sábado, 24 de dezembro de 2011

Estratégia para um Sistema de Segurança Social favorável à multidão de trabalhadores e ex-trabalhadores

A - Panorama político e social subjacente à criação dos Sistemas de Segurança Social (SSS)



A criação e a manutenção dos SSS durante algumas décadas, na Europa, alicerçou-se em vários factores:



·         Estabelecimento de uma relação directa e estreita entre as receitas e o volume da mão de obra trabalhadora



Uma vez que no início, eram dominantes as actividades de trabalho intensivo, a criação de riqueza evidenciava uma ligação mais visível, directa e proporcional com a prestação de trabalho.



·         Dimensionamento das receitas, de molde a permitir o pagamento de pensões no escasso número de anos que mediariam a retirada da vida activa e o óbito do trabalhador.



A esperança de vida, ligeiramente superior à idade da reforma bem como a fixação de pensões com valores inferiores ao produto da capitalização dos descontos permitiu até que os sistemas financiassem, como em Portugal, infra-estruturas energéticas ou a construção de habitações.



·         Uma afirmação muito marcada dos espaços nacionais, com a criação de ordenamentos económicos fechados sobre o território. A U E, inicialmente com seis países, só se abriu aos alargamentos a partir de 1973, com o fim das taxas elevadas de crescimento.



A carga tributária ou contributiva onerava então, de modo relativamente igualitário as empresas, num quadro nacional. Se as exportadoras poderiam ter dificuldades aqui ou ali para a colocação dos seus produtos, por dificuldades competitivas, os Estados-nações forneciam apoios financeiros, regulavam as taxas de juro, etc; por seu turno, as que competiam internamente, com bens importados achavam-se relativamente defendidas por barreiras alfandegárias. Por outro lado, o proteccionismo acentuava a importância do mercado interno e não o comércio externo.



·         No contexto das necessidades de pacificação social, após várias décadas de acesos conflitos, os sistemas foram instituídos primeiro, no âmbito do New Deal, nos EUA e, de seguida, foi-se gerando o modelo social europeu, nas suas várias acepções (nórdica, anglo-saxónica, renana e mediterrânica) que privilegiava uma coexistência harmónica entre o trabalho e o capital.



Esse modelo vigorou nos chamados países desenvolvidos durante o período que se estendeu do final da última guerra até à crise petrolífera de 1973 quando terminaram as taxas de crescimento económico elevado baseadas em petróleo barato e confiança no dólar. A correspondente queda das taxas de lucro gera o período do declínio do modelo social aqui subjacente, com a afirmação das teses neoliberais na gestão económica, (estreadas no Chile de Pinochet), mais acentuada após a queda do Muro e o fim da concorrência geo-estratégica entre as duas superpotências.



B - A produtividade e o excedente



Os progressos científicos e tecnológicos adoptados na produção de bens e serviços, mais recentemente materializados pelas novas possibilidades de tratamento de informação e da comunicação alongaram, diversificaram, segmentaram e aumentaram a complexidade dos processos produtivos. Essas modificações da base técnica e a grande concentração de meios num número relativamente pequeno de empresas transnacionais provocaram grandes aumentos da produtividade do trabalho.



Por outro lado, essa concentração reorganizou a circulação a nível mundial de pessoas, mercadorias, capitais e tecnologias eliminando ou reduzindo substancialmente as capacidades de intervenção dos Estados nacionais na política económica. Essa acelerada instituição de regras globais protagonizadas por organizações especializadas e fora do controlo dos Estados nacionais (OMC, FMI, BCE…) vieram a facilitar, a fornecer os instrumentos para o processo de globalização em curso. Essa concentração de recursos e a reorganização do chamado mercado mundial, por sua vez, acentuou a produção de grandes ganhos de produtividade.



