domingo, 26 de outubro de 2014

O que é uma esquerda. Pilares para a sua construção


Resumo

A lastimável ineficácia da contestação ao capitalismo em geral e aos efeitos das suas disfunções em particular resulta, em grande parte, do contágio dissolvente da focagem pela esquerda institucional em parcas ou más respostas à crise e se esquecer, em absoluto do sistema, como matriz de compreensão da realidade.

Procuraremos tipificar as caraterísticas essenciais do capitalismo de hoje e a natureza e o papel do Estado, para além das disputas entre a abordagem neoliberal dominante e a crítica keynesiana, sabendo-se que nenhuma dispensa a autoridade do Estado ou da classe política, como vanguarda condutora das pessoas, tomadas como inimputáveis peões dos jogos políticos.

Os Estados tendem a voltar a ter o seu conteúdo histórico de monopólio da coerção e da punção fiscal, depois de cerca de um século durante o qual exerceram funções sociais no seu âmbito de capitalista coletivo.

Sumário

1 – Introdução
2 – O capitalismo é um vírus
3 – O Estado
3.1 – No princípio estavam os deuses
3.2 – O neoliberalismo e o regresso dos deuses
3.3 – A ilegitimidade ontológica do Estado
a)      O aparelho coercivo
b)      A punção fiscal e o destino do saque



1 – Introdução

Em meados de 2010 elaborámos umas notas[1] sobre os elementos estruturantes do que é uma esquerda social e política, hoje. Passados estes anos, em Portugal, assistiu-se ao desenvolvimento de um frágil movimento social e ao seu estiolar, enredado entre ingenuidades e a atuação capciosa dos partidos da ala esquerda do sistema político. Essa experiência conduz a uma atualização e desenvolvimento do que nos parecem ser aspetos essenciais.

Há quem recuse dizer-se de esquerda para não ser conotado com os partidos institucionais que se sentam do lado esquerdo dos parlamentos e prefira dizer “não sou de esquerda nem de direita”, não se sabendo, portanto se estão ao centro, acima ou abaixo, mais adiante ou mais atrás. Há muito que ser de esquerda não tem o significado unívoco de apoiante da esquerda institucional, sabendo-se para mais o caráter variável e dúbio que aquela pode revestir; por outro lado, ter um pensamento de esquerda não exige rotulagem obrigatória sendo as suas palavras e actos muito mais reveladoras; e, defendendo nós o confronto e a pluralidade de opiniões, não entendemos que sejam atribuíveis direitos de exclusividade, embora no âmbito da livre expressão de ideias que defendemos, nos demarquemos das esquerdas que não passam de tranquilizadores da direita.

Consideramo-nos no variado leque de pessoas e grupos defensores de propostas alternativas, no sentido da construção da democracia e das solidariedades, anticapitalistas, contra a autoritarismo e as hierarquias; na nossa opinião é esse o cerne de uma esquerda a engrandecer e consolidar, em oposição aos grémios eleitorais das esquerdas institucionais.

Esta atualização face a 2010 contempla uma maior clarificação da re-hierarquização do espaço europeu, com o aumento das desigualdades entre o centro e as periferias[2], bem como a destruição social que acampou, sobretudo na periferia sul. Considera a estagnação económica que se seguiu ao resgate do capital financeiro pelos Estados com a transformação desses resgates em dívidas públicas e o desabar das ilusões de crescimento económico sustentado assente na especulação imobiliária e financeira. O salvamento do capital financeiro foi o factor essencial que conduziu à austeridade virtuosa, ao desemprego, aos cortes em direitos há muito estabelecidos nos âmbitos laboral, salarial, na saúde, na educação, na reforma. Trata-se de uma situação que se adivinha duradoura e que, mesmo havendo alguma recuperação não conduzirá a uma breve devolução da situação observada em 2007.

Do ponto de vista político vão-se consolidando e aprofundando a descrença e o repúdio face ao sistema político e ao modelo de representação típicos na Europa que, contudo não tem conduzido a situações agudas de contestação. A ostentação autoritária em presença evidencia-se nos tratados construídos em Bruxelas e Frankfurt com o assentimento cúmplice das classes políticas nacionais, que replicam a sua sobranceria para com a população à qual pedem sacrifícios, moderação e crença em reformas estruturais ou a uma retoma, ambas sempre adiadas, para gerar um clima de tranquila ilusão ou alheamento. A ausência de intervenção da esquerda alternativa e mesmo da institucional no seio do tecido social, tendo presente a propaganda avassaladora dos media na defesa do atual estado de coisas, tem promovido um crescimento da influência de ideias nacionalistas de diversos matizes, de derivas xenófobas e fascistas que, sendo desiguais entre os vários países europeus, gera em todos uma apatia susceptível da aceitação de práticas fascizantes nos partidos tradicionais nos governos ou mesmo a chegada ao poder de partidos neofascistas.

A negociação em curso do TTIP revela um grau de centralização e de homogeneização do capitalismo no chamado “Ocidente”, com caraterísticas aterradoras e que integram as regiões envolvidas num perímetro ainda mais alargado do que o da jurisdição militar da NATO. A sua aplicação vocaciona as atuais estruturas estatais nacionais apenas para a punção fiscal e a repressão necessária para manter o precedência das empresas sobre as pessoas. As ideias nacionalistas, tornam-se assim românticas, obsoletas e perigosamente convenientes para um capitalismo centralizado e globalizado, interessado em dividir para reinar e conter qualquer contestação apenas num âmbito localizado e nacional. Por outro lado, o conglomerado capturado no TTIP demonstra também um sinal de fraqueza pois visa o reforço de um bloco capaz de fazer face à ascensão da China e à articulação crescente entre os BRICS, sendo de notar o abandono em “gestão controlada” de regiões ricas em recursos como o Médio Oriente e a África.

A procura de abolição das categorias políticas de esquerda e direita corresponde de facto, à procura de uma aceitação da situação atual, a uma atitude compreensiva e legitimadora para com os beneficiários das estruturas económicas e políticas e, em paralelo, um apelo à resignação dos muitos que têm as suas vidas precarizadas, suspensas e de futuro nublado. É a aceitação do célebre TINA – There is no alternative. Essa abolição visa, hoje, a aproximação entre os governos e as oposições, no seio das classes políticas e a remessa das ideias de esquerda acima referidas, para a obscuridade, como utópicas, delirantes, inaplicáveis; e sê-lo-ão certamente se se mantiver a sua atual falta de visibilidade e influência junto da multidão, tomando esta na acepção da linha filosófica que liga Spinoza a Negri, relevando a sua extrema diversidade sociológica mas, unificável perante um capitalismo avassalador.

Se não há alternativa, então a política, enquanto fórmula de estudo de opções e de tomada de decisão sobre a vida e os destinos da polis deixa de ser necessária e alimenta os discursos do apoliticismo, da recondução da vida social a um primado da animalidade que, de facto, se reduz a assegurar a sobrevivência individual e como espécie, gerindo o acesso à comida e garantindo a reprodução. Tudo se poderá resolver, portanto, ao nível técnico, da gestão, dos especialistas, dispensando a participação das pessoas concretas nas decisões sobre a sua vida em sociedade.

Assim, a governação é equiparada à governança, à administração das empresas, com a conveniente preocupação pela rendabilidade, dependente da competitividade, que resulta da produtividade que, por sua vez, se conseguirá aumentar com custos mais baixos, maior carga horária de quem trabalha e eventualmente com a introdução de taxas moderadoras para disciplinar e contribuir para a sustentabilidade financeira dos serviços públicos. Estes, assim montados por gestores em funções políticas ou políticos transformados em gestores, tornam os serviços públicos equiparados a negócios privados e portanto facilmente privatizáveis.

