sábado, 28 de dezembro de 2019

Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (2/3)



Sumário

1 – Como o capitalismo criou o estado-nação
2 - O nacionalismo como instrumento de controlo ideológico
3 - A cada nação um estado-nação?
4 - O capitalismo engrandece o estado-nação no seu processo de consolidação
5 – A globalização capitalista reconfigura o papel do estado-nação
5.1 – Alguns segmentos retirados ao domínio dos estados-nação
6 – O Estado, gestor local da estratificação do Homem

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3 - A cada nação um estado-nação?

Se um estado-nação surgisse apenas e “naturalmente” por ter como base uma nação -caraterizada pela etnia, a cultura, um passado comum, a religião, a língua ou tudo isso - seria necessário explicar porque existem apenas uns 200 estados-nação e não mais de 7000, correspondentes a cada binómio cultura/língua específica, ancorado em territórios mais ou menos específicos. Se assim fosse, poderia perguntar-se onde está a nação monegasca, a identidade do Liechtenstein ou, a de cada uma das antigas colónias inglesas das Caraíbas transformadas em estados-nação para servirem como offshores, plataformas de estacionamento e branqueamento de capitais mafiosos?

Se esse postulado fosse real, quantas seriam as guerras de libertação, os conflitos, massacres, deportações e colunas de refugiados em fuga à repressão de potências (pouco) acolhedoras de posturas independentistas? Quantos seriam os presos por separatismo ou lutadores pela independência da sua pátria?

Os refugiados que tentam atravessar o Mediterrâneo fogem à desestruturação económica, ao banditismo e à pobreza e não como vítimas da luta das suas culturas e etnias pela criação de um estado-nação. E os rohingyas que fogem para o Bangla Desh e não o fazem por pulsões independentistas.

Muitas dessas culturas têm poucos membros e falta de massa específica ou mesmo vontade em construir um estado-nação próprio; e certamente contariam com a oposição do aparelho do estado-nação hospedeiro, pouco dado a perdas territoriais, por natureza. Por outro lado, essas culturas subalternas no seio de um estado-nação típico, com exércitos, polícias, um aparelho de estado editor de propaganda nacionalista e um sistema educacional totalizante, são reprimidas para que se desvaneçam; ou, aceitam-nas como elementos geradores de atração turística. 

Hoje, as guerras de libertação nacional são escassas, passado o período áureo da descolonização nos anos 60/70. Os tamil no Sri Lanka não conseguiram a independência após muitos anos de guerra; as nações nativas nos EUA são objeto de uma visibilidade turística, como peças de museu; os curdos vão garantindo alguma autonomia na devastada Síria e no Iraque; os palestinianos continuam confinados a verdadeiras prisões ao ar livre; a separação entre checos e eslovacos procedeu-se pacificamente, apesar das suas muitas afinidades; a Escócia espera melhores dias para se separar da tutela formal dos Windsor; em Espanha, catalães, bascos e galegos continuam a ter a sua própria independência coartada pelo regime pós-franquista; e o Sudão do Sul separou-se recentemente do Sudão, de matriz árabe, após um período de guerra… pela partilha do petróleo.

A descolonização da África foi, em muitos casos pacífica e, no caso das colónias portuguesas, as guerras de libertação colonial terminaram em meados da década de 70; a que se seguiu, pouco depois, o desmoronamento do regime de exclusão da população originária, no Zimbabwe; ao qual o regime dava um nome que homenageava um businessman racista chamado Cecil Rhodes. Na África do Sul, o regime de apartheid manteve-se até aos anos 90 quando foi instituída como estado-nação multi-étnico, com onze línguas oficiais, sob a égide da figura excepcional de Nelson Mandela. Na mesma época, a Namíbia tornou-se um estado-nação livre da tutela sul-africana e da longa guerra de libertação. Os conflitos que se seguiram em África, para além dos massacres no Ruanda ou, da divisão em dois de um artificial Sudão, não tiveram origem em questões étnico-culturais; apenas lutas de poder, pilhagem (petróleo, ouro, urânio, terras raras…) e negócios de transporte de migrantes até ao Mediterrâneo, com envolvimentos ocidentais, como se está observando no Sahel.

