domingo, 25 de dezembro de 2011

O novo fascismo que está em marcha

1 – Introdução (a)

Quando se fala de fascismo muitos tendem a considerá-lo como coisa do passado ou algo inerente a grupos tão agressivos como folclóricos que não constituem, de facto, ameaças estratégicas.

Encetamos, hoje, algumas crónicas sobre o fascismo, alertando para a sua presença nas sociedades de hoje, não como repetições do passado mas, como formas adaptadas aos tempos que correm, totalitárias, que visam o esmagamento da multidão, não hesitando perante o genocídio.

Perante o menosprezo ou a ignorância da ameaça fascista que se acha presente nas sociedades dos países ditos desenvolvidos, de democracia de mercado, decidimos abrir as nossas reflexões com um texto de Bertold Brecht, que conheceu bem o fascismo e que teve de se exilar para fugir ao cilindro nazi.


O ANALFABETO POLÍTICO
O pior analfabeto
É o analfabeto político,
Ele não ouve, não fala,
Nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo da vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha,
Do aluguer, do sapato e do remédio
Dependem das decisões políticas.
O analfabeto político
É tão burro que se orgulha
E incha o peito dizendo
Que odeia a política.
Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política
Nasce a prostituta, o menor abandonado,
E o pior de todos os bandidos,
Que é o político vigarista,
Pilantra, corrupto e lacaio
Das empresas nacionais e multinacionais.

2 – Introdução (b)

Mussolini disse que a democracia acaba e o fascismo começa quando o poder político e as corporações se entrelaçam, se confundem. E, tendo em conta o seu papel em acabar, na Itália, com a primeira e estabelecer o segundo, a afirmação merece todo o nosso respeito pela indiscutível autoridade do autor da expressão.

Não é o objectivo deste texto abordar a ligação entre os governos e o poder económico autóctone ou multinacional que, para mais, é característica inerente ao capitalismo, sobejamente conhecida. Interessa-nos, neste contexto, relevar aspectos relativos à formatação ideológica e às concepções vulgarizadas para o domínio das consciências, para a mansidão da multidão.

Contrariamente ao que poderia resultar da utilização da frase do Duce, não encaramos o termo fascismo na sua acepção meramente histórica, com um contexto geográfico e temporal delimitado. Interessa-nos muito mais observar as características actuais do capitalismo que constituem marcadores evidentes da necessidade de uma dominação política semelhante às dos fascismos históricos. Uma dominação, hoje, muito mais sofisticada, exigida pela maior qualificação cultural e técnica da multidão e possibilitada pelos enormes meios financeiros, de marketing e tecnológicos disponíveis pelo capital.

Há, portanto, no presente, elementos sociais e ideológicos que nos permitem afirmar que está em marcha uma renovação do fascismo, com novas roupagens mas idêntico conteúdo, com os objectivos similares aos conhecidos da primeira metade do século XX.


3 – A insegurança

Uma das características das transições para o fascismo e nos regimes fascistas maduros é o fomento da insegurança na mente das pessoas; de uma insegurança sem nome, com origem incerta, quer no espaço, quer no tempo. Essa insegurança difusa acresce aos temores que resultam da precariedade do emprego, das limitações no acesso à saúde, do custo da habitação, estes, bem reais e palpáveis. No seu conjunto, a insegurança torna-se presa fácil dos devaneios populistas de qualquer demagogo bem falante e, torna-se útil instrumento para a aceitação pelos “inseguros” da autoridade mais musculada, mesmo que a troco da renúncia a uns quantos direitos ou ao encolher de ombros face à marginalização de uma camada social ou um leque de opiniões.

