sábado, 25 de maio de 2019

Dívida, deusa sem altar mas com um clero poderoso


Que tal anular a dívida através de uma imensa redução da dimensão do sistema financeiro que se apresenta como credor da Humanidade e que para nada serve no capítulo da satisfação das necessidades humanas ?

Sumário

1 - Nem sempre quem contrai dívida é quem a paga
2 - O dominante sistema financeiro

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1 - Nem sempre quem contrai dívida é quem a paga

Como as classes políticas procuram apenas cuidar da sua notoriedade mediática para garantirem o acesso a fundos públicos e se mesclarem com o mundo dos negócios, toda a sua atuação se fixa na propaganda, nas questões conjunturais e, muito pouco nas questões estruturais e de longo prazo que afetam as sociedades. A questão da dívida é pois, tomada como trivialidade que não merece grande relevo; apenas importa a sua utilização como parte da pirotecnia inter-partidária em que se integram também os subservientes plumitivos.

Não se considera nem se procura incutir nas pessoas e nas famílias que evitem o enclausuramento das suas vidas no pagamento de dívidas, no sufoco de longos períodos de prestações, mesmo para aqueles que têm trabalho; muitas vezes para satifazer caprichos, modas e vaidades. E o sistema financeiro é muito competente em animar o endividamento.

As empresas, colocadas no caldo da concorrência selvagem que enforma os “mercados” endividam-se muitas vezes de forma exagerada tornando-se presas e dependentes dos bancos, que garantem o ressarcimento e a usura no património das empresas ou dos seus
sócios. Por isso, empresas e empresários são comuns praticantes da burla fiscal, de fórmulas agilizadas de fuga de capital, também usadas pelos escalões elevados da classe política, sendo esta, peça essencial no traçado dos caminhos da evasão; trata-se de uma estrada que empresários, advogados e classe política trilham, sem percalços e em alegre convívio.

Os Estados, tendem a ser entes mal geridos e encabeçados por governos que se revezam, todos se queixando dos buracos financeiros, dos actos de gestão danosa que herdaram do governo anterior; um teatro de fantoches. Esquece-se a plebe que uns anos antes, a chamada oposição de hoje, que brama contra o governo, terá procedido de igual modo, anos atrás. No seu conjunto, a classe política gestora do “pote” vai montando o carrossel eleitoral para gerar um movimento que mantém tudo no mesmo sítio e com o mesmo pendor para a desestruturação e o compadrio, tudo conduzido com a ligeireza que resulta de os membros dos governos nunca serem responsabilizados materialmente pelos danos que causam. Assim como são lestos a contrair dívida que irá onerar a plebe e tendo como prestimosos parceiros, a banca, sabendo todos que, enquanto houver populações de gente desatenta, mansa e disposta a pagar, tudo correrá bem.

2 - O dominante sistema financeiro

A dívida, em geral, é um instrumento do sistema financeiro para ancorar as suas redes de especulação, de criar e acumular capital de uma forma expedita. Numa primeira instância, como parcela do sistema financeiro mais próxima e sentida pelas pesosas, surgem os bancos.

Os bancos comuns procuram entidades físicas, com localização definida, património e uma atividade consumidora, produtora de bens ou prestadora de serviços; daí surgirá a formação de rendimentos e necessidades financeiras correntes ou relativas à expansão de capacidade produtiva, de reestruturações, saneamanto financeiro, etc. Essas entidades, porque não têm poupanças acumuladas para esses fins ou porque não as querem aplicar em aquisições que lhes esgotariam essas poupanças, recorrem ao crédito bancário. Isto tanto se aplica a empresas, como a pessoas e famílias, procedendo estas, também ao crédito para efeitos de consumo duradouro (habitação) ou, menos duradouro (veículos, viagens, pagamento de outras dívidas, etc).

Também o Estado ou outros entes públicos recorrem ao crédito, para investimento, saneamento financeiro, reestruturação de dívidas ou apenas porque sim, uma vez que os mandarins gozam de uma enorme desresponsabilização pelos seus actos de gestão, deixando para o gang partidário seguinte as sequelas dos seus actos. E sobretudo, porque sabem que existe uma mole de gente desorganizada, ignorante, distraída ou distanciada da gestão , que paga impostos, sofre outros tipos de exação, sem que se verifique qualquer ação punitiva ou sequer, preventiva, face aos membros da classe política pelos desmandos cometidos.