Evolução (1992=100) da produção horária na indústria
manufactureira e custo laboral por unidade de produto

                                                      2004
                                Produção                Custo laboral
França                         164,4                          86,8  
Alemanha                    147,4                        100,4  
Itália                             110,6                        130,1  
Japão                           165,1                          70,3  
Coreia                          280,7                        112,8  
Holanda                       146,7                        108,0 * 
Noruega                       116,8                        142,5  
Suécia                         220,3                          72,9  
G-Bretanha                  140,8                        116,8  
EUA                             189,0                          86,6  
                                                                *  2003
Fonte:  Bureau of Labour Statistics

































O custo laboral associado à produção de cada unidade de produto tem crescido, nos principais países desenvolvidos de modo muito menos marcado do que a produção. As razões para este aumento situam-se na substancial melhoria das qualificações, consequente, por sua vez do maior período de aprendizagem e formação; na inclusão na órbita do capital global de novos sectores da multidão, numa lógica de trabalho extensivo e miseravelmente pago; e ainda na incorporação de equipamentos e conhecimento, por sua vez produto do trabalho prévio da multidão.



Em suma e no âmbito da esfera produtiva gera-se, constantemente um excedente económico global de enormes dimensões de onde saem os meios para a prossecução do investimento e os recursos que, vocacionalmente públicos, são aplicados na gestão social, ambiental e política da multidão de indivíduos que povoa o planeta. E ressalta ainda a enorme parcela que é absorvida pelos capitalistas, apropriada pelo mandarinato político, aplicado de forma improdutiva em gastos militares, de segurança e publicitários, actividades especulativas na bolsa e no imobiliário ou desviado para os diversas áreas de negócio mafioso.



Por outro lado, a utilização das tecnologias, a concentração de capitais, a circulação das mercadorias e a instituição do mercado global consubstanciam uma tendência para uma maior integração da multidão mundial, para a unidade da sua acção, para a geração de uma racionalidade sistémica. Inversamente, a actual gestão da realidade social por parte das multinacionais, do sistema financeiro e do capital mafioso, não evidencia capacidades que não para a acentuação das imensas deficiências na gestão social, ambiental e política globais, no âmbito da qual se vem atrofiando o papel dos Estados-nação, da sua crescente imersão no estreito padrão do “pensamento único”, neoliberal.



Simultaneamente, as transformações que vêm, sumariamente, a ser descritas, a globalização da actividade económica, com as aberturas de fronteiras, os fenómenos de integração económica, as deslocalizações da produção, mormente industrial, têm vindo a procurar um nivelamento por baixo no ordenamento salarial e laboral dos países chamados desenvolvidos. Assim, naqueles países, o desemprego elevado com carácter permanente e o empobrecimento de fatias muito vastas da multidão conduzem a custos acrescidos dos sistemas de protecção social.



Por seu turno, no capítulo dos países ditos periféricos, o desenvolvimento fica bloqueado pela aliança entre as multinacionais e as corruptas oligarquias locais. E aí, cresce a desestruturação das economias, um brutal desemprego, um subemprego extensivo, uma emigração maciça, num quadro em que o modelo social nunca foi particularmente vantajoso para a multidão.



A mesma globalização ao eleger a competitividade externa como condição única de sobrevivência para as empresas cria diversos tipos de problemas. Inserida no mercado global, a empresa, mesmo que nem opere muito para além dum restrito âmbito geográfico, sofre uma concorrência proveniente, potencialmente de qualquer origem. Submetidas a uma enorme pressão proveniente do mercado, dos capitais financeiros ou bolsistas, acentua-se a tendência para a compressão de custos, nomeadamente dos salários, dos custos fiscais ou contributivos, ambientais, ou dos custos sociais, de modo mais lato.



C - Panorama político e social actual e os Sistemas de Segurança Social (SSS)



Comparando os momentos da instauração dos SSS com o tempo presente, verificam-se diferenças nítidas, entre as quais ressaltam as seguintes:



·         Passou-se de um período em que o excedente económico, sendo comparativamente escasso, estabelecia uma relação linear com o volume da mão de obra, para uma época em que a incorporação indirecta do trabalho (equipamento fabril, de computação ou comunicacional, software, etc) na produção transforma completamente a relação entre o volume da mão de obra o excedente económico.



·         A longevidade humana cresceu de modo muito marcado enquanto a natalidade se vem pautando por níveis tão baixos que colocam a renovação das gerações, na Europa ocidental ou nos EUA, pendente das vagas migratórias, provenientes das regiões periféricas.



