Os bancos souberam:
reconverter os empresários em construtores e gestores
de imobiliário hipotecado aos bancos;
acenar às famílias com crédito para casa própria,
substituindo-se a um Estado ausente da política de habitação;
O sistema financeiro pretende
continuar na posse do aparelho de Estado e dos
domésticos políticos culturalmente indigentes que sequestraram a democracia;
condenar várias gerações à inanição, ao
empobrecimento, à emigração ou a uma morte antecipada.
Sumário
1 – A neocolonização do Sul da Europa
2 – O modelo histórico do baixo salário e as suas
raízes
3 - Quem financia quem?
4 – Como se forma uma espiral de dívida
5 – Dois mitos para destruição urgente
1
– A neocolonização do Sul da Europa
A
trama geopolítica - já referida na primeira parte deste trabalho[1] - tende
a amarrar os povos da Europa do Sul a um projeto neocolonialista de novo tipo,
em que as canhoneiras são substituídas pela dívida e pelas exigências do
capital financeiro, centralizado através de instituições globais. Assim, a
Europa do Sul e de Leste constituem zonas intermédias, de separação entre um
Norte onde se acumula a riqueza e o poder do capital financeiro, por um lado; e,
por outro, o mundo islâmico ou a esfera de influência da Rússia, incluindo aqui
a Ucrânia, a Bielorússia ou a Moldávia.
É
também interessante observar-se áreas de um difuso enquadramento, como a França
e a Grã-Bretanha. A primeira, oscilará entre a consolidação de um apagamento face
à Alemanha e uma ação que oriente o país para a tentativa de enquadramento - ou
até de liderança - na Europa do Sul. No caso da Grã-Bretanha, alicerçada no
poder da City joga-se mais num contexto atlântico do que nas disputas
continentais, sendo bem conhecido o seu distanciamento face ao voluntarismo
europeísta, com particular relevo na recusa em aceitar o euro. No fundo,
ressalta uma lógica de fragmentação europeia que faz esquecer a retórica em
torno de um projeto europeu, cada vez mais messiânico; as promessas da coesão
europeia em que ninguém acredita, mesmo quando se multiplicam, quer a criação
de instrumentos políticos ou económicos de intervenção global quer as
fotografias dos sorridentes dirigentes comunitários.
Tal
como no colonialismo clássico, sempre se arranjam sobas ou marajás locais para
amansar a resistência dos povos ao exercício da soberania exterior, em troca de
mordomias e honrarias. Tal como no colonialismo clássico sempre se encontram
sobas para arregimentar escravos para venda além-mar. Esses sobas têm nomes
conhecidos, como Passos, Rajoy, Samaras…
Qualquer
lógica de colonização contempla uma especialização produtiva que integra
regiões diversas – a colonizadora e a colonizada - num quadro de
complementaridades entre desiguais. Essa desigualdade primordial conduz ao
enriquecimento das potências coloniais e à degradação e desestruturação das
economias colonizadas. Assim, as zonas colonizadas tendem a especializar-se na
produção e exportação de bens baseados em trabalho barato para fornecer à
potência imperial e com forte componente importada, associada à importação de
energia, matérias primas, equipamentos ou bens alimentares da metrópole
colonizadora. Essa preocupação ficou bem expressa, recentemente, por
governantes alemães[2]
Para
que essas zonas colonizadas possam abastecer as áreas mais ricas no quadro da
UE e garantir a sua competitividade face aos designados “emergentes”, têm de
concorrer com estes, em termos salariais e das condições de trabalho; têm de
gerar condições para o fornecimento de contingentes de emigrantes, seja de
gente qualificada cuja formação é paga pelos povos subalternizados, seja de
pessoas menos qualificadas destinadas a funções socialmente pouco valorizadas.
No caso português podem servir ainda de destino aos lazeres dos ricos,
oferecendo climas aprazíveis e viagens curtas de acesso, com um grau muito
aceitável de segurança no espaço público. Essas são as funções a desempenhar
pelo Sul europeu.