A luta anti-terrorista decretada pelos EUA e logo adoptada ordeiramente pela UE torna omnipresente a ameaça terrorista, pouco faltando para que induza qualquer um … a espreitar para debaixo da cama na hora de deitar. Serve de argumento para justificar as intrusões policiais, as base de dados pessoais, as vídeo-vigilâncias, os constantes registos e passwords que são exigidos para aceder a informações tão vulgares como a consulta da lista telefónica na Internet protagonizada pela execrável PT. Justifica ainda a pressão constante sobre os imigrantes (ou simples candidatos) tomados globalmente como suspeitos de terrorismo, sobretudo se de pele escura ou muçulmanos; sabendo-se também, que esse opróbrio mais não visa do que embaratecer o trabalho que realizam e com isso pressionar para baixo os salários de todos os trabalhadores.

Esta característica, bem actual é semelhante à “conspiração judaica” contra a Alemanha nos anos 30, às “conspirações vermelhas” em Itália ou Espanha, à “instabilidade governativa” mais tarde substituída pelo “comunismo internacional” sempre apontado como o financiador de qualquer protesto dos trabalhadores e que serviram para o homem de Santa Comba se estabelecer tão duradouramente na cadeira de S. Bento.

4 – O Outro, o culpado

O Outro é, insidiosamente primeiro e de modo mais declarado depois, considerado causa de todos os males, como a inflação, o desemprego, a criminalidade, os maus costumes…

O Outro, começa a assumir contornos bem precisos à medida que se vão sucedendo os discursos dos ministros, os seus recados para o telejornal. São os funcionários públicos assoberbados de regalias e altos salários; são os desempregados que instalados em poltronas saboreiam a boa vida; são os trabalhadores efectivos que estão acomodados e causam a baixa produtividade das empresas; são os trabalhadores com baixas fraudulentas que passeiam nos centros comerciais durante nas horas mortas; são os doentes que afluem aos hospitais para conviverem alegremente uns com os outros; são os beneficiados pelo RSI que perante tão elevados subsídios se espreguiçam por aí; são os reformados que delapidam o orçamento da segurança social.

O Outro é também o imigrante, que vem cá roubar trabalho ao esquadrão luso, nas cabecinhas mais influenciáveis por ideias feitas.

Não fomos exaustivos. Mas, a nossa honestidade intelectual obriga-nos a excluir expressamente, os ministros e os seus assessores que tanto trabalham, os bravos empresários que resistem à concorrência externa e à hidra da burocracia estatal, os autarcas assoberbados com tantos projectos imobiliários geradores de “luvas” e todos os envolvidos na especulação imobiliária e bolsista e que se designam por investidores. Aliás, como se observou, o projecto de Belmiro para a PT criava postos de trabalho em catadupa (?) e catapultava o PIB para valores invejáveis… Absolvem-se também os abnegados lutadores contra a evasão fiscal, com o Paulo Macedo à cabeça e os que, nos alcatifados corredores do poder negoceiam isenções fiscais ou prescrições de dívidas.

E como o Outro é o culpado, a encarnação do mal, do lado bom da vida estão as suas vítimas, isto é, Nós! Nós e os nossos dirigentes, aqueles senhores que nos defendem e que decerto têm razão mesmo que nem sempre entendamos o que dizem. E daí que, na nossa mesquinhez acabemos por nos congratular com o nivelar por baixo em termos de direitos e rendimentos, quando o afectado é o Outro, obviamente; é a ignóbil inveja do miserável.

Ontem, o Outro era o judeu, o sindicalista, o anarquista, o comunista, o intelectual de esquerda, o homossexual, a prostituta, o agitador profissional. Hoje, é o pensionista, o desempregado, o funcionário público, o imigrante, o beneficiário do RSI, o trabalhador (por inerência excedentário).

O exacerbar das dificuldades da nação serve para exigir disciplina, sacrifícios, a aceitação de um “downsizing” continuado de rendimentos reais, direitos, garantias e qualidade de vida.

Terminamos este primeiro artigo, como começámos, com um poema de Brecht, transbordante de actualidade:

A indiferença

Primeiro, levaram os comunistas
Mas eu não me importei
Porque não era nada comigo.

