A complexidade crescente do processo produtivo gera consequências
a que o capitalismo não pode fugir, a despeito de serem desvantajosas para a
sua continuidade como sistema social e político.
- Uma, é o grau de
formação exigível ao trabalhador, muito além da capacidade de repetição de
tarefas elementares como assistimos no filme de Chaplin, Tempos Modernos.
- Outra consequência
prende-se com a actual e indispensável banalidade dos trabalhadores
tomarem decisões no âmbito das suas funções produtivas, largamente
marcadas pela gestão de informação e de comunicação.
Nos tempos do fordismo ou do taylorismo puro e duro, o trabalhador
achava-se relativamente separado dos instrumentos de trabalho que pertenciam ao
capitalista.
Hoje, o conhecimento é a principal ferramenta produtiva e nele se
entrelaça a formação profissional e cultural, a vida própria do trabalhador,
com os seus desejos e afectos. Ora, conhecimento significa
também incorporação de tecnologias e conhecimentos científicos e
portanto, o produto do trabalho depende essencialmente do potencial acumulado
no trabalhador.
Se a complexidade do trabalho não está na tarefa desempenhada mas,
na síntese de conhecimentos exigidos previamente para a sua execução, a
produtividade resulta, precisamente, das capacidades do trabalhador; e,
consequentemente, o tempo do trabalho resulta subalterno. E isso, é contrário à
importância do tempo de trabalho incorporado na produção taylorista, que fazia
disso a grande fonte da produtividade.
Como a real produção de riqueza se baseia na ciência e na
tecnologia detidas pelo conjunto dos trabalhadores, pela Humanidade, através da
interacção do conhecimento incorporado em cada trabalhador, é o capital humano
que se manifesta como factor dominante na produção.
Porém, o conhecimento, essa ferramenta essencial, não pertence ao
capitalista. Este pode comprar a utilização do conhecimento mas, este não é
transferível para o património do capitalista; não é possível despedir um
trabalhador e conservar o seu conhecimento. Por outro lado, a qualificação
torna os trabalhadores, em conjunto, muito mais capazes de, colectivamente
gerirem a empresa do que no passado, uma vez que todo o processo produtivo não
se desenrola sem as suas decisões autónomas e articuladas.
E, nesse contexto qual o papel do capitalista se a produção é
determinada por um bem social – o conhecimento – insusceptível de apropriação
privada? Mais do que nunca, fica claro o papel parasitário do patrão como
aliás, é magnificamente representado no filme atrás citado, Tempos Modernos.
A grande empresa de hoje
A dimensão gigantesca das empresas de hoje acentua o seu carácter
social, colectivo, uma vez que nela se integram centenas de funções diversas,
numa matriz imensa de actos antecedentes e consequentes, de decisões tomadas a
todos os níveis hierárquicos da empresa, em que os níveis superiores estão, de
facto, subordinados à informação, ao trabalho gerado nos níveis inferiores.
Para além da dimensão “tout court” está também presente o carácter
desconcentrado da produção, efectuada em vários locais, até de continentes
diferentes. Mesmo quando se trate da produção de bens sem grande complexidade
técnica, a logística do abastecimento de matérias-primas ou da colocação dos
produtos acabados exige-se, a todo o instante, uma miríade de decisões,
completamente fora do controlo do capitalista, sem qualquer intervenção deste.
Mais complexo ainda é o caso das empresas que procedem à segmentação
da produção, que repartem a fabrico dos seus diversos componentes por vários
países, valendo cada um deles, precisamente e apenas, pela integração no
produto a que se destinam. Para além da logística dos produtos acabados,
adiciona-se a dos seus componentes, dos bens com vários graus de acabamento,
acentuando-se portanto, o carácter colectivo da produção que, inversamente, se
mostra mais e mais dispensada de uma intervenção útil do capitalista.
No caso das empresas de serviços, a gestão de quantidades brutais
de informação armazenada, actualizada, recolhida e fornecida cabe inteiramente
à massa dos trabalhadores de cujas competências depende, na íntegra, o
funcionamento da unidade produtiva.
Não iremos explanar-nos aqui sobre alguns aspectos da estratégia
do capital quanto à segmentação e dispersão geográfica da produção, que visa
não só o aproveitamento das diferenças nos preços (directos e indirectos) do
trabalho, como também tornar a produção global da empresa imune a greves, pois
o capital aproveita sabiamente as lacunas de coesão e de actuação concertada
dos trabalhadores. Nem iremos também desenvolver o impacto ambiental da
movimentação de matérias-primas, componentes e produtos acabados através de
complexas redes de transporte.
