sábado, 7 de julho de 2018

A classe política preocupa-se com a abstenção eleitoral. Para rir…


Um regime político não é corrupto em função do número de casos que se vão conhecendo. Um regime é corrupto quando toda a sua arquitetura política e jurídica está feita para facilitar e legalizar a corrupção, como elemento fulcral da acumulação de capital


No último dia 26 realizou-se uma conferência onde se debateu o magno problema da abstenção eleitoral; ao que parece sob a iniciativa de uma instituição tão prestigiada da democracia como… o PSD. O dito problema é europeu e prende-se com o próprio funcionamento da chamada democracia representativa a que preferimos chamar democracia de mercado, uma vez que a promoção dos produtos – partidos e seus avatares – se faz com todas as regras do marketing ou da publicidade enganosa. Quem compra o produto, votando, sabe, para cúmulo, que não lhe é admitida a devolução.

Na realidade, a crescente abstenção é uma muda demonstração de desafeto para com regimes políticos claramente oligárquicos; é uma demonstração de que cresce a consciência da burla e da viciação que hoje caraterizam os actos eleitorais, em Portugal, como no resto do mundo onde se instituiu o modelo da democracia de mercado, apontado como o apogeu da evolução das sociedades; por isso mesmo sendo considerada com “a democracia”. O despotismo esclarecido, no seu tempo, também foi tomado como a forma perfeita de governação e, simbolicamente acabou… na guilhotina.

Democracia versus democracia de mercado

Uma verdadeira democracia não se reduz a eleições e ausência de polícia política; isso é necessário mas não suficiente. É muito mais, contém os seguintes ingredientes como condição sine qua non:

1 – A apresentação e a decisão sobre propostas de resolução de questões relativas a uma comunidade é um exercício coletivo e, tanto um direito como um dever de todos os que nela vivem; mas, para existir democracia é preciso também que todo e qualquer um, possa ser eleito em representação da sua comunidade, quando necessário;

·     Na democracia de mercado isso não acontece; a constituição da agenda das questões a resolver, bem como as decisões sobre as mesmas é cabe às oligarquias partidárias. Não há consulta prévia e específica da população sobre essas questões e, menos ainda lhes cabe a decisão. Por outro lado, a representação é genérica e recai em elencos flexíveis da classe política, não cabendo às pessoas comuns mais do que o produto de uma escolha prévia e genérica por parte de uma oligarquia, quando existem eleições.

2 – A eventual eleição de um representante de comunidade incorpora um mandato que os eleitores atribuem a uma pessoa e que lhe podem retirar, a qualquer momento, por votação;

  • Na chamada democracia de mercado isso não acontece; como se vota numa lista elaborada por uma oligarquia partidária, não há representante definido. Há, em regra, vários indivíduos eleitos diretamente ou cooptados em substituição, pertencentes a vários partidos.
3 – Em democracia, o representante de uma comunidade é um morador perfeitamente identificado e facilmente escrutinado como tal pelos membros dessa comunidade;

  • Na democracia de mercado isso não acontece; como se vota numa lista constituída por uma oligarquia partidária, nada impede que aquela preencha essa lista com elementos que nada têm a ver com a região pela qual serão eleitos, mormente, quando se trata de membros do baronato partidário, com posições cimeiras no seio do partido, próximos do chefe. O recente caso das moradas falsas é sintomático do aviltamento da democracia e das burlas financeiras possíveis.
4 – Os membros do governo devem ser indivíduos previamente eleitos como deputados e, portanto escolhidos pelo povo;

  • Nas democracias de mercado isso não acontece; na maioria dos casos, os governantes não são eleitos mas, nomeados pelo chefe do partido ganhador das eleições e com proveniências suspeitas como membros de gabinetes de advogados ou ligados a grupos económicos, cujos interesses, obviamente, irão acautelar.
5 – O exercício de funções de representação democrática não é uma carreira, nem modo de vida. É uma dádiva solidária em benefício do bem-estar social adequada a uma sociedade onde cada um deve dar o que pode e sabe em benefício dos menos capacitados; portanto, essa representação é limitada no tempo e com limitado número de mandatos; 