Essa apoliticidade transmutada em critérios de gestão esconde que a rendabilidade privada se mantém dependente de subsídios ou parcerias que incluem rendas ou tenças como se dizia séculos atrás, pagas pelo Estado; quando não através de transformação pura e dura em preços a vigorar em lógica de mercado, que só serão pagos por quem tiver dinheiro e não disponíveis para todos, como direitos de cidadania. Outra questão que se esconde é que a aplicação dessa lógica de gestão não tem implicações na carga fiscal que se mantém elevada a qual, não tendo como contrapartida a disponibilidade de bens e serviços públicos e fora da lógica de mercado, se mostra claramente ilegítima.

Se a grande fatia dos serviços públicos – saúde, educação, ação social, vias de comunicação, fornecimento de água – é empurrada para a lógica de mercado, para que serve então a punção fiscal se a esta corresponde apenas uma parca contrapartida? Se assim é voltamos aos tempos dos estados pré-modernos, dos senhorios feudais, do império romano, quando a presença do poder estatal assegurava apenas a manutenção de legiões, de soldadescas muitas vezes constituídas por mercenários e de estradas para a sua circulação na defesa de fronteiras.

Hoje, a situação caminha a passos largos para essa situação. Os aparelhos de estado tendem a reduzir-se à manutenção da classe política para perpetuar a ilusão da democracia; da tropa como garante último da defesa do regime e alimentação de indústrias de armamento; de polícias especializadas na repressão física ou na acumulação de dados pessoais de todos nós, para utilização de governos e privados (empresas de informática ou desviados por super-espiões); para a manutenção de uma emperrada máquina judiciária; para o financiamento legalizado ou corrupto de negócios de empresários e banqueiros; e ainda, finalmente, para o funcionamento da máquina da cobrança de impostos, enviesadamente concebidos do ponto de vista técnico e social.

De certo modo, o TINA tem alguma realidade. Uma vez que não existe uma esquerda anticapitalista e autogestionária, quem se afirma de esquerda apresenta, em regra, pendores autoritários e hierárquicos, com propensões vanguardistas de controlo do povo e da movimentação social, de aceitação da democracia de mercado e do seu jogo, quando não taras nacionalistas de isolamento identitário e um saudosismo face às experiências do “socialismo” - ocultando o seu caráter de capitalismo de estado. Quem se clama dessa “esquerda” repetimos, não passa de um acessório da direita para proceder à gestão política e social da grande massa da população, a favor do capital.

Esses acessórios que apostam na credibilização da inutilidade institucional, com benefícios próprios bem fornecidos pelo Estado - gordos fundos e excepcionais direitos muito para além do que cabe à multidão - não passam de fantasmas, coloridas imagens holográficas que enformam uma falsificação da realidade e vocacionados para adiar ou subverter os anseios emancipatórios da plebe.

Nos tempos que correm, é tarefa essencial promover a constituição da consciência anticapitalista, da recusa da autoridade e do Estado, do fomento das práticas autogestionárias e de livre associação; do antimilitarismo, da recusa do nacionalismo, do consumismo, da rendabilidade; e a defesa da preservação do ambiente, dos direitos dos trabalhadores, das mulheres, dos homossexuais, etc. E, com toda essa diversidade, criar redes de grupos e comunidades autónomas na decisão, numa base de solidariedade e interajuda. Se for preciso definir uma esquerda, é esse o seu conteúdo.

2 – O capitalismo é um vírus

Capitalismo é um termo pouco utilizado à direita ou mesmo pela esquerda institucional. Essa ausência reflete uma aceitação implícita da receita thatcheriana do TINA – There is no alternative e daí que todas as alternativas devam surgir dentro do mesmo sistema económico e social, cujo nome nem mencionam, dada a sua má fama. De facto, o capitalismo é a alternativa única considerada pelo sistema financeiro, pelas transnacionais, pelos capitalistas nacionais de todas as dimensões (dos grandes aos micro), construtores das instâncias nacionais ou internacionais de regulação (Estados e órgãos plurinacionais como a UE, a OMC e outras), para melhor gerirem essa sua única opção de vida.

Para a perpetuação do capitalismo não seria economicamente conveniente o uso continuado ou permanente da força militar ou policial para conter a multidão dos trabalhadores, dos desempregados, de todos os despojados de direitos. Por isso, foi instituída a “democracia representativa” para dar à grande maioria do povo a falsa ideia de que elegem os seus representantes com regularidade e que é virtuosa a rotatividade entre entidades políticas que refletem as diferenças entre um copo meio cheio e outro meio vazio; para isso se estabelecem aparelhos partidários e poderosos grupos de media.

No folclore montado pela classe política está montada uma alternativa mediatizada, naturalmente contida no âmbito do TINA – There is no alternative. Discute-se sobre alternativas técnicas de aplicação prática do capitalismo neoliberal, triunfante desde o Chile de Pinochet que recebeu um nutrido reforço em territórios após o desmembramento da URSS, em 1991 e com a inclusão dos partidos da social-democracia, cuja máscara de esquerda se tornava desnecessária, com o apagamento do modelo de capitalismo de estado, denominado socialismo no seio do mandarinato. Assim, as classes políticas nacionais constituíram-se com partidos mais à direita e menos à direita separados, não pelo paradigma económico mas, por questões pontuais de gestão do capital; ou por questões de (ou falta de) valores ou preconceitos, (aborto, de género, de orientação sexual) com escassa relevância para os meios da finança ou do capital transnacional; por questões de apego à salvaguarda da pátria (ofendida pela presença de imigrantes ou pelas interferências inerentes ao capitalismo global) e que interessam aos escalões inferiores de capitalistas indígenas; ou ainda, sobre a bondade de medidas keynesianas, de apoio do Estado para limar algumas arestas ao modelo neoliberal dominante (reestruturação das dívidas públicas, nacionalização dos bancos, papel investidor do Estado, por exemplo). É nestas questões laterais ou internas ao processo de acumulação capitalista que se estribam e vociferam as esquerdas institucionais, sem jamais se decidirem a lutar por outro modelo socioeconómico.

O capitalismo é invasivo, insinua-se e impõe as suas regras no espaço físico do planeta, nas estruturas económicas, nas relações sociais, na cultura, nas práticas e ambições da multidão. Esse caráter invasivo resulta da sua constante necessidade de expansão, de acrescentar capital ao capital, de aumentar a produção e as vendas, de gerar lucros, de competir para desalojar a concorrência; e de permeio utiliza de modo desastroso os recursos não renováveis do planeta, distorce o equilíbrio da natureza e da paisagem, altera a composição química e genética dos nossos alimentos, envenena o ar, o solo e o mar. No que diz respeito à espécie humana o capitalismo precisa de explorar à exaustão as capacidades de criação de muitos, as veleidades consumidoras de todos, abandonando, num lento genocídio, os primeiros logo que considera esgotado o seu potencial produtivo e os segundos quando, empobrecidos, se tornam objeto de custos não compensáveis, terminada a sua função produtiva e sem elevados consumos.

O enorme volume do capital financeiro em busca de remuneração sem nada produzir promove a canibalização de empresas produtoras de bens e serviços, exigindo-lhes altos dividendos, reduções de custos, despedimentos, adiamento de investimentos, fusões e um endividamento que cresce enquanto os capitais próprios se reduzem.

