domingo, 16 de agosto de 2015

Sobre a Constituição (CRP) – Uma Assembleia da República democrática

Sumário
1 – Um plano global onde a democracia não mora
2 - Uma Assembleia da República como peça chave da democracia
2.1 – A nocividade da classe política
2.2 - Quem é eleitor e quem poderá ser eleito para a Assembleia da República?
2.3 - Um deputado por cada circunscrição eleitoral
2.4 - Limitação do número de mandatos
2.5  – Campanhas eleitorais e seu financiamento
2.6   - Ausência de privilégios ou imunidades
2.7  – Exclusividade
2.8  - Cessação de mandatos
2.9  - Constituição do governo
2.10  - Governo e administração pública
2.11 - As funções da Assembleia da República


1 – Um plano global onde a democracia não mora

Nos cinco textos já divulgados[1] sobre o tema da revisão da CRP - no âmbito da organização política e do modelo de representação - considerámos duas traves mestras de suporte a uma democracia verdadeira;
·  o princípio da subsidiariedade, segundo o qual, as decisões sobre a vida coletiva são tomadas pelos seus beneficiários diretos, dentro das suas capacidades materiais de concretização.
·  e a expressão democrática baseada em assembleias e no livre acesso de qualquer pessoa a funções políticas.

Tecemos arquiteturas alternativas ao actual modelo oligárquico e excludente no capítulo das autarquias – as freguesias e os municípios. Não nos deteremos, para já, na arquitetura política a nível das regiões autónomas, presente nos Açores e na Madeira; tal como deixaremos para altura própria, a figura do presidente da república que, hoje é preenchida pelo sinistro elemento que ocupa, com todo o mérito, o papel histórico da maior nocividade de todo o tempo de duração da República, somente ultrapassado por Salazar.

As regiões autónomas têm uma abundante presença na CRP. Entre as autarquias, surgem as inexistentes regiões administrativas (nº1, artº 236 da CRP) tipificadas nos artº 255º a 262º, esperando oportunidade de nascimento e que se apresentam, como letra morta, há cerca de 40 anos. O regime e a classe política que o mantém, contudo, afadigam-se, cinicamente, em protestos do mais estrito cumprimento das leis, com relevo para a constitucional[2], possuidores do mais elevado quilate democrático.

Não havendo movimentação popular no sentido da criação das regiões administrativas, não parece encontrar-se quem queira repetir o referendo de 1998 que as rejeitou.

Esta situação demonstra que o regime não cumpre as suas próprias leis, evidenciando que está escancarada a porta para todas as arbitrariedades, conluios e comportamentos desviantes por parte da classe política[3], com todos os custos inerentes à predação fiscal, à ausência de serviços públicos condignos e à inexistência de instituições efetivamente democráticas, onde a população possa exercer as suas prerrogativas criadoras e corretoras.

Ir-se-á realizar no dia 4 de outubro mais uma feira eleitoral que, com elevada probabilidade, reproduzirá o lodaçal habitual, se se admitir que a inferência estatística e a percepção da realidade têm alguma validade.

Se na Grécia e apesar das grandes mudanças no xadrez partidário a situação económica e social mantém o seu povo em empobrecimento continuado, não é difícil conceber o que mudará na vida dos sobreviventes em Portugal, com a ausência de movimentação social, com a estagnada classe política portuguesa, e a tranquila supervisão da troika. Neste contexto, nada de novo surgirá na vida das pessoas; as eleições serão um placebo legitimador da continuidade da austeridade e da corrupção. O processo eleitoral está viciado na forma, configurando uma paródia de democracia; e somente um empoderamento popular que altere profundamente o sistema político e o modelo de representação poderá abrir caminho a um contributo para uma solução democrática e anticapitalista na Europa.

Como dissemos no segundo texto deste conjunto sobre a revisão da CRP[4] “os elementos centrais da expressão democrática, no contexto dos vários círculos de agregação territorial das pessoas, são as assembleias”. A própria CRP terá de conter não só as atribuições de cada instituição democrática, de caráter nacional, regional ou local como ainda regras claras, para que não haja interferências por parte das instâncias com maior abrangência, sobre outras com competências territorialmente mais circunscritas, como vem sendo a prática histórica dos governos. A soberania em cada instância cabe aos residentes, só estes tendo capacidade legal de interferir nos órgãos aos quais dão poderes de representação delegada.