Nesse
contexto de especialização, tende a formar-se um crónico deficit corrente, nas
regiões colonizadas, a exigir pagamentos em moeda de curso internacional (euro,
dólar…). Salazar nunca permitiu que as colónias portuguesas tivessem a mesma
moeda da “metrópole”; tinham moedas locais, de curso interno mas, pagavam as
importações provenientes da “metrópole” em escudos, gerando-se nos últimos anos
coloniais o problema dos “atrasados”, por falta de moeda aceite pelos credores
lusos. A França tinha na Indochina a piastra e não o franco, enquanto que a
rupia foi a moeda na Índia durante toda a colonização inglesa. Hoje, o Sul da
Europa é objeto de uma especialização produtiva utilizando a moeda da potência
dominante, o que agiliza as ligações comerciais e financeiras, encobre a
situação de domínio junto das populações, sem contudo deixar de evidenciar esse
domínio através do controlo do BCE, da hierarquia instituída no Tratado de
Lisboa, pela utilização das instituições comunitárias e dos seus mentecaptos
comissários, como fachada executiva de um “projeto europeu”. A História não se
repete mas os instrumentos de dominação podem ser os mesmos, utilizados de
formas diferentes.
Uma
avaliação desses desequilíbrios entre o Norte e o Sul, antes e depois do euro,
da centralização da política monetária em Frankfurt e da instituição das
decisões por maioria de países, fica pelo caminho a ideia encantatória de um
estado federado e a real substituição dessa ideia, por uma UE desigual e
re-hierarquizada, com o apagamento de qualquer poder por parte dos países mais
pequenos, enredados em diretivas e instituições onde não têm qualquer poder de
decisão. Como é evidente, os mandarins globais e os seus mandantes da alta
finança, garantem que tudo acabará em bem depois das reestruturações, das
reformas estruturais, dos necessários sacrifícios… A nomeação pelo capital
financeiro de sobas dos partidos-estados locais pretende garantir a tradução
nas línguas nacionais desses placebos, com a devida subserviência.
Balança corrente (M euros) Soma
2002-2012 (set)
Saldos positivos
|
Saldos negativos
|
||
Alemanha
|
1.336.079
|
Espanha
|
-611.758
|
Holanda
|
403.504
|
Itália
|
-266.534
|
Áustria
|
73.947
|
Grécia
|
-210.543
|
Finlândia
|
53.097
|
França
|
-169.495
|
Bélgica
|
38.901
|
Portugal
|
-156.035
|
Irlanda
|
-29.408
|
||
Total
|
1.905.528
|
Total
|
-1.443.773
|
Fonte primária: Eurostat. Retirado de [3]
Não
é no âmbito deste texto que iremos abordar a questão do euro; se este desaba
sozinho, por implosão interessada da Alemanha, se Portugal, pequena e mansa
periferia, é arredado do clube euro ou, se – com probabilidade infinitesimal –
o partido-estado, com ou sem os manos Dupont/Dupond[4]
(Passos/Seguro), decide sair da zona euro.
Convém
ainda sublinhar que todo este processo de exercício do poder tomando a dívida
como um dos principais instrumentos e tendo o empobrecimento e o genocídio como
consequências se insere no âmbito da globalização capitalista. Precisamente
porque se trata de um processo global exige uma resposta conjunta,
internacionalista; e, toda e qualquer proposta de encerramento nacionalista não
passa de uma proposta reacionária que favorece os mais altos poderes do
capitalismo global.
2
– O modelo histórico do baixo salário e as suas raízes
Entre
os problemas estruturais em Portugal está a fragilidade do tecido económico e a
escassa qualidade da maioria dos empresários, incapazes de sobreviver num
contexto de globalização e agressividade competitiva[5]. As
empresas portuguesas têm baixos indicadores de capitais próprios, são muito
pequenas (84.5% têm menos de dez trabalhadores em 2010); são mais unidades familiares
alargadas para a exploração de um negócio, do que verdadeiros empresas. No
tempo do fascismo beneficiaram da proteção do condicionamento, da ausência de
concorrência, de fronteiras fechadas por pautas aduaneiras, de mercados
coloniais protegidos e, sobretudo dos baixos salários. Desenvolveram,
entretanto outras capacidades, como a utilização de expedientes que tornam as
empresas centros de custos para gastos pessoais; e como a fraude e evasão
fiscal, beneficiando de toda a complacência dos governos que têm permitido assim,
a sobrevivência dessas empresas por contrapartida do subfinanciamento do Estado[6] e da
Segurança Social[7].