Embora sejam reais os antagonismos entre capitalistas ligados à economia “real” e o sistema financeiro, esse não é o conflito que mais deve interessar os anticapitalistas e os autogestionários, não é daí que resultará o fim do mundo da mercadoria; embora constitua o centro da excitação e empenho da esquerda institucional, keynesiana, ancorada no guru Krugman ou no antepassado Keynes. Não há lugar a um mítico primado da economia “boa” produtora de bens e serviços contra um sistema financeiro mau; mesmo antes do predomínio do capital financeiro, as multinacionais e os capitalistas de todas as dimensões de economia “real” já protagonizavam exploração, repressão, pobreza, destruição ambiental, autoritarismo estatal, guerras…

Não há comandos internos ao capitalismo para a travagem na sua expansão por mais destruição que vá provocando, bastando para o efeito recordar a onda de conflitos intermináveis e de sofrimento que, na última década, se desenvolveu na faixa do planeta que se estende entre o Mali e o Paquistão; ou o desmantelamento económico e social na periferia sul da UE a partir de 2008; ou ainda a recente tragédia do ébola.

Essa pulsão para a expansão promove sensíveis alterações geopolíticas e desequilíbrios imensos. Sempre que numa região se observa uma acumulação de capital e a sua população não é susceptível de garantir a desejada rendabilidade aos capitalistas, as empresas deslocalizam-se ou vendem a outras regiões equipamentos inerentes a tecnologias avançadas. Em muitas destas começa a desenvolver-se mais rapidamente a acumulação de capital, substituindo-se às anteriores onde ficam os edifícios inúteis, os resíduos e as áreas poluídas, os cais abandonados, a paisagem alterada e uma população envelhecida e tornada obsoleta.

Esse processo verificou-se várias vezes, na história do capitalismo. Os EUA substituíram a Grã-Bretanha após a primeira guerra mundial, na absorção dos capitais e como principal país exportador. Os capitais americanos, diretamente ou através do Plano Marshall, reconstruíram a Alemanha e, em seu torno a UE, depois de 1945, para escoarem bens alimentares e de equipamento. E, mais recentemente, o grande crescimento da China, é baseado na cópia e no desenvolvimento de tecnologias ocidentais e acompanhado de baixos salários e do desprezo pelo ambiente ou pelos direitos da população; embora recentemente, a estagnação da economia global e pressões internas estejam a encaminhar a China para uma atenção maior na consumo da população, acompanhada por subidas salariais decretadas pelo poder.

A procura da maior rendabilidade dos capitais que propicie maior acumulação, exige uma constante construção e destruição no seio do aparelho produtivo, nas cadeias logísticas, na distribuição dos rendimentos, nas movimentações de pessoas, motivadas pela esperança ou pelo desespero, sempre no contexto de grandes desigualdades regionais. O mundo é uma mercadoria, incluindo todo o seu meio físico, vegetal, animal e humano, incluído neste todo o conhecimento acumulado através da História.

Assim sendo, há apenas a considerar uma ação externa, proveniente de grandes grupos humanos, para criar um outro modelo económico-social onde a satisfação de necessidades não passe pela produção de mercadorias enquanto entes abstratos lançados numa abstração maior chamada mercado, ao qual se atribui a propriedade mágica da autorregulação; pela abolição do trabalho como atividade compulsiva que vem ocupando mais e mais tempo e esforço aos seres humanos, forçados a desenvolver, por qualquer preço, um esforço cujo produto é objeto de posse por um elemento inútil chamado capitalista[3], ancorado no poder do Estado e das armas.

Como se disse atrás, o capitalismo não poderia exercer o seu domínio apenas baseado numa coerção sentida como tal pelas pessoas. Para que o sistema se perpetue é preciso uma aceitação comodista ou identificada como tolerável pela multidão; e aí joga a constante ação ideológica do consumismo e das virtudes da tal democracia representativa que, por se basear em escolhas contidas nas feiras eleitorais, preferimos designar por democracias de mercado.

Essa ação ideológica consiste numa adaptação total (direito ao aborto) ou enviesada (segurança social estatizada, herdeira distanciada e distorcida do mutualismo construído no século XIX) de anseios provenientes das lutas dos trabalhadores e da multidão. Essa ação é hoje facilitada pela esquerda institucional que, tendo-se afastado das reivindicações que colocam em causa o capitalismo - com difícil eco nos cenários parlamentares ou da concertação social - se cingem a uma análise desatualizada da realidade global do capitalismo e, portanto com o recuo que convém ao poder.

Uma alternativa, para se consolidar como tal (não como conjunto cristalizado de consignas) tem de partir dos que “estão em baixo” com reivindicações concretas e atualizadas, insusceptíveis de satisfação cabal pelo poder do capital e que alimente o processo de produção de dificuldades à acumulação capitalista e aos seus beneficiários - capitalistas, classe política - bem como os vários agentes repressivos pagos para a defesa do capital. Uma ideia alternativa pode ser muito justa e delineada com rigor teórico mas, se não penetrar na multidão, gradualmente, a partir de lutas sucessivas, será apenas um desejo ou um sonho. A luta social, mesmo circunscrita no espaço e a objetivos imediatos terá de promover a constituição de uma rede e encaminhar-se para a prática generalizada da desobediência adequada que perturbe o funcionamento da circulação e acumulação do capital, que obrigue à dispersão do aparelho repressivo, até conduzir ao ponto em que a multidão, evoluindo das reivindicações parciais passe a exigir a destruição do capitalismo, das suas instituições, nomeadamente da propriedade privada[4], o desmantelamento do aparelho repressivo e a construção de uma nova sociedade.

3 – O Estado

3.1 – No princípio estavam os deuses

Até hoje, a existência do Estado – e não somente o capitalista - está ligada à estratificação social, à garantia da propriedade privada, à consolidação de sociedades desiguais, à afirmação de um par inseparável de elementos ideológicos - obediência e autoridade – contemplando o monopólio da coerção e da repressão.

O seu início, há milhares de anos, está relacionado com os privilégios requeridos por alguns (e aceites pelos outros) considerados como capazes de estabelecer contatos com as forças ocultas e os antepassados, num contexto global de grande desconhecimento sobre a realidade circundante e de grande receio perante a fome, a doença, a morte, o frio, a seca, as incursões de outros grupos humanos. Assim, os sacerdotes, xamãs, feiticeiros e outros nomes dados a estes espertos aldrabões, cultivavam o medo e a ignorância entre os seus congéneres e, para se dedicarem às suas altas tarefas de comunicação com os espíritos, precisavam de se isentar dos árduos trabalhos que cabiam ao resto do clã ou tribo, exigindo sustento, mordomias e obediência.

Os deuses sempre foram qualificados como omnipotentes, caprichosos e cruéis, qualidades essas que os sacerdotes decidiram adoptar, em nome dos deuses, para imporem a sua autoridade e os seus privilégios, ao povo. Daí surgiu a segmentação entre, por um lado, servos e escravos, que trabalhavam arduamente, e por outro, os sacerdotes, incansavelmente ocupados em traduzir os caprichos em que os deuses, entediados por uma eternidade sem nada fazerem, envolviam os humanos.

As castas sacerdotais, para dirimir as suas teológicas dúvidas e disputas, criaram entre si um elemento (rei) para representar os deuses, assumindo mesmo a qualidade divina. Essa personalização terrena dos deuses tinha também a vantagem de facilitar a sua materialização por parte da população, em reforço de todas as construções abstratas que sensibilizavam pouco quem se dedicava para conseguir sustento para sobreviver.

Uma casta assim instituída, para se impor de modo constante à população, precisaria de guerreiros para castigar os recalcitrantes em contribuir para a nobre missão da comunicação com o Além; de facto a elevação dessa tarefa exigia privilégios, incompatíveis com o duro trabalho da terra, da irrigação, de tratar do gado, etc. Esse corpo de guerreiros foi constituído como um aparelho especializado na coação e na repressão. O Estado, como órgão político, nascia, definido através do que veio a ser a sua primeira função: a repressão que, ainda hoje, está no mais fundo da sua natureza, como um primordial marcador genético.

