Um regime político não é
corrupto em função do número de casos que se vão conhecendo. Um regime é
corrupto quando toda a sua arquitetura política e jurídica está feita para
facilitar e legalizar a corrupção, como elemento fulcral da acumulação de
capital
No último dia
26 realizou-se uma conferência onde se debateu o magno problema
da abstenção eleitoral; ao que parece sob a iniciativa de uma instituição tão
prestigiada da democracia como… o PSD. O dito problema é europeu e prende-se
com o próprio funcionamento da chamada democracia representativa a que
preferimos chamar democracia de mercado, uma vez que a promoção dos produtos –
partidos e seus avatares – se faz com todas as regras do marketing ou da publicidade enganosa. Quem compra o produto,
votando, sabe, para cúmulo, que não lhe é admitida a devolução.
Na realidade,
a crescente abstenção é uma muda demonstração de desafeto para com regimes
políticos claramente oligárquicos; é uma demonstração de que cresce a
consciência da burla e da viciação que hoje caraterizam os actos eleitorais, em
Portugal, como no resto do mundo onde se instituiu o modelo da democracia de
mercado, apontado como o apogeu da evolução das sociedades; por isso mesmo
sendo considerada com “a democracia”. O despotismo esclarecido, no seu tempo,
também foi tomado como a forma perfeita de governação e, simbolicamente acabou…
na guilhotina.
Democracia
versus democracia de mercado
Uma verdadeira
democracia não se reduz a eleições e ausência de polícia política; isso é
necessário mas não suficiente. É muito mais, contém os seguintes ingredientes
como condição sine qua non:
1 – A apresentação e a decisão sobre propostas de resolução de
questões relativas a uma comunidade é um exercício coletivo e, tanto um direito
como um dever de todos os que nela vivem; mas, para existir democracia é
preciso também que todo e qualquer um, possa ser eleito em representação da sua
comunidade, quando necessário;
· Na democracia de mercado isso não acontece; a constituição da
agenda das questões a resolver, bem como as decisões sobre as mesmas é cabe às oligarquias
partidárias. Não há consulta prévia e específica da população sobre essas
questões e, menos ainda lhes cabe a decisão. Por outro lado, a representação é
genérica e recai em elencos flexíveis da classe política, não cabendo às pessoas
comuns mais do que o produto de uma escolha prévia e genérica por parte de uma
oligarquia, quando existem eleições.
2 – A eventual eleição de um representante de comunidade
incorpora um mandato que os eleitores atribuem a uma pessoa e que lhe podem retirar,
a qualquer momento, por votação;
- Na chamada democracia de mercado isso não acontece; como se vota numa lista elaborada por uma oligarquia partidária, não há representante definido. Há, em regra, vários indivíduos eleitos diretamente ou cooptados em substituição, pertencentes a vários partidos.
3 – Em democracia, o representante de uma comunidade é um
morador perfeitamente identificado e facilmente escrutinado como tal pelos
membros dessa comunidade;
- Na democracia de mercado isso não acontece; como se vota numa lista constituída por uma oligarquia partidária, nada impede que aquela preencha essa lista com elementos que nada têm a ver com a região pela qual serão eleitos, mormente, quando se trata de membros do baronato partidário, com posições cimeiras no seio do partido, próximos do chefe. O recente caso das moradas falsas é sintomático do aviltamento da democracia e das burlas financeiras possíveis.
4 – Os membros do governo devem ser indivíduos previamente
eleitos como deputados e, portanto escolhidos pelo povo;
- Nas democracias de mercado isso não acontece; na maioria dos casos, os governantes não são eleitos mas, nomeados pelo chefe do partido ganhador das eleições e com proveniências suspeitas como membros de gabinetes de advogados ou ligados a grupos económicos, cujos interesses, obviamente, irão acautelar.
5 – O exercício de funções de representação democrática não é
uma carreira, nem modo de vida. É uma dádiva solidária em benefício do bem-estar
social adequada a uma sociedade onde cada um deve dar o que pode e sabe em
benefício dos menos capacitados; portanto, essa representação é limitada no
tempo e com limitado número de mandatos;
- Nas democracias de mercado isso não acontece; a entrada no círculo íntimo de uma oligarquia partidária é uma porta de acesso ao enriquecimento próprio, através de cargos em empresas, nomeações, em actos corruptos e, pode constituir um modo de vida, até transmissível a membros da família, como nos tempos da monarquia.