O nosso objectivo, no contexto deste artigo á frisar o carácter
colectivo da produção no mundo post-industrial de hoje e o reforço da
capacidade da multidão para gerir a produção social de bens e serviços, com a
dispensa absoluta da figura parasitária do capitalista. Observe-se, por
exemplo, a forma como se procede à circulação da informação e à comunicação
através da Internet, sem qualquer controlo por parte do capital, apesar das
tentativas estatais nesse sentido; como funciona a troca de ficheiros ou de
hospitalidade através da Internet, serviços valiosíssimos excluídos da lógica
mercantil; e como o Linux demonstra como a inovação pode surgir no seio da
multidão sem a intervenção dos capitalistas.
O trabalho
social, única fonte de riqueza
Para além da dimensão e das características organizacionais da
produção que reforçam o carácter social da mesma, há vários aspectos a
destacar.
- A base material para esse reforço do papel da colectividade dos trabalhadores está nos avanços das tecnologias de informação e comunicação que permitiram a integração numa escala nunca vista, do trabalho científico na produção “comum” de bens e serviços, com a óbvia consequência de crescimentos enormes da produtividade.
- Essa base tecnológica gera, em todo o processo produtivo actual, uma crescente dependência do trabalho imaterial, intelectual.
- O trabalho individual de cada trabalhador tem um carácter autónomo, na medida em que lhe cabe a preparação e organização do seu próprio trabalho e ainda a necessidade de decisão, na esfera das suas funções, minorando a intervenção do seu superior e, nomeadamente do capitalista.
Aqui está uma enorme contradição do capitalismo actual; o capital
precisa de trabalhadores com grandes qualificações para integrar um processo
produtivo exigente de capacidades técnicas e decisórias; culturais, em suma. E , à medida que o
trabalho se imaterializa, se torna mais complexo mais se torna facilitada para
o conjunto dos trabalhadores a assunção, na íntegra, quer do processo produtivo
quer da gestão social e política. Mais evidente se torna, portanto, a
inutilidade do capitalista e a facilidade da passagem para um outro modo de
produção, baseado na autogestão da multidão.
Por facilidade não se pretende, obviamente, dizer que o
capitalismo cairá por si ou num horizonte breve. A crença nas instituições da
democracia de mercado, na necessidade do Estado e do capitalista marca a
ideologia de muitos trabalhadores; e, por outro lado, a incipiente organização
global dos trabalhadores continua espartilhada, entre outros, pelo preconceito
patriótico, pelas visões corporativas, por um espírito paroquial que está em
flagrante contradição com o carácter global do processo produtivo.
O parasitismo
do capitalista fomenta o desperdício e o sofrimento
A existência de um desemprego elevado de trabalhadores
qualificados é um inquestionável desperdício de capacidade produtiva.
Paralelamente, a colocação de um trabalhador qualificado em funções que não
exigem essa qualificação é, também um desperdício social imenso, para além dos
dramas pessoais que são imanentes a ambas as situações. Como é evidente, o
capitalismo utiliza essas “técnicas” para gerar níveis remuneratórios mais
baixos do que o investimento em formação admitiria.
Dentro da mesma lógica coloca-se o uso do trabalho precário ou falsamente
temporário pois aos trabalhadores, como grupo social, fica dificultado o
conhecimento concreto da realidade da empresa. Não se gera qualquer incentivo
ao empenho e ao desempenho pois o despedimento está, em breve, assegurado e,
resulta daí, um óbvio desperdício produtivo, uma redução das possibilidades de
aumento da produtividade e de aperfeiçoamento da gestão.
Se se pensar na vulgaridade do trabalho precário (cerca de 800 mil
trabalhadores em Portugal), na proliferação de empresas de trabalho temporário,
verdadeiros negreiros dos tempos modernos e no recurso maciço ao “outsourcing”
percebe-se a tendência para a fuga à inserção do trabalhador na empresa, para o
não investimento nos recursos humanos.
O capitalismo parece procurar uma situação de gerar riqueza com
trabalhadores voláteis ou mesmo sem trabalhadores; a especulação imobiliária e
bolsista, por exemplo, representam as formas preferidas pelos capitalistas para
a contabilização de riqueza, pois a mesma verifica-se sem uma ligação clara e evidente
à economia “real” embora os efeitos da roleta especulativa possa criar enormes
problemas à economia “real” e à vida da esmagadora maioria dos seres humanos.
Recorda-se que no início da especulação sobre o won (moeda coreana) no final do
último século, a população ao adormecer num dia não sonhava que na manhã
seguinte o seu poder de compra iria descer 15% como veio a acontecer.