·         As exigências de qualificação alargaram o tempo de escolaridade média e de formação profissional pelo que a entrada na actividade produtiva se verifica mais tarde do que antes mas, constituindo esse investimento, em contrapartida, a indispensável base para níveis muito elevados de produtividade.



·         As desigualdades sectoriais na aplicação de novas tecnologias e no crescimento da produtividade criaram uma estratificação entre aqueles sectores em que é elevado o peso dos custos da mão de obra na facturação, dos sectores de trabalho intensivo, mais tradicionais e, aquelas actividades mais modernas, menos recorrentes de trabalho menos qualificado e com forte incorporação de trabalho cristalizado.



·         No quadro dos Estados-nações iniciais, no âmbito das suas quase absolutas competências em matéria de política, económica e social, faltava em necessidade económica o que sobrava de razões sociais e políticas para a manutenção de SSS estáveis e até generosos, baseados nos contributos directos dos trabalhadores e na contribuição patronal, componente do designado salário indirecto.



A globalização altera este quadro e, não havendo uma regulamentação internacional para as questões sociais é forte a relutância das empresas em manter as suas responsabilidades colectivas; é elevada a pressão para a inclusão do dinheiro dos trabalhadores na volúpia dos mercados financeiros; é clara a tendência para o sacrifício das contribuições para o SSS como instrumento de competitividade externa. Nomeadamente, em países onde não existe na memória colectiva uma consciência das vantagens de um estado de bem estar social ou onde a organização da multidão é mais débil.



D - Os SSS de hoje; tendências e alternativas



Perante o espectáculo da globalização e as premências da competitividade externa, as reformas estruturais dos SSS têm ficado adiadas. Na resposta às dificuldades financeiras tem sido privilegiada a redução de direitos e do poder de compra da multidão de trabalhadores e ex-trabalhadores. O reforço do financiamento de origem fiscal, apresenta-se limitado pelas “obrigações” de redução dos deficits públicos e sofre ainda a pressão dos meios empresariais para uma redução da carga contributiva. Irracionalmente, isto, é com a racionalidade própria do capitalismo, defende-se, com naturalidade, uma inversão da tendência histórica para a redução do tempo de trabalho na vida de cada um, numa era em que a capacidade de geração de riqueza é imensa, susceptível de prover condignamente a existência do dobro da população mundial de hoje. Também, com desarmante simplismo se defende que as empresas não podem ser oneradas (antes pelo contrário) e que fatia crescente do excedente tem que lhes ser afecto ? para não prejudicarem a sua competitividade.



Neste contexto, a receita dos SSS continua a ter origem, essencialmente, nos seus beneficiários directos e na exacta medida dos salários que lhes são pagos. E isso, a despeito do contínuo aumento da produtividade, do imenso volume dos excedentes criados e das acrescidas responsabilidades sociais para com os atingidos pela reestruturação em curso do ordenamento económico global.



Colocam-se, em resumo, questões de geopolítica que evidenciam o cerne das opções económicas e sociais no mundo de hoje e no âmbito das quais encontram lugar de relevo os SSS. Essas opções, podem colocar-se de forma dicotómica:



  • Subalternização da Humanidade face à produção de mercadorias com a acentuação da tendência para erigir a competitividade externa como o factor essencial de enriquecimento das sociedades, com a consequente subordinação à mesma, dos elementos de ordem social, ambiental e política

  • Colocação da Humanidade como o objecto da actividade humana, com uma maior utilização do excedente económico na prossecução de políticas de bem estar, cuidando das populações mais envelhecidas, como das mais jovens, melhorando globalmente o bem-estar social.

Para a execução do primeiro conjunto de políticas, aquele que hoje é dominante, existem instituições com vocação planetária para estender, aprofundar e abreviar a sua adopção.



No segundo caso, a situação está muito longe dessa articulação. No entanto, cabe perguntar se, sendo o excedente cada vez mais gerado a nível planetário, não deverá ser dada prioridade às políticas sociais aplicadas por instituições vocacionadas para o efeito, em criados espaços supranacionais.



A existência de um grande volume de excedente económico, constituído na sua essência por trabalho indirecto, cristalizado, permite que se coloque em causa o princípio da estrita ligação das contribuições para os SSS aos salários directos pagos pelas entidades empregadoras, sem prejuízo da multidão.



