Sumário:
1
- Panorama histórico global
2
- O neoliberalismo
3
– Notas sobre a globalização excludente
4
– Aplicações neoliberais na bacia do Mediterrâneo
5
- As clivagens demográficas e económicas. A posição de Portugal
1
- Panorama histórico global
É
meridianamente verdadeiro que a riqueza relativa de Europa se iniciou com o
saque de recursos, baseado na guerra e na pirataria – esta, como forma
redistribuidora do espólio entre as potências europeias. Curiosamente, a
jurisdição da época distinguia entre piratas (iniciativa privada) e corsários
(piratas com credenciais de um Estado, uma forma pioneira de parceria
público-privada), sendo os mais célebres, Drake e Surcouf); o que não era
compreendido totalmente por comerciantes e marinheiros de navios saqueados e
afundados. Hoje, também não é fácil distinguir a cupidez de bancos privados e a
de bancos públicos.
Mais
tarde, no século XIX, na sequência do predomínio europeu no mundo,
estabeleceu-se uma hierarquia entre as potências europeias para a efectivação
da partilha colonial do planeta, especialmente em África (Conferência de
Berlim, 1885) e na Ásia. No continente americano, para além dos EUA, vigoravam
essencialmente fórmulas de neocolonialismo, sobre as antigas colónias ibéricas,
dominadas desde as independências por minorias oligárquicas de brancos e crioulos.
Sobrevindo
a descolonização, há pouco mais de meio século, alargou-se à África e à Ásia a
forma neocolonial da exploração dos recursos, numa aliança entre o capitalismo
ocidental e as suas multinacionais, por um lado. e as oligarquias corruptas do
chamado Terceiro Mundo, de peles escuras e máscaras brancas.
De
toda a secular pilhagem e exploração de povos de além-mar nasceu uma enorme acumulação
de riqueza – rendimentos e propriedade – que permitiu aos capitalistas
ocidentais amenizarem as lutas de classe e jugularem os ímpetos revolucionários
da multidão. Feitas as contas, efectuada a análise dos custos e dos benefícios,
o poder económico ocidental utilizou o bom pecúlio da exploração neocolonial,
do controlo dos preços e da troca desigual para favorecer as camadas
trabalhadoras, em troca da paz social. Foram os aparelhos dos Estados que se
encarregaram dessa mediação, criando sistemas de apoio na doença e na velhice,
férias pagas e garantia de emprego. Bismark foi um dos primeiros a compreender
as vantagens desse modelo pacificador e, em 1933, Beveridge criou nos EUA o
primeiro sistema de segurança social.
O
designado modelo social europeu, nas suas diversas configurações (escandinava,
renana, japonesa, inglesa…), funcionou enquanto as economias cresciam em ritmo
aceitável para suportar os custos sociais inerentes que mantinham os
trabalhadores mais ou menos serenos dentro dos seus redutos nacionais, com o
apoio decidido e por vezes musculado das burocracias sindicais. Foi o periodo
dos conhecidos “gloriosos trinta anos” cujo fim foi selado politicamente pelas
revoltas de Maio de 1968 em França e depois na Itália, pela capacidade da OPEP em
aumentar o preço da energia e ainda, pela derrota americana no Vietnam.
O
capitalismo ocidental inventou então a deslocalização da produção para locais
no mundo onde os custos da gestão alargada da mão de obra eram mais baratos; o
processo vulgarizou-se e a produção segmentou-se em diversos componentes que
deixaram de estar integrados em grandes conglomerados de empresas, para terem
uma produção individualizada e de massa, repartida por várias empresas em
vários continentes.
A
liberalização dos movimentos das mercadorias processou-se em paralelo, pois as
fronteiras, as alfândegas e os impostos ali cobrados constituiam barreiras e
encargos que tendiam a produzir custos, alongar o tempo de circulação das
mercadorias e reduzir a rendabilidade das multinacionais.