Em seguida, levaram alguns operários
Mas, a mim não me afectou
Porque eu não sou operário.

Depois prenderam os sindicalistas
Mas, eu não me incomodei
Porque nunca fui sindicalista.

Logo a seguir chegou a vez
De alguns padres mas,
Como nunca fui religioso,
Também não liguei.

Agora, levaram-me a mim
E, quando me apercebi,
Já era tarde.

5 – A integração das funções militares e policiais

A actual “luta anti-terrorista” torna incerta a localização do inimigo e, portanto, ele pode estar entre nós, como foi dito a propósito dos alegados responsáveis dos atentados de Londres, que afinal seriam britânicos comuns. Uma vez que existe essa potencial omnipresença do inimigo, a fronteira deixou de ser um ponto de controlo físico para se montar a guarda face à ameaça externa e, daí, que aquela se entrelace com a ameaça intra-muros, a subversão, a conspiração permanente, de contornos inextricáveis. A fronteira é o que nos separa do Outro, com toda a imprecisão que daqui resulta.

Se se torna difuso o espaço onde estará o inimigo – veja-se o manifesto exagero quanto à presença urbi et orbi  da Al-Qaeda– então funde-se, naturalmente, a defesa face ao exterior (função das forças armadas) com a segurança interna (função das polícias).

6 - O novo figurino das Forças Armadas (FA)

É evidente que as FA são, em regra, em qualquer circunstância, uma força repressiva ao serviço do capital, mesmo quando abertas à integração de todos os indígenas ou mesmo quando, transitoriamente, são dominadas por uma oficialidade mais ou menos progressista que, a candura de muitos julga ser um caminho para a libertação dos povos.

A abolição do serviço militar obrigatório é uma forma de privatizar as forças armadas, de acentuar a sua domesticação. Já não basta o domínio da tropa através da oficialidade imbecil e repressora pois, com a profissionalização de todo o corpo militar, a apurada selecção de todos os seus membros, as FA passam a ser, de facto uma milícia. E, como milícia, deixa de haver qualquer ligação entre os soldados enquanto conscritos e a multidão de trabalhadores e ex-trabalhadores.

A abolição do serviço militar obrigatório agrada, na generalidade, aos jovens, em regra avessos ao autoritarismo, às formas de doutrinação patrioteira ou às humilhações gratuitas que visam o esmagamento da individualidade, a submissão. Porém, simultaneamente, o capital ganha maior capacidade de escolher os membros das FA obtendo um maior controlo da instituição, uma maior capacidade de doutrinação dos seus membros na defesa do poder, da ordem, da democracia de mercado. Para os seus membros, a presença nas FA deixou de ser um frete transitório que se suporta com maior ou menor custo e onde se pode ficar imune ao espírito vanguardista e elitista vomitado pela oficialidade, para se tornar numa presença duradoura em que a doutrinação se pode firmar de modo mais profundo.

7 - O elitismo anti-social da tropa

O espírito militarista constitui um atractivo para muitos simpatizantes fascistas que encontram assim, no cerne do aparelho repressivo do capital, um local fulcral de actuação e influência, em prejuízo da multidão e dos seus elementos mais contestatários. Nos energúmenos nazistóides vibra a mania da pertença a um grupo de eleitos, espírito esse que joga bem com o desprezo que a instituição militar tem para com os paisanos.

Essa amálgama de fascistas com imbecis vulgares que se julgam pertencentes a uma elite de ungidos da pátria torna-se assim uma firme coorte de defesa do capital e das suas instituições, num conservadorismo primário e trauliteiro.