O estado-nação, na sua génese juntou nações e territórios – por integração ou absorção - atribuindo rótulos nacionais a cada ser humano; porém, essa figura só se aplicava, de facto, na Europa e no final do século XVIII também nos EUA, embora na China e no Japão também existissem estados-nação centralizados mas, no âmbito de modelos autárcicos, alheios à dinâmica do capitalismo.  

Em paralelo com o caráter mais extensivo ou intensivo do domínio colonial europeu a presença do seu poder começou a decair, na transição entre os séculos XVIII/XIX. Depois da criação de uma república esclavagista e genocida pelos colonos europeus – EUA[1] – surgiu o pioneiro Haiti – uma república de ex-escravos – e de seguida a independência da América do Sul, onde cada estado-nação se pautava por imensa variedade de culturas e etnias mas sob a hegemonia política e militar dos criollos, descendentes mais ou menos diretos dos colonizadores espanhóis e portugueses. Entretanto, a doutrina Monroe – a América para os americanos – na realidade significava a suserania dos EUA no continente, com a conquista das últimas colónias espanholas e o perene hábito de intervir no “quintal das traseiras” a Sul do Rio Grande – com invasões, golpes militares, ditaduras, assassínios e, mais recentemente, através de sanções – com o apoio, a tolerância ou a distração dos estados-nações europeus.  

Até à I Guerra, a guerra foi o meio comum de criação ou expansão de estados-nação, em muitos casos com fronteiras muito instáveis, mormente na Europa central onde a Confederação Germânica e a Áustria repartiam os domínios do chamado Sacro Império (que era então um amontoado de centenas de pequenos e grandes senhorios); e, na Europa Oriental predominavam os impérios, russo e otomano, este em luta frequente com os safávidas persas, pelo controlo da Mesopotâmia. Na parte ocidental da Europa estavam as potências marítimas que controlavam o comércio colonial, com a França numa posição de charneira; por um lado, a França tinha as suas ambições coloniais contidas e reduzidas pelo maior poder inglês e, por outro, procurava um grande império continental europeu, centrado em Paris, como dois Napoleões (o original e o terceiro) procuraram erigir. A Rússia, entretanto, expulsou os suecos da margem oriental do Báltico e veio a ser a principal beneficiária do desmoronamento do eleitorado polaco-lituano, enquanto se estendia territorialmente até ao Alasca… posteriormente vendido aos EUA.

A Europa destacou-se através da conquista, da disputa e ocupação de territórios coloniais, e ainda com as guerras inter-imperialistas ou de ocupação dos mais fracos. Perante decadentes poderes imperiais nos finais do século XIX até à I Guerra Mundial – Áustria-Hungria e Turquia – tendo como objetivo o desmantelamento daqueles, foi defendido, com falso romantismo a ideia de “a cada nação o seu estado” por mais impraticável que isso fosse nos Balcãs ou no Médio Oriente, dada a interpenetração territorial e cultural dos povos dessas regiões. Nessa mesma época, as potências imperiais repartiam a África entre si, traçavam fronteiras sem preocupações de nenhuma espécie face às divisões que criavam no seio de etnias, povos e tribos ou, em manter as estruturas políticas anteriores, na África do Norte ou no Sahel. Os africanos eram seres inferiores, um conceito defendido convenientemente por “cientistas” empenhados na segmentação dos humanos em raças e na esterilização de débeis mentais ou de gente com feições menos belas. Na América, depois de retirados pelos EUA, imensos territórios ao México, reinava a Sul uma relativa paz entre os estados dos criollos; só faltando a expulsão final dos enfraquecidos colonizadores espanhóis (de Cuba e Porto Rico), uma vez que as colónias inglesas (nomeadamente o Canadá) pertenciam ao mais poderoso estado-nação da época.

