Resumo
A
lastimável ineficácia da contestação ao capitalismo em geral e aos efeitos das
suas disfunções em particular resulta, em grande parte, do contágio dissolvente
da focagem pela esquerda institucional em parcas ou más respostas à crise e se
esquecer, em absoluto do sistema, como matriz de compreensão da realidade.
Procuraremos
tipificar as caraterísticas essenciais do capitalismo de hoje e a natureza e o
papel do Estado, para além das disputas entre a abordagem neoliberal dominante
e a crítica keynesiana, sabendo-se que nenhuma dispensa a autoridade do Estado
ou da classe política, como vanguarda condutora das pessoas, tomadas como inimputáveis
peões dos jogos políticos.
Os
Estados tendem a voltar a ter o seu conteúdo histórico de monopólio da coerção
e da punção fiscal, depois de cerca de um século durante o qual exerceram
funções sociais no seu âmbito de capitalista coletivo.
Sumário
1
– Introdução
2
– O capitalismo é um vírus
3 – O Estado
3.1 – No princípio estavam os deuses
3.2 – O neoliberalismo e o regresso dos
deuses
3.3 – A ilegitimidade
ontológica do Estado
a)
O aparelho coercivo
b)
A punção fiscal e o destino do saque
1
– Introdução
Em
meados de 2010 elaborámos umas notas[1] sobre os elementos
estruturantes do que é uma esquerda social e política, hoje. Passados estes
anos, em Portugal, assistiu-se ao desenvolvimento de um frágil movimento social
e ao seu estiolar, enredado entre ingenuidades e a atuação capciosa dos
partidos da ala esquerda do sistema político. Essa experiência conduz a uma atualização
e desenvolvimento do que nos parecem ser aspetos essenciais.
Há
quem recuse dizer-se de esquerda para não ser conotado com os partidos
institucionais que se sentam do lado esquerdo dos parlamentos e prefira dizer
“não sou de esquerda nem de direita”, não se sabendo, portanto se estão ao
centro, acima ou abaixo, mais adiante ou mais atrás. Há muito que ser de
esquerda não tem o significado unívoco de apoiante da esquerda institucional,
sabendo-se para mais o caráter variável e dúbio que aquela pode revestir; por
outro lado, ter um pensamento de esquerda não exige rotulagem obrigatória sendo
as suas palavras e actos muito mais reveladoras; e, defendendo nós o confronto
e a pluralidade de opiniões, não entendemos que sejam atribuíveis direitos de
exclusividade, embora no âmbito da livre expressão de ideias que defendemos,
nos demarquemos das esquerdas que não passam de tranquilizadores da direita.
Consideramo-nos
no variado leque de pessoas e grupos defensores de propostas alternativas, no
sentido da construção da democracia e das solidariedades, anticapitalistas,
contra a autoritarismo e as hierarquias; na nossa opinião é esse o cerne de uma
esquerda a engrandecer e consolidar, em oposição aos grémios eleitorais das
esquerdas institucionais.
Esta
atualização face a 2010 contempla uma maior clarificação da re-hierarquização
do espaço europeu, com o aumento das desigualdades entre o centro e as
periferias[2], bem como a destruição
social que acampou, sobretudo na periferia sul. Considera a estagnação
económica que se seguiu ao resgate do capital financeiro pelos Estados com a
transformação desses resgates em dívidas públicas e o desabar das ilusões de
crescimento económico sustentado assente na especulação imobiliária e
financeira. O salvamento do capital financeiro foi o factor essencial que
conduziu à austeridade virtuosa, ao desemprego, aos cortes em direitos há muito
estabelecidos nos âmbitos laboral, salarial, na saúde, na educação, na reforma.
Trata-se de uma situação que se adivinha duradoura e que, mesmo havendo alguma
recuperação não conduzirá a uma breve devolução da situação observada em 2007.
Do
ponto de vista político vão-se consolidando e aprofundando a descrença e o
repúdio face ao sistema político e ao modelo de representação típicos na Europa
que, contudo não tem conduzido a situações agudas de contestação. A ostentação
autoritária em presença evidencia-se nos tratados construídos em Bruxelas e
Frankfurt com o assentimento cúmplice das classes políticas nacionais, que
replicam a sua sobranceria para com a população à qual pedem sacrifícios,
moderação e crença em reformas estruturais ou a uma retoma, ambas sempre
adiadas, para gerar um clima de tranquila ilusão ou alheamento. A ausência de
intervenção da esquerda alternativa e mesmo da institucional no seio do tecido
social, tendo presente a propaganda avassaladora dos media na defesa do atual
estado de coisas, tem promovido um crescimento da influência de ideias
nacionalistas de diversos matizes, de derivas xenófobas e fascistas que, sendo
desiguais entre os vários países europeus, gera em todos uma apatia susceptível
da aceitação de práticas fascizantes nos partidos tradicionais nos governos ou
mesmo a chegada ao poder de partidos neofascistas.
A
negociação em curso do TTIP revela um grau de centralização e de homogeneização
do capitalismo no chamado “Ocidente”, com caraterísticas aterradoras e que
integram as regiões envolvidas num perímetro ainda mais alargado do que o da
jurisdição militar da NATO. A sua aplicação vocaciona as atuais estruturas
estatais nacionais apenas para a punção fiscal e a repressão necessária para
manter o precedência das empresas sobre as pessoas. As ideias nacionalistas,
tornam-se assim românticas, obsoletas e perigosamente convenientes para um
capitalismo centralizado e globalizado, interessado em dividir para reinar e
conter qualquer contestação apenas num âmbito localizado e nacional. Por outro
lado, o conglomerado capturado no TTIP demonstra também um sinal de fraqueza
pois visa o reforço de um bloco capaz de fazer face à ascensão da China e à
articulação crescente entre os BRICS, sendo de notar o abandono em “gestão
controlada” de regiões ricas em recursos como o Médio Oriente e a África.
A
procura de abolição das categorias políticas de esquerda e direita corresponde
de facto, à procura de uma aceitação da situação atual, a uma atitude
compreensiva e legitimadora para com os beneficiários das estruturas económicas
e políticas e, em paralelo, um apelo à resignação dos muitos que têm as suas
vidas precarizadas, suspensas e de futuro nublado. É a aceitação do célebre TINA
– There is no alternative. Essa
abolição visa, hoje, a aproximação entre os governos e as oposições, no seio
das classes políticas e a remessa das ideias de esquerda acima referidas, para
a obscuridade, como utópicas, delirantes, inaplicáveis; e sê-lo-ão certamente
se se mantiver a sua atual falta de visibilidade e influência junto da
multidão, tomando esta na acepção da linha filosófica que liga Spinoza a Negri,
relevando a sua extrema diversidade sociológica mas, unificável perante um
capitalismo avassalador.
Se
não há alternativa, então a política, enquanto fórmula de estudo de opções e de
tomada de decisão sobre a vida e os destinos da polis deixa de ser necessária e alimenta os discursos do
apoliticismo, da recondução da vida social a um primado da animalidade que, de
facto, se reduz a assegurar a sobrevivência individual e como espécie, gerindo
o acesso à comida e garantindo a reprodução. Tudo se poderá resolver, portanto,
ao nível técnico, da gestão, dos especialistas, dispensando a participação das
pessoas concretas nas decisões sobre a sua vida em sociedade.
Assim,
a governação é equiparada à governança, à administração das empresas, com a
conveniente preocupação pela rendabilidade, dependente da competitividade, que
resulta da produtividade que, por sua vez, se conseguirá aumentar com custos
mais baixos, maior carga horária de quem trabalha e eventualmente com a
introdução de taxas moderadoras para disciplinar e contribuir para a sustentabilidade
financeira dos serviços públicos. Estes, assim montados por gestores em funções
políticas ou políticos transformados em gestores, tornam os serviços públicos
equiparados a negócios privados e portanto facilmente privatizáveis.