2 - Uma Assembleia da República como peça chave da democracia

A existência de uma Assembleia da República é necessária para a discussão e a decisão sobre os assuntos que dizem respeito a todos, de modo indivisível territorialmente, devendo constar na CRP as decisões que obrigatoriamente deverão ser referendadas. A Assembleia não pode ser um areópago cosmético, que se dedica à mediatização de um espetáculo frouxo com atores de baixo gabarito e que pouco decide, depois de transitar as suas competências para o governo através de autorizações legislativas.

2.1 – A nocividade da classe política

Está expresso na CRP (artº 113º nº 2) que o recenseamento eleitoral é oficioso, obrigatório, permanente e único para todas as eleições por sufrágio direto e universal, sem prejuízo do disposto nos n.os 4 e 5 do artº 121º. Já anteriormente demos a nossa opinião[5] sobre a forma como a classe política tem promovido ou calado a adulteração do recenseamento eleitoral.

Durante o regime fascista, só uma minoria da população (cerca de 1.8 M de pessoas) podia votar em 1969/73, sendo os candidatos a eleger indicados pela classe política de então. Depois do 25 de Abril o número de eleitores passou a 6.2 M de pessoas em 1975, isto é, a toda a população com maioridade mas… os candidatos a eleger, desde então continuam a ser indicados pela classe política; o regime cleptocrático actual, porém, em vez de afastar milhões de potenciais eleitores como faziam os fascistas, passou a incluir no recenseamento perto de um milhão de eleitores inexistentes! Não há fome que não dê em fartura…

Curiosamente, em 1969 e apesar da presença da oposição nas eleições, a taxa de abstenção foi de 37.5%, sabendo-se porém que o recenseamento não incluía a esmagadora maioria da população trabalhadora. Ora, em 2011, os dados oficiais da abstenção cifravam-se em 41.9% do eleitorado, valor certamente inflacionado pela existência de eleitores “fantasmas”. Uma coisa, no entanto, é querer votar e não poder, como aconteceu em 1969 com muita gente; outra, é não se votar por se não poder nem querer, como em 1973, no final da “primavera marcelista”. O que hoje acontece é uma terceira hipótese, é poder-se votar e achar-se que de nada serve, como acontece agora para grande parte da população. Compete aos ferozes arautos do voto pelo voto[6], que tornam os abstencionistas e equiparados como o inimigo a abater explicar se, numa jaula com vários tigres iriam escolher o seu devorador.

No tempo do fascismo, como agora, ser candidato não é um direito inerente à cidadania, é uma benesse atribuída pela classe política, através das suas agremiações e, mais precisamente, pelos seus oligarcas.

Numa eleição democrática para a Assembleia da República, quem tem o direito de eleger também pode ser eleito, como princípio básico da democracia. Ambos os direitos têm igual dignidade e são inseparáveis. A diferença é que o exercício do direito a votar é dado por inerência às pessoas e a concretização do direito a ser eleito depende apenas de iniciativa ou de aceitação pelo próprio.

Como se sabe, no actual regime cleptocrático nada se processa dessa maneira. Os candidatos, como potenciais eleitos, são provenientes dos partidos, depois de previamente escrutinados, escolhidos ou aceites pelas respetivas estruturas dirigentes, de acordo com os seus índices de subserviência.

Para eles, a função a ocupar comporta o exercício de um poder, só longinquamente escrutinado e ainda o usufruto de benesses pessoais; e por isso, gera-se um acotovelar de candidatos dentro de cada agremiação partidária, um jogo de sedução e influência junto dos chefes do partido. Por seu turno, sendo os partidos estruturas essencialmente fechadas, autoritárias e muito hierarquizadas, os seus chefes têm poder efetivo para a nomeação do candidato, acompanham o seu desempenho se for eleito, exigindo serviços e favores em benefício do partido, dos seus clientes e financiadores.

A própria CRP (artº 10º, nº2) define os partidos como concorrentes “para a organização e para a expressão da vontade popular” introduzindo esse conjunto de mediadores cuja necessidade ou não, deveria ser do livre exercício dos direitos elementares de associação de cada um e que nunca deveria constituir um imperativo constitucional limitador da liberdade da população no capítulo dos seus direitos políticos. O nº 3 do artº 46º diz que “ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação”; no entanto, essa pertença torna-se obrigatória para quem queira exercer funções políticas. Quem se não queira submeter a essa obrigação terá de se limitar, no âmbito da política, ao exercício do voto numa dessas associações fechadas e distantes, às quais 97% da população não pertence. Uma vez mais, a CRP afirma-se como instituinte da oligarquia reinante desde 25 de novembro de 1975, em indisfarçável continuidade com o caráter autoritário do regime findo com o 25 de Abril.