  • Nas democracias de mercado isso não acontece; a entrada no círculo íntimo de uma oligarquia partidária é uma porta de acesso ao enriquecimento próprio, através de cargos em empresas, nomeações, em actos corruptos e, pode constituir um modo de vida, até transmissível a membros da família, como nos tempos da monarquia.
6 - Em democracia os dossiers com informação conducente à decisão sobre os interesses coletivos podem ser acedidos pela população;

  • Nas democracias de mercado isso não acontece; há um secretismo para a população em geral mas, os dados e a documentação são usados e vasculhados pelas oligarquias de serviço, que se encarregam de nomear próximos seus para os cargos na administração pública; e, por essa via, de relações promíscuas de negócios com interesses privados, estes podem ter acesso privilegiado a informações.
7 – Em democracia há um vínculo próximo e visível entre a população e o seu representante sobre o qual a comunidade pode exercer o poder de destituição;

  • Na chamada democracia representativa isso não acontece. A representação é distanciada da população, difusa e adulterada. Quem de facto, as classes políticas representam, são os seus próprios interesses como grupo social, as instituições políticas globais (BCE, Comissão Europeia, FMI…), as multinacionais, o sistema financeiro e o capital mafioso; e ainda, os maiores grupos económicos nacionais e os poderes informais, subterrâneos (Igreja, Maçonaria, sociedades de advogados…). As vítimas, são conhecidas – a multidão de trabalhadores, desempregados e ex-trabalhadores.
8 – Em democracia todos, eleitores ou eleitos, estão submetidos de igual modo aos rigores da lei; 

  • Nas democracias de mercado isso não acontece. A classe política rodeia-se de normas constitucionais e legisla em seu proveito, relativamente a privilégios, mordomias e imunidades para se erigir como uma casta acima da restante população.
Um regime político esgotado  

Neste contexto, a preocupação com a abstenção manifestada na referida conferência de dia 26 não passa de um entretenimento para demonstrar que há uma denodada procura de melhorias para o modelo autocrático de representação, dentro do próprio modelo; para que este seja adoçado e assim distrair a plebe, incutindo-lhe a ideia de que não há alternativa à antidemocracia vigente. Salazar e Caetano também defendiam as supremas virtudes do seu modelo; qualquer regime político é eterno… enquanto não é derrubado e substituído. 

A questão vai muito para além do modelo de representação, é o regime político pós-fascista que deve ser posto em causa. Não há perspetivas de melhoria dos padrões de vida para a grande maioria do povo; a carga fiscal, além de desigual, está sempre em crescimento, sem colmatar deficits, sem ser dirigida a investimento público; o grande desígnio coletivo é o pagamento da divida pública (que não diminui), em detrimento do bem-estar da população; esta envelhece e reduz-se, através de uma emigração massiva e dizimada por um sistema de saúde transformado em negócio; a mercantilização extensiva das necessidades coletivas é uma grande fonte de sustentação de negócios privados; a especulação imobiliária, com a aposta deliberada no turismo vai mantendo uma precária e ilusória aura de progresso; o aparelho de justiça é submetido a leis e procedimentos pesados e recheados de escapatórias construídas por juristas mafiosos; e, finalmente, uma classe política recheada de gente sem gabarito, atravessada por compadrios e corrupção e que se pretende perpétua, levada ao colo por uma imprensa fechada e superficial. Está subjacente na habitual narrativa de sacrifício e resignação, a lógica medieval da expiação dos pecados, de que andamos no mundo para sofrer.

Que o regime e o seu modelo de representação estão estagnados, não havendo possibilidades de lhes serem incutidas melhorias substantivas, é fácil de demonstrar, graficamente, como espelho de 44 anos de vigência ou, mais detidamente, aqui:


Há 44 anos vivia-se a estagnação fascista com a sua anquilosada classe política; hoje, vive-se a estagnação pós-fascista que tem a anquilose como principal caraterística da classe política. Há 44 anos a tropa cansada de 13 anos de uma guerra que não conseguiria vencer decidiu derrubar o regime, com a complacência das potências ocidentais; hoje, a tropa polariza-se no envio de pelotões para as guerras da NATO, não irá derrubar coisa alguma e o enquadramento europeu fomenta precisamente, democracias de mercado mais ou menos semelhantes à que vigora em Portugal. 

