Quando
se fala de fascismo muitos tendem a considerá-lo como coisa do passado ou algo
inerente a grupos tão agressivos como folclóricos que não constituem, de facto,
ameaças estratégicas.
Encetamos,
hoje, algumas crónicas sobre o fascismo, alertando para a sua presença nas
sociedades de hoje, não como repetições do passado mas, como formas adaptadas
aos tempos que correm, totalitárias, que visam o esmagamento da multidão, não
hesitando perante o genocídio.
Perante
o menosprezo ou a ignorância da ameaça fascista que se acha presente nas
sociedades dos países ditos desenvolvidos, de democracia de mercado, decidimos
abrir as nossas reflexões com um texto de Bertold Brecht, que conheceu bem o
fascismo e que teve de se exilar para fugir ao cilindro nazi.
O ANALFABETO POLÍTICO
O pior analfabeto
É o analfabeto político,
Ele não ouve, não fala,
Nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo da vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha,
Do aluguer, do sapato e do remédio
Dependem das decisões políticas.
É o analfabeto político,
Ele não ouve, não fala,
Nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo da vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha,
Do aluguer, do sapato e do remédio
Dependem das decisões políticas.
O analfabeto político
É tão burro que se orgulha
E incha o peito dizendo
Que odeia a política.
É tão burro que se orgulha
E incha o peito dizendo
Que odeia a política.
Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política
Nasce a prostituta, o menor abandonado,
E o pior de todos os bandidos,
Que é o político vigarista,
Pilantra, corrupto e lacaio
Das empresas nacionais e multinacionais.
da sua ignorância política
Nasce a prostituta, o menor abandonado,
E o pior de todos os bandidos,
Que é o político vigarista,
Pilantra, corrupto e lacaio
Das empresas nacionais e multinacionais.
2 – Introdução
(b)
Mussolini
disse que a democracia acaba e o fascismo começa quando o poder político e as
corporações se entrelaçam, se confundem. E, tendo em conta o seu papel em
acabar, na Itália, com a primeira e estabelecer o segundo, a afirmação merece
todo o nosso respeito pela indiscutível autoridade do autor da expressão.
Não é o
objectivo deste texto abordar a ligação entre os governos e o poder económico
autóctone ou multinacional que, para mais, é característica inerente ao
capitalismo, sobejamente conhecida. Interessa-nos, neste contexto, relevar
aspectos relativos à formatação ideológica e às concepções vulgarizadas para o
domínio das consciências, para a mansidão da multidão.
Contrariamente
ao que poderia resultar da utilização da frase do Duce, não encaramos o termo
fascismo na sua acepção meramente histórica, com um contexto geográfico e
temporal delimitado. Interessa-nos muito mais observar as características
actuais do capitalismo que constituem marcadores evidentes da necessidade de
uma dominação política semelhante às dos fascismos históricos. Uma dominação,
hoje, muito mais sofisticada, exigida pela maior qualificação cultural e
técnica da multidão e possibilitada pelos enormes meios financeiros, de
marketing e tecnológicos disponíveis pelo capital.
Há,
portanto, no presente, elementos sociais e ideológicos que nos permitem afirmar
que está em marcha uma renovação do fascismo, com novas roupagens mas idêntico
conteúdo, com os objectivos similares aos conhecidos da primeira metade do
século XX.
3 – A
insegurança
Uma das
características das transições para o fascismo e nos regimes fascistas maduros
é o fomento da insegurança na mente das pessoas; de uma insegurança sem nome,
com origem incerta, quer no espaço, quer no tempo. Essa insegurança difusa
acresce aos temores que resultam da precariedade do emprego, das limitações no
acesso à saúde, do custo da habitação, estes, bem reais e palpáveis. No seu
conjunto, a insegurança torna-se presa fácil dos devaneios populistas de
qualquer demagogo bem falante e, torna-se útil instrumento para a aceitação
pelos “inseguros” da autoridade mais musculada, mesmo que a troco da renúncia a
uns quantos direitos ou ao encolher de ombros face à marginalização de uma
camada social ou um leque de opiniões.