A uma tradicional cultura popular de tolerância face à corrupção juntou-se a
deificação da figura do empresário e do negócio, reabilitados poucos anos após
a normalização de novembro de 1975. Uma imagem que os baixos níveis de
investimento não confirmam tão destacados empreendedores.
À
medida que essas vias tradicionais se tornam insuficientes ou não disponíveis, como
resultado da globalização e dos normativos comunitários (anulação de política
monetária própria, nomeadamente) a precária sobrevivência do empresariato luso fica
dependente do baixo salário, como aliás, constitui uma constante na história de
Portugal, nos últimos séculos, com a exploração do trabalho escravo no Brasil
ou do tráfego de escravos no Atlântico, da mão de obra “indígena” nas colónias africanas,
das receitas da emigração no século XX e que, agora se pretende repetir. À
medida que Portugal foi perdendo um papel relevante na História, a inerente
subalternização da burguesia portuguesa não lhe permite ter um caráter
industrioso e apenas um papel de intermediário em pequenos negócios de caráter
local. Veja-se a figura do Oliveira de Figueira, comerciante português nas
histórias do Tim-Tim, a função dos retalhistas de Caracas ou da África do Sul,
muito lestos a explorar os mais pobres, aliando-se aos poderes mais
reacionários da corrupta elite venezuelana pré-Chavez ou aos racistas
sul-africanos, ultrapassados claramente em virulência pelos merceeiros
portugueses em tempos de apartheid.
O
modelo do baixo salário que constitui a actual vocação imposta a Portugal, no
quadro da zona euro é o mesmo que foi aplicado historicamente, no tempo em que
a burguesia portuguesa tinha alguns laivos de soberania. E, não parece que uma
eventual saída do euro, com desvalorizações frequentes da moeda própria,
inflação - e repressão para a manutenção de “contenção” salarial para garantir
a sagrada competitividade externa - altere
em grande coisa o modelo social político, económico e social actual, com raízes
no baixo salário. Não consideramos que o véu monetário (moeda própria,
manipulação das taxas de câmbio e de juros) vá para além disso mesmo, em termos
sociais, no quadro da globalização.
O
gráfico seguinte evidencia as fraquezas financeiras referidas, a enorme
dependência do crédito ou, de outro modo, como é baixa a autonomia financeira, a
parcela de capitais próprios nas empresas portuguesas. E aí está sem dúvida uma
“desvantagem competitiva”. Essa fragilidade habilita o capital alemão a querer investir
na Península na compra ou na geração de dependência através do crédito, dada a
penúria de meios dos bancos portugueses[8].
Fonte: Eurostat (já não disponível)
Entre
1991 e 2010 a evolução do elenco das empresas portuguesas não é auspicioso,
aumentando substancialmente o número de muito pequenas empresas e o seu peso no
total, revelando assim um acréscimo nas fragilidades do conjunto das empresas
portuguesas.
Assiste-se
a uma pulverização de constituição de empresas, à segmentação das atividades
por várias empresas dentro de um mesmo grupo, o que corresponde a uma tendência
resultante da possibilidade material do funcionamento integrado possibilitado
pelas novas tecnologias de computação e informação; para além de alguma
presunção de uma empresa se considerar como incluída num “grupo”, associada a
uma reabilitação e exibição da figura do patrão (atualmente designado por
empreendedor, investidor ou empregador) depois do seu descrédito observado
depois de 25 de Abril de 1974.
Empresas em Portugal
(Continente)
|
|||||
1991
|
2010
|
Variação
|
|||
nº
|
%
|
nº
|
%
|
%
|
|
Total
|
142587
|
100
|
282050
|
100
|
97,8
|
<
4 trab
|
75506
|
53,0
|
186322
|
66,1
|
146,8
|
1/9
trab
|
32619
|
22,9
|
51885
|
18,4
|
59,1
|
<
10 trab
|
34462
|
24,2
|
43843
|
15,5
|
27,2
|
MTSS - Quadros de
pessoal
|
O
número calculado de “não-TCO” nos quadros das empresas é esmagadoramente (96.2%
em 2010) constituído por “empregadores”. E o volume desses “não-TCO” cresce
regularmente de 131.9 mil em 1991 para 248.4 mil em 2002, reduzindo-se
ligeiramente até 2009 para decair até aos 179.6 mil em 2010; em todo o período
1991/2010 o número de “não-TCO” terá crescido 36.1%. Isto revela precisamente a
autonomia relativa de unidades de custo sob a forma empresarial, num contexto
de centralização de capital e não uma explosão do acesso de pessoas ao mundo
empresarial; embora o volume de TCO no mesmo período tenha crescido menos
(28.2% do que o conjunto dos “não-TCO”. (TCO=trabalhadores por conta de outrém)
Por
outro lado, na indústria transformadora – principal veículo da exportação - o
número de empresas cresceu apenas 6.6% no período e foi submergido pelo elevado
crescimento das empresas de construção, comércio e serviços. Esta evolução,
reflete os desequilíbrios externos essenciais; redução do peso relativo das
empresas (e trabalhadores) nas áreas de produção material dirigidas para o
mercado interno como para a exportação e um reforço substancial da produção de
bens (construção) e serviços não transacionáveis, bem como da distribuição de
bens importados, com a manutenção de uma pulverizada área de comércio e
restauração, constituída por muito pequenas empresas de gestão familiar.