A plebe, levianamente, considera o Estado, em geral, como ente fiável e benfeitor ainda que promova corrupção e desvarios administrativos e financeiros, tomados como desvios  ocasionais, a… corrigir; porém, numa sequência que, de facto, nunca finda e que é tão velha quanto o Estado. Na realidade, passa-se o contrário, a excepção vigora como regra; os mandarins utilizam o aparelho de Estado como plataforma para a concessão de favores a capitalistas para se locupletarem com contrapartidas corruptas, mantendo os serviços públicos em permanente estado de desorganização e penúria. Em contrapartida, cuidam de vigiar o grau de insatisfação da plebe, para evitar penalizações nos circos eleitorais ou, na pior das hipóteses, cuidando de enviar matilhas de polícias bem armados para impor a “lei e a ordem”.

Os bancos não ficam sentados à espera que os seus devedores reembolsem o dinheiro emprestado, embora vá contabilizando os juros. Por outro lado, os meios financeiros na posse e sob a responsabilidade dos bancos, na sua grande maioria pertencem aos seus depositantes (devedores ou não) que utilizam o dinheiro nos seus actos de compra e venda, pagamentos de salários, impostos, etc; como muito desse dinheiro circula entre as contas dos depositantes, na realidade não sai fora da órbita do sistema bancário e mantém-se num montante global relativamente estável – ainda que circulem em grande velocidade muitos milhões de transações - excepto em situações excepcionais de crise. Nessas crises o prestimável Estado mostrará o seu poder majestático reduzindo o volume e a dimensão dos levantamentos das contas (Grécia, 2015) ou encerrando os próprios bancos, com polícias e tropa à porta (Argentina, 2001).

Assim, se consolida o mecanismo do multiplicador do crédito. Como é estável o volume de dinheiro depositado, os bancos podem utilizar parte substancial desse dinheiro – que não lhes pertence - para a concessão de novos créditos. Neste contexto, um depósito num banco é utilizado numa pluralidade de créditos concedidos, todos ancorados nesse mesmo banco. Na realidade, o que se constrói habilidosamente, é um crescente castelo de cartas que uma brisa menos branda pode mandar abaixo, ficando um encadeado de dívidas, imbrincadas umas nas outras, sem sustentação; ou, se preferirem, com uma sustentação que permitirá se diga “no hay pan para tanto chorizo”.

A globalização, acelerada com a liberalização do sistema financeiro tornou este, de facto, um sistema mundial e um campo de atuação não regulada. Esse entrosamento de transações internacionais desenvolve-se em poucas moedas, por intermédio de densas redes de informação e cálculos efetuados por poderosos computadores; e daí que fiquem facilitadas as operações de titularização, como todos os aspetos relativos a algo tão imaterial como os circuitos financeiros

Estas operações de titularização consistem, não no desenvolvimento de vários créditos baseados nas reservas monetárias ou equiparadas de um banco mas na emissão de títulos de dívida junto do “mercado” e que têm na base um conjunto de empréstimos concedidos aos seus clientes – empresas, particulares, créditos hipotecários – que não saberão sequer que as suas dívidas estão na base daqueles títulos. As titularizações correspondem á agregação de grande volume de créditos e, constituem a base para outras emissões de títulos de dívida, em cascata. A instituição emissora continua com direitos creditícios sobre as entidades às quais procedeu a empréstimos mas, ao proceder a uma emissão de (outros) títulos que terão os primeiros como base, reaveem antecipadamente um volume de capital mutuado. Por outro lado, o banco que lançou a emissão de títulos,  obriga-se, naturalmente a pagar uma taxa de juro aos aceitantes daqueles títulos.

Acontece que nos mercados financeiros, ontologicamente especulativos, a taxa de juro é pouco relevante e ninguém fica com títulos guardados à espera do pagamento dos juros. Ali, o importante é a contração do tempo, a rapidez da decisão, a rendabilidade medida pela mais ínfima unidade de tempo; ou, se se preferir, a maximização do lucro por unidade de tempo. Para o comprador dos títulos emitidos na operação de titularização, surgem duas hipóteses.

a)    Uma, é esperar que surja uma oportunidade para os venderem com um valor superior ao de compra e, uma vez que as taxas de juro andam muito baixas, uma venda com um valor pouco cima do de compra compensará o tempo que decorreria até ao momento do exercício do direito a receber os juros a pagar pela entidade emissora dos títulos;

b)    Outra, é esse comprador juntar aqueles títulos a outros que tenha em carteira e proceder, por seu turno, a uma titularização; um processo que pode surgir em cascata, perdendo-se rapidamente a noção de quem são os devedores iniciais, a sua localização ou situação financeira. Esse desconhecimento desenvolveu toda a crise dita dos subprimes, em finais de 2007; subprimes esses que eram dívidas da classe média baixa americana, incentivada pelos bancos a contrair novos empréstimos ancorados na valorização (irreal ou fugaz) das suas casas… até que chegou a insolvência a muitos famílias, com impactos alargados, em espiral, por quantas instituições que detinham títulos baseados nas dívidas originais, assumidas por famílias insolventes.