No tempo do fascismo, a União Nacional, mais tarde rebatizada como Ação Nacional Popular não era propriamente um partido e só surgia à tona em momentos eleitorais (no entanto, continha alas, sensibilidades, em luta pelo reconhecimento do chefe). Salazar detestava querelas partidárias e sentia-se um predestinado com poder pessoal, acima de tudo e todos. No regime actual, radicado nos equilíbrios posteriores a 25 de novembro de 1975, a legitimação viria a passar pelo afunilamento da vida política em partidos, como acontecia “lá fora”, passado o prazo de validade dos caudilhos. Embora formalmente diferente do que se passava durante a ditadura, a decisão política continuou exclusiva de uma classe política, também excludente do povo e hierarquizada, como os mandarins do fascismo; e até, inchados no seu modernismo, copiaram o método de Hondt para a CRP (nº 1, artº 149º para a Assembleia da República e artº 260º para as regiões) para facilitar a constituição de maiorias estáveis, como os mercados gostam.

Para além de impor os partidos como elementos incontornáveis para o exercício das funções políticas, o regime institui limitações ponderosas à sua criação, com um processo burocrático moroso e dispendioso, submetido a veredito do Tribunal Constitucional que, por sua vez, é uma emanação dos partidos dominantes em Portugal, da concorrência já instalada – um género de condicionamento eleitoral, inspirado no condicionamento industrial do fascismo. Mesmo que um grupo de pessoas consiga vencer essas dificuldades, não conseguirá vencer a discriminação mediática a favor dos grémios do “arco da governação”. O concurso em eleições é uma luta desigual em exposição mediática, em meios financeiros, em acesso à informação, configurando, apenas uma colaboração na legitimação do actual regime cleptocrático.

Para que se mantenha o simulacro de democracia, o regime oferece meios financeiros, retirados do erário público a todos os partidos que ultrapassem uma dada fasquia de votos. Os partidos grandes dedicam-se à mentira e ao roubo e os pequenos animam as romarias eleitorais, procurando crescer; e como isso não acontece, na realidade limitam-se a legitimar o regime. Nas cortes medievais, para além de reis, marqueses e barões também havia bobos para animar os serões.

O espetro partidário em Portugal é preenchido por três naipes de partidos.
·    O partido-estado PSD/PS e o seu acólito CDS, constituem o chamado “arco da governação”, o fulcro da gestão da perpetuidade do regime, englobam os funcionários do sistema financeiro dominante, são os donos da punção fiscal e os magnos agilizadores da corrupção;
·    Segue-se a esquerda do regime (PCP/BE) que tem o papel de animador das sessões da Assembleia da República, de oposição legitimadora do regime, de organizador implacável do controlo social e, sendo paga para o efeito, funciona como um dueto afinado de entidades empregadoras;
·  Finalmente, um vasto e heterogéneo leque de pequenos grupos que funcionam como os decorativos balões coloridos das marchas populares, durante os pleitos eleitorais, na sua maioria tão inúteis que nem têm direito a financiamento pelo regime.

O conjunto dos partidos portugueses[7] terá cerca de 300000 inscritos, isto é cerca de 3% da população merecendo, até pela sua baixa representatividade na população, o título de classe política. Entre esses inscritos, uma grande parte não exerce atividade política alguma; outros, pagam quotas quando há eleições internas ou comparecem nos jantares locais de lombo de porco para recolha de fundos, quando o grande chefe visita a paróquia; sobra, no topo, um grupo limitado com desempenho efetivo na estrutura partidária e/ou nas instituições políticas ou, com cargos empresariais influentes. A mobilidade na hierarquia das estruturas partidárias é difícil e sujeita a altos e baixos, de acordo com as sortes eleitorais ou as apostas nas disputas internas.

A CRP (artº 147º) define que a Assembleia da República “é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses”, que é composta por deputados (artº 148º) eleitos por círculos e que são elegíveis os “cidadãos portugueses” (artº 150º). Porém, logo o nº 1 artº 151º refere que “as candidaturas são apresentadas… pelos partidos políticos” precisando que as pessoas só são elegíveis através da mediação partidária e não por sua própria e livre vontade. Esse condicionamento visa a manutenção de uma classe política, fechada, cujos dirigentes detêm, de facto, o poder de decidir quem poderá ser deputado. A mesma disposição da CRP, talvez para disfarçar o caráter oligárquico do regime, informa que as listas (partidárias, por impositivo constitucional) podem “integrar cidadãos não inscritos nos respectivos partidos”, como se essa inclusão pudesse passar ao lado dos chefes partidários. Estes, desta forma, podem apresentar-se como condescendentes democratas que até aceitam pessoas não inscritas nos seus partidos como candidatos… mas, depois de filtrados de impurezas populares ou ideológicas.

