dado o leque de possibilidades, a real situação para
quem estiver de fora é uma variável aleatória.
Nesta economia de casino não é fácil
saber, perante os resultados apresentados por uma empresa, o que resulta de um
crescimento sustentado de posição de mercado, o que provém de um
"downsizing" no pessoal, na massa salarial, do I&D ou, o que é
determinado por uma manipulação contabilística, por uma contabilização
"criativa" mesmo que atestada por uma qualquer Arthur Anderson (caso
Enron). Para os accionistas o que importa (e só) é o dividendo que lhes cabe o
qual, se não for satisfatório, conduzirá à venda das acções detidas, por troca
com outras mais rentáveis.
Perante os resultados divulgados
sobre os resultados das empresas que confiança sobrará para os seus trabalhadores
que nunca sabem se e quando virá a "reestruturação" ou a
deslocalização à sua custa; como não sabem, os pequenos investidores (fora do
cambão dos bancos, das corretoras e de CMVM's),
qual o real valor das suas acções. E os trabalhadores cujas reformas se
baseiam em títulos de empresas cotadas na bolsa, qual a segurança que têm?
Sabendo-se o peso que as grandes empresas cotadas têm na economia, quanto do
rendimento nacional resultante dos lucros declarados não passa de ficção? E,
portanto, quanto dos anémicos crescimentos do PIB europeu resulta dessa
cosmética ? E, afinal, os maiores crescimentos contabilizados nos EUA são mesmo
reais ou melhor, em quanto são afectados pela contabilidade criativa definida
pelo IASB, a OMC da contabilidade?
Assim, numa economia mundial
globalizada torna-se regra obrigatória, o nivelamento por baixo dos rendimentos
do trabalho e por alto dos rendimentos dos accionistas e dos executivos de
topo. E há quem candidamente acredite que a maior propensão para a poupança e
um consumo mais acentuado de bens de alto valor unitário (carros, casas,
viagens...) compensará a perda de poder de compra de milhões de assalariados
pelo mundo. Ou que o aumento da riqueza produzida pela China compensa as perdas
sofridas nas áreas prejudicadas pelas deslocalizações. É óbvio que para isto há
crentes bem intencionados, mas ignorantes, como oportunistas bem sabidos na
arte de mistificação.
Resultam destes factores, baixas
taxas de crescimento económico, anemia das exportações e grandes perdas de
qualidade de vida da multidão nos países ditos desenvolvidos, mantendo-se
previsivelmente baixos os níveis de vida dos poucos países que vêm beneficiando
das deslocalizações, com relevo para a China e a Índia, em concomitância com o
aumento das clivagens sociais por todo o lado.
Resulta também a desertificação ou a
desvalorização económica de grande parte do planeta, com fenómenos de
empobrecimento, ausência de perspectivas de emprego e vida, inutilidade de
qualificações face ao padrão produtivo, dificuldades extremas com a emigração,
etc .
Resulta finalmente, afunilamento e
desvalorização da participação democrática, com derivas securitárias insanas e
exibição do poder, numa escalada que prefigura uma fascização a nível mundial.
Soluções
A nível de cada empresa não há, hoje,
fuga possível a esta lógica. Só existe uma solução e essa, tem de ser global e
protagonizada pela multidão organizada de acordo com uma lógica não
capitalista, com a gestão das empresas efectuada pelo colectivo dos trabalhadores,
a única entidade conhecedora da empresa, a única capaz de efectuar uma gestão
responsável.
Nada há a esperar das instituições
europeias, mormente da Comissão que mais não é que a executora dos interesses
das multinacionais, do sistema financeiro ou do capital mafioso, embora a UE
tenha uma dimensão susceptível de poder inverter as tendências actuais da
globalização neoliberal, predatória e suicidária.
O que há, então a fazer, resultará do
tal debate a que as esquerdas pouco se dedicam, uma vez que dão quase sempre a
prioridade às liturgias eleitorais de legitimação do poder e a uma participação
esforçada mas, com escassos frutos nas instituições da democracia de papelão.
Fica sempre adiado, o debate e a organização revolucionária das resistências, a
criação de redes de activistas, a troca de experiências, o fomento da
construção prática de alternativas, saídas e realizadas pela própria multidão,
bem como a formação dos militantes, muitos dos quais têm a cabeça cheia de
ilusões social-democratas.
Por exemplo, é possível divulgar os
manobrismos cosméticos dos executivos das empresas, usando a internet, os SMS,
os contactos pessoais, sem prejuízo da utilização, sempre que possível, da
imprensa e das vias institucionais (AR, assembleias autárquicas, sindicais,
etc.)
Dentro de cada empresa há sempre quem
detenha informação comprometedora para os executivos; só resta divulgá-la,
dentro e fora da empresa e nessa divulgação, é necessário ter presente a ideia
de que cada activista, cada trabalhador, faz parte de uma rede que urge alargar
bem como densificar as trocas de informação e as experiências. Essa rede deve
ser entendida a uma escala global - aquela em que se move o capital - e
não restrita a um país ou mesmo ao contexto europeu.
Nesta fase de grande agressividade do
capital contra os trabalhadores e em que os governos nacionais perdem poder ou
utilizam o que lhes sobra (e que ainda é considerável) na mesma ofensiva contra
a multidão, a acção das esquerdas deverá ser a de dificultar a acumulação capitalista,
como via de abreviar a criação de alternativas de organização económica e
social.
15 Janeiro 2006
http://esquerda_desalinhada.blogs.sapo.pt/2006/01/
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