A segmentação da produção e a distribuição do valor gerado no seio dos grupos de empresas e, de modo mais alargado por todas as unidades produtivas, não permite, de facto um conhecimento apurado do volume do excedente gerado por um dado grupo de trabalhadores. Tendo-se globalizado a produção e a geração do excedente, este torna-se um produto social, da responsabilidade de todos os que participaram na sua geração.



Deste modo, a geração global do excedente e a transformação numa verdadeira comunidade, do conjunto daqueles que contribuem para a sua formação, torna a questão da segurança social uma questão global; se não (ainda) no âmbito geográfico, pelo menos no contexto social dentro dos espaços mais ou menos uniformes que existem.



Quando as finanças públicas assumem a responsabilidade por parcela elevada de custos de protecção social enquadrados em direitos de cidadania assumem o carácter social dessa função, sem ligação com as contribuições para os SSS baseados nos salários dos trabalhadores.



Existindo a base material para a geração de receitas para o municiamento dos SSS, a questão torna-se num factor de ordem política sobre a aplicação do excedente social, sobre as funções que o mesmo deve financiar. E, uma vez mais se chega ao âmago da vida política, económica e social; a parcela do excedente que é disponibilizado em benefício da multidão e aquele que é roubado pelos capitalistas em conivência com os seus mandatários políticos.



Existindo essa base material é possível equacionar fórmulas de protecção social mais concordantes com as aspirações da multidão e com as próprias conveniências da produção global:



·         É inquestionável a legitimidade do fornecimento do equivalente a remunerações para períodos mais prolongados de vida, terminado o período activo, tornando, assim os indivíduos os verdadeiros beneficiários do aumento da longevidade humana;



·         A entrada mais tardia na actividade produtiva, como resultado do alongamento do período de formação educacional e profissional é compensado, durante a vida activa pelo acréscimo de produtividade daí resultante, não se justificando, a priori, um deslocamento, em contrapartida, do período activo para, fases mais adiantadas do ciclo biológico de vida; justificando menos ainda que a acrescida capitação do contributo para a produção, reverta essencialmente para os detentores do capital



·         Um indivíduo depois de atingidas as condições para a retirada pode continuar produtivo, se assim o entender, se for essa a sua opção e, isso não pode constituir uma penalização adicional imposta;



·         A população retirada do mercado de trabalho, para além do apoio familiar que pode prestar, pela inserção em redes de solidariedade local em que pode participar, gera um rendimento social que, embora não computado, não deixa de ter uma dimensão económica apreciável;



·         O usufruto da longevidade para além da vida activa pode permitir o desenvolvimento de actividades económicas relevantes, entre as quais se destacam a cultura e o turismo;



·         O retardamento do início do período não activo da vida limita o acesso das novas gerações ao trabalho, com a evidente perda de aproveitamento da sua vitalidade, de conhecimentos mais actualizados, de postergação no tempo do período de maturidade produtiva e com custos de períodos mais dilatados de desemprego; ou, no mínimo, pode dificultar a progressão profissional dos mais novos, dificultando a substituição das gerações e potenciando conflitos inter-geracionais.



Tendo como objectivo o fortalecimento dos SSS imanentes a políticas inequívocas de bem estar, podem ser definidas, como fontes de fundos, de forma compósita, evolutiva e ajustável às necessidades das populações abrangidas, as seguintes:



  • Parcela proporcional ao salário realmente pago
  • Contributo patronal identicamente proporcional ao salário directo
  • Taxa com incidência sobre o volume de facturação, o valor acrescentado ou a dimensão do imobilizado das empresas
  • Contributo retirado das receitas fiscais

sem esquecer, como elemento basilar, a pré-existência de sistemas fiscais e de arrecadação de receitas para o SSS equitativos e adequados aos rendimentos reais dos contribuintes.



Possivelmente, as virtualidades de um sistema fiscal ou parafiscal serão maiores se o âmbito da sua aplicação se não restringir ao quadro de um Estado nacional. A aplicação restrita a um só Estado-nação perde, comparativamente, eficácia, tendo em conta a globalização da actividade económica, a sua liberalização e a desregulamentação a que se vem assistindo.