Na realidade, nenhuma pessoa, fora de representação ou mediação partidária terá possibilidades de exercer funções políticas; essa é uma das grandes linhas antidemocráticas da CRP.

A CRP contém mesmo preciosidades como a de que nenhum candidato pode concorrer em vários círculos eleitorais “exceptuando o círculo nacional quando exista” (nº 2, artº 151º). Este último, quando exista será único, não? Outra dessas preciosidades está contida no nº 1 do artº 155º onde se afirma a garantia institucional dada aos deputados, de procederem ao “indispensável contacto com os cidadãos eleitores e à sua informação regular”. Alguém conhecerá um local onde, regularmente deputados do seu distrito compareçam junto das pessoas comuns para um diálogo? Quantos já tiveram a experiência de ir à Assembleia da República abordar questões com deputados, sem encontrarem gente apressada e desinteressada pela frente? Nas deslocações aos distritos, os deputados confraternizam com as estruturas partidárias locais, com mandarins autárquicos, com empresários e nada mais. O povo comum, desconhecerá esses encontros e nem terá à-vontade para estar nessas tertúlias de mafiosos.

No nº 2 do artº 152º, informa-se que os deputados representam o país “e não os círculos por que são eleitos”. Admite-se que deva haver uma visão do país como um todo, embora seja comum e natural que um deputado coloque questões com maior relevância ou específicas da região de onde seja proveniente. Esse problema não se coloca para as vedetas partidárias que podem surgir como candidatos onde seja conveniente para o partido, só lá comparecendo em campanha eleitoral. Porém, as pessoas votam em listas partidárias que se apresentam como adstritas ao seu círculo eleitoral, neste caso o distrito[8]; e como constitucionalmente não representam os círculos eleitorais onde foram eleitos, a responsabilização dos deputados perante a população que os elegeu, não existe. Os eleitores votam em listas partidárias distritais mas, os eleitos nem formalmente são seus mandatários e portanto as pessoas têm, também aí, uma evidência da ausência de poder de obviar a más decisões dos “seus” deputados. A concepção de democracia dos constituintes mostra-se, uma vez mais, pobre e enviesada.

2.2 - Quem é eleitor e quem poderá ser eleito para a Assembleia da República?

Num regime democrático em Portugal, serão eleitores e potenciais candidatos a deputados, os residentes em Portugal há mais de 5 anos, (de qualquer nacionalidade) e emigrantes portugueses a residir fora do país há menos de 5 anos, todos com mais de 16 anos[9]. Em 2014 estavam registados cerca de 9.7 milhões de pessoas (com mais de 18 anos) sabendo-se que os “fantasmas” serão cerca de 893000. Para efeitos práticos, o número dos eleitores e potenciais eleitos, com mais de 16 anos situar-se-á entre 9 e 9.5 milhões de pessoas.

2.3  - Um deputado por cada circunscrição eleitoral

Entende-se que deve haver uma relação biunívoca de representação, entre o deputado eleito numa dada circunscrição eleitoral e o conjunto dos residentes naquela. O actual modelo de apresentação de listas partidárias não estabelece essa relação e exclui a candidatura da esmagadora maioria das pessoas, não pertencente a organizações partidárias.

Uma representação, para conter uma grande proximidade e interação entre a população de uma dada circunscrição e o deputado eleito por essa população, exige a consideração de conjuntos populacionais não muito dilatados. Consideramos que o número potencial de deputados na Assembleia da República se deveria situar entre os 450 e os 600, consoante a dimensão atribuível às circunscrições que os elejam (20000 ou 15000 pessoas, respetivamente, com capacidade eleitoral).

O aumento do número de deputados aqui proposto, aliado ao modo da sua eleição, como adiante se observará, bem como devido às prerrogativas dos eleitores sobre o desempenho dos seus representantes, são elementos que permitem uma maior proximidade entre representantes e representados, a verificação de um verdadeiro mandato, um enorme reforço da democracia; nomeadamente, perante a situação actual em que a democracia foi aprisionada por uma classe política, parasitária, corrupta, de gente medíocre, acomodada e arrogante, inchada pelas prerrogativas a que se acha com direito.

Existem pessoas, por incompreensão do que é a democracia[10] e por critérios economicistas que se materializam em poupanças insignificantes, que defendem a redução do número de deputados na actual Assembleia da República (230, o máximo concedido na CRP). Como se observará adiante, ao aumento sugerido correspondem novas funções, uma nova prática para os deputados, diferentes condições de desempenho, não sendo forçoso que custem proporcionalmente mais do que os atuais.