Por outro lado, a facilidade de recurso a trabalho imigrante,
(qualificado ou não) ou deslocalizado, com o aproveitamento das facilidades de
comunicação, facilita uma elevada rotação do elenco de trabalhadores ou dos
prestadores de serviços às empresas.
Uma forma particularmente curiosa de angariação de pessoal sem
quaisquer responsabilidades sociais ou financeiras é o “franchising”. Nesse
caso, o capitalista, exige um investimento ao “franchisado”, correndo este por
sua conta e risco mas, ficando garantida ab initio, uma comissão ao detentor da
marca, o capitalista, que apenas funciona como supervisor do negócio.
Em suma, o trabalhador, na consideração do capitalista deverá ser
sempre um ser mutável e anónimo, desligado da produção, sem direitos de
cidadania e até descartável do número dos vivos se envelhecer ou adoecer. Na
sua lógica deverá ficar assegurado para todo o sempre o papel do capitalista,
potencialmente, o único elemento permanente na empresa, o único com a plenitude
dos direitos.
As tarefas actuais dos capitalistas
Afinal que fazem os capitalistas nas empresas? E com eles, os
gestores de topo engajados no desenvolvimento e enraizamento da lógica
neoliberal de concentração de riqueza, em detrimento da multidão de
trabalhadores e ex-trabalhadores?
Dentro dessa lógica, a preocupação essencial é “criar valor para
os accionistas” sem esquecer o acumulado pelos próprios quer em rendimento quer
em mordomias. Criar
valor é oferecer dividendos elevados para satisfazer os detentores de acções,
mormente os fundos de pensões ou o capital financeiro e manter em alta a
cotação das acções no circo da bolsa. Com é fácil de ver, nada que gere,
realmente riqueza. Para criar “valor” os capitalistas fomentam fusões e
aquisições de empresas com o subsequente despedimento de milhares de
trabalhadores; e isso embora se saiba que essas fusões e aquisições raras vezes
são realmente profícuas mantendo-se por anos as ineficiências de métodos e
culturas distintas entre as empresas fundidas.
Outra forma de “criar valor”, pouco original, aliás, é através dos
procedimentos de “downsizing”, de emagrecimento, que invariavelmente se
traduzem por despedimentos.
Outra actividade essencial dos capitalistas é o “lobbying” forma
“politicamente correcta” de designar corrupção e tráfego de influência. De
facto, é preciso negociar com os órgãos do Estado, concursos, apoios,
subsídios, normas legislativas favoráveis à “criação de valor” com as
contrapartidas em financiamentos para os partidos ou mandarins influentes,
ajustar pagamentos em viagens, férias, favores sexuais, obras em casa, etc. E
aqui, a concorrência é forte, não pode ser descurada, conduzindo ao
preenchimento de parte substantiva das agendas dos ministros.
Construir o
futuro
O trabalho surge na empresa como produto de um forte investimento pessoal na formação e qualificação do trabalhador; cada trabalhador acha-se investido de grande autonomia na gestão e decisão quanto ao trabalho que desempenha; e acha-se ainda inserido num colectivo social de trabalhadores, capaz de assegurar todos os bens e serviços necessários. Neste contexto, o capitalista constitui um subproduto inútil e irreciclável, lixo puro.
Porque o processo produtivo prossegue de facto sem a intervenção
do capitalista a única forma de este manter o controlo da empresa e da
sociedade é o recurso a figuras e formas desligadas do processo produtivo.
Poder-se-á dizer que é um certo retorno ao feudalismo no qual o senhor e o
clero em nada intervinham no processo produtivo, (agrícola ou artesanal) mas
utilizavam a força física ou a coerção religiosa para se apropriarem do
trabalho alheio.
Esse controlo actualmente passa pela utilização indispensável e
intensiva do aparelho do Estado. É aí que surgem as legislações laborais
punitivas, as flexi-seguranças, as cruzadas anti-terroristas para justificar
intromissões policiais, as guerras, o domínio dos media, a montagem do folclore
eleitoral, as concertações multilaterais (OMC, BCE, UE…), a gestão social
“criativa” que em Portugal é protagonizada por metástases do tipo Correia de
Campos, plasmódios como Vieira da Silva, ou varejeiras Lurdes Rodrigues … Em
suma, é o aparelho de Estado controlado pelo capital que assume o papel
genocida e a montagem gradual de um novo fascismo (vide “O novo fascismo que
está em marcha”, três artigos neste blog)
Pelo que vem sendo explanado não há alternativa para a libertação
do Homem que não passe pela destruição do capitalismo e das suas instituições,
com relevo para o Estado.
Sem comentários:
Enviar um comentário