Curiosamente, as esquerdas institucionais não põem em causa a existência das FA, o seu carácter parasitário em termos sociais, os custos económicos que a multidão acarreta com a sua manutenção, os custos democráticos que é a existência de uma instituição por natureza autoritária e propagadora do parasitismo, da mandriice, e do nacionalismo mais serôdio. Ainda curiosamente, a esquerda tradicional portuguesa que é capaz de aplaudir o julgamento e a punição dos generais balcânicos torcionários e assassinos nunca levantou a questão da punição ou sequer da averiguação das práticas criminosas das FA portuguesas nas antigas colónias africanas.

As esquerdas tradicionais, reféns do jogo institucional, dos subsídios estatais que pagam os seus enormes aparelhos calam perante a multidão a verdadeira natureza das FA e aceitam implicitamente a divisão da multidão mundial em grupos nacionais cada vez mais ridículos face à integração mundial do processo produtivo e às imensas trocas culturais que caracterizam o mundo de hoje.

Na sua habitual estreiteza de vistas, as esquerdas tradicionais, nas próximas eleições para o executivo camarário de Lisboa não conseguem coragem suficiente para propor, por exemplo, o fecho da Portela ou o estabelecimento de um sistema global de portagem para evitar a invasão da cidade com carros. Não é de esperar, portanto, que aponte, alguma vez, como objectivo para a multidão a extinção das FA, quem não consegue passar da gestão dos fait-divers na hora do telejornal.

Em suma, as FA são o núcleo mais íntimo, mais duro, a reserva mais preciosa, o diamante do aparelho repressivo do capital e que por isso se torna um elemento onde mais prolifera a ideologia anti-social, contra o trabalho e contra a contestação do sistema.

No contexto geopolítico europeu, contudo, as FA dos estados nacionais são muito mais do que a milícia das burguesias nacionais. Elas funcionam em rede, com exercícios conjuntos, com uma imensa troca de informações e acções de formação, homogeneização de equipamentos, interligando-se com o aparelho militar-industrial do bloco geopolítico dominante. A rede de FA dos países europeus insere-se, num plano mais elevado, no aparelho de dominação dos EUA, com posições de obediência e subalternidade face à suserania americana (Iraque, Afeganistão, Kosovo, Timor, Líbano…)

8 - A militarização de todo o espaço público

Outro aspecto desta militarização é a inundação de todo o espaço público e privado por polícias, guardas e seguranças com várias fardas. Nas portas das empresas e serviços públicos, nos supermercados e bancos, no metropolitano, nos hospitais e nos condomínios mais luxuosos onde moram os capitalistas, gestores de topo e mafiosos diversos, lá se encontram os afadigados e atentos polícias públicos e privados. Em muitos casos, não se contentam com a imposição de simples porteiros, preferem a exposição de uns pobres diabos, com vestes e poses de rambos aos quais falta (por enquanto?) a exibição de armas.

A proliferação de empresas e agentes de segurança fornece até, em Portugal, um dos poucos vectores de geração de emprego por parte de muitos dos pouco habilitados. Existe também um potencial para essas empresas se encarregarem de certos “trabalhos” por conta de respeitáveis empresários. Recorda-se, por exemplo um caso revelado na imprensa, anos atrás de uma empresa de segurança com obra feita no lançamento de fogo em prédios abandonados para a devida aceleração de processos de construção… mesmo que daí tenha resultado a morte de alguns sem-abrigo; ou, mais recentemente, por conta da direcção da Universidade Independente.

A interacção das empresas de segurança com a polícia e as FA é comum, constituindo em conjunto a rede da chamada segurança interna do capitalismo num dado território. Assim, existem militares em posições de chefia nas polícias e nas empresas de segurança; e estas fornecem pessoal e serviços às FA. No Iraque, por exemplo, para além das FA americanas existem dezenas de milhar de elementos “civis” com missões específicas que não interessa serem assumidas pelas FA, pois os media só contam como mortos os soldados e porque se algumas dessas empresas cometerem “exageros” no campo dos direitos humanos, os impactos não atingem as FA. E tudo isto, sem esquecer que essas contratações são objecto de vultuosos pagamentos a empresas privadas à custa das contas públicas.