Essa
apoliticidade transmutada em critérios de gestão esconde que a rendabilidade
privada se mantém dependente de subsídios ou parcerias que incluem rendas ou
tenças como se dizia séculos atrás, pagas pelo Estado; quando não através de
transformação pura e dura em preços a vigorar em lógica de mercado, que só
serão pagos por quem tiver dinheiro e não disponíveis para todos, como direitos
de cidadania. Outra questão que se esconde é que a aplicação dessa lógica de
gestão não tem implicações na carga fiscal que se mantém elevada a qual, não
tendo como contrapartida a disponibilidade de bens e serviços públicos e fora
da lógica de mercado, se mostra claramente ilegítima.
Se
a grande fatia dos serviços públicos – saúde, educação, ação social, vias de
comunicação, fornecimento de água – é empurrada para a lógica de mercado, para
que serve então a punção fiscal se a esta corresponde apenas uma parca
contrapartida? Se assim é voltamos aos tempos dos estados pré-modernos, dos
senhorios feudais, do império romano, quando a presença do poder estatal
assegurava apenas a manutenção de legiões, de soldadescas muitas vezes
constituídas por mercenários e de estradas para a sua circulação na defesa de
fronteiras.
Hoje,
a situação caminha a passos largos para essa situação. Os aparelhos de estado
tendem a reduzir-se à manutenção da classe política para perpetuar a ilusão da
democracia; da tropa como garante último da defesa do regime e alimentação de
indústrias de armamento; de polícias especializadas na repressão física ou na
acumulação de dados pessoais de todos nós, para utilização de governos e
privados (empresas de informática ou desviados por super-espiões); para a
manutenção de uma emperrada máquina judiciária; para o financiamento legalizado
ou corrupto de negócios de empresários e banqueiros; e ainda, finalmente, para
o funcionamento da máquina da cobrança de impostos, enviesadamente concebidos
do ponto de vista técnico e social.
De
certo modo, o TINA tem alguma realidade. Uma vez que não existe uma esquerda
anticapitalista e autogestionária, quem se afirma de esquerda apresenta, em
regra, pendores autoritários e hierárquicos, com propensões vanguardistas de
controlo do povo e da movimentação social, de aceitação da democracia de
mercado e do seu jogo, quando não taras nacionalistas de isolamento identitário
e um saudosismo face às experiências do “socialismo” - ocultando o seu caráter
de capitalismo de estado. Quem se clama dessa “esquerda” repetimos, não passa
de um acessório da direita para proceder à gestão política e social da grande
massa da população, a favor do capital.
Esses
acessórios que apostam na credibilização da inutilidade institucional, com benefícios
próprios bem fornecidos pelo Estado - gordos fundos e excepcionais direitos
muito para além do que cabe à multidão - não passam de fantasmas, coloridas
imagens holográficas que enformam uma falsificação da realidade e vocacionados
para adiar ou subverter os anseios emancipatórios da plebe.
Nos
tempos que correm, é tarefa essencial promover a constituição da consciência
anticapitalista, da recusa da autoridade e do Estado, do fomento das práticas
autogestionárias e de livre associação; do antimilitarismo, da recusa do
nacionalismo, do consumismo, da rendabilidade; e a defesa da preservação do
ambiente, dos direitos dos trabalhadores, das mulheres, dos homossexuais, etc.
E, com toda essa diversidade, criar redes de grupos e comunidades autónomas na
decisão, numa base de solidariedade e interajuda. Se for preciso definir uma
esquerda, é esse o seu conteúdo.
2 – O capitalismo
é um vírus
Capitalismo
é um termo pouco utilizado à direita ou mesmo pela esquerda institucional. Essa
ausência reflete uma aceitação implícita da receita thatcheriana do TINA – There is no alternative e daí que todas
as alternativas devam surgir dentro do mesmo sistema económico e social, cujo
nome nem mencionam, dada a sua má fama. De facto, o capitalismo é a alternativa
única considerada pelo sistema financeiro, pelas transnacionais, pelos
capitalistas nacionais de todas as dimensões (dos grandes aos micro),
construtores das instâncias nacionais ou internacionais de regulação (Estados e
órgãos plurinacionais como a UE, a OMC e outras), para melhor gerirem essa sua
única opção de vida.
Para
a perpetuação do capitalismo não seria economicamente conveniente o uso
continuado ou permanente da força militar ou policial para conter a multidão
dos trabalhadores, dos desempregados, de todos os despojados de direitos. Por
isso, foi instituída a “democracia representativa” para dar à grande maioria do
povo a falsa ideia de que elegem os seus representantes com regularidade e que
é virtuosa a rotatividade entre entidades políticas que refletem as diferenças
entre um copo meio cheio e outro meio vazio; para isso se estabelecem aparelhos
partidários e poderosos grupos de media.
No
folclore montado pela classe política está montada uma alternativa mediatizada,
naturalmente contida no âmbito do TINA – There
is no alternative. Discute-se sobre alternativas técnicas de aplicação
prática do capitalismo neoliberal, triunfante desde o Chile de Pinochet que
recebeu um nutrido reforço em territórios após o desmembramento da URSS, em
1991 e com a inclusão dos partidos da social-democracia, cuja máscara de
esquerda se tornava desnecessária, com o apagamento do modelo de capitalismo de
estado, denominado socialismo no seio do mandarinato. Assim, as classes políticas
nacionais constituíram-se com partidos mais à direita e menos à direita
separados, não pelo paradigma económico mas, por questões pontuais de gestão do
capital; ou por questões de (ou falta de) valores ou preconceitos, (aborto, de
género, de orientação sexual) com escassa relevância para os meios da finança
ou do capital transnacional; por questões de apego à salvaguarda da pátria
(ofendida pela presença de imigrantes ou pelas interferências inerentes ao
capitalismo global) e que interessam aos escalões inferiores de capitalistas
indígenas; ou ainda, sobre a bondade de medidas keynesianas, de apoio do Estado
para limar algumas arestas ao modelo neoliberal dominante (reestruturação das
dívidas públicas, nacionalização dos bancos, papel investidor do Estado, por
exemplo). É nestas questões laterais ou internas ao processo de acumulação
capitalista que se estribam e vociferam as esquerdas institucionais, sem jamais
se decidirem a lutar por outro modelo socioeconómico.
O
capitalismo é invasivo, insinua-se e impõe as suas regras no espaço físico do
planeta, nas estruturas económicas, nas relações sociais, na cultura, nas
práticas e ambições da multidão. Esse caráter invasivo resulta da sua constante
necessidade de expansão, de acrescentar capital ao capital, de aumentar a
produção e as vendas, de gerar lucros, de competir para desalojar a
concorrência; e de permeio utiliza de modo desastroso os recursos não
renováveis do planeta, distorce o equilíbrio da natureza e da paisagem, altera
a composição química e genética dos nossos alimentos, envenena o ar, o solo e o
mar. No que diz respeito à espécie humana o capitalismo precisa de explorar à
exaustão as capacidades de criação de muitos, as veleidades consumidoras de
todos, abandonando, num lento genocídio, os primeiros logo que considera
esgotado o seu potencial produtivo e os segundos quando, empobrecidos, se
tornam objeto de custos não compensáveis, terminada a sua função produtiva e
sem elevados consumos.
O
enorme volume do capital financeiro em busca de remuneração sem nada produzir
promove a canibalização de empresas produtoras de bens e serviços,
exigindo-lhes altos dividendos, reduções de custos, despedimentos, adiamento de
investimentos, fusões e um endividamento que cresce enquanto os capitais próprios
se reduzem.