Empresas
por sector de atividade em Portugal (Continente)
|
|||||
1991
|
2010
|
Variação
|
|||
nº
|
%
|
nº
|
%
|
%
|
|
Total
|
142587
|
100
|
282050
|
100
|
97,8
|
Ind.
Transf.
|
33114
|
23,2
|
35297
|
12,5
|
6,6
|
Construção
|
14668
|
10,3
|
36101
|
12,8
|
146,1
|
Comercio
e hotelaria
|
59375
|
41,6
|
110148
|
39,1
|
85,5
|
Serviços
|
17052
|
12,0
|
72533
|
25,7
|
325,4
|
Outras
|
18378
|
12,9
|
27971
|
9,9
|
52,2
|
MTSS - Quadros de
pessoal
|
A
dívida média das empresas à banca, recentemente, é da ordem dos € 490000,
sabendo-se, porém, que para 61.1% daquelas que têm crédito concedido, o valor
desses débitos é inferior a € 50000 e que somente 11.5% das empresas devedoras
da banca tem uma dívida superior à média global [9].
Finalmente,
refira-se que 54.1% das empresas têm uma faturação anual inferior a €150000 (€
12500/mês) e quase ¼ têm um volume médio de vendas mensais da ordem dos € 2100.
Esta situação reveladora de escassa dimensão e fragilidade, é muito sensível à imensa
quebra do consumo interno e às restrições de crédito, estas inerentes ao risco
bancário na concessão de crédito bem como à própria penúria de capitais dos
bancos. Neste contexto, os bancos mostram-se muito relutantes a fornecer novos
créditos e são obrigados ainda - a braços com créditos de recuperação difícil,
pelo menos nos prazos inicialmente propostos - a aceitar reescalonamentos, bem
claros no aumento substancial do crédito a mais de cinco anos. Em todas estas
dificuldades transparece a irracionalidade do capitalismo, dos bancos, ao terem
afunilado os seus créditos na especulação imobiliária e no crédito a muito
longo prazo (habitação), desestruturando totalmente a economia portuguesa.
3
- Quem financia quem?
Em
2007, a dívida das empresas privadas (excluindo o financiamento junto de outras
empresas) correspondia a 113.2% do PIB, o que se eleva a 132.1% em fevereiro de
2013 (159.7% e 185.8%, respetivamente se se não proceder à exclusão referida).
Os
grandes grupos estatísticos que financiam as empresas privadas são o setor
financeiro e outras empresas, com valores, no conjunto de € 270400 M em
dezembro de 2007 e € 307300 M em fevereiro último, mantendo-se este número praticamente
estável desde 2010, evidenciando um crescimento de apenas 13.7% em todo o
período. Sinteticamente, o crescimento observado para a dívida do conjunto das
empresas privadas foi de € 37000 M, com quase € 25000 M somente entre 2007 e
2008.
Fonte primária: Banco de Portugal
A
quase única variação estrutural observada no conjunto dos financiadores das
empresas privadas consiste na redução da dívida ao setor financeiro (menos € 4000
M entre 2007 e 2013-fev) compensado pelo forte aumento da dívida ao exterior (mais
€ 25000 M no mesmo período). A incapacidade financeira dos bancos aliada aos
riscos inerentes à quebra da atividade económica no seio de empresas com
frágeis estruturas financeiras, conduziu a que as empresas de maiores dimensões
ou mais ligadas ao exterior tenham substituído a banca portuguesa por
financiadores externos. Por outro lado, observa-se também um aumento da dívida
junto de outras empresas e particulares, no âmbito de lógicas de grupo ou de
suprimentos de sócios para reforço das necessidades financeiras que os bancos
não conseguem prover e que também não terão acesso a crédito obtido no exterior.