A segurança tecnológica permite o controlo dos movimentos de todos, a nossa localização a todo o momento, o traçado de todos os nossos passos, como explendidamente exposto por Orwell em meados do século XX. A via verde, o cartão MB, os passes de transporte, a vídeo-vigilância, as chamadas telefónicas, a utilização da Internet, permitem às polícias monitorar, sempre que o queiram os nossos movimentos, o pulsar da multidão, a detecção de comportamentos desviantes e indivíduos suspeitos sabe-se lá de quê. O caso do brasileiro morto em Londres pela desorientação policial deve estar na memória de todos; nunca se sabe quando nessa imensa amálgama de informação alguém, por mais tranquilo e anónimo cidadão que seja, é tomado como suspeito de qualquer coisa e enviado para um Guantanamo, um Diego Garcia ou para as sevícias das prisões que a CIA mantém nos países amigos.

Outrora eram montados pesados serviços de denúncia nos bairros, nas fábricas, nas escolas para intimidar ou reprimir os adversários ou meros críticos dos regimes fascistas ou fascizantes. Os campos de concentração, as prisões, os assassinatos, o terrorismo de Estado, os despedimentos e as discriminações por razões de ordem política existem hoje, como ontem. Só não têm a notoriedade dos sistemas antigos porque se diluem no matraquear da propaganda e da publicidade dos telejornais diários; e porque, os regimes fascistas do passado, a análise está basicamente feita e as suas características ganham a distância, a sobriedade e crueza dos factos, não sendo a multidão, geralmente muito dextra nas comparações históricas.

Não é preciso que existam de novo os SA como grupos de arruaceiros integrados no partido nazi alemão; nem os grupos de caceteiros e assassinos que eram os “fasci” italianos. A sua função está integrada no aparelho do Estado capitalista de hoje ou contratualizada por este; foi isso que Hitler fez quando integrou no seu projecto, contractualizou, a Wehrmacht, sacrificando, em contrapartida, as SA, a milícia do seu amigo Rohm na chamada Noite das Facas Longas.

9 –  Uma breve resenha histórica

Sensivelmente, podem distinguir-se desde o final da guerra de 1939-45, dois períodos; um, até meados dos anos 70 e o outro, posteriormente.

No primeiro período, a emancipação dos povos colonizados num quadro de reconstrução da devastação provocada pela guerra, a existência dum bloco político e militar concorrente ao aglutinado sob a hegemonia dos EUA e a força dos movimentos de massas gerados pela resistência à ocupação nazi-fascista na Europa, foram os principais factores que colocaram o capitalismo numa posição defensiva.

Ainda que a descolonização nem sempre tenha sido isenta de violência (Indochina, crise do Suez, Argélia, colónias portuguesas…) a atitude típica das burguesias nos países capitalistas dominantes face aos trabalhadores pautou-se por uma política de apaziguamento das lutas de classes (o macarthismo e as ditaduras ibéricas, foram fenómenos temporários ou localizados).

A reconstrução económica, com o maciço apoio dos EUA, provocou o consequente aumento das taxas médias de lucro e a reconstituição do poder capitalista encaixou perfeitamente as nacionalizações da grande indústria. Estava assim encontrada a base material para a consolidação daquela política de apaziguamento e concertação social que se viria a designar por pacto social-democrata, praticada na Europa, na América do Norte e no Japão.

Esse pacto consistia num contrato social implícito entre os interesses do capital e os movimentos de carácter socialista ou operário. Os primeiros aceitavam contribuir para políticas de bem-estar social, como a criação de sistemas universais de saúde, educação e segurança social, a participação dos trabalhadores nos ganhos da produtividade ou um extenso corpo de direitos laborais e salariais. Os segundos aceitavam o jogo político institucional, o parlamentarismo, os pleitos eleitorais como lugares privilegiados de luta política e prescindiam de qualquer intuito revolucionário. Criava-se assim a aceitação de um certo “fim da história”; isto é, a perpetuação do capitalismo, temperado por uma harmonia duradoura entre o trabalho e o capital.