Recorde-se
que o liberalismo económico havia renascido, após a II grande guerra, com o
retomar da tese das vantagens comparativas e da criação, então, de mercados
para as exportações dos EUA. Isso, porém, numa base geográfica limitada que
servia os interesses das multinacionais norte-americanas, muito interessadas em
participar na reconstrução da Europa, devastada pela guerra, em unificar o
espaço europeu naquilo que se veio a chamar, então, as Comunidades, com relevo
para a CEE.
Voltando
ao final dos “gloriosos trinta anos”, todo o processo descrito, a globalização,
acentuou as dificuldades de crescimento das economias europeias, promoveu a
pressão para que os níveis salariais não acompanhassem a inflação, nem os
acréscimos de produtividade e gerou desemprego. Entretanto, os bens de consumo
produzidos, sobretudo na Ásia, chegavam a baixos preços, concentrando-se a
Europa nos serviços e na produção material não exportável ou, onde (por
enquanto) existem qualificações impares que permitem uma exportação
competitiva.
2
- O neoliberalismo
Iniciou-se
há cerca de quarenta anos (no Chile de Pinochet) a aplicação prática do modelo
de gestão social e organização económica alicerçado nas teses de Hayek, a que
se designou por neoliberalismo. Pretendia-se assim proceder a um remoçar do
liberalismo económico, derivação do pensamento dos economistas do século XVIII,
porém, despojado da inspiração iluminista, do pendor igualitário e moralista
daqueles; derivação essa que mostrou os seus limites, mesmo a sua estupidez,
durante a recessão de 1929/33.
Procurou
contrapor-se o neoliberalismo ao keynesianismo reinante desde o New Deal e dos
finais da última grande guerra, acusado de não promover o investimento, de
limitar a iniciativa privada, de assentar num aparelho de Estado, omnipresente
e ávido de impostos.
Algumas
das características nobres desta forma de gestão do capitalismo são a
mercantilização, a competitividade, a desregulamentação e, mais recentemente, os
aprofundamentos criativos da financiarização e da flexibilização. Todos estes
preceitos pretendem-se como regras universais dos detentores de capital
aumentarem o que sempre foi o seu móbil essencial – o lucro.
O
lucro, a “criação de valor” é tomado como o motor da criação de riqueza, a base
da poupança, geradora do investimento, que por sua vez promove o crescimento e
o desenvolvimento e de onde resulta o bem-estar geral. Para tal é preciso reduzir
ou eliminar custos, toda a “gordura”, para que os empreendedores possam
promover a felicidade global… um dia! Como ser empreendedor sem capital não é
nada fácil – pesem embora as fábulas sobre os “self-made men” – é preciso
enriquecer os capitalistas para cumprirem a pesada responsabilidade de promover
o bem da Humanidade.
Os
problemas sociais, o desemprego, os despedimentos, os baixos salários, os
desequilíbrios internacionais ou nacionais, o acesso a cuidados médicos ou a um
ensino decente, tudo tem resolução através do mercado. O neoliberalismo
apresenta-se como panaceia para todas as maleitas.
Esta
axiomática que também se designa por catecismo ou teologia neoliberal constitui
portanto, um mecanicismo auto-suficiente, uma revelação. E é esta conversa
fiada que é ensinada nas universidades, que é regurgitada pelo patronato, pelos
mandarins de referência, pelos media e até repercutida no discurso das próprias
vítimas da teologia.
Mesmo
quando a actual crise mundial, a incapacidade dos governos, da Comissão
Europeia do BCE, do sistema financeiro apodrecido revela que a ortodoxia
neoliberal é uma patranha, as universidades não inovam, não revêem o que
ensinam. Recentemente, ouvimos um mediático neoliberal, um tal João Duque,
director do ISEG referir o seu grande feito: ter iniciado neste ano lectivo uma
turma pioneira por ter aulas só em inglês e que a coisa se vai expandir. Será
que importa a língua utilizada se o que se aprende é parvoice?
3
– Notas sobre a globalização excludente
No
processo de inserção dos dogmas neoliberais a nível global, podem-se
identificar duas fases.