Algumas instituições ou particulares terão um interesse muito particular em subscrever títulos de dívida pública que funcionarão como garantias (colaterais) prestadas ao banco central (o BCE na zona euro, o FED nos EUA, o Banco de Inglaterra…) que em contrapartida entregará moeda/crédito ao sistema financeiro de base; … alegadamente para que o dinheiro seja injetado na economia, procurando que esta progrida, que promova emprego, investimento,“crescimento”, bla, bla, bla... 

Os bancos centrais – em regra, impedidos de financiarem os Estados diretamente e de colmatarem os seus deficits – aceitam que entidades do sistema financeiro subscrevam emissões de títulos feitas pelos Estados, alimentando assim, indiretamente, os deficits, na presunção keynesiana de que um deficit público induz crescimento na economia (?). E aceitam, com toda a tranquilidade, porque sabem que, em cada Estado há uma classe política que se encarregará de onerar a população - mormente a que trabalha - com os rigores da austeridade, da punção fiscal, de polícias e tribunais contra os mais pobres ou os menos mansos.

Assim, nos leilões de dívida pública observa-se animada concorrência para a aquisição de títulos, de imediato entregues ao banco central como garantia de empréstimos concedidos pela autoridade monetária. De seguida e com alta probabilidade incorporam esses empréstimos no carossel da especulação de títulos e de toda a variedade de operações no mercado financeiro global – produtos derivados, swaps, futuros, entre outros.

Claro que a autoridade monetária dirá que com essa injeção de dinheiro no “mercado” irá verificar-se um acréscimo do… investimento; o que é uma redonda mentira. A lógica económica capitalista exige um relativo equilíbrio entre as poupanças existentes, disponibilizadas pelas famílias, compensadas pelo ganho em juros e as necessidades de investimento, de criação de meios técnicos geradores de bens e serviços destinados ao bem-estar geral. O que há é uma criação artificial de dinheiro, em larga medida absorvida pelos mercados financeiros globais, cuja finalidade é a especulação e não o apregoado investimento em bem-estar das populações.

O valor calculado para o sistema financeiro, a nível global, embora muito volátil, é muitas vezes superior ao valor dos bens materiais (terras, imobiliário, ações de empresas) existentes no planeta; e, muito mais face ao montante do PIB global que representa os rendimentos contabilizados a nível mundial, num ano.


O sistema financeiro precisa incessantemente de expansão de novas responsabilidades assumidas por Estados, empresas e famílias, para desenvolver, para ampliar os seus mecanismos de multiplicação de capital. E vem gerando fórmulas tão criativas quanto arriscadas para promover essa maior acumulação de capital. A Humanidade é envolvida nesse jogo diretamente, em cada pessoa, como indiretamente através da atuação das empresas e dos Estados. Nesse delírio, há sempre uma bolha financeira em crescimento, com rebentamente anunciado para um momento indeterminado e não previsível e que pode ter uma causa localizada e com um peso ínfimo no contexto global. Tanto pode acontecer, como em 2007 com os subprimes, como a partir de um conflito militar algures, como pelo acto de um Gavrilo Princip que decidiu abater um arquiduque austríaco, despoletando a I Guerra. 

Neste contexto… 

·       Os Estados e os governos, financiam os seus deficits e aumentam impostos para pagar os juros da dívida, subindo regularmente os degraus da austeridade; 

·     As oposições aceitam a parada exigindo brandamente reestruturações impossíveis, nunca colocando em causa o mecanismo de constituição da dívida, artificial e opressivo. 

·    Neste contexto, o sistema financeiro delega as funções de cobrança nas classes políticas nacionais, um género de guildas de carcereiros dos povos.

que atitudes se nos deparam ?

Que tal anular a dívida através de uma imensa redução da dimensão do sistema financeiro que se apresenta como credor da Humanidade e que para nada serve no capítulo da satisfação das necessidades humanas ? 

(continua)

Este e outros textos em:

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