E - A ineficácia da redução dos custos de protecção social para o desempenho das economias



O mandarinato político, os media que os apoiam e a os poderes económicos que os detêm não cessam de frisar a necessidade de contenção de custos, num ladainha em que se repetem uns aos outros, quando não cantam em afinado coro.



Considera-se como único princípio sustentável de filosofia política que a economia existe para servir a multidão e não que a economia constitui uma nova transcendência, tributária de uma submissão por parte da multidão. Dentro dessa filosofia, as questões ligadas com a sustentabilidade dos SSS colocam-se mais ao nível das receitas do que ao nível da despesa. Se se der o primado às políticas de bem estar social, a despesa socialmente necessária determina o nível de receitas adequado, dentro das capacidades de geração, globais, de rendimento. Sem prejuízo da adopção de medidas de racionalização administrativa, da constante preocupação no aumento da produtividade dos serviços, os sistemas mostram-se, hoje, contudo, mais afectados pelo subfinanciamento do que com factores compressíveis de despesa.



No plano lógico daqueles que privilegiam uma actuação sobre a despesa surgem as ideias comuns sobre os impactos benéficos na competitividade a partir da redução dos encargos patronais com a segurança social ou, mais genericamente, da carga fiscal e da despesa pública. Os resultados, quando se verificam, não ultrapassam o curto prazo, pelos seguintes motivos:



  • Primeiro, porque a redução de custos tributários ou equiparados num país conduz a uma breve resposta dos países que se acham em concorrência com aquele. O efeito benéfico tende a anular-se, a prazo, tal como as desvalorizações monetárias nunca contribuíram para o crescimento sustentado das nações;

  • Segundo, não está demonstrado que a competitividade externa se consiga a partir de reduções do bem estar dos beneficiários dos SSS ou de reduções significativas da carga fiscal, como aliás se verifica nos países mais desenvolvidos da Europa, com destaque para os escandinavos. Se assim fosse, o limite estaria na ausência de preço para a aquisição dos factores produtivos, o que não passa de uma extrapolação matemática. Factores como o nível educacional e de formação e a especialização produtiva são, de longe, mais eficazes e de efeitos duradouros;

  • Terceiro, o sublinhar do impacto positivo na competitividade induzido por reduções nos custos salariais e sociais em geral, oculta o seu efeito de factor recessivo no volume do mercado interno, fomenta a economia informal, traduz-se na deterioração dos indicadores de nível de vida e prejudica, de modo duradouro o desempenho das empresas, fechando-se o ciclo, passado um curto lapso de tempo. Não se conhecem casos de sociedades desenvolvidas e socialmente equilibradas com baixos salários e baixos níveis de protecção social.

Tradicionalmente, as eventualidades que dão origem a despesas de carácter social (pagamento de pensões, subsídios de doença, desemprego?) têm uma maior sensibilidade social e portanto maior visibilidade do que os aspectos relativos à arrecadação de receitas para os SSS. As sociedades, pelas vozes dos media, tendem a dar mais relevo aos custos do exercício dos direitos de muitos e a minorar o impacto do incumprimento das obrigações de alguns.



F - A situação em Portugal



A manutenção em Portugal, durante muitos anos, de despesas com uma evolução relativamente regular alterou-se, devido a vários factores:



  • O impacto da maior longevidade dos beneficiários no aumento do volume das pensões;

  • A extensão do direito a pensão a indivíduos com carreiras contributivas curtas ou inexistentes, cujo peso no total, contudo, vem regredindo;

  • As reestruturações sectoriais ou empresariais geraram um número considerável de indivíduos precocemente retirados do trabalho. Nos casos em que houve efectiva reinserção na vida activa, a mesma procedeu-se de formas que não aligeiraram as responsabilidades da Segurança Social nem aumentaram particularmente as suas receitas (economia informal, trabalho independente)

  • A estabilização das dificuldades estruturais que conduziram à criação de fórmulas institucionais de apoio social aos segmentos populacionais mais atingidos (RMG/RSI) e o reforço dos programas de acção social;

  • Subfinanciamento duradouro durante o período cavaquista por incumprimento da Lei de Bases que previa o pagamento, via OE, de despesas com acção social, por exemplo, a expensas dos fundos destinados, maioritariamente, a pagamento de pensões

  • O crónico desajustamento estrutural da economia e a banalização do desemprego arrostaram também com um acréscimo consolidado e avultado de custos, constituindo, em contrapartida, uma bolsa de receitas duradoura e meramente potenciais.