Embora
sejam reais os antagonismos entre capitalistas ligados à economia “real” e o
sistema financeiro, esse não é o conflito que mais deve interessar os anticapitalistas
e os autogestionários, não é daí que resultará o fim do mundo da mercadoria;
embora constitua o centro da excitação e empenho da esquerda institucional,
keynesiana, ancorada no guru Krugman ou no antepassado Keynes. Não há lugar a
um mítico primado da economia “boa” produtora de bens e serviços contra um
sistema financeiro mau; mesmo antes do predomínio do capital financeiro, as
multinacionais e os capitalistas de todas as dimensões de economia “real” já
protagonizavam exploração, repressão, pobreza, destruição ambiental,
autoritarismo estatal, guerras…
Não
há comandos internos ao capitalismo para a travagem na sua expansão por mais
destruição que vá provocando, bastando para o efeito recordar a onda de
conflitos intermináveis e de sofrimento que, na última década, se desenvolveu
na faixa do planeta que se estende entre o Mali e o Paquistão; ou o
desmantelamento económico e social na periferia sul da UE a partir de 2008; ou
ainda a recente tragédia do ébola.
Essa
pulsão para a expansão promove sensíveis alterações geopolíticas e
desequilíbrios imensos. Sempre que numa região se observa uma acumulação de
capital e a sua população não é susceptível de garantir a desejada
rendabilidade aos capitalistas, as empresas deslocalizam-se ou vendem a outras
regiões equipamentos inerentes a tecnologias avançadas. Em muitas destas começa
a desenvolver-se mais rapidamente a acumulação de capital, substituindo-se às
anteriores onde ficam os edifícios inúteis, os resíduos e as áreas poluídas, os
cais abandonados, a paisagem alterada e uma população envelhecida e tornada
obsoleta.
Esse
processo verificou-se várias vezes, na história do capitalismo. Os EUA
substituíram a Grã-Bretanha após a primeira guerra mundial, na absorção dos
capitais e como principal país exportador. Os capitais americanos, diretamente
ou através do Plano Marshall, reconstruíram a Alemanha e, em seu torno a UE,
depois de 1945, para escoarem bens alimentares e de equipamento. E, mais
recentemente, o grande crescimento da China, é baseado na cópia e no
desenvolvimento de tecnologias ocidentais e acompanhado de baixos salários e do
desprezo pelo ambiente ou pelos direitos da população; embora recentemente, a
estagnação da economia global e pressões internas estejam a encaminhar a China
para uma atenção maior na consumo da população, acompanhada por subidas
salariais decretadas pelo poder.
A
procura da maior rendabilidade dos capitais que propicie maior acumulação,
exige uma constante construção e destruição no seio do aparelho produtivo, nas
cadeias logísticas, na distribuição dos rendimentos, nas movimentações de
pessoas, motivadas pela esperança ou pelo desespero, sempre no contexto de grandes
desigualdades regionais. O mundo é uma mercadoria, incluindo todo o seu meio
físico, vegetal, animal e humano, incluído neste todo o conhecimento acumulado
através da História.
Assim
sendo, há apenas a considerar uma ação externa, proveniente de grandes grupos
humanos, para criar um outro modelo económico-social onde a satisfação de
necessidades não passe pela produção de mercadorias enquanto entes abstratos
lançados numa abstração maior chamada mercado, ao qual se atribui a propriedade
mágica da autorregulação; pela abolição do trabalho como atividade compulsiva que
vem ocupando mais e mais tempo e esforço aos seres humanos, forçados a
desenvolver, por qualquer preço, um esforço cujo produto é objeto de posse por
um elemento inútil chamado capitalista[3], ancorado no poder do
Estado e das armas.
Como
se disse atrás, o capitalismo não poderia exercer o seu domínio apenas baseado
numa coerção sentida como tal pelas pessoas. Para que o sistema se perpetue é
preciso uma aceitação comodista ou identificada como tolerável pela multidão; e
aí joga a constante ação ideológica do consumismo e das virtudes da tal
democracia representativa que, por se basear em escolhas contidas nas feiras
eleitorais, preferimos designar por democracias de mercado.
Essa
ação ideológica consiste numa adaptação total (direito ao aborto) ou enviesada (segurança
social estatizada, herdeira distanciada e distorcida do mutualismo construído
no século XIX) de anseios provenientes das lutas dos trabalhadores e da multidão.
Essa ação é hoje facilitada pela esquerda institucional que, tendo-se afastado
das reivindicações que colocam em causa o capitalismo - com difícil eco nos
cenários parlamentares ou da concertação social - se cingem a uma análise
desatualizada da realidade global do capitalismo e, portanto com o recuo que
convém ao poder.
Uma
alternativa, para se consolidar como tal (não como conjunto cristalizado de
consignas) tem de partir dos que “estão em baixo” com reivindicações concretas
e atualizadas, insusceptíveis de satisfação cabal pelo poder do capital e que
alimente o processo de produção de dificuldades à acumulação capitalista e aos
seus beneficiários - capitalistas, classe política - bem como os vários agentes
repressivos pagos para a defesa do capital. Uma ideia alternativa pode ser
muito justa e delineada com rigor teórico mas, se não penetrar na multidão,
gradualmente, a partir de lutas sucessivas, será apenas um desejo ou um sonho.
A luta social, mesmo circunscrita no espaço e a objetivos imediatos terá de
promover a constituição de uma rede e encaminhar-se para a prática generalizada
da desobediência adequada que perturbe o funcionamento da circulação e
acumulação do capital, que obrigue à dispersão do aparelho repressivo, até
conduzir ao ponto em que a multidão, evoluindo das reivindicações parciais
passe a exigir a destruição do capitalismo, das suas instituições, nomeadamente
da propriedade privada[4], o desmantelamento do
aparelho repressivo e a construção de uma nova sociedade.
3 – O Estado
3.1 – No
princípio estavam os deuses
Até
hoje, a existência do Estado – e não somente o capitalista - está ligada à
estratificação social, à garantia da propriedade privada, à consolidação de
sociedades desiguais, à afirmação de um par inseparável de elementos
ideológicos - obediência e autoridade – contemplando o monopólio da coerção e
da repressão.
O
seu início, há milhares de anos, está relacionado com os privilégios requeridos
por alguns (e aceites pelos outros) considerados como capazes de estabelecer
contatos com as forças ocultas e os antepassados, num contexto global de grande
desconhecimento sobre a realidade circundante e de grande receio perante a
fome, a doença, a morte, o frio, a seca, as incursões de outros grupos humanos.
Assim, os sacerdotes, xamãs, feiticeiros e outros nomes dados a estes espertos
aldrabões, cultivavam o medo e a ignorância entre os seus congéneres e, para se
dedicarem às suas altas tarefas de comunicação com os espíritos, precisavam de
se isentar dos árduos trabalhos que cabiam ao resto do clã ou tribo, exigindo
sustento, mordomias e obediência.
Os
deuses sempre foram qualificados como omnipotentes, caprichosos e cruéis,
qualidades essas que os sacerdotes decidiram adoptar, em nome dos deuses, para
imporem a sua autoridade e os seus privilégios, ao povo. Daí surgiu a
segmentação entre, por um lado, servos e escravos, que trabalhavam arduamente,
e por outro, os sacerdotes, incansavelmente ocupados em traduzir os caprichos
em que os deuses, entediados por uma eternidade sem nada fazerem, envolviam os
humanos.
As
castas sacerdotais, para dirimir as suas teológicas dúvidas e disputas, criaram
entre si um elemento (rei) para representar os deuses, assumindo mesmo a
qualidade divina. Essa personalização terrena dos deuses tinha também a
vantagem de facilitar a sua materialização por parte da população, em reforço
de todas as construções abstratas que sensibilizavam pouco quem se dedicava
para conseguir sustento para sobreviver.
Uma
casta assim instituída, para se impor de modo constante à população, precisaria
de guerreiros para castigar os recalcitrantes em contribuir para a nobre missão
da comunicação com o Além; de facto a elevação dessa tarefa exigia privilégios,
incompatíveis com o duro trabalho da terra, da irrigação, de tratar do gado,
etc. Esse corpo de guerreiros foi constituído como um aparelho especializado na
coação e na repressão. O Estado, como órgão político, nascia, definido através
do que veio a ser a sua primeira função: a repressão que, ainda hoje, está no
mais fundo da sua natureza, como um primordial marcador genético.