6 - Em democracia os dossiers com informação conducente à
decisão sobre os interesses coletivos podem ser acedidos pela população;
- Nas democracias de mercado isso não acontece; há um secretismo para a população em geral mas, os dados e a documentação são usados e vasculhados pelas oligarquias de serviço, que se encarregam de nomear próximos seus para os cargos na administração pública; e, por essa via, de relações promíscuas de negócios com interesses privados, estes podem ter acesso privilegiado a informações.
7 – Em democracia há um vínculo próximo e visível entre a
população e o seu representante sobre o qual a comunidade pode exercer o poder
de destituição;
- Na chamada democracia representativa isso não acontece. A representação é distanciada da população, difusa e adulterada. Quem de facto, as classes políticas representam, são os seus próprios interesses como grupo social, as instituições políticas globais (BCE, Comissão Europeia, FMI…), as multinacionais, o sistema financeiro e o capital mafioso; e ainda, os maiores grupos económicos nacionais e os poderes informais, subterrâneos (Igreja, Maçonaria, sociedades de advogados…). As vítimas, são conhecidas – a multidão de trabalhadores, desempregados e ex-trabalhadores.
8 – Em democracia todos, eleitores ou eleitos, estão submetidos
de igual modo aos rigores da lei;
- Nas democracias de mercado isso não acontece. A classe política rodeia-se de normas constitucionais e legisla em seu proveito, relativamente a privilégios, mordomias e imunidades para se erigir como uma casta acima da restante população.
Um regime
político esgotado
Neste
contexto, a preocupação com a abstenção manifestada na referida conferência de
dia 26 não passa de um entretenimento para demonstrar que há uma denodada
procura de melhorias para o modelo autocrático de representação, dentro do
próprio modelo; para que este seja adoçado e assim distrair a plebe, incutindo-lhe
a ideia de que não há alternativa à antidemocracia vigente. Salazar e Caetano
também defendiam as supremas virtudes do seu modelo; qualquer regime político é
eterno… enquanto não é derrubado e substituído.
A questão vai
muito para além do modelo de representação, é o regime político pós-fascista
que deve ser posto em causa. Não há perspetivas de melhoria dos padrões de vida
para a grande maioria do povo; a carga fiscal, além de desigual, está sempre em
crescimento, sem colmatar deficits, sem ser dirigida a investimento público; o
grande desígnio coletivo é o pagamento
da divida pública (que não diminui), em detrimento do bem-estar da
população; esta envelhece e reduz-se, através de uma emigração massiva e
dizimada por um sistema de saúde transformado em negócio; a mercantilização
extensiva das necessidades coletivas é uma grande fonte de sustentação de
negócios privados; a especulação imobiliária, com a aposta deliberada no
turismo vai mantendo uma precária e ilusória aura de progresso; o aparelho de
justiça é submetido a leis e procedimentos pesados e recheados de escapatórias
construídas por juristas mafiosos; e, finalmente, uma classe política recheada
de gente sem gabarito, atravessada por compadrios e corrupção e que se pretende
perpétua, levada ao colo por uma imprensa fechada e superficial. Está
subjacente na habitual narrativa de sacrifício e resignação, a lógica medieval
da expiação dos pecados, de que andamos no mundo para sofrer.
Que o regime e
o seu modelo de representação estão estagnados, não havendo possibilidades de
lhes serem incutidas melhorias substantivas, é fácil de demonstrar,
graficamente, como espelho de 44 anos de vigência ou, mais detidamente, aqui:
Há 44 anos
vivia-se a estagnação fascista com a sua anquilosada classe política; hoje,
vive-se a estagnação pós-fascista que tem a anquilose como principal
caraterística da classe política. Há 44 anos a tropa cansada de 13 anos de uma
guerra que não conseguiria vencer decidiu derrubar o regime, com a complacência
das potências ocidentais; hoje, a tropa polariza-se no envio de pelotões para
as guerras da NATO, não irá derrubar coisa alguma e o enquadramento europeu
fomenta precisamente, democracias de mercado mais ou menos semelhantes à que
vigora em Portugal.
