Autoria do companheiro "Vadio"
O que vem a ser
dezenas de pares de luvas no chão, debaixo dos pés de centenas de pessoas que
resistem a serem identificadas e expulsas de uma manifestação?
Dezenas de
luvas, ali onde os olhos alcançavam, ali onde praticamente já não nos podíamos
mexer.
Telemóveis e
bolsas, propositadamente abandonados, também se esborrachavam debaixo dos pés
dos activistas que resistiam à investida policial. Mas as luvas, de todas as
cores e feitios, deitadas por terra... Não importava para onde pendia o bloco
dos resistentes, no balanço provocado pelos empurrões, socos e joelhadas da
polícia. Bambos pela tensão, em cordão, para cá e para lá, braços cruzados,
enganchados uns nos outros, se os olhos alcançavam o asfalto era luvas o que
viam, de jardineiro, de biker,
de trolha, de motoqueiro, de biscateiro.
Milhares de activistas anticapitalistas de todo o mundo
reuniram-se em Frankfurt, nos últimos dias de Maio, para bloquear a sede do
Banco Central Europeu, durante o Blockupy 2013 (https://blockupy-frankfurt.org/en/). A polícia
não conseguiu impedir dezenas de acções directas e de desobediência civil nos
dias que antecederam a manifestação, que encerrou as jornadas contestatárias no
dia 1 de Junho. No dia que se antevia com menos surpresas, as forças
repressivas bloquearam a manifestação, com o objectivo de “encarcerar” o bloco
anticapitalista e de identificar os manifestantes. Face à resistência dos
contestatários e à solidariedade dos restantes blocos que compunham a
manifestação, a polícia recorreu à violência e usou gás pimenta, deixando
dezenas de feridos e fazendo detenções.
É a Lei 17 da
República Federal Alemã sobre objectos ilegais em manifestações ou em reunião
pública, promulgada em 1989, que classifica as luvas como uma arma passiva,
ilegalizando o seu uso em manifestações. Lei que tem vindo a ser usada na
Alemanha, sobretudo na última década, para olear a máquina repressora contra os
movimentos sociais e anticapitalistas. (Em 2011, ao abrigo dessa lei, um
cidadão foi condenado por usar um protector bucal!).
E o que fazer
com um par de armas passivas e ilegais contra dezenas, centenas, milhares de
polícias, militarizados, robocopizados, absolutamente legais e activamente
armados, que te arrancam à força de uma simples (legal/de direito)
manifestação?
Pode fazer-se
algo com um par de armas passivas contra uma classe política e uma elite
económica, invisível na couraça policial, embonecada pelos media mainstream, protegida pelo poder
judicial e feudalizada pelo parlamentarismo?
Como foi
possível chegar a este paradoxo histórico? Como pôde o poder político
arregimentar-se de forma esmagadora e, ao mesmo tempo, desarmar as populações a
este ponto?
Numa sociedade
em que a guerra social é imposta às nossas vidas, o que significa alguém poder
ser criminalizado por usar um par de luvas numa manifestação?
Neste estado
das coisas, qualquer um pode perder-se sem ter a consciência de que se perdeu.
Há um ângulo de
análise mais optimista. Quando é o Poder, ele próprio, a conferir perigosidade
a um par de luvas, ao mesmo tempo que ele estende a malha do controlo (como é
sua intenção), acaba por adoptar uma estratégia tão invasiva e generalizada,
que o perigo passa a estar em todo o lado. E se o poder vê o perigo em todo o
lado a potência da revolta espalha-se, omnipresente e evasiva, por tudo quanto
é sítio.
A cortina de
fumo do capitalismo e da democracia representativa
Quem aprontou
esta emboscada? Apesar de serem muitas perguntas, por que razão tanta gente não
as formula ou foge delas?
Que fé
depositaram as pessoas no sistema democrático (representativo), num modelo
económico (a economia do bem-estar) e na ordem legal, para esboçarem a sua
ideia do progresso humano e social, que ainda possa manter-se de pé, face à
destruição acelerada de direitos laborais e civis, à degradação generalizada
das condições de vida e ao flagrante uso táctico da lei pelo poder? E se a
democracia (o parlamentarismo), a Lei e a economia do bem-estar (o cínico
capitalismo de rosto humano) foram, ao invés, um trampolim crucial para o
fortalecimento da hegemonia das elites dominantes e a aparente imagem de
chegada do imaginário colectivo das esquerdas, temos ou não de olhar para além
delas para pensar o progresso e a emancipação humanas?