Os candidatos a deputado deverão residir no território da circunscrição eleitoral onde concorrem e há mais de um ano, contado até à data da eleição.

Será eleito o candidato mais votado desde que votem mais de metade dos inscritos. Se isso não acontecer será realizada uma segunda votação um mês depois, com os candidatos que se apresentarem para o efeito (os anteriores ou quaisquer outros). Se se mantiver uma votação inferior a metade dos inscritos, a circunscrição não estará representada na Assembleia da República.

Se um eleito, desistir de tomar posse como deputado, se resignar durante o mandato ou ainda, se ocorrer doença incapacitante ou óbito, haverá lugar a novas eleições na sua circunscrição. Não existirá a figura da substituição, como atualmente, em que os presentes na Assembleia da República podem, potencialmente, ser elementos não eleitos no acto eleitoral. O mandato é pessoal e intransmissível.

Sabemos a grande e preocupada unidade existente na classe política quanto aos abstencionistas, acusados de todas as infâmias, irresponsabilidades e conluios. 

Mas também sabemos que nunca – em quarenta anos - se assistiu a qualquer evolução técnica na expressão do voto, ainda baseada na deslocação até ao local da votação, do papelinho colocado na urna, da contagem levada a cabo por gente dos partidos e outros, obrigados a colaborar nos actos eleitorais, numa logística pesada cujos custos costumam ser apontados por economicistas fascistóides, sempre disponíveis para a redução da democracia. O regime, que gasta muitos milhões de euros para montar aplicações informáticas escrutinadoras das nossas vidas, para proceder ao extrativismo fiscal, não cuida de gerar fórmulas ágeis e cómodas do exercício do voto, pela internet. Pode ir-se à junta de freguesia entregar por via eletrónica a declaração do IRS mas, usar a internet para votar não, só com métodos arcaicos.

Convém à classe política o arcaísmo técnico nas eleições. A votação pela internet colocaria na agenda algo de francamente revolucionário, que colocaria em evidência o caráter parasitário da classe política. A votação pela internet poder-se-ia dirigir a propostas colocadas pelas pessoas, discutidas previamente entre si, de forma aberta e transparente; nesse contexto, para que serviria a classe política e mesmo a representação se as pessoas pudessem, elas próprias, decidir, sem intermediários?

2.4 - Limitação do número de mandatos

A prática a que se vem assistindo na actual Assembleia é a de que os deputados se mantêm em exercício sem qualquer limitação no número de legislaturas, bastando para o efeito manterem-se nas boas graças do chefe partidário e como bons prestadores dos serviços convenientes para poderosos interesses económicos que, só ocasionalmente, coincidirão com os interesses da população.
Defendemos legislaturas como as atuais, de quatro anos, não podendo um deputado ser eleito em mais de duas de cada conjunto de quatro legislaturas, num total de quatro mandatos na sua vida. Pretende-se que o exercício de uma representação seja parte de uma atitude cívica de contributo para o bem comum, que compete a todos e em que muitos devem participar. Pretende-se evitar, a todo o transe, o enquistamento de uma classe política que a prática demonstra ser a base para a corrupção.

2.5 Campanhas eleitorais e seu financiamento

Como as candidaturas se apresentam a nível local, de circunscrição eleitoral, compete às autarquias organizar os debates entre os candidatos, as apresentações dos programas de cada um, a disponibilidade de locais para a propaganda, sem custos para os candidatos, com total imparcialidade e igualdade de oportunidades entre aqueles.

Neste contexto, não haverá dissemelhanças resultantes das diferenças de capacidades económicas pessoais entre os candidatos, sendo excluídos os que aceitem financiamentos privados para o efeito. Aos municípios será disponibilizado um fundo para despesas de campanha, a repartir por todos os candidatos nas circunscrições eleitorais que o território municipal abranja. Pretende-se que numa campanha eleitoral as desigualdades se restrinjam às ideias e à sua formulação pelos candidatos.

2.6 - Ausência de privilégios ou imunidades

Os atuais privilégios, imunidades e subsídios vitalícios que os deputados têm, contribuem para a degenerada imagem que o povo tem da Assembleia da República e da classe política em geral; sobretudo porque são os próprios beneficiários a aprovar essas benesses, em total contraste com as agruras e o empobrecimento que atinge a esmagadora maioria da população. Esta última, nunca inquirida sobre cortes e perdas de direitos, apresentados como inevitabilidade.