A contribuição das receitas dos impostos para o financiamento de diversas situações (acção social, RMG/RSI, desemprego, etc) revela até que ponto as necessidades de protecção social ultrapassam em muito as disponibilidades geradas pela arrecadação específica de receitas para o SSS. E manifesta a assunção real da integração numa visão globalizante, nacional das questões sociais mais candentes.



Por outro lado, no âmbito das receitas gerou-se um conjunto variado de situações nem sempre com vantagens para o SSS:



  • O esmagamento do nível dos salários, como produto da globalização, tem naturalmente um impacto nas receitas do sistema muito inferior aquele que resultaria de uma proporcionalidade aos aumentos da produtividade e da inflação;

  • A vulgarização da precariedade, para além de manter baixos os níveis salariais dos atingidos pela mesma, provoca uma alternância nas carreiras contributivas entre períodos de trabalho e períodos com subsídio de desemprego. Essa precariedade não alimenta a regularidade na formação das receitas nem estabiliza o nível das despesas inerentes a cada indivíduo;

  • Um benefício contributivo, não contabilizado, com a desoneração das empresas de pagamentos à segurança social resultantes da banalização da contratação de trabalhadores “a recibo verde”, em que só estes procedem a descontos, reduzindo-se, portanto a receita do SSS português.

Um exercício simples permite uma avaliação dessa punção a favor das empresas e de quanto os trabalhadores pagam em excesso relativo. Sendo cerca de 400000 os trabalhadores a “recibo verde” e admitindo uma remuneração média actualmente declarada de 360 euros mensais a receita anual propiciada ao SSS é da ordem dos 346 M euros, sendo nulas as contribuições patronais.



Se esses mesmos trabalhadores estivessem integrados sob o regime de trabalhadores por conta de outrem, admitindo o mesmo nível de remuneração, a receita do SSS seria de 670 M euros dos quais 190 M de dedução directa nos salários. Na situação actual, portanto, o SSS prescinde de 310 M euros por ano (670-360), o patronato não paga 480 M euros (670-190 a cargo dos trabalhadores) e estes últimos pagam mais 170 M euros (310-190). Será preciso comentar ? E isso, não considerando o “dumping” salarial que a precaridade induz no nível das remunerações.



  • O recurso extensivo a mão de obra imigrada constitui um clima geral de nivelamento por baixo das remunerações e, na parte que corresponder à formação de bolsas de trabalho informal, não traz qualquer benefício financeiro para o SSS;

  • Os trabalhadores estrangeiros, enquanto regularmente inscritos no SSS, constituem até um elemento francamente positivo do ponto de vista financeiro, pois para um mesmo nível de contribuição, produzem menos custos do que um trabalhador português;

  • A tradição de uma relativa impunidade face ao incumprimento contributivo por parte das empresas em dificuldades constitui, por seu turno, um financiamento, muitas vezes sem retorno, de numerosas entidades de vários sectores, por parte do SSS (vg. o têxtil).

  • É conhecida a pressão do sistema financeiro para a captação das receitas dos SSS, pelo menos em parte e transitoriamente estando na agenda a sua gestão privada, sob o argumento já gasto da “ineficiência” do sector público?

Experiências recentes com fundos de pensões privativos, de trabalhadores pertencentes a grandes empresas (vg Enron), entretanto falidas, conduziram à evaporação das garantias previstas para os seus beneficiários.



Por outro lado, a gestão privada tende à colocação de fundos nos mercados financeiros, nas bolsas esperando obter aí a rendabilidade que formas mais prudentes e mais seguras não permitem. Ficam, portanto, as pensões futuras dos trabalhadores dependentes das flutuações da especulação ou das manobras arriscadas ou de contabilidade criativa dos seus gestores, com efeitos nefastos semelhantes.