Associadas
às empresas privadas, neste contexto de dívida estão as empresas públicas para
as quais se detém uma informação semelhante. As suas dívidas orçavam € 29700 M
em 2007 e € 46700 M em fevereiro deste ano, mantendo-se nesta ordem de grandeza
desde 2010. No período considerado, a dívida das empresas pública cresceu
57.3%.
No
quadro desse crescimento verifica-se uma substituição do financiamento direto
do exterior pelo crédito fornecido pelo Estado que, irrelevante em 2007 atinge
a quinta parte do total este ano. Em valores absolutos o financiamento externo
estagnou em 2009/2011, para se reduzir posteriormente, acompanhado de modo mais
ténue pelo apoio do sistema financeiro interno.
A
dívida das empresas públicas ao Estado orça os € 9300 M em fevereiro último,
depois do grande crescimento observado em 2010/2012. Em 2007 este conjunto de
empresas tinha uma dívida correspondente a 17.5% do PIB, que se elevou para
22.6% em fevereiro (28.2% se se considerar a dívida “interna” ao Estado).
Conhece-se
bem o processo. Perante a cotação dada pelas agências de “rating” à dívida
pública, o financiamento externo retraiu-se, os bancos adquiriram financiamento
barato junto do BCE que posteriormente canalizaram para a compra de títulos da
dívida pública… entregues ao BCE como garantia dos empréstimos aos bancos. O
Estado – impedido por lei de recorrer diretamente ao BCE - colocou esses meios no
apoio às empresas públicas, cobrando os bancos diferenciais apreciáveis entre
as taxas de juro pagas ao BCE (1%) e as conseguidas na emissão de dívida
pública, substancialmente mais elevadas, dada a cotação de “lixo” fornecida
pelas prestimáveis agências de “rating” à dívida pública. A banca como máquina
de sucção, sem riscos; o “mercado” de que os banqueiros gostam.
No
contexto das suas fragilidades estruturais, os bancos tenderão a preferir
aplicar capitais em dívida pública também porque o Estado não vai à falência,
como as empresas, pois detém o sagrado direito de extorsão sobre a população; o
Estado detém o privilégio de cobrar tributo sem qualquer contrapartida
inerente, nem justificação acurada, bastando para o efeito decisão do gang
governamental, com ou sem o conforto de aprovação parlamentar mas, sempre com o
discreto e dirimente apoio da suserania da troika. E, entretanto, recorde-se
que o sistema financeiro define ou influencia fortemente as decisões dos
mandarins, como se observou, recentemente a propósito do caso dos swaps. Caso esse que já deveria ter
conduzido à indiciação de alguns gestores do partido-estado por gestão danosa,
com direito a pulseira eletrónica, no mínimo.
4
– Como se forma uma espiral de dívida
O
fluxo dos fundos comunitários a partir de 1985, a liberalização dos movimentos
de capitais e o euro, constituíram a alegria do sistema financeiro luso. Os
fundos oleavam as disponibilidades dos bancos e dos construtores civis; a
liberalização baixava as taxas de juro e facilitava a procura de crédito; e o
euro eliminava o risco cambial, enquanto se reduziam drasticamente os entraves
ao recurso aos capitais externos. A liberalização dos movimentos de capitais
foi aprovada através da diretiva n.º 88/61/CEE do Conselho, de 24 de Junho de
1988 e cuja doutrina foi posteriormente integrada no Tratado da Comunidade
Europeia (Tratado CE) pelo Tratado da União Europeia (Tratado de Maastricht).
As
novas facilidades para a captação de capitais externos animavam os pequenos e
médios banqueiros portugueses embora tivessem de ceder parte do mercado a uma
forte participação em Portugal de grandes bancos espanhóis. Recordamos Roquete
ao funcionar no Totta como testa de ferro do Santander por imposição do governo
e do Ricardo Salgado; como lembramos Salgado ter retirado a possibilidade da
intervenção espontânea a Durão na campanha eleitoral de 2002, depois do
ignorante ter proposto a privatização da CGD.