Nenhuma cortina
de fumo pode ocultar que estas instituições foram/são causa fundamental da
linha de orientação política das sociedades, que lhe deram a forma actual e,
por consequência, são causa do actual estado político, social e económico das
sociedades. Causas primeiras e últimas, e que se tornam indiscerníveis, no seio
de um sistema em que tanto os aparatos de produção e de dominação quanto as
relações económicas e sociais, bem como as ideologias, se entrelaçam de forma
inextricável.
Voltemos a
Frankfurt e à manifestação convocada pelo Blockupy. Depois de na véspera terem
proliferado várias acções directas no centro da cidade, no quarteirão
financeiro e comercial de Frankfurt, mas também no aeroporto (ver abaixo
apontamentos sobre várias acções), e de a presença policial e a sua actuação
ter sido menos visível e menos repressiva em comparação com o ano anterior,
ninguém esperava que a manifestação, 400 metros depois do seu início, fosse
tomada de assalto pela polícia.
Os ardis a que
a polícia recorreu para justificar o bloqueio da manifestação não primaram pela
inteligência. Aos altifalantes, anunciaram inicialmente que não permitiam que a
manifestação fizesse o percurso pré-definido – trajecto diferido por decisão de
tribunal – sob pena de identificarem cada elemento que seguia no bloco
anticapitalista (seguramente, mais de mil pessoas). Após consultas entre os
vários blocos e grupos de manifestantes, chegou-se a acordo de propor um
percurso mais curto, mas rejeitando qualquer identificação dos manifestantes. A
polícia começou a mostrar os dentes, mas ninguém se encolheu. Afinal, tanto
fazia o percurso, os manifestantes do bloco anticapitalista tinham de ser
identificados, propondo a polícia que se fizesse uma “filinha” (estás
certinho!), para escoar os perigosos.
Alardeava que alguns elementos estavam
armados (rosto coberto) e que havia um cidadão procurado pela polícia. Já houve
um político que concordou com a matança de 700 mil civis para limpar o sebo a
um ditador, que já não cooperava com as forças da ordem mundial e por deter a
hiper-estação de serviço das jazidas de petróleo. Se é um acidente ou não que
esse político seja o rosto actual da UE, o facto é que lhe assenta como uma
luva. Entre Durão Barroso e a polícia, a qualidade da mentira é já indiferente.
Afinal de contas, a política de controlo e criminalização estava montada e
programada (até as casas de banho do TOI acorreram expeditas, para prestar
tratamento humano às bexigas dos “perigosos”). E a polícia, não é demais
lembrar, responde a um Ministério e a um Governo. Executa os seus planos
disciplinários e punitivos, armada, munida de equipamentos sofisticados e
amparada por um orçamento de milhões de euros, ao mesmo tempo que o mesmo
Governo determina o empobrecimento de milhões de europeus ao impor políticas
“austeritárias” e conduz à destruição de direitos conquistados por lutas
sociais históricas.
“Polizia
polizia noi pisciamo nelle vostre
camionette”
Sendo fiel aos
factos, segundo uma leitura subjectiva dos trâmites legais que regulam a
indumentária imprópria para desfiles políticos, havia muita gente armada, com
óculos de sol, lenços e capuz. (Mas convém precisar que não havia, de facto,
passa-montanhas, nem máscaras, como afirmou o porta-voz das forças de segurança
aos media).
O corpo da
manifestação, entre 15 a 20 mil pessoas, manifestou a sua irredutibilidade:
ninguém deve ser identificado e a manif deve seguir como previsto o seu
percurso. A rua inchava de gente, ferviam os cânticos. Começa, então, a longa
espera, no cerco policial. Os chefes da polícia no local afirmam que já não
depende deles permitir o recomeço normal da marcha, mas que para o efeito têm
de consultar superiores, algures fora da cidade.
À cabeça do
bloco anticapitalista ouvia-se “Polizia polizia noi pisciamo nelle vostre camionette”,
refrão ecoado pelos incansáveis e animados grupos dos centros sociais
italianos. Italianos e italianas que vieram preparados, com escudos, faixas,
guarda-chuvas (contra o gás pimenta), e não descuraram o facto de os carabinieri tedeschi não entenderem italiano:
“Nationalismus, Polizei, scheißer”, embrulhem, que é democrático! E a pronúncia
internacionalizava-se, sofrendo mutações ao longo do corpo de manifestantes,
entre belgas, polacos, espanhóis, franceses, austríacos, alemães, que várias
vezes repetiam as canções trazidas pelos italian@s.