Como as populações entendiam mal que tivessem da municiar a casta (não tinham comentadores televisivos…), os guerreiros tratavam de saquear o povo ou lançar incursões sobre os povos das imediações, às ordens do referido aparelho primordial, para a manutenção da casta, sem que, entretanto, esses guerreiros não se aviassem em primeira instância. Como se denota, o único direito da população restringia-se ao de ser violentamente objeto do saque.

Os guerreiros, aproveitando-se do poder das armas para a recolha do saque, não resistiam amiudadas vezes à tentação de substituírem os seus ordenantes, para evitar a partilha procedendo assim à sua própria elevação como casta governante. As sucessões dinásticas, as lutas entre nobres, sacerdotes e cortesãos – a classe política desses tempos – faziam-se com o recurso às armas ou, mais docemente, em encontros de alcova. Inaugurava-se assim, o rotativismo dos grupos beneficiários do saque que hoje ainda subsiste, por meios menos sangrentos, através das farsas eleitorais.

Para evitar esta instabilidade política – algo a que os poderes atuais continuam a ser muito sensíveis – as castas dominantes mudaram de procedimento. Criaram uma burocracia para a recolha do saque sob a forma mais branda do imposto, cuja finalidade se cingia à manutenção da casta e ao pagamento à tropa, retirando a esta a tarefa do saque e, ao mesmo tempo oferecendo à população um duvidoso serviço de proteção face a invasores.

Para além da utilização da bestialidade militar, pouco diferenciada se aplicada contra a população em casos de insubmissão ou contra outros povos em actos de conquista, a legitimidade do poder assentava na ligação ao divino. Dos imperadores chineses aos reis mesopotâmicos, aos faraós do Egipto, a Alexandre Magno (para grande irritação das suas tropas, de cultura helénica) aos califas muçulmanos, aos reis medievais da Europa, aos sultões otomanos ou aos monarcas europeus do absolutismo, o saque terreno e a sacralização pelo divino sempre estiveram ligados. Quanto à sacralização do estado português feita pelo Papado já nos referimos anteriormente[5].

O dinheiro dos impostos continuava a alimentar reis, cortesãos, nobres e toda a gama de serventuários, bem como a existência de tropa, cada vez mais sofisticada em termos de armamento e meios de defesa – estradas romanas, Grande Muralha da China, castelos – e ainda a máquina fiscal, o aparelho ideológico (templos para todos os deuses) e, de modo mais esparso em obras úteis de irrigação, secagem de pântanos, arborizações, navios. A propósito de tributação fiscal, o poder em Portugal ainda hoje se mantém muito criativo, na tradição dos antepassados que, em 1387, criaram o imposto de sisa, o primeiro imposto nacional na Europa.

O capitalismo veio a desenvolver substancialmente os Estados criando aparelhos judiciais e policiais como produto da especialização na área repressiva. As necessidades de inventariação das pessoas tornou-se importante para a cobrança dos impostos e a deteção de jovens para a guerra, para o cumprimento do sagrado dever de defesa da pátria (nome inventado para designar os interesses dos capitalistas locais). Os cuidados de saúde, por seu turno, continuavam dependentes da caridade e a instrução manteve-se ausente da grande maioria, apenas presente nos costumes e na transmissão oral dos conhecimentos, entre as gerações, para além de algumas universidades onde dominavam os clérigos. Às dízimas e sisas vieram juntar-se os direitos alfandegários que os aparelhos de estado cobravam para manter as cortes e defender os capitalistas nacionais dos concorrentes estrangeiros. Como as frequentes guerras desestabilizavam os equilíbrios orçamentais, havia financeiros para financiar a constituição da dívida estatal e reduções no conteúdo de metais nobres na moeda para aumentar o volume de meios de pagamento. Como em tempos mais recuados, a existência do Estado poucos benefícios trazia para a esmagadora maioria da população.

O século XIX com o seu liberalismo, evidenciou um enorme desenvolvimento do volume e do âmbito geográfico da circulação das mercadorias e do dinheiro, da produção para o mercado, alimentados pela complexa atividade produtiva, resultante das técnicas que deram o nome às duas revoluções industriais. As necessidades daí resultantes empurraram as nações mais desenvolvidos para a massificação da utilização das escolas, com a instituição do ensino básico público, obrigatório e gratuito, o ensino técnico (na Alemanha) enquanto os hospitais surgiam para tratar militares feridos - como apêndices das guerras, frequentes e mais mortíferas - antes de se constituírem em sistemas públicos de saúde surgidos pela primeira vez em Inglaterra, somente em 1948, no âmbito da instituição do chamado modelo social europeu.

O século XIX é rico em manifestações contra o sistema capitalista ainda que, inicialmente, com atuações românticas de retorno ao passado pré-industrial, como reação desesperada às condições miseráveis de vida, às longas jornadas de trabalho e sem qualquer resguardo nos casos de doença ou morte, que não o amparo familiar. Essa situação sensibilizava gente das classes médias, cuja pressão fez o governo inglês acabar, em meados do século XIX, com o trabalho infantil para menores de … nove anos e restringir a 48h por semana, o trabalho dos que tivessem menos de 13 anos; na mesma época foi abolida a escravatura, na Europa e nos EUA. Com menos filantropia mas, mais calculismo, foram estabelecidos no último quartel daquele século, sistemas de reforma, de saúde pública, de seguros de desemprego, enquanto muitos trabalhadores se associavam para os mesmos fins – fora da dependência dos Estados - sob a forma de mutualismo, para a cobertura solidária de riscos, no âmbito de um projeto mais vasto de associativismo que desconectasse os trabalhadores da produção capitalista.

Esse calculismo estava na necessidade dos capitalistas terem trabalhadores saudáveis disponíveis e de combaterem a crescente organização e radicalização daqueles, para além da instituição do sufrágio universal (masculino) funcionar como elemento de envolvimento com o Estado. Por outro lado, a introdução do serviço militar obrigatório, funcionaria como elemento de fomento do sentimento patriótico, com a subsequente mobilização para o sacrifício no altar das disputas inter-imperialistas.

A preocupação com a saúde ou a instrução pública e o início de alguma segurança para depois da vida ativa, constituem as primeiras manifestações de alguma utilidade do Estado para a população e funcionaram como contrapartidas oferecidas pelas classes dominantes para o desarmamento político e das práticas contestatárias ou revolucionárias dos trabalhadores, como se observou com os partidos sociais-democratas em torno da I guerra mundial, indutores do nacionalismo e do apoio popular aos “seus” capitalistas e, com os partidos comunistas europeus, depois da II guerra mundial, quando se cingiram à defesa dos interesses estratégicos da URSS, a “pátria do socialismo”.

A Grande Depressão nos EUA mostrou os limites do liberalismo e da espiral financeira, com fortes quebras nos níveis da atividade económica, a falência de 25000 bancos e altíssimos índices de desemprego, que se repercutem também na Europa e nos países colonizados ou dependentes. A solução encontrada para salvar o capitalismo foi a intervenção massiva do Estado nos EUA, através do New Deal, tal como na Alemanha nazi, enquanto na URSS se consolidava um capitalismo de estado, com a fusão das funções burocráticas e políticas com as funções económicas numa única estrutura, o partido-estado.