Numa
primeira fase do processo de (des)montagem neoliberal procedeu-se à
transferência de actividades dos países ocidentais para países e locais de
baixo preço de mão de obra, associados a duras e extensivas condições laborais
ou menosprezo pelos danos ambientais. As necessidades de funcionamento do
modelo neoliberal pouco se perturbam com essas questões ou com a existência de
ditaduras a que eufemisticamente designam por “deficits democráticos”, “regimes
musculados” e outros epítetos; desde que contribuam para a criação de lucros, a
ausência de valores, a ética, os direitos humanos não causa perda de sono aos
promotores da ordem económica global. Até se mostram distraidos se lhes for
apontado que a corrupção, a fuga fiscal, a burla, são factores de distorção da
concorrência.
Essa
deslocalização e a liberdade de circulação de mercadorias e capitais
promoveram, a segmentação da produção em unidades independentes, localizadas um
pouco por toda a parte e associadas a pesadas cadeias logísticas, consumidoras
de capital e geradoras de enormes consumos energéticos. E promoveram, como
consequência, o abandono de equipamentos, terras, conhecimentos, gente,
transformados em monos, improdutivos e inúteis, nos países ocidentais.
Paralelamente,
oferecendo a possibilidade de proceder a investimentos, as multinacionais
incentivaram a concorrência entre países e seus governos, regiões e seus
autarcas, com as contagiosas sequelas na mente dos povos, volúveis a cânticos
nacionalistas, em que a minha pátria é melhor e mais gloriosa que a tua; regionalistas,
em que os nortenhos são melhores que os sulistas, os madrilenos melhores que os
“lepes”, etc; xenófobos, segundo os quais a minha etnia ou religião é mais
civilizada e esperta que a tua, sobretudo se fores preto ou cigano. Como os
gestores globais de multinacionais se devem divertir como se agitassem um osso,
com uma matilha de cães ladrando e saltando à sua volta, cada qual disputando a
refeição!
Para
aceder a essas benfeitorias das multinacionais, governos e autarquias competem
entre si, oferecendo terrenos e benefícios fiscais específicos e procurando que
o trabalho seja remunerado de forma a agradar às multinacionais, que é como
quem diz, com baixos níveis e condições laborais… competitivas. E as
multinacionais sempre saberão utilizar consultores e advogados, como
intermediários para corromper os decisores certos (ministros, autarcas e
outros); os casos Freeport, dos submarinos, em Portugal, estão aí para o
confirmar. A escalada neoliberal da concorrência e do empobrecimento relativo ou
absoluto, encontra aí um decisivo elemento.
Sem
dúvida que as deslocalizações também vieram a gerar em alguns casos emprego ou
a retirada da miséria de muitos trabalhadores nos países pobres para onde se
transferiram fábricas e criaram novas actividades economicas. Os camponeses
chineses que clandestinamente se mudaram para as cidades decerto não foi porque
naquelas encontrassem piores condições de vida, mesmo trabalhando sessenta
horas semanais. Isto até poderia estar contido num discurso do Strauss-Khan!
Mas,
na realidade, a esmagadora maioria das populações dos paises pobres está longe
de ter grandes benefícios com as deslocalizações. Na Índia, apesar dos avanços
realizados, 92% da população vive na miséria; no norte do México, o tráfego de
droga coabita com as desumanas “maquilladoras”; e, com os 40% de egípcios que
vivem $ 2 por dia, constituem outras tantas manchas negras no quadro idílico do
neoliberalismo. E as multidões que se acolhem às metrópoles africanas em busca
de sobrevivência, uma vez que a agricultura nos seus países não é viável e a
indústria não aparece? E os favelados do Brasil? E os centro-americanos que
morrem no muro da fronteira México-EUA para fugir à fome? E os africanos que se
esmagam contra as redes fronteiriças em Ceuta ou se afogam no mar antes de
chegarem à Europa? E os roubos, as violações, os assassínios que os assolam
pelo caminho?
Em
termos globais, da multidão mundial, a parcela que beneficiou da globalização
excludente não supera em quantidade e acréscimo de rendimento a parcela daqueles
que, no chamado Terceiro Mundo, são vítimas da pobreza por obra do desnorte da
economia mundial, somados aqueles que, na Europa e nos EUA vivem no desemprego
continuado ou na pobreza. Nos opulentos e exemplares EUA, da Wall Street e dos
Goldman Sachs, 42 M de pessoas recebe cupões para comer nas instituições de
caridade.