Vindos de
centros sociais, de Nápoles a Pádua, de Roma a Bolonha, traziam a marca da
mescla entre autonomia e o “populismo”, entenda-se, consciência política mais
prática que teórica (a Bonanno nunca o haviam visto mais gordo...). Tanto se
abespinhavam entre si, se falavam dos clubes de futebol rivais, como
prontamente enxotaram um apoiante de Beppe Grillo, munido de um grande cartaz,
que se aproximava do bloco “italiano”, no início da manifestação. O militante
grillista recebeu o hino (“Grilo merda lo, merda lo, merda lo...”). Cantavam e
sabiam de cor a razão da letra: “Grilo tem discurso, mas por detrás nenhuma
ligação com as bases e a nossa realidade. Defende a democracia directa e
processa o seu movimento numa ordem piramidal”. E basta!
Já haviam
decorrido mais de duas horas de bloqueio, na frente do bloco anticapitalista,
quando dois trabalhadores do Teatro municipal abrem as portas de emergência,
nas traseiras do edifício, e põem à disposição dos manifestantes duas grades
com água mineral. Deu salva de palmas e pica, já que era gaseificada. Minutos
depois, de uma das janelas do edifício do Teatro, desce um balde com mais
garrafas de água. Rapidamente as garrafas esvaziadas são de novo colocadas no
balde, a mulher à janela puxa a corda, as garrafas sobem, para voltarem a ser
enchidas. Pouco tempo depois, desciam e subiam baldes com garrafas de três
janelas. Isto sucedeu dezenas (centenas?) de vezes ao longo de mais de seis
horas, revelando que a solidariedade dos moradores/trabalhadores não era só
para fazer o bonito dos repórteres de imagem.
De uma maneira
geral, toda a manifestação e os restantes blocos (que não eram visados pela
estratégia de controlo da polícia, nem foram cercados) foram solidários com o
bloco anticapitalista. Correu o rumor de que apenas a Attac mostrava algum stress com a emboscada das autoridades e
com a decisão consensual de recusar as exigências policiais. No ano anterior, a
Attac, que partira na manifestação atrás do “black block”, como tinha sido
previamente estabelecido, foi passando de fininho para a frente, deixando a
cauda da manif. Note-se
que em 2012 a estratégia da polícia era a de apenas provocar o “black block” e
isolá-lo do bloco anticapitalista, onde ia inserido. Este ano, a posição
policial alterou-se, tentando isolar todo o bloco anticapitalista. A perigosidade
alastra.
Attac, diga-se,
que entre os grupos presentes (entre o partido Die Linke – o Bloco de Esquerda alemão –, os
marxistas de várias famílias, as correntes anarquistas, os ecologistas e o
Interventionist Left) tem o projecto político mais frágil. Inspirada na taxa
Tobin, tem como bandeira taxar a especulação financeira para fazer dos impostos
à financeirização um meio de encontrar mais (?) justiça social. Isto é, pôr
mais massa monetária em circulação, regulada pelos Estados e à disposição de quem
governa. Recorde-se que Sarkozy, o chauvinista musculado, comerciou esta ideia
e foi o seu defensor mais conhecido, depois que Ignacio Ramonet lançou a Attac
em 1997.
Como visão
política de uma sociedade alternativa, o Banco Central Europeu não pode ser
sequer ocupado, mas apenas bloqueado (muito menos taxado). A Comuna de Paris
não se equivocou quando deixou o Banco de Paris ao abandono. O equívoco poderá
ter sido não lhe terem chegado fogo, se o que a Comuna alimentava era uma visão
revolucionária e não-capitalista. Não é demais lembrar que a tradicional
crítica à Comuna – a análise de que ela falhou devido a não assumir o controlo
da banca – veio, nem mais nem menos, de Marx, de Engels e de Lenine, ele
próprio. Precisam os movimentos sociais não-capitalistas de alimentar dúvidas
quanto ao que há a fazer com a banca, em termos de visão de fundo?