Ataturk, depois do desmembramento do Império Otomano levou tanto quanto possível à letra a ideia da uniformidade nacional no seio da Turquia; procedeu a uma troca de populações gregas na Ásia Menor por turcos habitantes da Grécia e ao genocídio dos arménios, cristãos, susceptíveis de serem … adoptados pelo czar da Rússia a expensas da Turquia. Ainda assim, para perturbar a “identidade” turca, sobrou o nacionalismo curdo, até hoje sem reconhecimento para a constituição de um estado-nação.

Logo na sequência do desmantelamento dos impérios turco e austro-húngaro surgiu a Jugoslávia, como mosaico de povos com várias religiões e línguas (estas, próximas, o que não acontecia com as religiões), com comunidades diversas muito misturadas e fronteiras muito difíceis de demarcar; no entanto, desta vez as grandes potências pretenderam dar ao conjunto uma dimensão racional e viável. Para evitar a “balcanização” ficava para trás a ideia de, “a cada nação, o seu estado”. Apesar dessa diversidade, os jugoslavos resistiram fortemente à ocupação nazi, apesar do apoio dos ustachas (basicamente católicos croatas) ao ocupante, numa postura ferozmente anti-sérvia, herdada da memória austríaca.

Cerca de oitenta anos depois, de novo aquele princípio de acentuação e exacerbamento do espírito nacionalista voltou à Jugoslávia como produto de vários interesses de entes estranhos ao seu povo. A Alemanha pretendia alargar o campo de expansão comercial, beneficiando do desmembramento do Comecon; o papa Wojtyla queria integrar as antigas províncias austríacas de tradição católica (Eslovénia e Croácia) no seu espírito ultramontano de cruzada, contra Belgrado e os sérvios, com tradicionais boas relações com a Rússia; e finalmente, os EUA (arrastando consigo a UE) incentivaram de novo a “balcanização” com a criação da tripartida Bósnia-Herzegovina, da FYROM (agora Macedónia do Norte), do Montenegro e de um território (Kosovo) promovido a estado-nação para acolher a grande base militar de Boldsteen, onde os EUA podem supervisionar toda a Península Balcânica, prevenindo-se contra influências russas sobre os povos eslavos da região.

O mesmo princípio de “a cada nação o seu estado” não foi, evidentemente, seguido na descolonização de África perante a qual as fronteiras coloniais foram mantidas, encerrando-se em cada um, muitas etnias e línguas que aliás, em regra, tinham séculos de partilha em comum do mesmo espaço, como por exemplo no vale do Níger, onde coabitam centenas de etnias e línguas. A criação de estados-nação pelas potências coloniais não acabou com essa coabitação, sedimentada com algumas línguas de comunicação entre comunidades distintas; a estranheza foi a existência de fronteiras e a presença de classes políticas autóctones como delegados dos antigos colonizadores – os tais “pele negra, máscara branca”[2]. O mesmo sucedeu com a língua quechua, falada da Colômbia à Argentina pelos povos indígenas, a par da língua espanhola introduzida pelo colonizador.

Seria insano aplicar a África o princípio identitário. Primeiro, porque resultaria numa redefinição, confusa e discutível de espaços e povos; depois porque as nações coloniais pretenderam manter as suas preferenciais influências e negócios nos territórios tornados independentes, bem como a continuidade da exploração mineira e dos regimes de plantação. Por outro lado, as pequenas elites ocidentalizadas, herdeiras da administração colonial não quiseram abrir o dossier das etnias pré-coloniais o que restringiria os seus poderes aos núcleos culturais e étnicos de onde provinham; nem perder o seu peso como intermediários face aos capitais ocidentais num espaço alargado, supra-tribal. Acima de tudo, era-lhes exigida a estabilidade do funcionamento dos… mercados e do saque. Assim, os únicos casos de futuras partições viriam a observar-se – após longos e violentos conflitos – com as separações Etiópia/Eritreia, Sudão/Sudão do Sul e, de modo não reconhecido pela “comunidade internacional”, no caso Somália/Somalilândia. 