Numa
segunda fase, foram surgindo paises, nomeadamente com grande dimensão
territorial e demográfica onde, com um forte apoio do Estado e utilizando
mitologias socialistas ou nacionalistas, se foram construindo sectores de média
e elevada tecnologia com uma lógica laboral mais ou menos restritiva e sem
abandono dos baixos níveis salariais, comparativamente aos praticados nos
países desenvolvidos. Está-se a falar particularmente dos BRIC – Brasil,
Rússia, Índia e China mas, também de outros como o Irão ou a Venezuela.
Esses
países, no seu conjunto, detêm imensas reservas energéticas, uns 40% da
população mundial, armas atómicas (Rússia e China), recursos financeiros
apreciáveis, vão aumentando as trocas entre si e com terceiros e possuem
competências técnicas e tecnológicas em quase todas as áreas da produção.
O
surgimento destes poderes regionais fortes, com razoável margem de manobra para
com as multinacionais ocidentais, nomeadamente o FMI, constitui um desafio
enorme à supremacia política e económica do Ocidente; e não existe uma solução
militar disponível ou ganhadora que possa ser lançada pelos EUA, pela UE e
pelos seus instrumentos de guerra.
Todo
este processo de globalização não anulou as fronteiras no que se refere às
normas laborais e salariais, à regulação social ou ambiental; as fronteiras
continuam a ser imprescindíveis para a segmentação da produção e da multidão,
ao estabelecimento de hierarquias internacionais e intra-nacionais, dentro do
velho preceito de “dividir para reinar”. De facto, por um lado, defendem-se
lógicas incentivadoras da constituição de mercados alargados, de coordenação de
políticas e homogeneização ideológica (o tal pensamento único); por outro, assiste-se,
em paralelo, ao fomento de forças centrípetas, à implosão de estados, à sua
reconstituição em bases frágeis ou mesmo inviáveis, sempre que daí resultem
clientelas dóceis, facilidades de implantação das multinacionais, vantagens
geoestratégicas, etc.
Em
nome da competitividade, da inserção nos “mercados” globais, também no que se
refere aos paises ricos se tem vindo a consolidar um pendor para o rebaixamento
dos níveis salariais e das condições de vida, que está longe de ter terminado.
Esse rebaixamento tem sido feito para benefício do tripé em que assenta a
estrutura do capitalismo – o sector financeiro, as multinacionais e o capital
mafioso – com evidentes ligações aos Estados nacionais ou plurinacionais, com a
utilização normativa e “exterior” das organizações internacionais (OMC, FMI,
OCDE…).
Finalmente,
as possibilidades oferecidas pelo sistema financeiro, pela especulação, pelos
ignotos, omnipotentes e omniscientes “mercados” constituem um destino o para
encaminhamento dos capitais. Se um capitalista investe na construção de uma
fábrica, isso representa imobilização de capital, com recuperação em vários
anos, problemas técnicos e de gestão, trabalhadores… tudo evitável perante as
facilidades, a liquidez e a rendabilidade dos “mercados” financeiros. Portanto,
é mais prático, menos cansativo e mais rendável colocar o dinheiro na
especulação, emprestando, por exemplo, dinheiro aos Estados – a dívida soberana
- os quais, obedientemente, exercerão os seus direitos de exercer a punção
fiscal para abastecer aqueles capitalistas, absentistas e desligados de
qualquer função socialmente útil.