“Lobbyism
Kills Democracy”
Regresse-se ao
terreno. Ainda não foi dito que a polícia interrompeu a manifestação num local
estratégico, onde facilmente podia encurralar os manifestantes, sem ruas
laterais, como hipótese de fuga (embora quem estivesse a transgredir fossem as
forças da ordem...) e antes da confluência com uma avenida larga, onde mantinha
os canhões de água e os restantes aparatos repressores. O bloco anticapitalista
foi assim forçado a parar bem à frente do Museu Judeu. Acontece que no ano
anterior a primeira provocação policial, que conduziu à quebra momentânea da manif em dois blocos (em 2012 esta
fragmentação, por via da acção policial, ocorreu sempre no interior do bloco
anticapitalista, visando o isolamento do “black block”), deu-se precisamente em
frente ao Museu Judeu. Nos últimos dois anos, no 1º de Maio em Berlim, os
recontros entre a polícia e manifestantes deram-se também em frente ao Museu Judeu
da cidade. Factos que nos advertem a não tirar grandes ilações, sob pena de se
entrar nas despolitizadoras teorias conspirativas. O vazio mecânico e a
debilidade neurótica de associar as lutas anticapitalistas com o anti-semitismo
é um filão que só poderia ser explicado pelo primitivismo do poder governativo.
Reincidindo a coincidência na cidade da Escola de Frankfurt, vem à memória as
teses desenvolvidas por Horkheimer e Adorno sobre a instrumentalização das
massas pelos media.
De passagem,
diga-se que os jornalistas presentes foram afastados das linhas policiais, que
daí a pouco começariam a usar da violência para retirar à força os
manifestantes do bloco anticapitalista, e encurralados a mais de 100 metros de
distância, de onde apenas podiam ver cordões policiais em pelotão.
Foi aliás um
jornalista o primeiro ferido, vítima de gás pimenta. Nessa altura, a polícia
fazia uma espécie de ensaio à determinação dos manifestantes em resistirem à
identificação, investindo contra a cabeça do bloco cercado e usando pela
primeira vez gás pimenta. Foi quando se ouviu o primeiro petardo e as bombas de
fumo se misturaram no ar, lançadas pelos manifestantes. Os cânticos já não
ferviam, estavam para lá do ponto de ebulição, ao desafio e boquejando a
polícia.
Se na dianteira
foi fácil à polícia, na dissimulada, bloquear a manifestação, não foi pêra doce
tomar posições que lhe permitiriam quebrar a manifestação, isolando na
retaguarda o bloco anticapitalista. Esse processo demorou horas. A água fria
descia pelas paredes do Teatro. Bandeiras esvoaçavam atrás dos
“anticapitalistas”, desde as dos anarco-sindicalistas às dos partidos
comunistas Curdos, Iranianos, Turcos, passando pelas da Attac e as dos
anti-fascistas.
Porém, a “bandeira” que melhor se expressava, falava assim:
“Lobbyism Kills Democracy”. Balões coloridos atirados de umas das janelas
flutuaram enquanto a polícia expulsava à força os manifestantes. Os activistas
resistiram em bloco. Circulou a informação através do twitter que se tentavam organizar assembleias,
atrás das forças policiais. Entre ceder às exigências das autoridades ou
resistir, talvez existissem outros caminhos além da consensual resistência (e
muitos manifestantes jamais haviam estado em semelhante situação de repressão).
Escapar ao cerco era de grande improbabilidade, já que não havia acesso a ruas
laterais. Uma hipótese teria sido a decisão de os diferentes blocos se
misturarem entre si, inviabilizando o controlo policial optimizado que visava
apenas o bloco anticapitalista. Teria sido praticável, já que a linha policial
que quebrou a manifestação em dois, na retaguarda, só ocupou posição horas
depois do bloqueio da manif.
A FAU
(anarco-sindicalistas de Berlim) ficou atrás da linha de retaguarda policial,
que encarcerava o bloco anticapitalista. Talvez seja forçoso estabelecer uma
parábola mais do que um paralelismo, já que a estratégia policial só é linear e
clara no seu topo (Governo) e, quiçá, a conduta policial no terreno tenha
traçado uma linha de separação mais irónica que intencional.
E ali estava a
polícia, engrossando-se e separando a cauda do bloco anticapitalista, onde
estava o “black block”, do resto dos manifestantes, agora encabeçada pela FAU.