A intervenção do Estado através do New Deal assumiu formas novas. As obras públicas em grande número e dimensão serviram de impulsionador da economia através do chamado efeito multiplicador e davam trabalho a milhões de pessoas desempregadas. Por outro lado, o Estado estabeleceu uma política social inovadora, com a fixação de um salário mínimo e seguros de doença e aposentação. O Estado assumia assim um papel determinante como investidor, como indutor de consumo público e privado e simultaneamente atraía os sindicatos, com a aceitação desta estratégia, para aceitarem também a ordem capitalista. No entanto, só a corrida aos armamentos, primeiro, com a venda à Inglaterra a partir de 1939 e depois, com a entrada dos próprios EUA na guerra, com a mobilização de milhões de soldados, só então, sublinhamos, os índices económicos melhoraram e o desemprego atingiu valores “aceitáveis”. O Estado foi determinante para que se superasse a crise causada pelos capitalistas garantindo-lhes a procura de bens e serviços, através de investimentos públicos, gastos militares e uma redistribuição do rendimento - destinada esta última a ser anulada pela inflação – elementos essenciais que vieram a ser teorizados por Keynes e seus seguidores.

Na Alemanha, a corrida aos armamentos e a construção de infraestruturas necessárias para a guerra, dirigida por um Estado totalitário, aumentou o emprego e reduziu o desemprego … com a ajuda do internamento ou assassínio de anarquistas, comunistas, judeus, homossexuais, para além da utilização de trabalho forçado, mais próximas da escravatura do que do funcionamento do “mercado” de trabalho. Esta política laboral embora com uma aplicação cruelmente original integraria também o que se veio a chamar de keynesianismo. Não esqueçamos que na mesma época as potências coloniais utilizavam largamente o trabalho forçado nas suas colónias, como instrumento de crescimento económico.

No final da II guerra mundial sobrou uma Europa destruída e a consolidação do poder dos EUA, que já havia substituído a Inglaterra como principal potência mundial a nível comercial e financeiro; e daí surgiu um fluxo enorme de capitais norte-americanos para a reconstrução e a reconstituição das estruturas do capital na Europa, ao mesmo tempo que se desenhava o fim dos impérios coloniais. Esse elemento financeiro, por impulso dos EUA, integrou-se em instâncias plurinacionais como a OCDE a CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a Comunidade Económica Europeia e o Euratom e gerou uma rápida recuperação aos níveis das infraestruturas, do emprego e dos rendimentos, com forte envolvimento das burocracias estatais e de empresas nacionalizadas. Por outro lado, o prestígio da URSS conseguido com o combate aos nazis tornava apelativo para muitos o seu modelo económico centrado num poder estatal omnipresente, estendido à Europa de Leste e, pouco depois à China.

A competição entre os dois blocos políticos rapidamente gerou na Europa alianças militares antagónicas, dirigidas pelas grandes potências tutelares. Para conter a atração dos trabalhadores pelo modelo social vizinho foi criado o modelo social europeu (apesar de ter várias formas, como a escandinava, a renana, a nipónica e não abranger os países ibéricos ou a Grécia), com férias pagas, segurança no emprego, altos salários, segurança social, com concertação social entre patrões e sindicatos, constituídos em trindade porque arbitrados pelo Estado. A defesa do modelo ficou a cargo de partidos, ora de cariz social-democrata ou socialista, ora populares ou democratas-cristãos, com ligeiras diferenças entre si mas, atentos à necessidade de manter o dito modelo para evitar avanços esquerdistas (Paris 1968, Itália anos 70, Portugal 1974/5) ou a atração do capitalismo de estado vigente no Leste, através dos partidos comunistas, até ao surgimento de alguns distanciamentos destes, como por exemplo do PC Italiano.

O final dos “gloriosos 30 anos” de crescimento ficaram esgotados no princípio da década de 70 e o dito modelo social europeu nas suas diversas interpretações locais mostrou-se muito caro para as necessidades de acumulação capitalista, para mais quando o encerramento do canal do Suez (1967-75) alterava completamente a logística do comércio marítimo e elevava os preços do petróleo. As teses neoliberais constituíram um verdadeiro modelo social, teorizado por Friedrich Hayek - que germinou particularmente no seu feudo em Chicago - e que patrocinava então (como hoje) a defesa da desregulamentação da atividade económica, o comércio livre, com a consideração do mercado como portador da virtude da autorregulação, confinando a atuação do Estado ao âmbito clássico do exercício da repressão, da cobrança de impostos e da garantia do livre funcionamento dos mercados, incluindo particularmente, a necessária e conveniente intervenção no chamado mercado do trabalho.

A primeira e trágica aplicação prática das teses neoliberais operou-se no Chile (1973) após o golpe fascista de Pinochet, posteriormente rodeado de economistas formados em Chicago, anunciando-se como arautos da distribuição regressiva do rendimento, a favor das multinacionais e dos capitalistas nativos; a comparação no gráfico seguinte com a média da América Latina recordará que Pinochet não sendo o único ditador da região, se mostrava bastante “eficiente”.
                                        Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Miracle_of_Chile

A aplicação do catecismo neoliberal – privatizações, desregulação e Estado mínimo – surgiu na Europa com Thatcher em 1979 e, nos EUA, com Reagan no ano seguinte; propagou-se como um vírus pelas classes políticas e, adoptado pelo FMI e pelo Banco Mundial, foi imposto como resolução dos problemas de endividamento, a partir de então, nos países pobres ou dependentes, em benefício do capital financeiro e facilitando a compra de recursos e empresas públicas pelas multinacionais. Foram determinantes as formas brutais como Thatcher e Reagan usaram o poder repressivo do Estado para lidar com as greves dos mineiros e dos controladores aéreos, respetivamente, como clara amostra do tratamento que os neoliberais dão ao “recurso” trabalho, para criarem valor nos balanços das empresas, dos bancos e nas contas particulares dos milionários.

Os desenvolvimentos tecnológicos no tratamento da informação e nas comunicações tiveram impactos enormes na economia e na sociabilidade, a nível global. O capital financeiro aproveitou para crescer de modo inaudito, dominando o planeta e arrastando na volúpia especulativa as multinacionais, o capital mafioso, os interesses imobiliários e os capitalistas em geral – e até a multidão - todos domesticados pelo acesso fácil ao crédito. Esses desenvolvimentos vieram indiretamente a minar o controlo das economias nacionais pelos capitalistas nativos, a reduzir a margem de intervenção dos respetivos aparelhos de estado e a tornar obsoleto o conceito de soberania nacional, conceptualizado no seguimento do impulso inicial do capitalismo.

Em 1991, o capitalismo, já então na dominante forma neoliberal teve um brinde; o desmantelamento da URSS e a falência do capitalismo de estado, incapaz de promover qualquer laivo de democracia (mesmo meramente formal como praticado nos países de modelo neoliberal), hábil para a construção de infraestruturas ou armamento mas, insusceptível de competir com os níveis de bem-estar e consumo observados nos países de capitalismo neoliberal. Gorbachov não foi a tempo de imitar Deng Xiaoping que, após a morte de Mao Tse-Tung havia promovido a coabitação de uma economia liberal de exportação baseada em baixos salários e fortes desigualdades regionais, sem perda do domínio da enorme e tentacular burocracia estatal alicerçada no PCC.

A desaparição do capitalismo de estado como modelo alternativo (aplicado ainda na sua forma mais pura na monarquia norte-coreana) teve efeitos de ordem política. Os tradicionais partidos “comunistas” ou “operários” ocidentais desfizeram-se ou sobrevivem como peças de museu; os partidos socialistas/sociais-democratas que haviam protagonizado o modelo social europeu adoptaram o neoliberalismo e aproximaram-se dos tradicionais partidos da direita, para competirem na ocupação do aparelho de estado; e nos países que abandonaram o capitalismo de estado, os burocratas reinantes foram protagonistas de uma conversão radical e rápida à nova religião neoliberal, para beneficiarem com os favores concedidos às multinacionais.