4
- Aplicações neoliberais na bacia do Mediterrâneo
Como
produto de toda esta reestruturação do poder económico e político mundial há um
declínio político e económico do mundo ocidental, de carácter “tectónico” com a
ascensão da Ásia do sul e oriental e da América Latina. No que se refere à
bacia do Mediterrâneo, mais particularmente, verifica-se:
Na
Europa,
·
Um
empobrecimento económico, com o surgimento de mais fundas clivagens entre o
centro e a periferia do continente, entre o norte e o sul; no sul da Europa, há
mesmo um processo de visível terceiromundialização, com a degradação acelerada
das condições de vida;
·
Uma
deriva anti-democrática nos métodos de escolha política e uma lógica
concentracionária, em torno de mandarins autoritários e não-eleitos, nas
decisões estruturantes na configuração política, social e militar da UE;
·
A
criação de vastos segmentos da multidão, como excluidos, tomados como
excedentes demográficos e verdadeiras excrescências sociais, como os
desempregados, os trabalhadores precários, os reformados, os funcionários
públicos, os pobres, no seu conjunto, agredidos, ostracizados ou ignorados
pelos poderes estatais ou sindicais;
·
A
criação de novos alvos do chauvinismo e do racismo (ciganos, imigrantes,
sobretudo africanos e muçulmanos) como polos de canalização e confluência de
descontentamentos múltiplos. O anúncio do falhanço ou da inconveniência do
multiculturalismo por Cameron, Sarkozy ou Merkel insere-se no mesmo objectivo;
·
A
manutençaõ de alguma entrada de imigrantes do sul, por dois motivos. Por um
lado, dada a situação de miséria e desespero vivida na margem sul, a entrada
controlada de imigrantes constitui uma pressão contínua no sentido do
abaixamento dos salários nos países europeus. Em segundo lugar, é preciso
manter a ilusão junto dos deserdados do sul de que há uma saída para as suas
vidas no lado norte do Mediterrâneo; mesmo que os bafejados com essa sorte
sejam poucos e se passem a designar “sem-papéis”, forma crua de referir a
ausência de direitos e de dignidade humana.
Na
África do Norte e na Ásia Ocidental,
·
Na
orla sul e oriental do Mediterrâneo têm sido incentivados ou tolerados regimes
políticos ditatoriais em torno de oligarquias monárquicas ou militares,
gestoras da venda de recursos energéticos ou de centros de acolhimento de
massas de turistas;
·
O
grande crescimento demográfico e da população urbana em especial, acompanhado
de um forte aumento das habilitações dos jovens, gera um conflito insanável
para com as oligarquias nacionais e os seus apoiantes ocidentais, dadas as
enormes taxas de desemprego, as fundas desigualdades na distribuição do
rendimento e a generalizada corrupção;
- Também
para as populações do Maghreb e da Ásia ocidental está na agenda uma
lógica virada para a supressão dos pobres para suprimir a pobreza, uma vez
que aquelas populações são consideradas pouco interessantes do ponto de
vista do capitalismo global;
- Essas
lógicas excludentes que incidem sobre estratos sociais ou etários assume
formas de genocídio relativamente a algumas nacionalidades, despojadas e
despejadas das suas regiões de ancestral permanência, como no caso dos
palestinianos e dos saharauis;
- Os palestinianos e os saharauis são os destacamentos mais avançados, os “eleitos” pela globalização excludente no genocídio lento que está dirigido aos povos das duas margens do Mediterrâneo, como produto da incapacidade do capitalismo de promover o desenvolvimento e o bem-estar para a esmagadora maioria dos povos que vivem em torno do velho Mare Nostrum.
5
- As clivagens demográficas e económicas. A posição de Portugal
As
clivagens demográficas e económicas na bacia do Mediterrâneo estão em gestação
há décadas e atingiram um ponto de desequilíbrio nunca atingido no passado. Se,
do ponto de vista económico as posições relativas entre os vários quadrantes
geopolíticos do Mediterrâneo se têm mantido, com algumas alterações, no
capítulo da demografia regista-se uma mudança qualitativa essencial.
As
regiões geopolíticas aqui definidas são as seguintes:
- Europa
Sul-Ocidental
- África
do Norte
- Europa
Sul-Oriental
- Ásia
Ocidental
Em
1889, no rescaldo da Conferência de Berlim, de partilha da África, a população
estimada para a bacia mediterrânica distribuia-se do seguinte modo(1):
1000
|
%
|
|
Africa
do Norte
|
31.468
|
16,5
|
Asia
Ocidental
|
22.176
|
11,6
|
Europa
Sul-Oriental
|
33.762
|
17,7
|
Europa
Sul-Ocidental
|
103.718
|
54,3
|
Total
|
194.124
|
100,0
|
Pese
embora que o cálculo da população nos paises colonizados não tenha sido
rigoroso, pois não se realizavam aí recenseamentos, o colonialismo ou o
semi-colonialismo de que era objecto o Império Otomano, tinha na base uma
grande superioridade militar, económica e, como se observa, demográfica, das
potências coloniais relativamente aos povos submetidos. Isto, sem prejuizo das
resistências passivas ou activas, pacíficas ou armadas dos colonizados contra a
suserania europeia, impante, autoritária e racista, para a qual os colonizados
eram incivilizados, brutos, animalizados.