Como
as populações entendiam mal que tivessem da municiar a casta (não tinham
comentadores televisivos…), os guerreiros tratavam de saquear o povo ou lançar
incursões sobre os povos das imediações, às ordens do referido aparelho
primordial, para a manutenção da casta, sem que, entretanto, esses guerreiros
não se aviassem em primeira instância. Como se denota, o único direito da
população restringia-se ao de ser violentamente objeto do saque.
Os
guerreiros, aproveitando-se do poder das armas para a recolha do saque, não
resistiam amiudadas vezes à tentação de substituírem os seus ordenantes, para
evitar a partilha procedendo assim à sua própria elevação como casta
governante. As sucessões dinásticas, as lutas entre nobres, sacerdotes e
cortesãos – a classe política desses tempos – faziam-se com o recurso às armas
ou, mais docemente, em encontros de alcova. Inaugurava-se assim, o rotativismo
dos grupos beneficiários do saque que hoje ainda subsiste, por meios menos
sangrentos, através das farsas eleitorais.
Para
evitar esta instabilidade política – algo a que os poderes atuais continuam a
ser muito sensíveis – as castas dominantes mudaram de procedimento. Criaram uma
burocracia para a recolha do saque sob a forma mais branda do imposto, cuja
finalidade se cingia à manutenção da casta e ao pagamento à tropa, retirando a
esta a tarefa do saque e, ao mesmo tempo oferecendo à população um duvidoso
serviço de proteção face a invasores.
Para
além da utilização da bestialidade militar, pouco diferenciada se aplicada
contra a população em casos de insubmissão ou contra outros povos em actos de
conquista, a legitimidade do poder assentava na ligação ao divino. Dos
imperadores chineses aos reis mesopotâmicos, aos faraós do Egipto, a Alexandre
Magno (para grande irritação das suas tropas, de cultura helénica) aos califas
muçulmanos, aos reis medievais da Europa, aos sultões otomanos ou aos monarcas
europeus do absolutismo, o saque terreno e a sacralização pelo divino sempre
estiveram ligados. Quanto à sacralização do estado português feita pelo Papado
já nos referimos anteriormente[5].
O
dinheiro dos impostos continuava a alimentar reis, cortesãos, nobres e toda a
gama de serventuários, bem como a existência de tropa, cada vez mais
sofisticada em termos de armamento e meios de defesa – estradas romanas, Grande
Muralha da China, castelos – e ainda a máquina fiscal, o aparelho ideológico
(templos para todos os deuses) e, de modo mais esparso em obras úteis de
irrigação, secagem de pântanos, arborizações, navios. A propósito de tributação
fiscal, o poder em Portugal ainda hoje se mantém muito criativo, na tradição
dos antepassados que, em 1387, criaram o imposto de sisa, o primeiro imposto
nacional na Europa.
O
capitalismo veio a desenvolver substancialmente os Estados criando aparelhos
judiciais e policiais como produto da especialização na área repressiva. As
necessidades de inventariação das pessoas tornou-se importante para a cobrança
dos impostos e a deteção de jovens para a guerra, para o cumprimento do sagrado
dever de defesa da pátria (nome inventado para designar os interesses dos
capitalistas locais). Os cuidados de saúde, por seu turno, continuavam
dependentes da caridade e a instrução manteve-se ausente da grande maioria,
apenas presente nos costumes e na transmissão oral dos conhecimentos, entre as
gerações, para além de algumas universidades onde dominavam os clérigos. Às
dízimas e sisas vieram juntar-se os direitos alfandegários que os aparelhos de
estado cobravam para manter as cortes e defender os capitalistas nacionais dos
concorrentes estrangeiros. Como as frequentes guerras desestabilizavam os
equilíbrios orçamentais, havia financeiros para financiar a constituição da
dívida estatal e reduções no conteúdo de metais nobres na moeda para aumentar o
volume de meios de pagamento. Como em tempos mais recuados, a existência do
Estado poucos benefícios trazia para a esmagadora maioria da população.
O
século XIX com o seu liberalismo, evidenciou um enorme desenvolvimento do
volume e do âmbito geográfico da circulação das mercadorias e do dinheiro, da
produção para o mercado, alimentados pela complexa atividade produtiva,
resultante das técnicas que deram o nome às duas revoluções industriais. As
necessidades daí resultantes empurraram as nações mais desenvolvidos para a
massificação da utilização das escolas, com a instituição do ensino básico
público, obrigatório e gratuito, o ensino técnico (na Alemanha) enquanto os
hospitais surgiam para tratar militares feridos - como apêndices das guerras,
frequentes e mais mortíferas - antes de se constituírem em sistemas públicos de
saúde surgidos pela primeira vez em Inglaterra, somente em 1948, no âmbito da
instituição do chamado modelo social europeu.
O
século XIX é rico em manifestações contra o sistema capitalista ainda que,
inicialmente, com atuações românticas de retorno ao passado pré-industrial,
como reação desesperada às condições miseráveis de vida, às longas jornadas de
trabalho e sem qualquer resguardo nos casos de doença ou morte, que não o
amparo familiar. Essa situação sensibilizava gente das classes médias, cuja
pressão fez o governo inglês acabar, em meados do século XIX, com o trabalho
infantil para menores de … nove anos e restringir a 48h por semana, o trabalho
dos que tivessem menos de 13 anos; na mesma época foi abolida a escravatura, na
Europa e nos EUA. Com menos filantropia mas, mais calculismo, foram
estabelecidos no último quartel daquele século, sistemas de reforma, de saúde
pública, de seguros de desemprego, enquanto muitos trabalhadores se associavam
para os mesmos fins – fora da dependência dos Estados - sob a forma de
mutualismo, para a cobertura solidária de riscos, no âmbito de um projeto mais
vasto de associativismo que desconectasse os trabalhadores da produção
capitalista.
Esse
calculismo estava na necessidade dos capitalistas terem trabalhadores saudáveis
disponíveis e de combaterem a crescente organização e radicalização daqueles,
para além da instituição do sufrágio universal (masculino) funcionar como
elemento de envolvimento com o Estado. Por outro lado, a introdução do serviço
militar obrigatório, funcionaria como elemento de fomento do sentimento
patriótico, com a subsequente mobilização para o sacrifício no altar das
disputas inter-imperialistas.
A
preocupação com a saúde ou a instrução pública e o início de alguma segurança
para depois da vida ativa, constituem as primeiras manifestações de alguma
utilidade do Estado para a população e funcionaram como contrapartidas
oferecidas pelas classes dominantes para o desarmamento político e das práticas
contestatárias ou revolucionárias dos trabalhadores, como se observou com os
partidos sociais-democratas em torno da I guerra mundial, indutores do
nacionalismo e do apoio popular aos “seus” capitalistas e, com os partidos
comunistas europeus, depois da II guerra mundial, quando se cingiram à defesa
dos interesses estratégicos da URSS, a “pátria do socialismo”.
A
Grande Depressão nos EUA mostrou os limites do liberalismo e da espiral
financeira, com fortes quebras nos níveis da atividade económica, a falência de
25000 bancos e altíssimos índices de desemprego, que se repercutem também na
Europa e nos países colonizados ou dependentes. A solução encontrada para
salvar o capitalismo foi a intervenção massiva do Estado nos EUA, através do New Deal, tal como na Alemanha nazi,
enquanto na URSS se consolidava um capitalismo de estado, com a fusão das
funções burocráticas e políticas com as funções económicas numa única
estrutura, o partido-estado.