Ocorreu-me se
ambos conheciam a recente luta dos mineiros asturianos, se uns e outros reflectem
nos pontos políticos e tácticos que parecem desligados, espartilhando um
sentido estratégico afim. A FAU indiferente às tácticas de resistência e
ataque, o “black block” impermeável ao mundo da luta laboral. A realidade é
atroz e violenta que chegue para que as estratégias que visam a autonomia, a
autogestão, a assembleia contra o parlamentarismo, não se unam (além de em
momentos circunstanciais), por razões dogmáticas e lugares-comuns.
Mas seria
inexacto não afirmar que foi precisamente ali onde a polícia usou mais gás
pimenta (pelo menos, por uma vez, três garrafas de spray, do tamanho de um pequeno
extintor de incêndio, foram pulverizadas em simultâneo na mesma direcção),
precisamente porque os elementos da FAU (e não só) tentarem impedir que um cordão
policial entrasse na manifestação, dividindo-a e cercando, na retaguarda, o
bloco anticapitalista.
Mais de 200
feridos. O Triunfo dos Porcos.
O que distingue Merkel e Erdogan?
Desde o início
da “expulsão” individual dos manifestantes do bloco anticapitalista e da
subsequente identificação à força, a polícia precisou de 6 horas para esvaziar
o bloco anticapitalista. No dia seguinte, os paramédicos falavam em mais de 200
feridos e relataram que foram, várias vezes, pressionados pelos robocops para que interrompessem os cuidados
que prestavam. Cuidados também prestados espontaneamente pelos moradores, ao
dobrar da esquina com a rua larga onde a polícia montara a emboscada.
Entre muitos,
sentia-se que face à radicalização das forças da ordem não nos resta senão
pensar mais radicalmente. O Blockupy – como acho em relação a qualquer protesto
social – procura responder à questão de como vai terminar o sistema actual (ou
de como queremos por-lhe fim). Mas, fora dos vários tipos de acção de protesto,
cabe no dia-a-dia construir alternativas que respondam à questão de como vamos
começar desde o início (ou quase), a partir da carcaça do que vai finando. Se
os movimentos sociais, enfim, as pessoas, não derem respostas colectivas a esta
última questão, corre-se o risco de a carcaça ser reanimada em vez de se tornar
obsoleta. Aos olhos das populações é crucial que os caminhos alternativos
surjam enquanto respostas possíveis de um mundo melhor, afastando do seu
imaginário a dependência da narrativa doTriunfo dos Porcos.
Pensar
radicalmente o Blockupy é fazer tudo para escapar à escalada de radicalização
da repressão governativa de Merkel. Não se pode desperdiçar energias e estender
a mão à palmatória. Independentemente de quais sejam os objectivos (presentes
ou futuros) do Blockupy, tudo deve ser pensado para atingir os seus fins sem
facilitar ou ir de encontro à estratégia policial de controlo e repressão. Que
sentido faz, por exemplo, continuar a divulgar a organização de transporte
colectivo para Frankfurt, se pelo segundo ano consecutivo os autocarros foram
parados, bloqueados durante horas e os activistas identificados – primeiro
passo, fotografia do documento de identificação; segundo passo, fotografia da
cara; terceiro, fotografia de corpo inteiro ou da cintura para cima, envergando
o casaco e a mochila. Além da óbvia perda de energia e de disposição, da
perturbação do programa de acções e da capacidade de organizar-se que resulta
de ser bloqueado durante horas, é entregar o ouro ao bandido: estamos aqui
todos juntinhos, partimos a horas certas, seguimos pela auto-estrada,
apanhem-nos e façam o vosso serviço encomendado pelas forças repressivas.
Aliás, se
dúvidas houver, o que pode significar que pelo segundo ano consecutivo a
polícia tenha desviado e bloqueado os 5 autocarros que procediam de Berlim
quando semanas antes um tribunal tomava a primeira decisão de punir a polícia
pelo bloqueio realizado um ano antes e que obriga as autoridades a indemnizar
(500€) os “passageiros”? Quando a Lei condena uma estratégia policial e a
polícia, um ano depois, adopta a mesma postura, com a agravante de cadastrar
fotograficamente os activistas, fica claro que não é a polícia que decide
transgredir a Lei mas o poder governativo, que a incumbe de implementar a
estratégia de controlo ao arrepio da lei.
Outro exemplo,
não menos paradigmático, a organização do Blockupy pediu a aferição
“preventiva” da legalidade e do percurso da manifestação, diferida pelo
tribunal. Mas o que importa às elites governativas, à Troika e à hooliganquia
económica que um tribunal, fazendo votos democráticos, dê razão aos movimentos
sociais que a entente do Poder precisa de combater e controlar, para aprofundar
o seu projecto de dominação política e económica?