A queda da libra e do dólar e o fim da energia a baixos preços, no início dos anos 70, simbolizam o final dos “gloriosos 30 anos” de elevadas taxas de crescimento económico e o início do segundo período atrás referido.

Em termos de doutrina económica foi aberto o caminho para o abandono das teses keynesianas por troca com as teses neoliberais de Hayek e Friedman, estas, primeiramente ensaiadas no Chile onde, a mão de Pinochet, guiada pela CIA e pelas multinacionais, instalou uma ditadura fascista. O fracasso do evolucionismo da Frente Popular chilena mostrou como é ilusória a construção de uma sociedade dos/para os trabalhadores, sem rupturas sociais e políticas.

Nos países dominantes Thatcher e Reagan mostraram as potencialidades enormes do poder do Estado na acumulação capitalista e na repressão dos trabalhadores. Baixando as capacidades do sistema para a geração de elevadas taxas de lucro, abriram-se várias janelas para o compensar: a integração económica entre Estados como prenúncio da globalização, a segmentação e dispersão geográfica do processo produtivo, o aumento da utilização da especulação e da financiarização da economia como forma de gerar, escrituralmente, lucros, o reforço da integração entre as multinacionais, o sistema financeiro e a economia mafiosa e, last but not the least, a redução dos custos de disponibilização do trabalho assalariado, que é o ponto que aqui iremos privilegiar.

O pacto social-democrata exigia uma forte mobilização de recursos públicos para a manutenção, em níveis aceitáveis, dos subsistemas ligados ao bem-estar dos trabalhadores e recursos privados para a manutenção de um poder de compra elevado, segurança no trabalho e baixo desemprego.

Esses recursos mobilizados para a gestão social do capital encontram-se, desde então, sob grande pressão no sentido da sua redução. Por um lado, pretende-se estender a mercantilização aos sectores sociais e culturais; por outro, a liberalização dos movimentos de capitais e mercadorias (a do trabalho continua tutelada pelas burguesias nacionais) aumenta a competição entre as empresas, engrandecida pela existência de eficazes redes logísticas e de transportes, bem como das tecnologias de informação e comunicação. É nesse âmbito que se enquadra a psicose dos deficits públicos que mais não passa do que um conjunto de fórmulas de redistribuição do rendimento global em desfavor da multidão.

Assim, o projecto social-democrata perdeu a sua viabilidade convertendo-se os respectivos partidos em meros gestores neoliberais do capital e passando a esquerda tradicional a defensora envergonhada de uma social-democracia fora do tempo. Nesse contexto, assiste-se ao assalto ao bem-estar da multidão como peça essencial do aprofundamento da racionalização capitalista enquanto as instituições com influência nos trabalhadores (partidos e sindicatos) praticam a subordinação aos interesses do capital, a passiva aceitação dum parlamentarismo estéril e das lutas num quadro meramente nacional.

Não se observando uma correspondente reorganização dos movimentos dos trabalhadores para além do limitado quadro nacional, torna-se evidente a flagrante contradição com o carácter global da produção, cada vez mais integrada num colectivo planetário dos trabalhadores. E fica facilitada a afirmação actual do autoritarismo e da arrogância anti-social do mandarinato que prefigura uma situação pré-fascista, com uma forte componente genocida.

10 – O carácter genocida do capitalismo

A referida exacerbada compressão dos gastos públicos de carácter social, a promoção da mercantilização de toda a realidade económica, social, educacional e cultural conduz ao desprezo pelas camadas sociais não inseridas, menos inseridas ou mais frágeis do denominado “mercado global de trabalho” cujo nome evidencia o seu carácter de mercadoria.