A
intervenção do Estado através do New Deal
assumiu formas novas. As obras públicas em grande número e dimensão serviram de
impulsionador da economia através do chamado efeito multiplicador e davam
trabalho a milhões de pessoas desempregadas. Por outro lado, o Estado
estabeleceu uma política social inovadora, com a fixação de um salário mínimo e
seguros de doença e aposentação. O Estado assumia assim um papel determinante
como investidor, como indutor de consumo público e privado e simultaneamente
atraía os sindicatos, com a aceitação desta estratégia, para aceitarem também a
ordem capitalista. No entanto, só a corrida aos armamentos, primeiro, com a
venda à Inglaterra a partir de 1939 e depois, com a entrada dos próprios EUA na
guerra, com a mobilização de milhões de soldados, só então, sublinhamos, os
índices económicos melhoraram e o desemprego atingiu valores “aceitáveis”. O
Estado foi determinante para que se superasse a crise causada pelos
capitalistas garantindo-lhes a procura de bens e serviços, através de
investimentos públicos, gastos militares e uma redistribuição do rendimento - destinada
esta última a ser anulada pela inflação – elementos essenciais que vieram a ser
teorizados por Keynes e seus seguidores.
Na
Alemanha, a corrida aos armamentos e a construção de infraestruturas
necessárias para a guerra, dirigida por um Estado totalitário, aumentou o
emprego e reduziu o desemprego … com a ajuda do internamento ou assassínio de
anarquistas, comunistas, judeus, homossexuais, para além da utilização de
trabalho forçado, mais próximas da escravatura do que do funcionamento do
“mercado” de trabalho. Esta política laboral embora com uma aplicação
cruelmente original integraria também o que se veio a chamar de keynesianismo.
Não esqueçamos que na mesma época as potências coloniais utilizavam largamente o
trabalho forçado nas suas colónias, como instrumento de crescimento económico.
No
final da II guerra mundial sobrou uma Europa destruída e a consolidação do
poder dos EUA, que já havia substituído a Inglaterra como principal potência
mundial a nível comercial e financeiro; e daí surgiu um fluxo enorme de
capitais norte-americanos para a reconstrução e a reconstituição das estruturas
do capital na Europa, ao mesmo tempo que se desenhava o fim dos impérios
coloniais. Esse elemento financeiro, por impulso dos EUA, integrou-se em
instâncias plurinacionais como a OCDE a CECA – Comunidade Europeia do Carvão e
do Aço, a Comunidade Económica Europeia e o Euratom e gerou uma rápida
recuperação aos níveis das infraestruturas, do emprego e dos rendimentos, com
forte envolvimento das burocracias estatais e de empresas nacionalizadas. Por
outro lado, o prestígio da URSS conseguido com o combate aos nazis tornava
apelativo para muitos o seu modelo económico centrado num poder estatal
omnipresente, estendido à Europa de Leste e, pouco depois à China.
A
competição entre os dois blocos políticos rapidamente gerou na Europa alianças
militares antagónicas, dirigidas pelas grandes potências tutelares. Para conter
a atração dos trabalhadores pelo modelo social vizinho foi criado o modelo
social europeu (apesar de ter várias formas, como a escandinava, a renana, a
nipónica e não abranger os países ibéricos ou a Grécia), com férias pagas,
segurança no emprego, altos salários, segurança social, com concertação social
entre patrões e sindicatos, constituídos em trindade porque arbitrados pelo
Estado. A defesa do modelo ficou a cargo de partidos, ora de cariz social-democrata
ou socialista, ora populares ou democratas-cristãos, com ligeiras diferenças
entre si mas, atentos à necessidade de manter o dito modelo para evitar avanços
esquerdistas (Paris 1968, Itália anos 70, Portugal 1974/5) ou a atração do
capitalismo de estado vigente no Leste, através dos partidos comunistas, até ao
surgimento de alguns distanciamentos destes, como por exemplo do PC Italiano.
O
final dos “gloriosos 30 anos” de crescimento ficaram esgotados no princípio da
década de 70 e o dito modelo social europeu nas suas diversas interpretações
locais mostrou-se muito caro para as necessidades de acumulação capitalista,
para mais quando o encerramento do canal do Suez (1967-75) alterava
completamente a logística do comércio marítimo e elevava os preços do petróleo.
As teses neoliberais constituíram um verdadeiro modelo social, teorizado por
Friedrich Hayek - que germinou particularmente no seu feudo em Chicago - e que
patrocinava então (como hoje) a defesa da desregulamentação da atividade económica,
o comércio livre, com a consideração do mercado como portador da virtude da
autorregulação, confinando a atuação do Estado ao âmbito clássico do exercício
da repressão, da cobrança de impostos e da garantia do livre funcionamento dos
mercados, incluindo particularmente, a necessária e conveniente intervenção no
chamado mercado do trabalho.
A
primeira e trágica aplicação prática das teses neoliberais operou-se no Chile (1973)
após o golpe fascista de Pinochet, posteriormente rodeado de economistas formados
em Chicago, anunciando-se como arautos da distribuição regressiva do
rendimento, a favor das multinacionais e dos capitalistas nativos; a comparação
no gráfico seguinte com a média da América Latina recordará que Pinochet não
sendo o único ditador da região, se mostrava bastante “eficiente”.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Miracle_of_Chile
A
aplicação do catecismo neoliberal – privatizações, desregulação e Estado mínimo
– surgiu na Europa com Thatcher em 1979 e, nos EUA, com Reagan no ano seguinte;
propagou-se como um vírus pelas classes políticas e, adoptado pelo FMI e pelo
Banco Mundial, foi imposto como resolução dos problemas de endividamento, a
partir de então, nos países pobres ou dependentes, em benefício do capital
financeiro e facilitando a compra de recursos e empresas públicas pelas
multinacionais. Foram determinantes as formas brutais como Thatcher e Reagan
usaram o poder repressivo do Estado para lidar com as greves dos mineiros e dos
controladores aéreos, respetivamente, como clara amostra do tratamento que os
neoliberais dão ao “recurso” trabalho, para criarem valor nos balanços das
empresas, dos bancos e nas contas particulares dos milionários.
Os
desenvolvimentos tecnológicos no tratamento da informação e nas comunicações
tiveram impactos enormes na economia e na sociabilidade, a nível global. O
capital financeiro aproveitou para crescer de modo inaudito, dominando o
planeta e arrastando na volúpia especulativa as multinacionais, o capital
mafioso, os interesses imobiliários e os capitalistas em geral – e até a
multidão - todos domesticados pelo acesso fácil ao crédito. Esses
desenvolvimentos vieram indiretamente a minar o controlo das economias
nacionais pelos capitalistas nativos, a reduzir a margem de intervenção dos
respetivos aparelhos de estado e a tornar obsoleto o conceito de soberania
nacional, conceptualizado no seguimento do impulso inicial do capitalismo.
Em
1991, o capitalismo, já então na dominante forma neoliberal teve um brinde; o
desmantelamento da URSS e a falência do capitalismo de estado, incapaz de
promover qualquer laivo de democracia (mesmo meramente formal como praticado
nos países de modelo neoliberal), hábil para a construção de infraestruturas ou
armamento mas, insusceptível de competir com os níveis de bem-estar e consumo
observados nos países de capitalismo neoliberal. Gorbachov não foi a tempo de
imitar Deng Xiaoping que, após a morte de Mao Tse-Tung havia promovido a
coabitação de uma economia liberal de exportação baseada em baixos salários e
fortes desigualdades regionais, sem perda do domínio da enorme e tentacular
burocracia estatal alicerçada no PCC.
A
desaparição do capitalismo de estado como modelo alternativo (aplicado ainda na
sua forma mais pura na monarquia norte-coreana) teve efeitos de ordem política.
Os tradicionais partidos “comunistas” ou “operários” ocidentais desfizeram-se
ou sobrevivem como peças de museu; os partidos socialistas/sociais-democratas
que haviam protagonizado o modelo social europeu adoptaram o neoliberalismo e
aproximaram-se dos tradicionais partidos da direita, para competirem na
ocupação do aparelho de estado; e nos países que abandonaram o capitalismo de
estado, os burocratas reinantes foram protagonistas de uma conversão radical e
rápida à nova religião neoliberal, para beneficiarem com os favores concedidos
às multinacionais.