Essa
similitude baseia-se nas relações entre dois cartéis europeus, o PPE e S&D
que, aliás, aplicam exemplarmente o modelo de democracia de mercado naquele
areópago cosmético chamado Parlamento Europeu; e, nesse contexto, dificilmente
admitirão um modelo radicalmente diferente como o acima descrito, para mais,
num qualquer país periférico, como Portugal. Isso significa que é preciso gerar
uma movimentação de âmbito europeu[1],
com grupos organizados em rede, sem preconceitos nacionalistas, capaz de gerar
um grau elevado de contestação e desobediência que afaste de cena as atuais
classes políticas e gere um modelo democrático de decisão para a satisfação das
necessidades coletivas.
À distância de
44 anos, evidencia-se hoje, em Portugal, uma classe política com um mesmo
perfil conservador e espírito de casta, apesar das diferenças no enquadramento
geopolítico – União Europeia e ausência de colónias. Tal como a oligarquia do
fascismo, a actual é incapaz de gerir decentemente e sem delapidação do erário
público, qualquer aspeto estrutural de interesse para a multidão; mas, é ágil
na sua perpetuação em funções, a principal das quais é a manutenção da plebe
num avançado estado de dormência e infantilidade política.
Passados 44
anos, ainda que num plano político e ideológico distinto, o atual regime também
se estrutura em torno de um sólido núcleo conservador – o partido-estado PS/PSD
– que em tempos de desavença recorre ao CDS, uma mescla de conservadorismo
católico e de ariete do empresariato mais ultramontano. Em 2015, a ala
governativa actual do partido-estado estreou-se na viabilização de uma solução governativa com a captura de uma
social-democracia não assumida, constituída por duas estruturas em
concorrência – o PCP com a sua valia sindical e autárquica e o BE, que vive de
um constante agit-prop nos media.
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Esquerda do regime
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O poder
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Direita do regime
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Subordinação do trabalho
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1974
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Ala liberal (Sá Carneiro,
Balsemão…)
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ANP (Caetano)
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“ultras” (Tenreiro, Casal
Ribeiro…)
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Câmara Corporativa
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2018
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BE/PCP
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PS/PSD
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CDS
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Concertação Social
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Em 2018 face a
1974 há a registar algumas diferenças de ordem política. Deixou de haver uma
pide, a censura transitou para as chefias das redações dos media, é maior e
mais extensiva a vulnerabilidade no trabalho e na vida que, no tempo do
fascismo atingia particularmente os opositores declarados do regime e, na universidade,
onde havia grupos radicais minoritários, existe hoje uma multidão de amorfos
mascarados de corvos.
As questões
“técnicas”
A preocupação,
na classe política, com os níveis de abstenção, não é grande; cinge-se a alguns
setores da mesma que querem aprimorar o sistema eleitoral sem tocar no caráter
oligárquico e excludente do regime, procurando apenas uma maior legitimação
através de um aumento do volume de votantes. Como é evidente, um grilo-falante
vazio e potencialmente corrupto, não se transforma num dedicado defensor dos
interesses da multidão por uma questão numérica, com a passagem de 40 para 90%
do número de votantes. Há mesmo quem acuse os abstencionistas
da má qualidade patente na classe política; mas… não serão, exatamente os que
votam, que colocam no poder os membros da classe política?