O império britânico das Índias foi repartido inicialmente em quatro estados-nação, todos longe da unicidade étnica, cultural ou linguística. Com as notórias excepções do Japão e da Coreia o mesmo acontece em quase todos os países da Ásia. A Indonésia é outro grande mosaico de línguas e etnias mas aí, o colonizador holandês nunca sequer procurou instalar o uso da sua língua, aceitando a continuidade do malaio, tradicional língua de comunicação naquela região; resguardou para o círculo mais alto da administração colonial o uso do holandês.

A geopolítica é um jogo de interesses económicos, financeiros e logísticos e torna povos e estados-nação como instrumentos de disputa, tanto ou mais intensa e destrutiva, conforme as classes políticas conseguem - ou não - instilar o veneno do nacionalismo e da exclusão do Outro, para benefício de um capitalismo indígena ou globalizado.

A maioria das culturas ou línguas não aspira à constituição de um estado-nação e, por várias razões: 

·      Muitas, acham-se dispersas por vários estados-nação e, cada um destes, pouco disposto a ceder parte do seu território a uma das suas minorias para que esta se junte a um conjunto de gente com a mesma cultura, vivendo num segundo estado-nação e surgindo dessa aglutinação um terceiro estado-nação. A partilha, de facto, de Jammu-Caxemira, entre a Índia e o Paquistão revela que nenhum daqueles países cederá um milímetro de território, nem ao outro, nem para a criação de uma nova soberania estatal.
·      Em regra, um estado-nação tem as suas estruturas estatais ocupadas por etnias, culturas únicas ou fortemente maioritárias, com o monopólio do aparelho policial, militar e judicial; e, tendencialmente, é no âmbito dessa cultura dominante que também se situa o poder económico local ou nacional. As minorias só se rebelam se discriminadas, coartadas nos seus desejos de melhoria de vida, de promoção social ou de repressão cultural, linguística, religiosa, como a comunidade dita católica na Irlanda do Norte; mas já não nas comunidades húngaras (católicas) na Sérvia ou na Roménia (ambas, ortodoxas), como na comunidade turca na Bulgária, minoritárias, em todos esses casos.
·      Há também casos em que o poder político assenta em minorias. Podem citar-se os maronitas no Líbano, utilizados pelos franceses para criar uma entidade política separada da Síria, no seguimento da I Guerra e entretanto tornados minoria, em benefício dos xiitas; ou a Síria actual cujo poder político tem cabido aos minoritários alauitas. No caso dos maronitas ou dos alauitas há uma identidade baseada na religião (presente ou herdada dos ancestrais) mas, no caso dos negros americanos a identificação e segregação baseia-se na origem africana, mais ou menos presente, na cor da pele; o mesmo sucedendo no Brasil.
A relevância dos imigrantes, sobretudo na Europa e nos EUA tem crescido e é marcada por discriminações, exclusões e perseguições; a sua aceitação é tanto mais problemática quanto mais diferenciada for a tipologia física ou cultural dos imigrantes. Ser imigrante sul-americano nos EUA tem condições de aceitação social e política distinta face a imigrantes vindos da própria Europa; e na Europa há diferenças evidentes se o imigrante é africano, islâmico ou proveniente do Leste europeu. A discriminação dos imigrantes é sempre construída por uma narrativa recheada de preconceitos como o de serem oportunistas, de explorarem os sistemas de segurança social, de serem ladrões, javardos, violadores, terroristas, perturbadores da boa paz celestial havida no seu local de adopção. Sinteticamente, chama-se a esse conjunto de preconceitos, racismo; e, por um acaso da História, o racismo teve origem na Península Ibérica[3]