3.2 – O neoliberalismo e o regresso dos deuses

O modelo neoliberal tem vindo a exigir, portanto, um redimensionamento global dos aparelhos de Estado e a sua reconfiguração, com a privatização de serviços essenciais para a população (saúde, educação, abastecimento de água ou eletricidade, vias de comunicação, telecomunicações e também nas áreas sociais), com a contratação de empresas para o exercício de funções (serviços informáticos, consultadoria ou fornecimento de mão de obra em regime de precariedade) para além de contratos e adjudicações a empresas privadas, em condições que mais se assemelham à constituição de rendas perpétuas, tal como eram atribuídas em tempos pré-capitalistas a elementos do clero e da nobreza. O capitalismo colocou o mercado no pódio celeste, e substituiu os altares pelo écran televisivo, como formas de pastoreio das consciências.

O Estado capitalista neoliberal de hoje tende a centrar-se em dois tipos de funções essenciais:  as desempenhadas pelo aparelho coercivo e a punção fiscal, associada à aplicação do seu produto.

a)      O aparelho coercivo

O aparelho coercivo desempenha a mais antiga das funções do Estado, como se disse atrás; desenvolveu-se, diversificou-se enormemente e é composto pelo sistema judiciário, as polícias e as forças armadas. Teoricamente, o Estado detém o monopólio da coerção embora estejam abertas oportunidades para serviços prestados por privados, em regime de contratos de concessão ou fornecimento de serviços.

O sistema judiciário tem uma atuação mais independente e menos desacreditada nos países mais ricos ou, onde existe uma maior capacidade crítica da população e dos media; porém, nos países subalternos perdeu toda a independência inerente à divisão dos poderes definida nos compêndios, contribuindo - por ação ou omissão - para o branqueamento dos desmandos do poder e da corrupção[6] fornecendo fortes contributos para o descrédito da dita democracia representativa ou de mercado.

São os governos - acolitados por gabinetes jurídicos tão obscuros como milionários, onde paira grande quantidade de membros da classe política em posições de recuo ou em acumulação promíscua - que constroem o ordenamento jurídico e processual que convém aos interesses do capital; note-se, por exemplo, que os tribunais de pequena instância foram criados quando se tornou necessário dirimir conflitos que tinham as grandes operadoras de telecomunicações como partes.

Aquele ordenamento torna a aplicação da justiça enredada em normativos geradores de lentidão procedimental, em leis complexas, desconexas e eivadas de alçapões para facilitar os ricos, os clientes dos escritórios de advogados e os corruptos; não deixando de exibir, no entanto, arrogância e rigor com os pobres, pequenos delinquentes e causas menores. Lateralmente, existe uma justiça paralela, assente em tribunais arbitrais que funcionam para os diferendos económicos com juízes escolhidos pelas partes litigantes, à margem do sistema judiciário; uma justiça privada, de facto, para grandes empresas. Há ainda a possibilidade, também na área económica, de as partes contratantes escolherem a jurisdição aplicável em caso de conflito que poderá não ser a do país residente mas, a de uma área exterior, onde a legislação seja a conveniente para quem detenha mais poder no âmbito desse contrato.

Esta última situação será bastante agravada se o TTIP for adoptado pela UE. No seu projeto está prevista a possibilidade de qualquer empresa que se sinta lesada por limitações colocadas à sua atuação num dado país, poder recorrer a arbitragens exteriores, privadas, designadas “mecanismos de resolução de litígios” contra o Estado daquele país que repercutirá os custos na população; nesse âmbito, multiplicar-se-ão casos como atualmente o de fundos abutres contra a Argentina nas mãos de um tribunal norte-americano encimado por um juiz acérrimo defensor dos direitos do capital sobre tudo o mais e, com argumentos demenciais.

A promiscuidade entre o Tribunal Constitucional português (no qual a maioria dos juízes é expressamente nomeada pela classe política) e o poder executivo é evidente nas suas resoluções salomónicas, onde se fazem prodígios de equilíbrio que mantenham a instituição com alguma dignidade, contrariando parcialmente o governo mas, tendo particular atenção às conveniências da governação mesmo que o direito e a justiça sejam maltratados.

A polícia tem vindo a desenvolver uma vasta gama de corpos especializados para além dos pachorrentos polícias de giro, todos porém, ensinados a ter mão pesada e gatilho ligeiro para eventuais delinquentes, exaltados de pele escura ou nos chamados “bairros problemáticos”. É verdadeiramente escandaloso que um país de baixa criminalidade como Portugal, sobretudo da violenta, esteja no quarto lugar no indicador polícias/100000 habitantes (454.2), pouco atrás da Itália e da Turquia, embora mais separado do campeão, a Rússia, com 564.6 polícias[7] por igual número de habitantes. Gradualmente, a polícia de choque, tem beneficiado de grandes investimentos em formação e equipamento ao ponto de, em atuação, mais se assemelharem a figurantes dos filmes de Kurosawa.

A polícia dita secreta (SIS) revelou-se poder ser utilizada nas rivalidades entre grupos económicos nativos, porque há sempre quem saiba “privatizar” as informações armazenadas. Por outro lado, vão-se desenvolvendo as taras da videovigilância, das escutas telefónicas, da observação massiva do correio eletrónico, da participação nas redes sociais, da cópia “pirata” de conteúdos, por decisão da suserania dos EUA para, a partir dos episódios das Torres Gêmeas. Os aparelhos de estado avançam – e de modo coordenado entre si - numa cruzada de supervisão da vida de todos, mandando-se para as urtigas os direitos elementares à privacidade, de que as democracias de mercado tanto se arrogam defender.

Finalmente, as forças armadas, constituem um caro brinquedo na sua generalidade[8], como indutoras da obediência cega, da autoridade, do reacionarismo[9] mas, úteis para o apoio em ações da NATO, quando esta entende mobilizar um pelotão luso para lugares tão distanciados dos interesses dos portugueses como o Afeganistão, o Uganda ou o Mali. As forças armadas são também um bom foco para a prática de negócios escuros envolvendo a importação de equipamentos militares.

Na falta de ocupação e utilidade visível, as forças armadas apresentam-se, periodicamente, bem ataviados, em ridículos desfiles diante da fina flor da classe política, como na celebração do dia da “raça” deste ano[10].

b)      A punção fiscal e o destino do saque

O Estado é o beneficiário de uma relação única. As pessoas são coagidas a entregar-lhe parte substancial do seu rendimento sem qualquer explicação credível ou especificação que denote a sua futura utilização; nem as pessoas têm qualquer intervenção sobre o seu destino concreto. O autoritarismo estatal verifica-se na recolha do imposto e na sua aplicação prática; não há uma relação bilateral, de direitos e deveres, apenas a perpretação de um saque.

As pessoas são consideradas tecnicamente como “obrigados fiscais” designação que expressa essa profunda desigualdade entre as pessoas e o Estado, dito representante de “todos nós”. Por isso, quem precisar de uma escola nas imediações, ao pagar os seus impostos, provavelmente terá o seu contributo “investido” num tanque de guerra, num pagamento de consultadoria, num banco em dificuldades ou em juros de dívida; e não terá qualquer via para contestar um gasto considerado inútil, excessivo ou um investimento não efetuado, mesmo se inscrito no orçamento.