3.2
– O neoliberalismo e o regresso dos deuses
O
modelo neoliberal tem vindo a exigir, portanto, um redimensionamento global dos
aparelhos de Estado e a sua reconfiguração, com a privatização de serviços
essenciais para a população (saúde, educação, abastecimento de água ou
eletricidade, vias de comunicação, telecomunicações e também nas áreas
sociais), com a contratação de empresas para o exercício de funções (serviços
informáticos, consultadoria ou fornecimento de mão de obra em regime de
precariedade) para além de contratos e adjudicações a empresas privadas, em
condições que mais se assemelham à constituição de rendas perpétuas, tal como
eram atribuídas em tempos pré-capitalistas a elementos do clero e da nobreza. O
capitalismo colocou o mercado no pódio celeste, e substituiu os altares pelo
écran televisivo, como formas de pastoreio das consciências.
O
Estado capitalista neoliberal de hoje tende a centrar-se em dois tipos de
funções essenciais: as desempenhadas
pelo aparelho coercivo e a punção fiscal, associada à aplicação do seu produto.
a)
O aparelho coercivo
O
aparelho coercivo desempenha a mais antiga das funções do Estado, como se disse
atrás; desenvolveu-se, diversificou-se enormemente e é composto pelo sistema
judiciário, as polícias e as forças armadas. Teoricamente, o Estado detém o
monopólio da coerção embora estejam abertas oportunidades para serviços
prestados por privados, em regime de contratos de concessão ou fornecimento de
serviços.
O sistema judiciário tem uma atuação mais independente e menos
desacreditada nos países mais ricos ou, onde existe uma maior capacidade
crítica da população e dos media; porém, nos países subalternos perdeu toda a
independência inerente à divisão dos poderes definida nos compêndios,
contribuindo - por ação ou omissão - para o branqueamento dos desmandos do
poder e da corrupção[6] fornecendo fortes
contributos para o descrédito da dita democracia representativa ou de mercado.
São
os governos - acolitados por gabinetes jurídicos tão obscuros como milionários,
onde paira grande quantidade de membros da classe política em posições de recuo
ou em acumulação promíscua - que constroem o ordenamento jurídico e processual
que convém aos interesses do capital; note-se, por exemplo, que os tribunais de
pequena instância foram criados quando se tornou necessário dirimir conflitos
que tinham as grandes operadoras de telecomunicações como partes.
Aquele
ordenamento torna a aplicação da justiça enredada em normativos geradores de
lentidão procedimental, em leis complexas, desconexas e eivadas de alçapões
para facilitar os ricos, os clientes dos escritórios de advogados e os
corruptos; não deixando de exibir, no entanto, arrogância e rigor com os
pobres, pequenos delinquentes e causas menores. Lateralmente, existe uma
justiça paralela, assente em tribunais arbitrais que funcionam para os
diferendos económicos com juízes escolhidos pelas partes litigantes, à margem
do sistema judiciário; uma justiça privada, de facto, para grandes empresas. Há
ainda a possibilidade, também na área económica, de as partes contratantes
escolherem a jurisdição aplicável em caso de conflito que poderá não ser a do
país residente mas, a de uma área exterior, onde a legislação seja a
conveniente para quem detenha mais poder no âmbito desse contrato.
Esta
última situação será bastante agravada se o TTIP for adoptado pela UE. No seu
projeto está prevista a possibilidade de qualquer empresa que se sinta lesada por
limitações colocadas à sua atuação num dado país, poder recorrer a arbitragens
exteriores, privadas, designadas “mecanismos de resolução de litígios” contra o
Estado daquele país que repercutirá os custos na população; nesse âmbito,
multiplicar-se-ão casos como atualmente o de fundos abutres contra a Argentina
nas mãos de um tribunal norte-americano encimado por um juiz acérrimo defensor
dos direitos do capital sobre tudo o mais e, com argumentos demenciais.
A
promiscuidade entre o Tribunal Constitucional português (no qual a maioria dos
juízes é expressamente nomeada pela classe política) e o poder executivo é
evidente nas suas resoluções salomónicas, onde se fazem prodígios de equilíbrio
que mantenham a instituição com alguma dignidade, contrariando parcialmente o
governo mas, tendo particular atenção às conveniências da governação mesmo que
o direito e a justiça sejam maltratados.
A
polícia tem vindo a desenvolver uma vasta gama de corpos especializados para
além dos pachorrentos polícias de giro, todos porém, ensinados a ter mão pesada
e gatilho ligeiro para eventuais delinquentes, exaltados de pele escura ou nos
chamados “bairros problemáticos”. É verdadeiramente escandaloso que um país de
baixa criminalidade como Portugal, sobretudo da violenta, esteja no quarto
lugar no indicador polícias/100000 habitantes (454.2), pouco atrás da Itália e
da Turquia, embora mais separado do campeão, a Rússia, com 564.6 polícias[7] por igual número de
habitantes. Gradualmente, a polícia de choque, tem beneficiado de grandes
investimentos em formação e equipamento ao ponto de, em atuação, mais se
assemelharem a figurantes dos filmes de Kurosawa.
A
polícia dita secreta (SIS) revelou-se poder ser utilizada nas rivalidades entre
grupos económicos nativos, porque há sempre quem saiba “privatizar” as
informações armazenadas. Por outro lado, vão-se desenvolvendo as taras da
videovigilância, das escutas telefónicas, da observação massiva do correio
eletrónico, da participação nas redes sociais, da cópia “pirata” de conteúdos,
por decisão da suserania dos EUA para, a partir dos episódios das Torres
Gêmeas. Os aparelhos de estado avançam – e de modo coordenado entre si - numa
cruzada de supervisão da vida de todos, mandando-se para as urtigas os direitos
elementares à privacidade, de que as democracias de mercado tanto se arrogam
defender.
Finalmente,
as forças armadas, constituem um caro brinquedo na sua generalidade[8], como indutoras da
obediência cega, da autoridade, do reacionarismo[9] mas, úteis para o apoio em
ações da NATO, quando esta entende mobilizar um pelotão luso para lugares tão
distanciados dos interesses dos portugueses como o Afeganistão, o Uganda ou o
Mali. As forças armadas são também um bom foco para a prática de negócios
escuros envolvendo a importação de equipamentos militares.
Na
falta de ocupação e utilidade visível, as forças armadas apresentam-se,
periodicamente, bem ataviados, em ridículos desfiles diante da fina flor da
classe política, como na celebração do dia da “raça” deste ano[10].
b)
A punção fiscal e o destino do saque
O
Estado é o beneficiário de uma relação única. As pessoas são coagidas a
entregar-lhe parte substancial do seu rendimento sem qualquer explicação
credível ou especificação que denote a sua futura utilização; nem as pessoas têm
qualquer intervenção sobre o seu destino concreto. O autoritarismo estatal
verifica-se na recolha do imposto e na sua aplicação prática; não há uma
relação bilateral, de direitos e deveres, apenas a perpretação de um saque.
As
pessoas são consideradas tecnicamente como “obrigados fiscais” designação que
expressa essa profunda desigualdade entre as pessoas e o Estado, dito
representante de “todos nós”. Por isso, quem precisar de uma escola nas
imediações, ao pagar os seus impostos, provavelmente terá o seu contributo
“investido” num tanque de guerra, num pagamento de consultadoria, num banco em
dificuldades ou em juros de dívida; e não terá qualquer via para contestar um
gasto considerado inútil, excessivo ou um investimento não efetuado, mesmo se
inscrito no orçamento.