Essa similitude baseia-se nas relações entre dois cartéis europeus, o PPE e S&D que, aliás, aplicam exemplarmente o modelo de democracia de mercado naquele areópago cosmético chamado Parlamento Europeu; e, nesse contexto, dificilmente admitirão um modelo radicalmente diferente como o acima descrito, para mais, num qualquer país periférico, como Portugal. Isso significa que é preciso gerar uma movimentação de âmbito europeu[1], com grupos organizados em rede, sem preconceitos nacionalistas, capaz de gerar um grau elevado de contestação e desobediência que afaste de cena as atuais classes políticas e gere um modelo democrático de decisão para a satisfação das necessidades coletivas.

À distância de 44 anos, evidencia-se hoje, em Portugal, uma classe política com um mesmo perfil conservador e espírito de casta, apesar das diferenças no enquadramento geopolítico – União Europeia e ausência de colónias. Tal como a oligarquia do fascismo, a actual é incapaz de gerir decentemente e sem delapidação do erário público, qualquer aspeto estrutural de interesse para a multidão; mas, é ágil na sua perpetuação em funções, a principal das quais é a manutenção da plebe num avançado estado de dormência e infantilidade política.

Passados 44 anos, ainda que num plano político e ideológico distinto, o atual regime também se estrutura em torno de um sólido núcleo conservador – o partido-estado PS/PSD – que em tempos de desavença recorre ao CDS, uma mescla de conservadorismo católico e de ariete do empresariato mais ultramontano. Em 2015, a ala governativa actual do partido-estado estreou-se na viabilização de uma solução governativa com a captura de uma social-democracia não assumida, constituída por duas estruturas em concorrência – o PCP com a sua valia sindical e autárquica e o BE, que vive de um constante agit-prop nos media.

Esquerda do regime
O poder
Direita do regime
Subordinação do trabalho
1974
Ala liberal (Sá Carneiro, Balsemão…)
ANP (Caetano)
“ultras” (Tenreiro, Casal Ribeiro…)
Câmara Corporativa
2018
BE/PCP
PS/PSD
CDS
Concertação Social

Em 2018 face a 1974 há a registar algumas diferenças de ordem política. Deixou de haver uma pide, a censura transitou para as chefias das redações dos media, é maior e mais extensiva a vulnerabilidade no trabalho e na vida que, no tempo do fascismo atingia particularmente os opositores declarados do regime e, na universidade, onde havia grupos radicais minoritários, existe hoje uma multidão de amorfos mascarados de corvos.

As questões “técnicas” 

A preocupação, na classe política, com os níveis de abstenção, não é grande; cinge-se a alguns setores da mesma que querem aprimorar o sistema eleitoral sem tocar no caráter oligárquico e excludente do regime, procurando apenas uma maior legitimação através de um aumento do volume de votantes. Como é evidente, um grilo-falante vazio e potencialmente corrupto, não se transforma num dedicado defensor dos interesses da multidão por uma questão numérica, com a passagem de 40 para 90% do número de votantes. Há mesmo quem acuse os abstencionistas da má qualidade patente na classe política; mas… não serão, exatamente os que votam, que colocam no poder os membros da classe política?
Sobre essas questões, assinalamos:

·         A inutilidade das campanhas eleitorais que já nem têm a animação dos tempos em que circulavam nas ruas carros com altifalantes a vociferar e rabos de meninas de fora das janelas com cabelos e bandeiras a esvoaçar;

·         As campanhas eleitorais nada significam pois toda a gente sabe que as promessas são repetidas, vagas e, muito provavelmente, não cumpridas sob qualquer pretexto; e que, ganhe quem ganhar, as diferenças não se manifestam, como se evidencia no gráfico atrás inserido. O que sobra é uma lógica clubística na escolha, porque ninguém se dá ao trabalho de ver os programas eleitorais; e, nos debates televisivos, ganha quem tiver a gravata mais bonita ou o mais telegénico;