Dessa imagem se alimenta o populismo, com a defesa da redução do número de deputados. A diminuição do custo inerente a essa redução não fere a ilegitimidade de privilégios, que continuariam, só que aplicados a um leque mais reduzido de indivíduos; em termos orçamentais não seria particularmente relevante. Por outro lado, não havendo alterações profundas no funcionamento, na composição e nas responsabilidades efetivas dos deputados, a redução do seu número não traria qualquer impacto na qualidade da democracia em Portugal. Essa redução não evitaria a presença de mafiosos, as ligações a escritórios de advogados ou outros interesses económicos, como não modificaria o caráter cosmético da Assembleia, comparativamente ao executivo.

Numa lógica democrática, cada deputado terá direito a um salário condigno, com a mesma carga tributária e os descontos para a Segurança Social que oneram os trabalhadores em Portugal. O tempo de exercício de deputado contará integralmente para efeitos de aposentação, sendo os benefícios para os riscos de doença e acidente também semelhantes aos dos restantes trabalhadores. Terminado o exercício da representação como deputado, o indivíduo regressará às suas anteriores funções, não podendo ser objeto de despedimento por razões que se possam imputar àquela presença na Assembleia da República.

As despesas com telecomunicações, deslocações e estadas em serviço serão, naturalmente, pagas pelo orçamento da Assembleia. Para os deputados que vivam longe de Lisboa, a Assembleia da República dotar-se-á de edifícios com apartamentos devidamente equipados e destinados ao seu alojamento, como acontece na Suécia[11].

A Assembleia da República será munida de um conjunto de funcionários, técnicos e administrativos, escolhidos em concursos públicos, para proceder ao apoio dos deputados, na sua globalidade; não havendo, portanto assessores e funcionários privados ou grupais ou, menos ainda, gente de perfil partidário, como hoje, em estágios pagos pelo erário público. Os serviços da administração pública, nacional, regional e municipal, encarregar-se-ão de fornecer a informação solicitada pelos deputados para estes procederem aos estudos necessários para o desempenho das suas funções.

No âmbito da atividade parlamentar, cada deputado estará disponível para ouvir e dialogar com as pessoas da circunscrição por onde foi eleito, localmente, uma ou duas vezes por mês, sem prejuízo de comunicações por correio eletrónico. Um avanço democrático relevante será o deputado decidir o seu sentido de voto em questões concretas, em conjunto com a população, pessoalmente ou, em listas abertas, de discussão.

Consideramos que um deputado, pela sua exposição pública e responsabilidades de representação deve ser um cidadão exemplar; e, nesse contexto, as exigências que lhe são imputáveis, do ponto de vista ético, não lhe devem propiciar vantagens ou isenções de responsabilidades, comparativamente às pessoas comuns.

Compreende-se que os deputados não possam nem devam ser indiciados por opiniões que emitam no exercício das suas funções parlamentares, como referido na CRP (nº 1, artº 157º).

O nº 2 do mesmo artigo exige a autorização da Assembleia da República para que um deputado seja ouvido como arguido em casos que possa conduzir a pena de prisão com pena superior a três anos; essa autorização é dispensada se o caso configure situação de flagrante delito (nº3º). Entendemos que em nenhum caso um deputado deva ter o direito de se furtar ao dever de colaborar com a justiça e daí que, nos casos previstos na CRP, não devam existir obstáculos colocados pela própria Assembleia.

2.7 Exclusividade

O respeito que o bem-estar dos residentes em Portugal merece exige a dignificação da função da sua representação política; assim, essa função não se compagina com trabalho a tempo parcial, exige dedicação exclusiva.

Essa dignificação não existe com deputados que passeiam em S. Bento de manhã e pela tarde exercem as suas funções de tráfico de influências em escritórios de advogados, numa promiscuidade em que sai a perder o interesse público; e, para mais, quando essa promiscuidade acasala com sucessivos mandatos na Assembleia da República, configurando uma continuada prática mafiosa.

2.8 - Cessação de mandatos

Para além do cabal cumprimento dos mandatos, como acima se referiu há, naturalmente, a possibilidade de renúncia ao mandato por parte do deputado e ainda a possibilidade de o mesmo ser afastado pela população. Neste caso, o mandato poderá ser cassado em referendo, proposto por um mínimo de 5% dos eleitores e no qual vote mais de metade do eleitorado da circunscrição eleitoral.

O deputado eleito tem apenas contas a prestar às pessoas da circunscrição eleitoral por onde foi eleito. Na actual configuração da CRP, um deputado, depois de eleito, fica sem qualquer controlo democrático por parte de quem o elegeu, na ausência de dispositivos de cassação do mandato, por mais incompetente, mentirosa e nociva seja a sua atuação. Um deputado eleito na actual CRP é um usurpador, um ditador, na melhor das hipóteses, com termo certo.