Os judeus durante cerca de dois milénios – e a despeito das suas divisões étnicas e sociais – viveram em comunidades bem identificadas, sem um estado-nação, autossegregando-se para se manterem como comunidade ou, sendo segregados e perseguidos por razões políticas, religiosas ou invejas populares, ou ainda, como bodes expiatórios dos descontentamentos populares nos estados-nação onde viviam. Durante séculos nunca procuraram constituir um estado-nação até que aproveitaram essa moda, nos finais do século XIX, para lançarem esse projeto, emigrando, alguns milhares para a Palestina, onde há muitos séculos havia apenas uma pequena comunidade judaica, em harmonia com a maioria islâmica. O sionismo, a doutrina racista de defesa dos israelitas como povo ungido, advogou uma ocupação da Palestina como sua terra ancestral de origem e, com o apoio inglês, firmou-se naquele território, expulsando ou segregando os seus ancestrais ocupantes, vítimas de brutalidades que se podem comparar com as dos nazis. Trata-se pois de um nacionalismo “científico”, excludente e fascista, ancorado no apoio dos EUA e do poder político e financeiro de oligarcas de origem judaica. Só o dinheiro e a influência dali resultante, permite tal excrescência “nacional”.

Inversamente, os ciganos sempre constituíram comunidades pobres, segregadas e errantes, empurradas para o ostracismo, com uma presença particular nos Balcãs, onde desenvolveram uma cultura musical deveras interessante. Obviamente, nenhum poder financeiro ou político lhes ofertou um território para construírem um estado-nação.

O que é, de facto, o estado-nação? É uma contingência onde desembocaram outras contingências, com um aparelho chamado Estado, com direitos totalitários de repressão e saque sobre os “seus” habitantes, segmentados em função dos vários desempenhos definidos pelo Estado[4]. O Estado, é preenchido por uma hierarquia mais ou menos mafiosa – a classe política, em permanente articulação com o topo da gama do capital; nacional e global. Para colorir e alegrar esse quadro sinistro, juntaram a esse estado-nação, um hino e uma bandeira.

4 – O capitalismo engrandece o estado-nação no processo de consolidação

A globalização, na sua forma primeira, começou quando os filhos de Lucy abandonaram o Vale do Rift e partiram para destinos incertos; porém, perdendo, temporariamente (milhares de anos) as referências uns dos outros[5]. E foi alargando o seu âmbito geográfico, incluindo mais e mais comunidades humanas, mormente através da formação de impérios que criavam as condições de segurança para as trocas. Alexandre da Macedónia queria conquistar o mundo mas foi contrariado pelas florestas da Índia, pelas alturas do Pamir e pelo cansaço das suas tropas. Mais tarde, os romanos tornaram o Mediterrâneo um Mare Nostrum estacando à beira do tempestuoso Atlântico, atrás do muro de defesa contra os pictos a Oeste, do Sahara a sul, do Reno e do Danúbio a norte e no confronto com os partos a Leste. Ainda mais tarde, os impérios muçulmanos constituíram pontes marítimas e terrestres com a Índia e a China, com Marco Polo, Veneza e Génova a fazerem a ligação entre a Ásia e o resto da Europa feudal. Este comércio longínquo incidia sobre bens de luxo cujo elevado preço resultava, em parte, da dimensão da viagem total e dos riscos durante a mesma.