Esse desprezo é tanto mais chocante quanto os recursos e os meios técnicos disponíveis pela Humanidade são, hoje, susceptíveis de albergar condignamente uma população dupla da actual. No cru economicismo que vem fazendo escola na gestão política, as camadas sociais, as populações de vastas regiões do planeta são objecto de uma análise custo-benefício adequando-se o custo às vantagens que o capital retira da existência dessas camadas ou populações. E se o custo é superior ao benefício pouco importa para o capitalismo se as pessoas sofrem de carências, doenças ou risco de morte; se desaparecerem ou se a caridade tomar conta delas, alegram-se os dedicados gestores como a metástase Correia de Campos ou o plasmódio barbudo do Vieira da Silva. A facilidade com que se despedem milhares de trabalhadores ou como se degradam as suas condições de trabalho e de remuneração revela a regressão ao capitalismo selvagem descrito por Marx.

Esse pendor, pelo volume de seres humanos abrangidos e pela cuidada tipificação de que são objecto configura a ideia de genocídio. Este conceito que vem sendo utilizado pelos media de modo algo arbitrário não parece sensibilizar muito as esquerdas tradicionais que gritaram por genocídio quando os indonésios mataram 2000 timorenses em 1999 e não aplicam o mesmo termo à condenação a uma morte lenta de milhões de velhos, pensionistas, sem-abrigo, desempregados, doentes obrigados a trabalhar pelas regras do Vieira da Silva, etc

O genocídio actual não é decalcável do aplicado por alguns fascismos históricos, como o da Alemanha nazi contra eslavos, judeus e ciganos e o dos japoneses contra os chineses. O pendor genocida do capitalismo actual não se baseia particularmente na raça ou na etnia, é muito menos ideológico, menos formalmente programático, obedece aos frios cálculos de gestores. De facto o capitalismo pretende mais apresentar-se como um sistema de valores inelutáveis, civilizacionais, a-históricos do que sob formas escatológicas.

O actual pendor genocida também não visa áreas geográficas específicas, tanto abrangendo zonas periféricas no âmbito geopolítico como áreas contíguas aos condomínios fechados onde vivem as camadas dirigentes. No conjunto, porém as potenciais vítimas do capitalismo actual são muitas mais do que os alvos dos hitlerianos ou dos japoneses.

Existem, actualmente, no planeta mais de 3000 milhões de pessoas vivendo em meios rurais, particularmente nos países do sul. O capitalismo, sobretudo na sua forma neo-liberal, desestrutura completamente as sociedades rurais, inviabiliza a produção alimentar local ou regional, gera a predominância das culturas de exportação, desrespeita as necessidades de recuperação das capacidades produtivas dos solos, empobrece, arruína e obriga ao abandono em massa dos meios rurais, por parte dos mais novos. A grande maioria daquela metade da humanidade é objecto do mais total desprezo por parte do capitalismo que os deixa a vegetar na miséria, na doença, na inanição, na ignorância, nomeadamente velhos, mulheres e crianças.

Ao capitalismo interessa o fluxo de trabalho barato proveniente dos campos para as cidades, como vem acontecendo no caso do maior êxodo rural da História, em curso na China; ou dá-lhes uma particular atenção quando põem em causa a exploração de recursos naturais pelo capital, com a sua resistência.

O abandono do mundo rural e a integração nos meios urbanos tem-se feito de modo irracional, criando-se áreas urbanas imensas que constituem outras tantas regiões de pobreza, violência, doença e degradação ambiental. A expressão dessa desestruturação urbana está nos bairros da lata onde se amontoam 1000 milhões de pessoas.

São duas as pontes desse sub-mundo com o mundo oficial apresentado pelos media. Uma, é o fornecimento de mão de obra barata e não qualificada; e outra, a interligação com a economia do crime que, por sua vez enriquece o capitalismo em geral e o sistema financeiro em particular, sustentando, de passagem, muita dessa massa de abandonados.