Em
finais da segunda guerra mundial e antes do início da descolonização,
demonstra-se que a população da Europa Sul-Ocidental já não constituia a
maioria da população da bacia mediterrânica mas, apenas 46.7% do total.
Actualmente,
a Europa Sul-Ocidental representará apenas 28.2% do total, o que passou a
representar menos do que qualquer uma das populações do Norte de África e da
Ásia Ocidental. Para o periodo 2025/2050 é prevista uma estagnação da população
daquela região europeia, com a continuação da perda de quota no total da bacia
mediterrânica.
Fonte
primária : CNUCED/UNCTAD
Por
outro lado, a população da Europa Sul-Oriental que cresce até 1995, entrou em
declínio desde então e terá em 2050 uma população aproximada à que tinha
oitenta anos antes.
O
número de habitantes do Norte de África é hoje o quádruplo da que registava em
1950 e projecta-se que cresça 50% até 2050. Na Ásia Ocidental a população quase
quintuplica o número atingido em 1950 e crescerá 70% nos próximos quarenta
anos. Em 1950, a Europa Sul-Ocidental tinha mais 40 M de habitantes que o
conjunto das partes de África e da Ásia aqui consideradas; actualmente, tem
menos do que apenas uma daquelas regiões!
Finalmente,
na fortaleza ocidental designada por Israel, o crescimento vem-se manifestando
regular devendo-se isso, como é sabido, parcialmente, ao aumento verificado nos
súbditos de origem palestiniana, cidadãos de segunda.
Não
se pretende, de modo algum, subscrever teses malthusianistas, uma vez que a
espécie humana sempre se soube adaptar às condições naturais e socio-económicas
dos espaços; e, por outro lado, imaginando uma estagnação das capacidades
tecnológicas de produção de alimentos nos níveis actuais, o planeta seria,
hoje, capaz de alimentar 12000 M de seres humanos, pouco menos do dobro dos
seus actuais 7000 M de habitantes. Naturalmente, portanto, nada justifica que
não seja apenas decorrente das estruturas económicas e sociais próprias do
capitalismo e dos “mercados”, o aumento dos preços dos bens alimentares ou o
recrudescimento do número de indivíduos em situação crónica de fome.
A
distribuição do rendimento entre as regiões consideradas como distintas para o
periodo 1970/2010 revela, a despeito de algumas variações, uma relativa
estabilidade.
Fonte
primária : CNUCED/UNCTAD
A
parcela da Europa do Sul-Ocidental decresce até 1985, atingindo na década de 90
mais de três quartos dos rendimentos gerados em toda a bacia do Mediterrâneo,
voltando a reduzir-se até ao momento presente, revelando claramente as baixas
taxas de crescimento que vêm marcando a conjuntura na Europa do sul. No
entanto, ultrapassa os três quartos do rendimento regional, actualmente… para
uma população que só representa 28.2% do total.
A
Europa Sul-Oriental reduz a sua participação no rendimento global para cerca de
metade, de 1950 para 2000, fruto das dificuldades de crescimento no seio do
antigo Comecon, da sua transição para a lógica neoliberal e ainda da
pulverização do antigo espaço jugoslavo.
No
Norte de África, o peso no rendimento da bacia cresce até 1985, não voltando a
atingir o mesmo nível desde então, situando-se em 2010 na situação em que se achava
há quarenta anos; isto é, 5.4% para uma população que representa 30.4% do
total.