A luta
anti-terrorista decretada pelos EUA e logo adoptada ordeiramente pela UE torna
omnipresente a ameaça terrorista, pouco faltando para que induza qualquer um …
a espreitar para debaixo da cama na hora de deitar. Serve de argumento para
justificar as intrusões policiais, as base de dados pessoais, as
vídeo-vigilâncias, os constantes registos e passwords que são exigidos para
aceder a informações tão vulgares como a consulta da lista telefónica na
Internet protagonizada pela execrável PT. Justifica ainda a pressão constante
sobre os imigrantes (ou simples candidatos) tomados globalmente como suspeitos
de terrorismo, sobretudo se de pele escura ou muçulmanos; sabendo-se também,
que esse opróbrio mais não visa do que embaratecer o trabalho que realizam e
com isso pressionar para baixo os salários de todos os trabalhadores.
Esta
característica, bem actual é semelhante à “conspiração judaica” contra a
Alemanha nos anos 30, às “conspirações vermelhas” em Itália ou Espanha, à
“instabilidade governativa” mais tarde substituída pelo “comunismo
internacional” sempre apontado como o financiador de qualquer protesto dos
trabalhadores e que serviram para o homem de Santa Comba se estabelecer tão
duradouramente na cadeira de S. Bento.
4 – O
Outro, o culpado
O Outro
é, insidiosamente primeiro e de modo mais declarado depois, considerado causa
de todos os males, como a inflação, o desemprego, a criminalidade, os maus
costumes…
O
Outro, começa a assumir contornos bem precisos à medida que se vão sucedendo os
discursos dos ministros, os seus recados para o telejornal. São os funcionários
públicos assoberbados de regalias e altos salários; são os desempregados que
instalados em poltronas saboreiam a boa vida; são os trabalhadores efectivos
que estão acomodados e causam a baixa produtividade das empresas; são os
trabalhadores com baixas fraudulentas que passeiam nos centros comerciais
durante nas horas mortas; são os doentes que afluem aos hospitais para
conviverem alegremente uns com os outros; são os beneficiados pelo RSI que
perante tão elevados subsídios se espreguiçam por aí; são os reformados que
delapidam o orçamento da segurança social.
O Outro
é também o imigrante, que vem cá roubar trabalho ao esquadrão luso, nas
cabecinhas mais influenciáveis por ideias feitas.
Não
fomos exaustivos. Mas, a nossa honestidade intelectual obriga-nos a excluir
expressamente, os ministros e os seus assessores que tanto trabalham, os bravos
empresários que resistem à concorrência externa e à hidra da burocracia
estatal, os autarcas assoberbados com tantos projectos imobiliários geradores
de “luvas” e todos os envolvidos na especulação imobiliária e bolsista e que se
designam por investidores. Aliás, como se observou, o projecto de Belmiro para
a PT criava postos de trabalho em catadupa (?) e catapultava o PIB para valores
invejáveis… Absolvem-se também os abnegados lutadores contra a evasão fiscal,
com o Paulo Macedo à cabeça e os que, nos alcatifados corredores do poder
negoceiam isenções fiscais ou prescrições de dívidas.
E como
o Outro é o culpado, a encarnação do mal, do lado bom da vida estão as suas
vítimas, isto é, Nós! Nós e os nossos dirigentes, aqueles senhores que nos
defendem e que decerto têm razão mesmo que nem sempre entendamos o que dizem. E
daí que, na nossa mesquinhez acabemos por nos congratular com o nivelar por
baixo em termos de direitos e rendimentos, quando o afectado é o Outro,
obviamente; é a ignóbil inveja do miserável.
Ontem,
o Outro era o judeu, o sindicalista, o anarquista, o comunista, o intelectual
de esquerda, o homossexual, a prostituta, o agitador profissional. Hoje, é o
pensionista, o desempregado, o funcionário público, o imigrante, o beneficiário
do RSI, o trabalhador (por inerência excedentário).
O
exacerbar das dificuldades da nação serve para exigir disciplina, sacrifícios,
a aceitação de um “downsizing” continuado de rendimentos reais, direitos,
garantias e qualidade de vida.
Terminamos
este primeiro artigo, como começámos, com um poema de Brecht, transbordante de
actualidade:
A
indiferença
Primeiro,
levaram os comunistas
Mas eu
não me importei
Porque
não era nada comigo.
Em
seguida, levaram alguns operários
Mas, a
mim não me afectou
Porque
eu não sou operário.
Depois
prenderam os sindicalistas
Mas, eu
não me incomodei
Porque
nunca fui sindicalista.