Pode a
população ainda querer alimentar um combate com a classe hegemónica, através do
colete-de-forças da legalidade, quando esta não só controla a Lei como a viola
sistematicamente para atingir os seus fins? O que distingue Merkel e Erdogan?
Uma criminaliza quem usa luvas em manifestações, e o outro proíbe bâton
vermelho a bordo? O que os distingue não é sobretudo o diferente estágio social
das sociedades que enfrentam e tentam dominar? Admitindo como factual que a
escala e, principalmente, a intensidade da repressão é maior na Turquia, não
estão unidos pelo mesmo projecto neo-liberal e secundados ambos por aparelhos
de controlo e repressão? Sobretudo, une-os a mentira do tempo e a determinação
de a imporem a torto e a direito.
Apesar de uma
boa parte dos activistas presentes não porem as mãos no fogo pelo cumprimento
da ordem legal (dos direitos e garantias) pelas autoridades, outra parte ainda
ficou chocada pela estratégia policial. Nesse sentido, é de suma importância
que o abuso e a transgressão da legalidade pelo Governo alemão, numa escala e
evidência tão flagrantes, ocorram precisamente na Alemanha, no coração do
centro financeiro europeu.
Bloqueio ao
BCE e acções directas
Se em relação
ao ano que passou houve menos gente na manifestação, reuniram-se mais
activistas nas acções directas e no bloqueio ao BCE, na véspera da manif. Rondariam os 3 mil (mais
um milhar do que em 2012). Quem esteve em Frankfurt em 2102 apercebia-se desse
facto e com razão, mas poderia ser levado a pensar erroneamente que a presença
policial era, por sua vez, menor. Afinal, estavam destacados os mesmos 5 mil
polícias. Percebe-se que, o que mudou, foi a táctica da polícia. Este ano, não
fez dos quarteirões adjacentes ao BCE um campo de concentração do betão armado,
da política predatória, do vazio político, e das milícias armadas que defendem
os desígnios do poder financeiro. Deu mais espaço nos dias de acção directa.
Parecia menos presente. Teriam dado mais “liberdade” de movimento aos
activistas, à espera de uma montra estilhaçada para abrir o telejornal e
justificando preventivamente a repressão programada para o dia de sábado?
Na sexta-feira,
31 de Maio, o dia começou com a
marcha de cerca de 3000 activistas em direcção ao BCE, envolvido em arame farpado.
Diferentes grupos impediram o acesso em seis pontos de acesso ao BCE. Os mais
activos, danificaram a linha
interna de defesa que a polícia tinha criado num dos acessos. Noutro ponto de bloqueio, membros da Antifa cercaram um batalhão policial.
Noutro ainda, bolas e colchões insufláveis eram motivo para animar os
activistas e estimular a robotização maquinal dos agentes de choque.
Após o bloqueio ao BCE, estavam
previstas acções directas em vários pontos da cidade, organizadas por
diferentes grupos activistas: à frente do Deutsche Bank; um mob de grupos feministas sobre o “Care Work”
e as consequências da crise económica na esfera da reprodutibilidade; uma acção
de denúncia ao processo de gentrificação e especulação imobiliária em
Frankfurt; e um protesto (com mais de 700 activistas) no aeroporto de
Frankfurt, bloqueando o edifício
do terminal principal e um dos pontos centrais de trânsito de passageiros,
denunciando a política europeia/alemã de deportação, no aeroporto que mais
cidadãos expulsa do espaço europeu.
A grande
variedade de alvos e as questões levantadas reflecte uma compreensão mais ampla
da regulação capitalista da sociedade e das formas de protesto: lojas de
grandes marcas que exploram trabalhadores dentro e fora de portas, centros de
emprego e a sua política neo-liberal, bancos envolvidos na especulação
alimentar e na “grilagem” de terras em África, centros financeiros e agências
imobiliárias, o aeroporto europeu com mais tráfego e ocupando o primeiro lugar
na política disciplinar de tráfico humano...
Na grande mole
comercial de Frankfurt, o primeiro alvo de ocupação foi a Primark. Os
trabalhadores estavam em greve e a escolha revela a consciência de que os
movimentos sociais e as lutas laborais têm de confluir e encontrar formas de
luta comuns.