Por
outro lado, a economia produtiva, devido ao seu endividamento, aos largos
prazos de recuperação dos investimentos inerentes a essas atividades, bem como
aos riscos e dificuldades surgidas do alargamento da UE a Leste e ainda do
desarmamento aduaneiro face aos produtos dos países “emergentes”, mormente a
China (acordo Multifibras), não eram áreas que interessassem os bancos.
Para
os bancos, o crédito concedido a empresas descapitalizadas ou inviáveis no novo
contexto de liberalização das trocas comerciais, geridas por empresários
manhosos e incapazes[10], não
era prioritário. A não ser que pudessem oferecer como garantia bens reais e com
valorização garantida com a passagem do tempo, como é o caso das empresas
imobiliárias, de construção ou de promoção turística. E daí que a construção e
o imobiliário representassem 12% do crédito concedido em 1996 e 40% em 2012.
Estas
distorsões promovidas pela política de crédito têm também impactos evidentes no
emprego. Em 2010, a indústria transformadora que correspondia a 22% do pessoal
ao serviço das empresas, beneficiava de 13% crédito; inversamente a construção
e o imobiliário com quotas, respetivamente, de 11% e 1% no pessoal ao serviço
das empresas, absorviam 22% e 14% do crédito total.
Em
1993/95 há um período de forte recessão que promoveu a fim do cavaquismo em
cujos bastidores já se observava a maléfica presença do António Borges, do
Vítor Gaspar, géneros de agente laranja, embora só um pateta como o Catroga
tenha chegado a ministro.
Com
o regresso do PS ao governo em 1995 foi lançada com mais fulgor a orgia do
imobiliário/turismo/construção em detrimento da economia produtiva. Os
empreiteiros pequenos ou grandes, com larga utilização de mão de obra imigrada
passaram da construção para o imobiliário comercial e turístico; e foram
seguidos por muitos industriais possuidores de terrenos com boa localização
para erigir supermercados, centros comerciais, condomínios ou descaraterizados
subúrbios. As facilidades de concessão de crédito abriram “oportunidades de
negócio” a um vasto leque de parasitas que adoptaram a designação de promotores
imobiliários. Os bancos emprestavam facilmente, as câmaras aprovavam
loteamentos, partidos e autarcas eram destinos do pagamento de favores e os
governos continuaram sem uma política de habitação.[11] Os
bancos e o seu Estado criaram uma verdadeira cadeia de montagem; empréstimos ao
sector imobiliário, este paga aos bancos com a venda das habitações financiadas
pelo sistema bancário, que fica feliz fechando o circuito com uma enorme faixa
da população endividada por décadas.
Fonte primária:
Banco de Portugal
Para
facilitar um destino final para tanta habitação (e também lojas e escritórios),
os governos deram vários e bons contributos.
- Avançaram com bonificações de juros para compra de habitação e Durão Barroso extinguiu-as ainda se não adivinhava a crise actual; por seu turno, Sócrates reviu as situações já em vigor[12];
- O partido-estado facilitou também deduções de juros em sede de IRS. Relativamente a 2011 a dedução máxima era de € 591, correspondente a 30% de um juro anual pago de € 1970 (ou superior), admissível para alguém que tivesse uma prestação mensal elevada, de uns €750/800 (cálculo baseado em caso concreto). Para o último ano de entrega de declaração de IRS (2012) o agente laranja Gaspar manteve os € 591 de dedução mas, este máximo terá de corresponder apenas a 15% do valor total dos juros pagos; neste caso, o contribuinte terá de ter pago de juros pelo crédito à habitação mais de € 3940 devendo a prestação mensal ser, pelo menos, da ordem dos € 1550! Para uma benesse fiscal anual de € 591, o Estado que tanto incentivou a população a endividar-se para comprar casa exige que o endividado pague de prestações um valor anual de € 18500/19000 que, como se pode observar, não é possível de arcar pela esmagadora maioria da população;
- Em 2009/2011 as deduções dos juros na coleta de IRS relativas a juros de empréstimos para habitação situaram-se numa média de € 560/580 M, abrangendo cerca de 1.1M de famílias; com a alteração introduzida para 2012 o Estado retira às famílias uns € 280 M que havia deduzido da carga fiscal para facilitar o endividamento das pessoas. É o que se chama mudar as regras do jogo antes de ele ter acabado; é o comportamento que se tornou habitual no ilegítimo e cleptocrático Estado português;
- Outro exemplo está nas isenções de Contribuição Autárquica/IMI, com a correspondente perda de receita fiscal a qual, não impediu a passagem de uma cobrança de € 695 M em 2003 para cerca de € 1100 M no último triénio conhecido (2008/2010);
- Para incentivar a compra de habitação, foram dadas isenções de dez anos, atualmente restritas a cinco anos, estando em curso um programa de aumentos substanciais do imposto através de enormes reavaliações do património para os próximos anos. Tendo em conta a grande quebra do poder de compra em Portugal vai tornar-se difícil muitas famílias manterem as suas casas, sendo de esperar um forte incentivo governamental para a sua venda a pensionistas dos países do norte da Europa. Uma vez mais se levantam aqui questões de responsabilização do atual sistema político-partidário e dos bancos pela situação desastrosa de muitas famílias com dificuldades para pagar os empréstimos.