Se se pensar na globalização em simples termos geográficos, ela consumou-se com os feitos de Colombo, Vasco da Gama e Magalhães, a que se seguiu o desvendar de alguns recantos, até ao século XVIII com Cook e, já no século XX, com os exploradores das zonas polares. Ancorada em cinco países da faixa atlântica da Europa – Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra – a globalização desenvolveu a guerra, o comércio, a conquista, a escravatura, desenvolvimentos tecnológicos e uma imensa troca de conhecimentos. Dessa evolução, caótica, não programada, resultou um modo novo de gerar riqueza - o capitalismo - que teve como instrumentos essenciais:

·          o estado-nação, enquanto modelo organizativo de pessoas, bens e capitais, ancorado num espaço bem delimitado;
·          o nacionalismo, como ideologia, forma aglutinadora para uma população específica e multifacetada mas excludente ou desconfiada para com os de fora;
·          e, finalmente o Estado, como aparelho gestor dessa criação de riqueza mantendo a população pacificada, por força das leis ou da repressão.
Sendo o mundo um espaço aberto, o comércio longínquo de bens de luxo ou especiarias desejadas pelas camadas abastadas – agora, mais numerosas - era altamente rentável. A produção artesanal de bens, destinada a uma área próxima, típica dos tempos medievais cedeu o lugar à produção para destinos longínquos, desconhecidos dos seus produtores e numa escala que não caberia nas capacidades dos artesãos medievais, agrupados em confrarias[6]

Não havendo qualquer elo entre produtor e consumidor tudo se torna dependente do comerciante que define os preços, as quantidades, as (elevadas) margens de lucro que permitem grande acumulação de dinheiro e a criação de um setor bancário e financeiro. Os comerciantes e armadores de um dado país procedem a uma defesa coletiva, como cartel (avant la lettre) face à concorrência externa, com o apoio real às Companhias das Índias, detentoras de monopólios “nacionais” (leia-se, dos mais ricos comerciantes), alargando as funções administrativas do reino, com o rei a cobrar direitos sobre as importações, para defesa da concorrência externa e da produção… nacional. O termo nacional vulgarizou-se, precisamente com a consolidação do estado-nação, como atributo de tudo o que é pertença ou atributo daquele. E cada estado-nação era como uma fortaleza que, através dos canhões e do comércio, tomava o mundo como mercado, sem jamais perder a sua individualidade.

Esse espaço protegido, com um aparelho administrativo e militar com um rei no topo, ganha uniformidade e coesão face ao exterior, de onde podem surgir ameaças; a relevância das fronteiras e a guerra para conquistas territoriais, para a captura de terra, pessoas e mercados. Os reis aumentam o seu poder com uma área administrativa alargada – tesouro, alfândegas, exército e marinha, polícia, tribunais e legislação de enquadramento administrativo e de controlo do trabalho – muito para além do exigido nos feudos senhoriais. Grandes impulsionadores dessas transformações eram os ricos comerciantes das transações globais, com as Índias Orientais, Ocidentais ou envolvidos no comércio de escravos africanos, nomeadamente a partir do século XVII.

A demarcação das fronteiras, a vigência de uma estrutura administrativa e financeira, através de um aparelho – Estado - num espaço bem definido e bem defendido, materializa o estado-nação, um estado-fortaleza. Por exemplo, em França com as ordenações de Villiers-Cotterêts (1539) procede-se a um registo nacional de nascimentos e óbitos a partir dos registos das estruturas religiosas; e, adoptou-se a par do latim habitual, a língua francesa, que só passaria a ser a única utilizada depois da Revolução Francesa (ainda que houvesse muitas versões da mesma). Por outro lado, essas ordenações continham a proibição das confrarias de artes e ofícios, estruturas típicas da época feudal, tomadas como ultrapassadas pela globalização, em consolidação e, pela implícita lógica do mercado.

O que se veio a chamar burguesia nacional institui uma relação íntima com o Estado, personalizado num rei ou num equiparado (Cromwell) como liderança do estado-nação; um conjunto coeso face ao exterior ou na repressão de camadas sociais descontentes. A presença do aparelho de Estado é condição essencial para o aumento da riqueza e do poder dos ricos comerciantes a que se pode chamar capitalistas – são detentores de capitais móveis, armam navios, procedem ao comércio e encomendam tecidos, armas… sobretudo, para venda no exterior, mais próximo ou longínquo.