Ainda não
estava percorrida metade da rua, ao som da Ritmos de Resistência e quando
grandes nomes da moda e das marcas de roupa já tinham sido invadidas, quando os
activistas se apercebem que muitos estabelecimentos já haviam encerrado portas,
preventivamente.
A um dado
momento a imprevisibilidade das invasões era já uma espécie de desafio entre os
diferentes grupos de activistas, uns e outros, tentando adivinhar qual seria a
próxima loja a ser sitiada e ocupada. Rufavam os tambores até que de repente
alguém disparava a correr, seguido de imediato por dezenas de activistas, criando
uma atmosfera de há festa no palácio. Houve dezenas de invasões e bloqueios,
por vezes, quatro ou cinco lojas em simultâneo. Na Zara, a ocupação chegou ao
rubro, com as escadas rolantes dos 3 pisos, para cima e para baixo, a
regurgitarem de activistas e o slogan «”A”, “A” de Anticapitalista”» a ser
mimado pelos funcionári@s que mandavam beijos aos activistas.
Destaque ainda
para um duo “incendiário” de zapatistas mexicanos, que deram um suporte
inesperado à Ritmos de Resistência. Empoleirados nos bancos, nos postes ou nas
árvores, chamaram a atenção dos manifestantes e dos passantes, cantando músicas
revolucionárias zapatistas. “El hombre, la tierra, la dignidad, no se vende!”.
Houve também
lugar a acções “desmarcadas” e sub-reptícias que não vinham no programa. Uma
sessão rápida de tiro ao alvo à Allianz, cujos vidros ganharam viço com balões
de tinta multicor, e uma inesperada acção no aeroporto da cidade, antes da
manifestação de sábado.
Depois de na sexta-feira 700 activistas terem bloqueado
o principal terminal do aeroporto – e de terem sido alvo de repressão policial
num grau que não ocorrera em nenhum outro local da cidade, no dia dedicado às
acções descentralizadas –, um grupo de menos de trinta activistas rumou de
novo, na manhã seguinte, à “aerogare”. O objectivo era fechar o balcão da
AirBerlin, companhia fretada pelo Estado alemão para proceder aos voos de
expatriação de imigrantes. Enquanto um banner gigante (No Border, No Nation, Stop
Deportation) era colocado ao lado do balcão principal da AirBerlin, o balcão e
a frente de acesso era envolvido em fita-adesiva, impedindo simbolicamente a
circulação – como o passageiro é uma figura tipicamente em stress e lost in “transaction”, a
fita-adesiva foi produzindo um eficaz efeito de tontura e bloqueio dos
passageiros. Bilhetes especiais foram oferecidos aos passageiros com destino ao
incerto lado B do capitalismo trans-nacional. As saquetas para enjoo, com a
mensagem um pouco truncada (“Air Berlin – as nossas deportações são um
vómito!!!”), descontraíam, e os passageiros voltavam à realidade e a sorrir! Os
quatros polícias, franzinos, um pouco pálidos e ainda humanos, ficaram
paralisados. Terminada a acção, ao sair do aeroporto, lá vinha o cortejo de
cinco ou seis “vans” da polícia de choque, hasta
la vista!
O sucesso desta
acção, inesperada e anónima, no aeroporto e o êxito das ocupações temporárias,
programadas e anunciadas em call
out geral, das lojas na zona
comercial de Frankfurt, demonstram como as tácticas de protesto podem partir de
visões aparentemente opostas e devem ser pensadas de acordo com os seus
objectivos específicos, circunstâncias e o momento em que são levadas a cabo.
Onde o efeito surpresa e o secretismo de 25 activistas permitiram fechar o
balcão de uma companhia aérea no maior aeroporto europeu, só mesmo centenas de
activistas em chamada geral, misturados em pleno dia com consumidores e
transeuntes, poderia invadir loja atrás de loja e desbaratinar completamente a
polícia, nitidamente desesperada por ser incapaz de controlar as acções dos
activistas ao longo de mais de duas horas.
Uma coisa
pareceu clara e vir ao de cima nestes dias do Blockupy: de um lado, o poder
começa a ver cada vez mais o seu fim; do outro, as pessoas começam a ter mais
vontade de agir e percebem que isto é mesmo um início que não volta atrás.
Mural de
Artigo com
links: http://umsganze.org/blockupy-2013-first-report/
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