A classe política sabe-se com poder para usar o dinheiro dos impostos como quiser. Sabe que pode gastar mais do que o que lhe foi entregue, contrair empréstimos, proceder a contratos ruinosos ou conceder benefícios fiscais, atribuir rendas e privilégios (incluindo aos seus próprios membros), sem qualquer mandato para além das votações genéricas do orçamento, efetuadas em sessões parlamentares teatralizadas entre membros da classe política. O espetáculo transforma-se em farsa quando se sabe que o orçamento é previamente aprovado (sem recurso) pela Comissão Europeia, enquanto a dívida pública ultrapassar os 60% do PIB, situação que, de modo otimista se sabe irá ter uma vigência de dezenas de anos. Podem ainda referir-se as promessas feitas em campanha eleitoral que todos sabem (votantes e mandarins) ser uma encenação, cujo conteúdo todos irão esquecer ou, se necessário, revogado por algum estudo elaborado à medida ou outro subterfúgio, para justificar o não cumprimento do prometido.

O orçamento é efetuado sob a orientação do capital financeiro e dos grupos económicos com acesso ou controlo sobre os membros do governo, no sentido da obtenção de benefícios fiscais, da definição da carga fiscal ou contributiva sobre o trabalho, do volume destinado a apoios sociais, contratos, investimentos de “interesse público” - a financiar pela banca ou com adjudicação antecipadamente comprometida - e ainda concessões, privatizações ou aquisições de serviços e equipamentos. O interesse público até poderá estar contido em algumas das prescrições orçamentais concretas mas, no seu conjunto, o orçamento não é construído tendo como primeiro objetivo o interesse coletivo. Como popularizado pelo actual primeiro-ministro, a chegada ao governo visa o acesso ao “pote”, onde continuamente se derrama o dinheiro dos impostos.

A garantida continuidade do fluxo financeiro imanente à punção fiscal é também uma situação única. As pessoas nascem e morrem e as empresas podem falir. O Estado, por muitas dificuldades financeiras que tenha, não vai à falência; tem sempre como suporte, susceptível de saque, o património e os rendimentos da população.

Um contrato em que o Estado figura como devedor é uma maravilha para os credores. Primeiro, porque o domínio ou a influência do capital financeiro e dos grupos económicos ou nativos sobre a classe política garante condições muito favoráveis (com maior ou menor envolvimento de corrupção), como se observou recentemente em Portugal com os contratos swap e as parcerias público-privadas. Depois, porque a presença da classe política no exercício da punção fiscal garante que os contratos serão cumpridos, quer porque os credores nele incluem formas de evitar deslizes, como se disse atrás ( a) O aparelho coercivo) e ainda beneficiam da supervisão estratégica da UE, do BCE ou a mais operacional como a da extinta troika. E finalmente porque os mandarins, em regra, por obediência aos seus mandantes, tratam de dirigir o esforço financeiro para os trabalhadores e o população pobre, poupando no possível as empresas e os empresários, enquanto entes superiores, porque criadores de emprego e riqueza, como consta nos salmos repetidos pelos media.

Qualquer transformação política radical que contemple o não cumprimento por parte de um país, este, para se furtar ao ostracismo e sanções do capital global ou é um país de grande dimensão com relevância própria ou inclui a sua atuação num concerto de povos de vários países acossados, susceptível de promover perturbações graves nos mercados financeiros, tão agressivos e dinâmicos quanto frágeis.

3.3 – A ilegitimidade ontológica do Estado

A ilegitimidade do Estado pode ser observada sob vários pontos de vista.

Há uma ilegitimidade basilar que é a existência de um aparelho que se auto-reproduz, portador dos poderes de exercício de autoridade, de coação e de repressão sobre as pessoas, que toma, implicitamente, como seus súbditos. A apropriação daquele aparelho pela classe política, promove a sua fusão com o próprio Estado, tornando-se regra a existência de partidos-estado, mesmo quando formalmente surgem em eleições, como distintos. A relevância principal da classe política, do ponto de vista do sistema capitalista, resulta de ser o consignatário do capital financeiro, das multinacionais e do capital nativo, sem descurar os interesses pessoais ou grupais dos seus membros. Outra das suas mais relevantes funções é a da perpetuidade do sistema e da sua própria como classe, que designam de modo simpático por “estabilidade política”, assente no convencimento da multidão sobre a bondade da organização política que mascara a geral ausência de democracia.

Como já dissemos atrás, a classe política toma também decisões que satisfazem necessidades da população mas, não é esse o seu principal objetivo; este consiste na sua própria reprodução como corpo privilegiado pelo acesso e distribuição do conteúdo do “pote” o que convém também aos capitalistas que têm influência nos mandarins.

Uma das ações desse corpo privilegiado, especificamente, da classe política, consiste em organizar eleições - no caso das chamadas democracias representativas – para a escolha dos seus membros que irão decidir sobre as necessidades coletivas da população. Esses eleitos, jamais considerarão a hipótese de colocar a população a tomar decisões concretas; e, menos ainda a vincularem-se a elas, a tomarem-se como mandatários da população, que teria, naturalmente, o direito de revogar os seus mandatos, a qualquer momento, num contexto de não perpetuidade da representação numa classe política – o que se chama democracia direta.

A adopção da democracia direta significaria a vacuidade do Estado, como detentor da autoridade o que arrastaria a evidente percepção da inutilidade da classe política. Recorde-se a dificuldade de se organizarem referendos de iniciativa popular, sendo todos, os poucos efetuados em Portugal, da iniciativa do poder. Abordámos recentemente a construção legislativa com que a classe política portuguesa se defende da realização de referendos por si não desejados[11].

O Estado e os seus donos geram, em permanência uma cultura de obediência à sua figura, segmentações e desigualdades sociais e económicas entre a população, como um deus exigente e caprichoso, acima das pessoas, incluindo nessa cultura a afirmação e a promoção de uma menoridade natural que o povo terá. A desinformação introduzida por essa cultura é tanta sobre o que será a democracia que há quem diga: “o Estado, somos todos nós (os elementos do povo)”.

A democracia representativa, teorizada por Max Weber como a única forma admissível nas sociedades modernas, resume-se ao método de escolha dos mandarins, não à prática social da democracia, da decisão coletiva exercida pelos seus diretos interessados. Ao assumir essa posição elitista, Weber não só legitima a existência de um ente, o Estado, exterior e acima da população, como considera aquela, marcada pela ignorância, pela pusilanimidade, pela irresponsabilidade de resolver os seus próprios problemas. E legitima a existência de um escol, uma classe política para, na acepção mais lisonjeira, gerir e decidir paternalmente a favor da ignara plebe; o que equivale, para o leninismo e seus derivados, à vanguarda operária que, ungida pelos deuses, haverá de conduzir o resto do povo à glória, apropriando-se, de permeio de privilégios e rendimentos a que os não-ungidos não têm o direito.

A aplicação das leis emanadas do Estado defende menos os interesses das pessoas comuns, acometidas com sobranceria, com coimas, custas e juros enquanto “obrigados fiscais” do que empresas e capitalistas, beneficiários da permissividade que permite a evasão e o subterfúgio de anulações ou prescrições de dívida ao Estado ou à Segurança Social[12]. Por outro lado, as polícias podem reprimir atitudes criminosas mas, quantos deles resultam das disfunções produzidas pelo capitalismo, pelas desigualdades, pelo desemprego, pelos anátemas sociais, pela insegurança e pela miséria? Porque não serão justiçados políticos responsáveis por actos lesivos para milhões de pessoas e é preso um simples carteirista apanhado no Metro? Ou um chamado empresário que despede trabalhadores, no seguimento agredidos com o anátema e a humilhação, por parte da classe política que lhes “concede” um subsídio?