Sobre essas
questões, assinalamos:
·
A inutilidade das campanhas
eleitorais que já nem têm a animação dos tempos em que circulavam nas ruas
carros com altifalantes a vociferar e rabos de meninas de fora das janelas com
cabelos e bandeiras a esvoaçar;
·
As campanhas eleitorais nada
significam pois toda a gente sabe que as promessas são repetidas, vagas e,
muito provavelmente, não cumpridas sob qualquer pretexto; e que, ganhe quem
ganhar, as diferenças não se manifestam, como se evidencia no gráfico atrás
inserido. O que sobra é uma lógica clubística na escolha, porque ninguém se dá
ao trabalho de ver os programas eleitorais; e, nos debates televisivos, ganha
quem tiver a gravata mais bonita ou o mais telegénico;
·
O regime gosta de ver a
população a dirigir-se às solenes mesas de voto, onde se processa um ritual com
emproados pregoeiros a enunciar o nome das pessoas e um burocrata a procurá-los
numa listagem; é uma oportunidade única para a classe política ver alguns
milhões de pessoas a contribuir, cada um, com 1/135 do salário mínimo dirigido,
nos anos seguintes, aos cofres dos partidos mais mediáticos, num dia
inteiramente dedicado ao espetáculo. Para essa mise-en-scène, é escolhido um domingo, com os mais crentes a votar
depois da missa; há cancelamento de jogos de futebol; e na véspera não há
folclore eleitoral para que a plebe reflita serenamente… No final não muda
coisa alguma, o PS/PSD continua no governo com ligeiras mudanças. The show must go on…
·
Em 44 anos, o regime não
consegue manter um recenseamento atualizado, nem oferecer condições de voto aos
emigrantes, nem desenvolver fórmulas de votação eletrónica, guardando as
tecnologias para conhecer o NIB de cada um e para agilizar o saque fiscal que
enche o pote onde a classe política se abastece;
·
Curiosamente, o direito de voto
só é referido na Constituição a propósito da eleição do PR (artº. 131º) e das
comissões de trabalhadores (artº. 54º). Neste último caso, trata-se de mais uma
aberração constitucional, pois a organização dos trabalhadores é um assunto que
só a estes diz respeito e nada tem a ver com a organização do Estado;
sintomaticamente, na Constituição nada se aponta de semelhante para a
organização dos patrões;
·
Há quem fale, de modo velado,
em voto obrigatório, o qual se traduziria em redução das abstenções, como modo
de dotar o regime e a sua classe política de maior legitimidade. Se o voto for
obrigatório, perde a sua natureza de direito; e, a ser obrigatório, não lhe
deveria corresponder também a obrigatoriedade do cumprimento das promessas
eleitorais? Se o voto é obrigatório, na realidade dirigido a um imutável
pentapartido (no caso português), isso seria algo menos que uma ditadura?
·
Os casos de voto obrigatório
demonstram a sua inutilidade para a multidão; aliás, se fosse vantajoso,
ninguém falaria nisso nas classes políticas... Na Bélgica, o voto sendo
obrigatório, é desrespeitado, em regra por cerca de 10% nas eleições para o
Parlamento Europeu e, nas mesmas, na República Checa votaram apenas 19.5% das
pessoas e na Eslováquia 13%. Será que entre os deputados eleitos, belgas,
checos ou eslovacos e os seus respetivos partidos, as diferenças serão de
monta? E a sua qualidade é distinta da qualidade dos eleitos pertencentes a
outras oligarquias nacionais, de países onde as pessoas têm oportunidade para
manifestar o seu desprezo ou repúdio pela “sua” classe política? No Brasil,
onde o voto também é obrigatório, o regime tem evoluído no sentido da
democracia ou antes, na generalização da corrupção da classe política e na
repressão? A obrigatoriedade evita o roubo institucionalizado?
·
Todos conhecem o pendor da
classe política para o aumento da burocracia, para a criação de “postos de
trabalho”, com a corrente criação de novas estruturas para funcionarem em
cascata entre as já existentes. Suponhamos que o mandarinato luso optava mesmo
pelo voto obrigatório. Provavelmente, o número de votantes aumentava, como
aumentaria o número dos que invalidariam o boletim de voto; e, perante essa
atitude ditatorial, naturalmente, surgiriam grupos a promover a anulação do
voto para evitar coimas e outros actos de saqueio por parte do regime. E se o
número de votos nulos aumentasse muito, mostrando que afinal o voto obrigatório
tornava ainda mais claro a parcela de desafetos ao regime, que fariam os
mandarins? Colocar um polícia a fiscalizar se cada votante votava “bem”? Seria
uma forma de aprofundar as práticas democráticas na totalitária Oceânia do
“1984”. E quanto aos eleitores fantasmas, já falecidos, seria fácil; aplicavam
uma boa coima aos familiares que não demonstrassem o óbito.
Este e outros textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
https://pt.scribd.com/uploads
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
https://pt.scribd.com/uploads
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
[1] Não tendo significado em Portugal – ao contrário do que acontece nos países
da Europa Ocidental - partidos do tipo Afd ou FN, defensores do encerramento
nacionalista, da identidade nacional… é curioso que em Portugal os grandes
paladinos da saída da UE e do euro, sejam os partidos da esquerda do regime, os
defensores de que um capitalismo atrasado e autárcico do tipo salazarista, num
país periférico, é susceptível de trazer benefícios para quem vive do trabalho
em Portugal.
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