·         O regime gosta de ver a população a dirigir-se às solenes mesas de voto, onde se processa um ritual com emproados pregoeiros a enunciar o nome das pessoas e um burocrata a procurá-los numa listagem; é uma oportunidade única para a classe política ver alguns milhões de pessoas a contribuir, cada um, com 1/135 do salário mínimo dirigido, nos anos seguintes, aos cofres dos partidos mais mediáticos, num dia inteiramente dedicado ao espetáculo. Para essa mise-en-scène, é escolhido um domingo, com os mais crentes a votar depois da missa; há cancelamento de jogos de futebol; e na véspera não há folclore eleitoral para que a plebe reflita serenamente… No final não muda coisa alguma, o PS/PSD continua no governo com ligeiras mudanças. The show must go on

·         Em 44 anos, o regime não consegue manter um recenseamento atualizado, nem oferecer condições de voto aos emigrantes, nem desenvolver fórmulas de votação eletrónica, guardando as tecnologias para conhecer o NIB de cada um e para agilizar o saque fiscal que enche o pote onde a classe política se abastece;

·         Curiosamente, o direito de voto só é referido na Constituição a propósito da eleição do PR (artº. 131º) e das comissões de trabalhadores (artº. 54º). Neste último caso, trata-se de mais uma aberração constitucional, pois a organização dos trabalhadores é um assunto que só a estes diz respeito e nada tem a ver com a organização do Estado; sintomaticamente, na Constituição nada se aponta de semelhante para a organização dos patrões; 

·         Há quem fale, de modo velado, em voto obrigatório, o qual se traduziria em redução das abstenções, como modo de dotar o regime e a sua classe política de maior legitimidade. Se o voto for obrigatório, perde a sua natureza de direito; e, a ser obrigatório, não lhe deveria corresponder também a obrigatoriedade do cumprimento das promessas eleitorais? Se o voto é obrigatório, na realidade dirigido a um imutável pentapartido (no caso português), isso seria algo menos que uma ditadura? 

·         Os casos de voto obrigatório demonstram a sua inutilidade para a multidão; aliás, se fosse vantajoso, ninguém falaria nisso nas classes políticas... Na Bélgica, o voto sendo obrigatório, é desrespeitado, em regra por cerca de 10% nas eleições para o Parlamento Europeu e, nas mesmas, na República Checa votaram apenas 19.5% das pessoas e na Eslováquia 13%. Será que entre os deputados eleitos, belgas, checos ou eslovacos e os seus respetivos partidos, as diferenças serão de monta? E a sua qualidade é distinta da qualidade dos eleitos pertencentes a outras oligarquias nacionais, de países onde as pessoas têm oportunidade para manifestar o seu desprezo ou repúdio pela “sua” classe política? No Brasil, onde o voto também é obrigatório, o regime tem evoluído no sentido da democracia ou antes, na generalização da corrupção da classe política e na repressão? A obrigatoriedade evita o roubo institucionalizado? 

·         Todos conhecem o pendor da classe política para o aumento da burocracia, para a criação de “postos de trabalho”, com a corrente criação de novas estruturas para funcionarem em cascata entre as já existentes. Suponhamos que o mandarinato luso optava mesmo pelo voto obrigatório. Provavelmente, o número de votantes aumentava, como aumentaria o número dos que invalidariam o boletim de voto; e, perante essa atitude ditatorial, naturalmente, surgiriam grupos a promover a anulação do voto para evitar coimas e outros actos de saqueio por parte do regime. E se o número de votos nulos aumentasse muito, mostrando que afinal o voto obrigatório tornava ainda mais claro a parcela de desafetos ao regime, que fariam os mandarins? Colocar um polícia a fiscalizar se cada votante votava “bem”? Seria uma forma de aprofundar as práticas democráticas na totalitária Oceânia do “1984”. E quanto aos eleitores fantasmas, já falecidos, seria fácil; aplicavam uma boa coima aos familiares que não demonstrassem o óbito.

Este e outros textos em:




[1] Não tendo significado em Portugal – ao contrário do que acontece nos países da Europa Ocidental - partidos do tipo Afd ou FN, defensores do encerramento nacionalista, da identidade nacional… é curioso que em Portugal os grandes paladinos da saída da UE e do euro, sejam os partidos da esquerda do regime, os defensores de que um capitalismo atrasado e autárcico do tipo salazarista, num país periférico, é susceptível de trazer benefícios para quem vive do trabalho em Portugal.


Sem comentários:

Enviar um comentário