A
classe política sabe-se com poder para usar o dinheiro dos impostos como
quiser. Sabe que pode gastar mais do que o que lhe foi entregue, contrair
empréstimos, proceder a contratos ruinosos ou conceder benefícios fiscais,
atribuir rendas e privilégios (incluindo aos seus próprios membros), sem
qualquer mandato para além das votações genéricas do orçamento, efetuadas em
sessões parlamentares teatralizadas entre membros da classe política. O
espetáculo transforma-se em farsa quando se sabe que o orçamento é previamente
aprovado (sem recurso) pela Comissão Europeia, enquanto a dívida pública
ultrapassar os 60% do PIB, situação que, de modo otimista se sabe irá ter uma
vigência de dezenas de anos. Podem ainda referir-se as promessas feitas em campanha
eleitoral que todos sabem (votantes e mandarins) ser uma encenação, cujo
conteúdo todos irão esquecer ou, se necessário, revogado por algum estudo
elaborado à medida ou outro subterfúgio, para justificar o não cumprimento do
prometido.
O
orçamento é efetuado sob a orientação do capital financeiro e dos grupos
económicos com acesso ou controlo sobre os membros do governo, no sentido da
obtenção de benefícios fiscais, da definição da carga fiscal ou contributiva
sobre o trabalho, do volume destinado a apoios sociais, contratos,
investimentos de “interesse público” - a financiar pela banca ou com adjudicação
antecipadamente comprometida - e ainda concessões, privatizações ou aquisições
de serviços e equipamentos. O interesse público até poderá estar contido em
algumas das prescrições orçamentais concretas mas, no seu conjunto, o orçamento
não é construído tendo como primeiro objetivo o interesse coletivo. Como popularizado
pelo actual primeiro-ministro, a chegada ao governo visa o acesso ao “pote”,
onde continuamente se derrama o dinheiro dos impostos.
A
garantida continuidade do fluxo financeiro imanente à punção fiscal é também
uma situação única. As pessoas nascem e morrem e as empresas podem falir. O
Estado, por muitas dificuldades financeiras que tenha, não vai à falência; tem
sempre como suporte, susceptível de saque, o património e os rendimentos da
população.
Um
contrato em que o Estado figura como devedor é uma maravilha para os credores.
Primeiro, porque o domínio ou a influência do capital financeiro e dos grupos
económicos ou nativos sobre a classe política garante condições muito
favoráveis (com maior ou menor envolvimento de corrupção), como se observou
recentemente em Portugal com os contratos swap
e as parcerias público-privadas. Depois, porque a presença da classe política
no exercício da punção fiscal garante que os contratos serão cumpridos, quer
porque os credores nele incluem formas de evitar deslizes, como se disse atrás
( a) O aparelho coercivo) e ainda beneficiam da supervisão estratégica da UE,
do BCE ou a mais operacional como a da extinta troika. E finalmente porque os
mandarins, em regra, por obediência aos seus mandantes, tratam de dirigir o
esforço financeiro para os trabalhadores e o população pobre, poupando no
possível as empresas e os empresários, enquanto entes superiores, porque
criadores de emprego e riqueza, como consta nos salmos repetidos pelos media.
Qualquer
transformação política radical que contemple o não cumprimento por parte de um
país, este, para se furtar ao ostracismo e sanções do capital global ou é um
país de grande dimensão com relevância própria ou inclui a sua atuação num concerto
de povos de vários países acossados, susceptível de promover perturbações
graves nos mercados financeiros, tão agressivos e dinâmicos quanto frágeis.
3.3
– A ilegitimidade ontológica do Estado
A
ilegitimidade do Estado pode ser observada sob vários pontos de vista.
Há
uma ilegitimidade basilar que é a existência de um aparelho que se
auto-reproduz, portador dos poderes de exercício de autoridade, de coação e de
repressão sobre as pessoas, que toma, implicitamente, como seus súbditos. A
apropriação daquele aparelho pela classe política, promove a sua fusão com o
próprio Estado, tornando-se regra a existência de partidos-estado, mesmo quando
formalmente surgem em eleições, como distintos. A relevância principal da
classe política, do ponto de vista do sistema capitalista, resulta de ser o consignatário
do capital financeiro, das multinacionais e do capital nativo, sem descurar os
interesses pessoais ou grupais dos seus membros. Outra das suas mais relevantes
funções é a da perpetuidade do sistema e da sua própria como classe, que
designam de modo simpático por “estabilidade política”, assente no
convencimento da multidão sobre a bondade da organização política que mascara a
geral ausência de democracia.
Como
já dissemos atrás, a classe política toma também decisões que satisfazem
necessidades da população mas, não é esse o seu principal objetivo; este
consiste na sua própria reprodução como corpo privilegiado pelo acesso e
distribuição do conteúdo do “pote” o que convém também aos capitalistas que têm
influência nos mandarins.
Uma
das ações desse corpo privilegiado, especificamente, da classe política,
consiste em organizar eleições - no caso das chamadas democracias
representativas – para a escolha dos seus membros que irão decidir sobre as
necessidades coletivas da população. Esses eleitos, jamais considerarão a
hipótese de colocar a população a tomar decisões concretas; e, menos ainda a
vincularem-se a elas, a tomarem-se como mandatários da população, que teria,
naturalmente, o direito de revogar os seus mandatos, a qualquer momento, num
contexto de não perpetuidade da representação numa classe política – o que se
chama democracia direta.
A
adopção da democracia direta significaria a vacuidade do Estado, como detentor
da autoridade o que arrastaria a evidente percepção da inutilidade da classe
política. Recorde-se a dificuldade de se organizarem referendos de iniciativa
popular, sendo todos, os poucos efetuados em Portugal, da iniciativa do poder.
Abordámos recentemente a construção legislativa com que a classe política
portuguesa se defende da realização de referendos por si não desejados[11].
O
Estado e os seus donos geram, em permanência uma cultura de obediência à sua
figura, segmentações e desigualdades sociais e económicas entre a população,
como um deus exigente e caprichoso, acima das pessoas, incluindo nessa cultura
a afirmação e a promoção de uma menoridade natural que o povo terá. A desinformação
introduzida por essa cultura é tanta sobre o que será a democracia que há quem
diga: “o Estado, somos todos nós (os elementos do povo)”.
A
democracia representativa, teorizada por Max Weber como a única forma
admissível nas sociedades modernas, resume-se ao método de escolha dos
mandarins, não à prática social da democracia, da decisão coletiva exercida
pelos seus diretos interessados. Ao assumir essa posição elitista, Weber não só
legitima a existência de um ente, o Estado, exterior e acima da população, como
considera aquela, marcada pela ignorância, pela pusilanimidade, pela
irresponsabilidade de resolver os seus próprios problemas. E legitima a
existência de um escol, uma classe política para, na acepção mais lisonjeira,
gerir e decidir paternalmente a favor da ignara plebe; o que equivale, para o
leninismo e seus derivados, à vanguarda operária que, ungida pelos deuses,
haverá de conduzir o resto do povo à glória, apropriando-se, de permeio de
privilégios e rendimentos a que os não-ungidos não têm o direito.
A
aplicação das leis emanadas do Estado defende menos os interesses das pessoas
comuns, acometidas com sobranceria, com coimas, custas e juros enquanto
“obrigados fiscais” do que empresas e capitalistas, beneficiários da
permissividade que permite a evasão e o subterfúgio de anulações ou prescrições
de dívida ao Estado ou à Segurança Social[12]. Por outro lado, as
polícias podem reprimir atitudes criminosas mas, quantos deles resultam das
disfunções produzidas pelo capitalismo, pelas desigualdades, pelo desemprego,
pelos anátemas sociais, pela insegurança e pela miséria? Porque não serão
justiçados políticos responsáveis por actos lesivos para milhões de pessoas e é
preso um simples carteirista apanhado no Metro? Ou um chamado empresário que
despede trabalhadores, no seguimento agredidos com o anátema e a humilhação, por
parte da classe política que lhes “concede” um subsídio?