Se os eleitores não têm poder sobre o deputado este, no entanto, não está isento de controlo, no âmbito da CRP. Primeiro, porque é eleito numa lista partidária, submetido a um crivo prévio, antes de subir as escadas da Assembleia da República. Depois, como todos os da sua agremiação, insere-se num grupo parlamentar, que terá forçosamente um chefe, cuja função é homogeneizar as posições dos componentes do grupo, nomeadamente através da “disciplina de voto”. Tendo em conta as raras situações de rebeldia verificadas, é fácil imaginar que a unidade de voto do grupo é obtida pela subserviência de muitos, pela imposição a alguns ou, através da acefalia oportunista dos restantes.

Os chefes dos grupos parlamentares, das bancadas, reúnem entre si para traçar as agendas do plenário, a atividade das comissões parlamentares (também elas com chefes específicos, do “arco da governação”) e, determinam para os seus subordinados, o que lhes compete fazer, votar, dizer ou calar (al. b) artº 159º). Nas comissões parlamentares, os relatórios veiculam, naturalmente, as posições do que convêm ao “arco” e aos seus mandantes do sistema financeiro, da troika ou do grado empresariato luso.

O nº 1º, al. c) do artº 160 prescreve, taxativo, que um deputado perde o mandato se se inscrever em partido diverso daquele pelo qual foi eleito. Em contrapartida, nada está previsto para os que defenderam posições e avançaram com promessas junto do eleitorado e que, depois de eleitos, aprovaram algo de antagónico. Como se vê a mentira é aceite como acto banal pela CRP; o oportunismo é, desse modo, estimulado.

É assim a liberdade dos deputados; subordinação aos poderes e menosprezo pelos interesses da plebe. É assim a democracia de mercado que é necessário desmantelar.

2.9 - Constituição do governo

Eleitos os deputados em eleições gerais, é da sua competência escolher, entre si, os membros do governo, com elenco limitado a um número de 7 a 11 ministros, incluindo o primeiro-ministro (se a figura existir) e a um conjunto de secretários de estado entre 15 e 25, igualmente escolhidos entre os eleitos para a Assembleia. Assim sendo, não haverá lugar à nomeação de pessoas para cargos governativos, que não as eleitas para a Assembleia da República[12].

Existem alternativas ao acima descrito, quanto a um primeiro-ministro. Uma, é ele ser escolhido entre os ministros previamente selecionados pela Assembleia, para essas funções. A outra é os ministros tomarem as decisões coletivamente, sem a necessidade de um elemento coordenador, como acontece na Suiça[13]. O papel das regiões e dos municípios, com funções alargadas e larga autonomia, em simultâneo com uma administração autónoma e independente do governo, reduz as funções ministeriais às grandes linhas estratégicas, às relações externas, às questões de cariz nacional, aos grandes projetos não enquadráveis num âmbito regional/local ou administrativo. 
 
O governo é constituído no início de cada legislatura, a priori para um mandato que não excederá a duração daquela, quatro anos. Qualquer membro do governo (ou todos de uma só vez), pode a todo o momento ser destituído dessas funções pela Assembleia da República, por um referendo de âmbito nacional, como pode ainda, um membro do governo ter o seu mandato cassado pelos eleitores da sua circunscrição. Nessas circunstâncias, a Assembleia escolherá, entre os seus membros, os novos elementos do governo.

Os deputados escolherão entre si a mesa da Assembleia da República, cabendo a quem desempenhar as funções de presidente, a representação externa da República, num contexto de revisão profunda das funções do Presidente da República contidas na actual CRP.

Um deputado com funções no governo, numa dada área não poderá, durante os dois anos que se seguirem ao fim do seu mandato no executivo, exercer funções de direção ou assessoria em empresas privadas da mesma área.

2.10 - Governo e administração pública

O governo constituído como acima se propôs é uma emanação executiva da Assembleia da República perante a qual responde, em permanência, tal como cada um dos seus membros, individualmente. Para apoio específico nessas funções executivas, cada membro do governo será assessorado por quadros técnicos (um máximo de três por cada membro, em média) e um quadro administrativo de apoio, para além do apoio logístico dos trabalhadores da Assembleia da República ao conjunto dos deputados. Esses assessores específicos serão quadros da administração pública especializados em áreas técnicas e/ou políticas, requisitados para o efeito. Por outro lado, compete aos órgãos da administração pública informar, apoiar e colaborar com os deputados e o governo em particular, na prestação de informação e elaboração de estudos.

A administração pública não é propriedade do governo, como acontece atualmente. Assim, os governos não poderão demitir nem nomear os dirigentes da administração pública que serão escolhidos entre os próprios trabalhadores ou por concurso público, por períodos limitados de tempo.