A produção capitalista exige um aparelho (Estado) ao seu serviço, uma delimitação territorial e uma catalogação da população como nacionais, mantendo de fora, como estrangeiros, gente com qualquer distinção face às pessoas que pertençam à nação. Note-se que a China, com uma organização administrativa, tecnologia e riqueza muito superiores, inicialmente, às dos europeus, nunca demonstrou interesse em desenvolver comércio com os esses “bárbaros”. E, pela sua dimensão, entendeu prescindir de transações com o exterior desde o século XIV, zombando dos objetos que os Ocidentais, mais tarde lhe apresentavam, para efeitos de troca. O grande problema surgiu no século XIX quando os “bárbaros” obrigaram a China, perante a ameaça dos seus canhões, a colaborar no enriquecimento dos estrangeiros, comprando ópio.

A Holanda sobressai como herdeira de uma tradição comercial e manufatureira com raízes na Idade Média e com a liberdade de pensamento que conseguiu, após uma longa guerra contra as pretensões da Espanha; esta, ancorada nos poderes de transmissão típicos do feudalismo afunda-se financeiramente em guerras constantes na defesa de possessões muito fracionadas na Europa e enquista como guardiã do tradicionalismo católico, combatendo as ideias humanistas[7]. Ao tratado de Westfália segue-se um longo período de rivalidade entre a França e a Inglaterra até que esta assume uma clara liderança mundial com a derrota de Napoleão e o Tratado de Viena em 1815. Depois da guerra franco-prussiana (1870) a Inglaterra reparte a hegemonia global com a Alemanha e os EUA, um equilíbrio que se irá romper com a I Guerra, quando a Alemanha perde todas as suas colónias e os EUA superam a Inglaterra como principal potência. Depois da II Guerra, os EUA reforçam a sua liderança no mundo ocidental e na primeira configuração de um sistema mundial - financeiro (Bretton Woods, FMI…), comercial (GATT/OMC) e militar (NATO); mas, tendo a URSS como a potência rival, nomeadamente no campo militar. A ONU surge, como descendente da defunta Sociedade das Nações, como denominador comum entre os estados-nação, reforçando o papel destes como elementos soberanos de enquadramento das populações; porém, com um diretório de grandes potências – EUA, França, Grã-Bretanha, URSS e China (primeiro como aliada do Ocidente e depois sob a forma actual de República Popular, posicionada ao lado da URSS).

Já publicado:

Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (1/3)

https://grazia-tanta.blogspot.com/2019/12/estado-nacao-nacionalismo-instrumentos.html


Continua em:

Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (3/3)


Este e outros textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/                             

http://www.slideshare.net/durgarrai/documents



[1] Simbolicamente, o primeiro presidente dos EUA, George Washington era um abastado dono de imenso número de escravos.
[2] Título de um livro de Franz Fanon
[3]  Racismos – Francisco de Bethencourt
[5] A hecatombe de 20 milhões de pessoas, provocada no México, nomeadamente, pela chegada, com os espanhóis, do sarampo e da varíola (para além da superioridade bélica dos primeiros) resultou, essencialmente de os mexicanos não terem contactos com outros humanos desde que o estreito de Bering voltou a ficar inundado após a última era glaciária.
[6] Curiosamente, certas categorias profissionais, relativamente privilegiadas voltam a assumir-se como verdadeiras confrarias, ao arrepio da lógica de mercado aberto e livre que consta no discurso neoliberal
[7]  Na mais prestigiada universidade ibérica – Salamanca  - agostinhos e trinitários, no século XVII, envolvem-se à pancada porque uns consideravam Adão imperfeito após Deus lhe ter retirado uma costela (para criar a mulher) e outros entendiam que o mesmo Deus teria preenchido o buraco com carne (!)

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