Em Portugal, a carga fiscal direta sobre a população não possidente (IVA e IRS, na sua grande parte) ou indireta, porque repercutida nos preços finais pelas empresas (impostos sobre os produtos petrolíferos, sobre veículos, entre outros) é de longe superior à sua parte no rendimento nacional (44.8% em 2013); o que revela o caráter regressivo do sistema fiscal e que o Estado é um instrumento claro de recriação sistemática de desigualdades e injustiças. Como isso não é um elemento ocasional mas, uma caraterística que lhe é imanente, o Estado situa-se em contínua oposição e agressão à multidão, reduzindo-lhe a qualidade de vida que poderia gozar como resultado do esforço dos trabalhadores, coartando-lhe direitos, exigindo sacrifícios, no sentido de suprir os desequilíbrios financeiros que a classe política e o capital geraram para alimentar o processo de acumulação capitalista, em crise. Nada disto se prende com a atividade de um gang específico na condução do aparelho estatal; jamais qualquer oposição de direita ou da esquerda institucional fará algo que seja substancialmente diferente, uma vez que os partidos do sistema capitalista e de democracia de mercado estão formatados para viver dentro do sistema e do sistema. Em suma, a gestão financeira corrente do Estado é portadora de uma ilegitimidade gritante, porque a sua existência não visa o bem-estar da população; em Portugal ou qualquer outro país.

A introdução entre as responsabilidades do Estado, no que concerne a serviços de saúde e educação (entre outros) destinados a toda a população, representou a colocação no Estado de grandes responsabilidades na geração de bem-estar das populações. E daí, alguma legitimidade por um lapso de tempo que terá durado cerca de um século, desde a tomada de medidas para mitigar o sofrimento e elevar a esperança de vida dos trabalhadores industriais, em meados do século XIX e a década de 70 do século passado, com o capitalismo neoliberal iniciado com a experiência fascista no Chile e com Thatcher e Reagan.

Porém, o domínio da praga neoliberal na gestão do capital alterou as coisas, colocando nas empresas o exclusivo das responsabilidades na produção de todos os bens ou serviços, em concorrência, esperando-se que o deus mercado garanta a qualidade conveniente por um menor custo. E nessa lógica, a produção de batata frita terá a mesma universalidade e dignidade social de um serviço médico ou de uma escola, medindo-se todos pelos critérios da produtividade, da rendabilidade, da eficiente combinação de recursos que é atribuída, por axioma, ao mercado. Neste contexto, a criatividade neoliberal vai-se expandido para as áreas infraestruturais tão sociais como os transportes, no âmbito dos quais o ditoso mercado necessita do encaminhamento de fundos públicos para as empresas concessionadas, sob a forma de indemnizações compensatórias, em acumulação ou não com aumentos de preços; mesmo que isso incentive à utilização de transporte próprio, irracional em termos ambientais e estritamente económicos de custo social. O mesmo sucede no caso da captação e distribuição da água cujo principal efeito é, em regra, um forte aumento dos preços com o corte do abastecimento em caso de dificuldades económicas das pessoas. O equivalente sucede na saúde ou na educação, áreas em que a introdução das empresas no circuito é imposta à esmagadora maioria da população, tendo como base um menor financiamento público direto, compensado, por transferências para as empresas, de custos com a utilização de serviços privados, apelativos dado o desinvestimento público. Fala-se do modelo da “livre escolha” que permite a viabilização de negócios privados com dinheiro público ou o onerar da população com os custos do recurso a escolas, clínicas privadas ou seguros de saúde, estes últimos, peritos na arte de empurrar para o serviço estatal, patologias de tratamento prolongado ou oneroso. O modelo das parcerias público-privadas é mais uma criação neoliberal de favorecimento de grupos económicos poderosos e dos bancos cujos contratos com o Estado permitem-lhes beneficiar de vultuosas rendas.

Seria lógico que a população, ao suportar diretamente junto de empresas privadas, os custos de grande parte dos serviços antes pagos através da tributação fiscal, visse a punção fiscal reduzir-se. Mas não é isso que acontece, nomeadamente porque o endividamento dos Estados é grande e perpétuo, permitindo verdadeiras rendas ao capital financeiro, para além das tradicionais benesses aos capitalistas autóctones, sempre a clamar por ajudas que mantenham a sua competitividade.

O capital financeiro, como credor, zela pela segurança dos reembolsos (a longo prazo garantida dada a perpetuidade dos Estados, com a sua multidão de “obrigados fiscais” como forçado amparo); e sobretudo pelo regular municiamento dos juros que se vão vencendo. Como credor trata de supervisionar as contas do devedor utilizando instituições supranacionais (Comissão Europeia, BCE, FMI) para garantir esse pagamento, orientando em seu proveito, a aplicação do dinheiro dos impostos.

O instrumento essencial para esse processo de desnatação é o saldo primário, que espelha a diferença entre receitas e gastos públicos, de funcionamento ou investimento, excluídos os encargos com a dívida. Essa diferença, que se pretende positiva (excesso de receita) será afecta ao pagamento de juros de dívida; se não for suficiente para tal, o capital financeiro e as suas referidas instituições delegadas tratam de estudar o instrumento mais adequado para aumentar aquele saldo, impondo as suas escolhas ao governo - aumentar impostos, privatizar empresas ou reduzir gastos, com cortes salariais ou em pensões, despedimentos e reduções de encargos com a saúde ou a educação, manutenção de vias públicas, etc.

O saldo primário é um indicador essencial de domínio do capital financeiro e é um barómetro da subordinação dos países com todos os inconvenientes para a população, empobrecida, reduzida nos seus direitos, com dificuldades de encontrar trabalho e mesmo de se reproduzir, caindo na degradação social, do espaço público e do ambiente. A mesma população sofre, em acumulação, a pressão ascendente da punção fiscal e a redução dos serviços que aquela deveria pagar ou a sua passagem para meros serviços mercantis. Sendo assim, o Estado tende a reduzir substancialmente a suas funções de utilidade social e perde a sua legitimidade enquanto proclamado zelador da satisfação das necessidades coletivas.

E daí a defesa (e a saudade) de muitos, pelos tempos de vigência do modelo social europeu, mesmo na versão limitada que foi ensaiada em Portugal. O tempo não volta atrás nem a História se repete; falta à multidão a criatividade e a mobilização para construir uma fórmula de organização social que não contemple uma instituição denominada Estado, em constante depenação pela classe política, nem a presença de capitalistas em qualquer fase do processo de satisfação de necessidades.

O capitalismo pode viver com a acumulação protagonizada pelo Estado, dirigido por uma classe de burocratas, com um papel secundário para as empresas privadas. Porém, mesmo no capitalismo mais concentrado, globalizado e centralizado como o de hoje, a acumulação não pode dispensar a prestimável contribuição do Estado, mesmo reduzido à sua função coerciva e de punção fiscal que legitima, através da autoridade, a redistribuição regressiva do rendimento e da riqueza da população a favor dos capitalistas. Por outro lado, não pode existir uma sociedade só com capitalistas e mandarins, com robots e sem trabalhadores mas, pode certamente ser construída uma sociedade com pessoas utilizando todos os seus recursos tecnológicos e de conhecimento para reduzir o tempo e o esforço produtivo; sem que se sinta a falta de capitalistas e de políticos.

Este e outros textos em:    






[3]   http://grazia-tanta.blogspot.pt/2011/12/afinal-qual-funcao-social-do.html
[4] Em Aragão, nos anos 30 do século passado, nas localidades onde se estabelecia o comunismo libertário, a primeira ação era a queima dos registos de propriedade (cfr Repensar la Anarquia, Carlos Taibo)
[5]   http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/02/soberania-soberania-nacional-e.html
[6]  http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/09/porque-corrupcao-porque-em-portugal.html

Sem comentários:

Enviar um comentário