Na
Ásia Ocidental há um aumento substancial da sua representatividade na década de
70 do século passado, consequência evidente das grandes subidas do preço do
petróleo então registadas, decaindo depois, para retomar a ascensão do seu peso,
já no actual século. Embora tenha uma população que representa 28.6% da bacia
mediterrânica a parcela do rendimento global não ultrapassa 15.5%. Note-se
ainda a redução do peso de Israel na última década.
A
comparação dos dois gráficos anteriores revela as enormes desigualdades
existentes na bacia do Mediterrâneo e justifica, de um modo global e claro, as
actuais clivagens políticas e económicas entre as duas margens do mar e indicia
as causas das dificuldades da multidão, causadas pelos seus respectivos
mandarinatos, bem como dos levantamentos populares em curso. E, como em todas
as médias, oculta as enormes desigualdades dentro das diversas fronteiras
nacionais, sobretudo dada a pequena dimensão das classes médias, nas margens
sul e oriental.
Apesar
das desigualdades que se vão acentuando na Europa como resultado das lógicas da
competitividade e do primado dos mercados, a situação não é comparável com a
observada nos outros paises da bacia, onde grande parte da produção e das
exportações se concentra em bens energéticos cujos rendimentos se acumulam nas
contas das castas governamentais.
Quando
se revela que Mubarak terá roubado, no seu longo consulado ditatorial cerca de
$ 70000 M, correspondendo a um terço da economia egípcia, percebe-se a miséria,
o desemprego e a revolta dos egípcios. E quanto terão roubado os generais que
ainda estão no poder? Com tais possibilidades de enriquecimento que levaria os
generais a solidarizarem-se com os povos da região no extirpar do quisto
israelita? Claro que preferiram o abrigo fofo do tio Sam e o conforto das
luxuosas mansões no deserto e os rendimentos de centros comerciais. Generais sentados
à beira do Nilo.
A
comparação revela também as causas profundas da crispação existente na UE
relativamente aos outros povos ribeirinhos; a razão pela qual a UE apoia todo e
qualquer regime autoritário e corrupto, como guarda das suas fronteiras, das
condutas de petróleo ou gás e do Suez. E ainda a razões do armamento e das
acções militar-policiais levadas a cabo pelo dispositivo militar-estratégico
ocidental no Mediterrâneo.
Para
sintetizar com maior clareza as desigualdades descritas, compare-se a
distribuição actual da população e do rendimento.
Considerando
que o índice 100 corresponde à capitação média do rendimento no Mediterrâneo, o
quadro seguinte revela pequenas variações nos níveis relativos dos vários
quadrantes, excepto no que se refere à Europa Sul-Ocidental que, contudo vem
estabilizando as distâncias relativamente à média global, desde 1990. Apesar
dessa situação, aquela região é a única verdadeiramente ganhadora nos quarenta
anos estudados.
Neste
contexto, notem-se as perdas, ainda que ligeiras, do Norte de África, a partir
de 1990 e que contribuem para que a região se posicione como a mais pobre do
Mediterrâneo. Salientam-se também as alternâncias entre a Europa Sul-Oriental e
a Ásia Ocidental, sempre claramente aquém da média global, afectadas pelo peso
da Europa Sul Ocidental no conjunto.
Fonte primária : CNUCED/UNCTAD
O
gráfico que se vai seguir estabelece o quociente entre a capitação média na
Europa Sul-Ocidental e as capitações das outras regiões.
O
rendimento médio de um habitante da Europa Sul-Ocidental correspondia em 1970
ao de 7.3 norte-africanos mas já 13.6 actualmente. Na Ásia Ocidental era
preciso somar o rendimento de 3.7 habitantes de 1970 para alcançar a capitação
de um europeu do sudoeste e esse indicador subiu para 4.5, quarenta anos
depois, apesar de algumas melhorias nos anos noventa.
Na
Europa Sul-Oriental o indicador também evolui desfavoravelmente nos anos
noventa e fixa-se em 3.1 em 2010.
Globalmente,
a capitação de um habitante da Europa Sul-Ocidental valia o correspondente à de
1.8 cidadãos da bacia mediterrânica, em 1970 e evoluiu para 2.4 no tempo que
corre. Em suma, a redistribuição dos rendimentos beneficiou, nos últimos
quarenta anos, a Europa Sul-Ocidental.