O
gráfico seguinte revela o desenvolvimento do desastre. Numa primeira fase
predomina o crédito às empresas e a partir de meados da década de 90 o reforço
do peso do imobiliário aliado ao apagamento relativo de outros setores acaba
por desembocar numa segunda fase do ciclo, quando o crédito bancário se
concentra nas famílias, nomeadamente para financiamento de habitação própria,
não sendo dispiciendo o empenho dos bancos em criar novas dependências para as
pessoas, financiando consumos supérfluos ou sumptuários. De facto, os bancos
consideravam mais seguro aplicar os seus capitais em empréstimos de muito longo
prazo, com garantias reais e sabendo que só em caso extremo as famílias
deixariam de pagar as prestações. Daí que o crédito às empresas tenha crescido
30 vezes desde 1979 mas, 311 vezes no que se refere às famílias.
Fonte primária:
Banco de Portugal
O
sistema bancário criava assim uma grande imobilização de capitais, com
empréstimos sem risco, em vigor durante várias décadas tornando-se, na
realidade rentista. Ora o rentismo não é a vocação dos bancos; a especulação de
câmbios, as operações de titularização e derivados rendem muito mais do que os spreads no crédito à habitação.
5
– Dois mitos para destruição urgente
O
marketing político e a superficialidade dos media divulgam falsidades e geram
mitos.
É
fácil ver que o funcionamento do mercado é uma treta e nada tem de virtuoso. Os
bancos lançaram-se na obtenção de créditos sobre créditos, imaginando que a
esponja lusitana absorveria toda a colocação dessa dívida, ad eternum; os construtores pensavam poder erigir novo imobiliário
sempre com preços em “valorização”; a classe política, nomeadamente a ligada
aos loteamentos ia arrecadando luvas dos loteadores e endividando as câmaras. E
muita gente acreditava que uma casa de praia a somar ao habitáculo de cidade
era quase uma obrigação, dadas as vantagens de crédito oferecidas pelos bancos.
O
funcionamento do mercado, que se pretende desregulamentado, “livre”, como expressão
de acordos entre entes livres e “iguais”, como empresas poderosas e uma família
de trabalhadores, não seria possível sem o dedicado apoio do Estado; sem a
utilização do aparelho de Estado, as suas imposições e coerções face ao povo, o
mercado não seria veículo essencial para a acumulação capitalista.
Para
colmatar os chamados desajustamentos do mercado – a palavra desajustamento
pretende apontar para um desvio conjuntural, ocultando a real tragédia
estrutural - o Estado e os governos ao serviço da troika entraram em cena do
modo habitual, ajudando os bancos com muitos milhares de milhões, sem sequer
aventar uma hipótese de fusões entre eles[13]. Em
contrapartida, às famílias endividadas e sem recursos, muitas vezes resultantes
do desemprego e da austeridade, o Estado anula os benefícios fiscais que havia
dado para compra de habitação e fornece, de má vontade e com limitações,
subsídios de desemprego que acabarão muito antes que surja um novo emprego ou,
encarrega a Jonet de fornecer uns quilos de açúcar para adoçar um despejo que
venha a caminho.
A
existência em Portugal de 1.4 M de pessoas disponíveis para o trabalho, sem o
conseguirem, só pode ser considerado como resultado de um desajustamento do
mercado de trabalho para quem seja idiota ou beneficie de algum modo, com o
capitalismo, excludente e genocida.