2.11 - As funções da Assembleia da República

Tendo em conta o princípio da subsidiariedade, à Assembleia da República cabem todas as funções que não possam ser desempenhadas nas autarquias, mormente nos municípios e nas regiões.

Assim, compete-lhe, entre outras funções:

  • Aprovar alterações à CRP e submetê-las a referendo;
  • Aprovar os estatutos das regiões autónomas, das regiões administrativas e das autarquias;
  • Elaborar e aprovar novas leis, bem como alterações às existentes;
  • Aprovar os documentos de planeamento com âmbito nacional, os orçamentos anuais ou plurianuais, o programa do governo e zelar pelas suas execuções;
  • Avaliar propostas de recurso a dívida pública, que terão, forçosamente de estar afetas a projetos concretos com rendabilidade económica e social comprovada, em benefício do povo;
  • Apreciar todas as questões estruturais relacionadas com as relações com o exterior – tratados, acordos, participação em intervenções humanitárias e outras – que poderão ser objeto de referendo, em casos de especial relevância para a vida e as capacidades de decisão própria dos portugueses;
  • Aprovação dos parâmetros de separação entre as receitas e despesas públicas que cabem a instituições de caráter nacional, regional ou local;
  • Aprovação dos parâmetros de viabilização de uma Segurança Social pública e autónoma, não incluída no perímetro consolidado das contas públicas;
  • Aprovação de novos impostos ou de alterações aos existentes, que representem aumentos da carga fiscal sobre os trabalhadores e outros estratos sociais desfavorecidos;
  • Aprovação de propostas de privatização de bens, empresas ou serviços públicos e também de nacionalização de empresas ou bens privados.


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[2] O Tribunal Constitucional tem apenas um papel subsequente, reativo, a queixas de outras entidades do regime, nomeadamente do Presidente da República. Não tem poderes de iniciativa própria e, mesmo que os tivesse, a nomeação dos seus membros pelo partido-estado (PSD/PS) seria um garante da conveniente docilidade. Mesmo nos casos – como o das regiões administrativas - em que a CRP não é cumprida por omissão (nº 1, artº 283º), o Tribunal terá de ficar à espera de iniciativa exterior. 
Ainda recentemente a grande maioria dos partidos registados tinha irregularidades nas contas de 2010 !!! Imaginemos o rigor fiscal em coimas, penhoras, retenções para uma pessoa que não tenha regularizado o IRS de 2010
[8]  O distrito é uma figura transitória segundo a CRP (nº 1, artº 291º) enquanto não estiverem instituídas as regiões administrativas que esperam, pacientemente o seu nascimento há mais de 40 anos, não aprovadas no referendo de 1998 e entretanto torpedeadas pelo PSD/CDS com a criação das comunidades intermunicipais, não-autarquias, preenchidas com quadros partidários. Na administração central reina a diversidade, com lógicas regionais (saúde, educação) e distritais (impostos e segurança social)
[9]  Expressámos em textos anteriores a nossa dúvida se um jovem com menos de 18 anos terá a maturidade suficiente para exercer funções políticas, embora nos pareça pacífico que deve poder votar em todas as eleições
[12] Totalmente oposto ao estatuído na CRP (nº 1, artº 154º) que substitui deputados nomeados para o governo, por outros da lista partidária por onde foram eleitos; e que se não opõe a que funções governamentais sejam desempenhadas por pessoas sem comprometimentos eleitorais… se é que eles existem em Portugal
[13] https://pt.wikipedia.org/wiki/Conselho_Federal_(Su%C3%AD%C3%A7a)

1 comentário:

  1. Excelente texto e excelente informação na generalidade. Resta um pergunta sobre uma omissão que nos parece particularmente grave : Porque não tornar o voto obrigatório para todos os eleitores inscritos ??? Haveria , entre muitas outras , e logo à partida uma grande vantagem: iriam desparecer os "eleitores fantasmas". Recorda-se que há países em que o voto é obrigatório como na Grécia e como na Bélgica. Na Grécia, no entanto, há ainda uma significativa abstenção ilegal mas consentida. Mas na Bélgica NÃO HÀ ABSTENÇÃO, qualquer eleitor inscrito e que não vá votar está sujeito a pesada multa. Todos votam ! ( a menos que haja justificação de ordem clínica por exemplo e mesmo assim é aceite o voto por correspondência) Onde todos votam , aí sim, é que nos parece haver uma verdadeira participação democrática.

    https://en.wikipedia.org/wiki/Elections_in_Belgium

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