Em
Portugal, a carga fiscal direta sobre a população não possidente (IVA e IRS, na
sua grande parte) ou indireta, porque repercutida nos preços finais pelas
empresas (impostos sobre os produtos petrolíferos, sobre veículos, entre
outros) é de longe superior à sua parte no rendimento nacional (44.8% em 2013);
o que revela o caráter regressivo do sistema fiscal e que o Estado é um
instrumento claro de recriação sistemática de desigualdades e injustiças. Como
isso não é um elemento ocasional mas, uma caraterística que lhe é imanente, o
Estado situa-se em contínua oposição e agressão à multidão, reduzindo-lhe a
qualidade de vida que poderia gozar como resultado do esforço dos
trabalhadores, coartando-lhe direitos, exigindo sacrifícios, no sentido de
suprir os desequilíbrios financeiros que a classe política e o capital geraram
para alimentar o processo de acumulação capitalista, em crise. Nada disto se
prende com a atividade de um gang específico na condução do aparelho estatal; jamais
qualquer oposição de direita ou da esquerda institucional fará algo que seja
substancialmente diferente, uma vez que os partidos do sistema capitalista e de
democracia de mercado estão formatados para viver dentro do sistema e do
sistema. Em suma, a gestão financeira corrente do Estado é portadora de uma
ilegitimidade gritante, porque a sua existência não visa o bem-estar da
população; em Portugal ou qualquer outro país.
A
introdução entre as responsabilidades do Estado, no que concerne a serviços de
saúde e educação (entre outros) destinados a toda a população, representou a
colocação no Estado de grandes responsabilidades na geração de bem-estar das
populações. E daí, alguma legitimidade por um lapso de tempo que terá durado
cerca de um século, desde a tomada de medidas para mitigar o sofrimento e
elevar a esperança de vida dos trabalhadores industriais, em meados do século
XIX e a década de 70 do século passado, com o capitalismo neoliberal iniciado
com a experiência fascista no Chile e com Thatcher e Reagan.
Porém,
o domínio da praga neoliberal na gestão do capital alterou as coisas, colocando
nas empresas o exclusivo das responsabilidades na produção de todos os bens ou
serviços, em concorrência, esperando-se que o deus mercado garanta a qualidade
conveniente por um menor custo. E nessa lógica, a produção de batata frita terá
a mesma universalidade e dignidade social de um serviço médico ou de uma
escola, medindo-se todos pelos critérios da produtividade, da rendabilidade, da
eficiente combinação de recursos que é atribuída, por axioma, ao mercado. Neste
contexto, a criatividade neoliberal vai-se expandido para as áreas
infraestruturais tão sociais como os transportes, no âmbito dos quais o ditoso
mercado necessita do encaminhamento de fundos públicos para as empresas
concessionadas, sob a forma de indemnizações compensatórias, em acumulação ou não
com aumentos de preços; mesmo que isso incentive à utilização de transporte
próprio, irracional em termos ambientais e estritamente económicos de custo
social. O mesmo sucede no caso da captação e distribuição da água cujo
principal efeito é, em regra, um forte aumento dos preços com o corte do
abastecimento em caso de dificuldades económicas das pessoas. O equivalente
sucede na saúde ou na educação, áreas em que a introdução das empresas no
circuito é imposta à esmagadora maioria da população, tendo como base um menor
financiamento público direto, compensado, por transferências para as empresas,
de custos com a utilização de serviços privados, apelativos dado o
desinvestimento público. Fala-se do modelo da “livre escolha” que permite a
viabilização de negócios privados com dinheiro público ou o onerar da população
com os custos do recurso a escolas, clínicas privadas ou seguros de saúde, estes
últimos, peritos na arte de empurrar para o serviço estatal, patologias de
tratamento prolongado ou oneroso. O modelo das parcerias público-privadas é
mais uma criação neoliberal de favorecimento de grupos económicos poderosos e
dos bancos cujos contratos com o Estado permitem-lhes beneficiar de vultuosas rendas.
Seria
lógico que a população, ao suportar diretamente junto de empresas privadas, os
custos de grande parte dos serviços antes pagos através da tributação fiscal,
visse a punção fiscal reduzir-se. Mas não é isso que acontece, nomeadamente
porque o endividamento dos Estados é grande e perpétuo, permitindo verdadeiras
rendas ao capital financeiro, para além das tradicionais benesses aos
capitalistas autóctones, sempre a clamar por ajudas que mantenham a sua
competitividade.
O
capital financeiro, como credor, zela pela segurança dos reembolsos (a longo
prazo garantida dada a perpetuidade dos Estados, com a sua multidão de
“obrigados fiscais” como forçado amparo); e sobretudo pelo regular municiamento
dos juros que se vão vencendo. Como credor trata de supervisionar as contas do
devedor utilizando instituições supranacionais (Comissão Europeia, BCE, FMI)
para garantir esse pagamento, orientando em seu proveito, a aplicação do
dinheiro dos impostos.
O
instrumento essencial para esse processo de desnatação é o saldo primário, que
espelha a diferença entre receitas e gastos públicos, de funcionamento ou
investimento, excluídos os encargos com a dívida. Essa diferença, que se
pretende positiva (excesso de receita) será afecta ao pagamento de juros de
dívida; se não for suficiente para tal, o capital financeiro e as suas
referidas instituições delegadas tratam de estudar o instrumento mais adequado
para aumentar aquele saldo, impondo as suas escolhas ao governo - aumentar
impostos, privatizar empresas ou reduzir gastos, com cortes salariais ou em
pensões, despedimentos e reduções de encargos com a saúde ou a educação,
manutenção de vias públicas, etc.
O
saldo primário é um indicador essencial de domínio do capital financeiro e é um
barómetro da subordinação dos países com todos os inconvenientes para a
população, empobrecida, reduzida nos seus direitos, com dificuldades de
encontrar trabalho e mesmo de se reproduzir, caindo na degradação social, do
espaço público e do ambiente. A mesma população sofre, em acumulação, a pressão
ascendente da punção fiscal e a redução dos serviços que aquela deveria pagar
ou a sua passagem para meros serviços mercantis. Sendo assim, o Estado tende a
reduzir substancialmente a suas funções de utilidade social e perde a sua
legitimidade enquanto proclamado zelador da satisfação das necessidades
coletivas.
E
daí a defesa (e a saudade) de muitos, pelos tempos de vigência do modelo social
europeu, mesmo na versão limitada que foi ensaiada em Portugal. O tempo não
volta atrás nem a História se repete; falta à multidão a criatividade e a
mobilização para construir uma fórmula de organização social que não contemple
uma instituição denominada Estado, em constante depenação pela classe política,
nem a presença de capitalistas em qualquer fase do processo de satisfação de
necessidades.
O
capitalismo pode viver com a acumulação protagonizada pelo Estado, dirigido por
uma classe de burocratas, com um papel secundário para as empresas privadas.
Porém, mesmo no capitalismo mais concentrado, globalizado e centralizado como o
de hoje, a acumulação não pode dispensar a prestimável contribuição do Estado,
mesmo reduzido à sua função coerciva e de punção fiscal que legitima, através
da autoridade, a redistribuição regressiva do rendimento e da riqueza da
população a favor dos capitalistas. Por outro lado, não pode existir uma
sociedade só com capitalistas e mandarins, com robots e sem trabalhadores mas,
pode certamente ser construída uma sociedade com pessoas utilizando todos os
seus recursos tecnológicos e de conhecimento para reduzir o tempo e o esforço
produtivo; sem que se sinta a falta de capitalistas e de políticos.
Este
e outros textos em:
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
http://pt.scribd.com/profiles/documents/index/2821310
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
[2] Sobre a questão do centro e das periferias, veja-se:
[3]
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2011/12/afinal-qual-funcao-social-do.html
[4] Em Aragão, nos anos 30 do século passado, nas
localidades onde se estabelecia o comunismo libertário, a primeira ação era a
queima dos registos de propriedade (cfr Repensar la Anarquia, Carlos Taibo)
[5] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/02/soberania-soberania-nacional-e.html
[6] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/09/porque-corrupcao-porque-em-portugal.html
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