No
fim – mesmo com os apoios estatais - o infalível “mercado” produziu um enorme
desequilíbrio de 5.9 M de casas para 4 M de famílias; e, mesmo entre estas,
muitas, acossadas pelo desemprego, não as conseguem pagar nem vender, a não ser
com perdas brutais. Como se referiu mais acima somente 1.1 M de agregados
familiares está a pagar empréstimos pela compra de habitação e, entre os
restantes, muitos não têm sequer capacidade para pagar um arrendamento.
Para
terminar esta peça centrada na dívida privada, convirá destruir a propaganda
criminalizadora das famílias portuguesas, acusadas pelo poder de “viverem acima
das suas posses”. Esta mensagem junta-se à pose conformista e reacionária de
pessoas que se preocupam com a dívida pública ou ao exterior porque “não
queremos ser caloteiros”, assumindo assim uma honra ofendida resultante de um
espírito patrioteiro, conveniente para a direita e defendido por parte
importante da esquerda do sistema.
A
dívida acumulada pelo conjunto das famílias apresenta grande estabilidade no
período que se inicia em 2007, com um valor em torno de € 165000 M (99% do
PIB). No total dos financiadores das famílias pesa, substancialmente o sistema
financeiro com quase 90% do total em todo o período considerado.
A
dívida média, em 2012, com a compra de habitação era pouco superior a € 48000,
a pagar em 20 ou mais anos. As famílias quando se endividaram para este efeito
não foram, em regra, levianas nos seus cálculos, levando em linha de conta, os
seus encargos habituais, a dimensão da família e os rendimentos percebidos;
assumiram a dívida, num quadro de extrapolação das suas vidas até ao momento,
assumindo também uma estabilidade laboral, uma vez que em caso de morte de um
cônjuge, a ativação do seguro de vida imposto pelo banco credor, não atiraria o
cônjuge sobrevivo para a miséria, pelo menos tendo em conta a amortização da
casa. Por outro lado, os bancos e as vantagens fiscais oferecidas pelo Estado
constituíam um elemento indutor de confiança para as pessoas e que as empurrava
para o endividamento para aquisição de casa, uma vez que o partido-estado
jamais teve a política de habitação imposta na Constituição.
As
dificuldades atuais das famílias para pagar a mensalidade da habitação não se
devem a cálculos errados mas, à sabotagem que o partido-estado procedeu nas
suas vidas, promovendo o desemprego, o empobrecimento, a perda de rendimentos e
direitos, desestabilizando a vida da esmagadora maioria da população. Tudo isso
como resultado de décadas de desestruturação da economia, de canibalização do
dinheiro dos impostos para gerar negócios às empresas do regime, do aumento do
domínio do capital financeiro, do desenvolvimento de uma economia mafiosa
incrustrada no Estado.
Este e outros documentos em:
http://pt.scribd.com/people/documents/2821310?page=1
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
http://grazia-tanta.blogspot.com/
http://pt.scribd.com/people/documents/2821310?page=1
http://www.slideshare.net/durgarrai/documents
http://grazia-tanta.blogspot.com/
[1] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/05/quando-divida-aumenta-democracia.html
[2] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/06/apoio-alemao-empresas-portuguesas.html
[3] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/03/a-instrucao-e-o-modelo-economico-para-o.html
[5]
http://www.slideshare.net/durgarrai/empresrios-portugueses-incapazes-inteis-nocivos-e-batoteiros
[7]
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2012/07/a-divida-seguranca-social-o-longo.html
[8] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/06/apoio-alemao-empresas-portuguesas.html
[9] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2012/05/divida-portuguesa-total-canibalizacao.html
[10] http://www.slideshare.net/durgarrai/empresrios-portugueses-incapazes-inteis-nocivos-e-batoteiros
[11] A dívida de pessoas e empresas – a
dependência eterna
Sobre
a (não) política de habitação dos governos portugueses
[13] Temos
conhecimento que a troika tem, há dois anos, um plano de contingência que contempla fusões de bancos portugueses
Parece que estamos entre a espada e a parede,ou seja "entre o mercado liberal e o Estado." Sendo que o dito mercado é monopolista(e não liberal)e o Estado acaba por ser o gerente dos monopolistas.
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