A tara liberalizadora e privatizadora dos SSS também está contemplada no AGCS (Acordo Geral para o Comércio de Serviços) na forja da OMC e manifesta-se nos planos de Bush em entregar a cada trabalhador os fundos a que tem direito para uma utilização privada, como lhe aprouver. O problema é que não existe disponível nos cofres do governo americano tão colossal verba que se pretendia viesse a engrossar os fundos de pensões privados ou injectada nos mercados financeiros.



  1. A recente proposta dos bancos para a transferência dos fundos de pensões (descapitalizados) dos seus trabalhadores para o SSS institucional encontrou a natural compreensão por parte dos seus mandatários no governo, com relevo para o invertebrado Teixeira dos Santos . Nem se podia esperar outra coisa.

A ideia de congregar num único SSS a gestão dos direitos dos trabalhadores portugueses, na reforma, na doença, etc não é negativa, como princípio, a não ser se a prática revelar formas de exercer o roubo ou de onerar o erário público com custos privados do tão “eficiente” sistema bancário.



O SSS português está em processo de descapitalização por total incúria política do mandarinato e dos seus mandantes, o empresariato mais culturalmente indigente da Europa. Causas?



  • A crise económica gera pouca criação de emprego e, quando isso acontece é emprego precário ou sob a forma de “recibos verdes” no âmbito do qual o SSS recebe apenas 20% da remuneração (era 15% antes do governo Sócrates), contra quase 34% se for um trabalhador normal, por conta de outrem. (ver exercício atrás)

  • O aumento do desemprego reduz a receita e aumenta a despesa com o subsídio, ampliando portanto o impacto no orçamento do SSS, tal como acontece com o incremento dos apoios no âmbito do rendimento mínimo. Sendo o PS uma agremiação tão defensora da solidariedade (??) nem se compreende que as medidas que toma neste contexto, sejam de redução de rendimentos, de períodos de aplicação, de penalizações, restrições, algumas delas verdadeiramente maníacas dado o seu escasso impacto financeiro;

  • A crise económica acentua a histórica propensão do empresariato português para a fuga ou não pagamento de contribuições declaradas e as campanhas de recuperação só permitem uns trocos. Se Vieira da Silva soubesse o que anda a dizer, diria que a dívida à SS está mais próxima dos 5500 M? do que dos 3400 M que propala junto dos media, solícitos e pouco analíticos; e diria que a recuperação de dívida está ao nível da efectuada em 2001, último ano de que se dispõe de dados. Seria bom que Vieira da Silva referisse quanto cobra da execução de penhoras e nos processos de ilícitos criminais ou nos acordos de regularização de dívida, para nos rirmos todos, com tão baixos indicadores. E que diga que da dívida das empresas ao SSS, 40% é incobrável uma vez que se refere a falidas há anos;

  • O aparelho do SSS está profundamente infestado de militantes do PS, como antes o estava por parasitas do PSD sendo isso a única alteração introduzida pelo governo Sócrates no aparelho. O nível técnico e de gestão dos dirigentes do SSS é aferido pela capacidade de apor uma assinatura no cartão do partido. Não há sistema de informação condigno e actualizado e as contas correntes estão pejadas de erros, produto de operações de concepção e migração de dados entregues a consultoras diversas, sem enquadramento, cuja finalidade é arrastar os processos para irem facturando;

  • A operação de titularização da dívida em 2003, nódoa que eternizará na História o nome de M. Ferreira Leite corresponde a uma redução de receita futura, nos próximos 10 anos. É sabido que a contrato com o Citygroup pressupunha potencialidades de cobrança de dívidas muito superiores às reais e, para honrar os compromissos, o SSS vai entregando dívida posterior a 2004, com muito maior ratio de cobrança, para substituir aquela que se mostra incobrável. Essa afectação, reduz, naturalmente, as cobranças correntes de 2004 em diante e durante muitos anos

Cabe a todos a promoção e organização de atitudes adequadas ao arrepio das medidas que se vão tomando, defender um SSS afastado da pilhagem e da incompetência do governo Sócrates, acompanhado, no íntimo pelo PSD e CDS, pese embora o alarido destes, para cumprirem o seu papel formal de “oposição”. Cabe às forças de esquerda, aos sindicatos demonstrar que não afinam pelo mesmo diapasão, com acções concretas mobilizadoras da multidão de trabalhadores e ex-trabalhadores.


Novembro 2005

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