Entre
as heterogeneidades dentro de cada uma das regiões identificadas, sublinha-se a
que se observa na Europa Sul-Ocidental, sensivelmente um primeiro quadrante da
bacia mediterrânica (ver mapa) e oculta as grandes desigualdades que existem
entre os países e povos aí enquadrados. E, na parte que interessa aos
residentes em Portugal revela-se o grande equívoco quanto à Europa.
Destaca-se,
para além de algumas quedas registadas nos países mais desenvolvidos, o facto
de Portugal evidenciar, tal como a Espanha uma evolução muito favorável nos
dois primeiros lustros que se seguiram à integração na UE (1986). No caso
português a estagnação, comparativamente à média da bacia mediterrânica, é
bastante visível nos últimos quinze anos; bem como o distanciamento
relativamente ao vizinho ibérico.
Fonte primária : CNUCED/UNCTAD
No
que respeita a Portugal vão apresentar-se elementos tratados em trabalho
anterior (2) sobre a distribuição do rendimento, para um cotejo mais detalhado
sobre a posição do país na hierarquia regional. Disse-se aí que 5148 milhares de
trabalhadores por conta de outrém ou de conta própria, em 2008, teriam auferido
50.2% do rendimento nacional, cabendo a cada um o valor anual médio de € 16220
para fazer face à sua existência e dos seus familiares, nomeadamente crianças. Por
outro lado, os 441 000 indivíduos que vivem essencialmente de lucros, juros e
rendas arrecadam 36.8% do rendimento nacional, o designado excedente bruto da
produção; cabe a cada um, em média € 61277 anuais, sem esquecer que a grande
maioria daqueles tem também emprego e é remunerado pelo seu trabalho. São casos
escandalosos de rendimentos do trabalho, os proventos do célebre Mexia e do
presidente da TAP, Fernando Pinto que dificilmente se não podem deixar de ser
considerados capitalistas.
Como
é evidente e palpável, há um grande fosso entre trabalhadores e capitalistas,
sabendo-se que a chamada classe média, muito referida nos media, é bastante mais
reduzida do que se julga; embora ideologicamente, seja comum encontrarem-se
pessoas com parcos rendimentos, que se afirmam como pertencentes a essa classe
média.
O gráfico que se segue procede a um cotejo
entre a capitação do rendimento para os países incluidos na região Europa
Sul-Ocidental, incluindo Portugal, para 2008/2009 mas, apresentando também os
rendimentos médios de um trabalhador português e de um luso capitalista.
Fonte
primária : CNUCED/UNCTAD, INE
Conclui-se
que um capitalista português padrão tem, vivendo em Portugal, um rendimento
equiparado ao de um suiço médio, sabendo-se que inversamente, o rendimento de um
trabalhador comum em Portugal só daria para uma semana em cada mês, se vivesse
na Suiça.
Esta
situação escandalosa, é produto do modelo neoliberal e revela como é degradante
para quem vive em Portugal, olhar-se ao espelho e ver a imagem da sua apatia ou
resignação. É escandaloso também que na divertida esquerda portuguesa, esta
questão nunca tenha sido colocada claramente e catapultada para propostas
políticas mobilizadoras da multidão. Quem compreenderá que na esquerda
paroquial lusitana, nada se refira sobre as desigualdades existentes na
distribuição do rendimento?
É
urgente e imperioso que, na sequência das movimentações de massa de 12 de Março
último, as desigualdades no rendimento e nos impactos da pressão genocida exercida
pelo sistema financeiro global sejam tidas em conta para uma transformação do
cenário político e social que vai doendo à esmagadora maioria da multidão; e que
esta deixe de se mostrar distraida para com os capitalistas e os ricos.
(continua)
Notas:
(1) Com base em
elementos recolhidos no Atlas de Geographie Moderne, Librairie Hachette, 1889
(2) Portugal, os
“mercados” e o empobrecimento generalizado
http://www.slideshare.net/durgarrai/portugal-os-mercados-e-o-empobrecimento-generalizado e neste blog
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