Os mandarinatos locais não têm qualquer empenho na melhoria das condições de vida de toda essa gente, pois as suas prioridades vão para o apoio ao investimento estrangeiro, as compras de armamento e a apropriação da sua fatia no excedente económico gerado pela multidão. Mais facilmente se ocupam de mais uma urbanização fechada, com piscina e campo de golfe do que de casas, escolas, centros de saúde e transportes adequados para os deserdados. No entanto, são estreitas as suas ligações com a economia informal e violenta do PCC paulista, das tríades chinesas, dos barões da droga sul-americanos, das máfias de leste que encontram nesses meios de desespero o caldo em que se movem e se escondem.

Por outro lado, se a doença e a violência matam precocemente muitos dos desapossados, isso pouco importa porque todos os dias entram substitutos vindos das zonas rurais.

A mesma lógica, ainda que em cenários menos degradantes e numa dimensão menor, verifica-se também nos países de democracia de mercado onde se registam bolsas periféricas de populações abandonadas, porventura menos ligadas à economia do crime. São as áreas de desemprego e pobreza onde vivem, a “escumalha” de Sarkozy ou, as vítimas do Katrina em New Orleans ou, os imigrados da América Latina que conseguem atingir o “eldorado” vencendo a vigilância na fronteira sul dos EUA ou, os africanos que entram na Europa pelas Canárias e pelo Mediterrâneo ocidental ou, os asiáticos que se infiltram pelas porosas fronteiras do Leste europeu auxiliados por redes de traficantes e passadores, a troco de pagamentos elevadíssimos…

A economia informal e a do crime têm absorvido grande parte desse êxodo rural mas, a sua vitalidade depende também da integração com a economia oficial, tornando-se as duas dependentes uma da outra. Assim, o fraco crescimento da economia global limita a progressão dessas duas economias, a mafiosa propriamente dita (a do crime) e a mafiosa mais respeitável (a das multinacionais, a do sistema financeiro e a dos mandarins que pregam na TV à hora do telejornal). O arame farpado da fronteira EUA-México, os acordos UE-Marrocos para a contenção da imigração, os sistemas de vigilância das praias espanholas e o controlo do êxodo rural por parte do governo chinês, constituem demonstrações das dificuldades do capitalismo em conter o desejo da multidão pela melhoria das condições de vida.

11 – Portugal – Quem são os objectos do genocídio?

Pretendemos, in fine, medir aproximadamente, a dimensão humana dos habitantes da ocidental praia lusitana que não interessam ao capital. Dos que, numa tecnocrática análise custo-benefício, não são viáveis como projectos de vida. Que estão, nitidamente, a mais.

Pensionistas por velhice (Seg. Social)
1 750 000
Pensionistas por sobrevivência (Seg. Social)
   670 000
Pensionistas por invalidez (Seg. Social)
   320 000
Pensionistas por velhice (CGA)
   380 000
Pensionistas por sobrevivência (CGA)
   130 000
Desempregados inscritos no IEFP
   445 000
Outros desempregados (estimativa)
   100 000
Funcionários públicos no activo
   737 000
Beneficiários do RSI
   267 000
Média mensal de trabalh. com subsídio de doença
   120 000
Total
4 919 000

Para aprimorar aquela aritmética pode incluir-se o número de emigrantes qualificados que os bravos empresários não sabem como utilizar ou, os que se vão embora para sobreviver; podem ter-se em consideração, para compensar, os imigrantes que, naturalmente, chegam a Portugal com proveniências ainda mais miseráveis; somar os muitos precários que saltam de emprego para emprego, sem outro projecto de vida; os trabalhadores excedentários para despedir nas contas do van Zeller e do Vieira da Silva; e, seria esquecimento imperdoável, excluir também, de entre os pensionistas, aquelas coortes de ex-deputadecos, autarcóides, ex-ministros e entulho afim.

Junho 2007

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