Logo a
seguir chegou a vez
De
alguns padres mas,
Como
nunca fui religioso,
Também
não liguei.
Agora,
levaram-me a mim
E,
quando me apercebi,
Já era
tarde.
5 – A integração das funções
militares e policiais
A
actual “luta anti-terrorista” torna incerta a localização do inimigo e,
portanto, ele pode estar entre nós, como foi dito a propósito dos alegados
responsáveis dos atentados de Londres, que afinal seriam britânicos comuns. Uma
vez que existe essa potencial omnipresença do inimigo, a fronteira deixou de
ser um ponto de controlo físico para se montar a guarda face à ameaça externa
e, daí, que aquela se entrelace com a ameaça intra-muros, a subversão, a
conspiração permanente, de contornos inextricáveis. A fronteira é o que nos
separa do Outro, com toda a imprecisão que daqui resulta.
Se se
torna difuso o espaço onde estará o inimigo – veja-se o manifesto exagero
quanto à presença urbi et orbi da
Al-Qaeda– então funde-se, naturalmente, a defesa face ao exterior (função das
forças armadas) com a segurança interna (função das polícias).
6 -
O novo figurino das Forças Armadas (FA)
É
evidente que as FA são, em regra, em qualquer circunstância, uma força
repressiva ao serviço do capital, mesmo quando abertas à integração de todos os
indígenas ou mesmo quando, transitoriamente, são dominadas por uma oficialidade
mais ou menos progressista que, a candura de muitos julga ser um caminho para a
libertação dos povos.
A
abolição do serviço militar obrigatório é uma forma de privatizar as forças
armadas, de acentuar a sua domesticação. Já não basta o domínio da tropa
através da oficialidade imbecil e repressora pois, com a profissionalização de
todo o corpo militar, a apurada selecção de todos os seus membros, as FA passam
a ser, de facto uma milícia. E, como milícia, deixa de haver qualquer ligação
entre os soldados enquanto conscritos e a multidão de trabalhadores e
ex-trabalhadores.
A
abolição do serviço militar obrigatório agrada, na generalidade, aos jovens, em
regra avessos ao autoritarismo, às formas de doutrinação patrioteira ou às
humilhações gratuitas que visam o esmagamento da individualidade, a submissão.
Porém, simultaneamente, o capital ganha maior capacidade de escolher os membros
das FA obtendo um maior controlo da instituição, uma maior capacidade de
doutrinação dos seus membros na defesa do poder, da ordem, da democracia de mercado.
Para os seus membros, a presença nas FA deixou de ser um frete transitório que
se suporta com maior ou menor custo e onde se pode ficar imune ao espírito
vanguardista e elitista vomitado pela oficialidade, para se tornar numa
presença duradoura em que a doutrinação se pode firmar de modo mais profundo.
7 -
O elitismo anti-social da tropa
O
espírito militarista constitui um atractivo para muitos simpatizantes fascistas
que encontram assim, no cerne do aparelho repressivo do capital, um local
fulcral de actuação e influência, em prejuízo da multidão e dos seus elementos
mais contestatários. Nos energúmenos nazistóides vibra a mania da pertença a um
grupo de eleitos, espírito esse que joga bem com o desprezo que a instituição
militar tem para com os paisanos.
Essa
amálgama de fascistas com imbecis vulgares que se julgam pertencentes a uma
elite de ungidos da pátria torna-se assim uma firme coorte de defesa do capital
e das suas instituições, num conservadorismo primário e trauliteiro.
Curiosamente,
as esquerdas institucionais não põem em causa a existência das FA, o seu
carácter parasitário em termos sociais, os custos económicos que a multidão
acarreta com a sua manutenção, os custos democráticos que é a existência de uma
instituição por natureza autoritária e propagadora do parasitismo, da
mandriice, e do nacionalismo mais serôdio. Ainda curiosamente, a esquerda
tradicional portuguesa que é capaz de aplaudir o julgamento e a punição dos
generais balcânicos torcionários e assassinos nunca levantou a questão da
punição ou sequer da averiguação das práticas criminosas das FA portuguesas nas
antigas colónias africanas.
As
esquerdas tradicionais, reféns do jogo institucional, dos subsídios estatais
que pagam os seus enormes aparelhos calam perante a multidão a verdadeira
natureza das FA e aceitam implicitamente a divisão da multidão mundial em
grupos nacionais cada vez mais ridículos face à integração mundial do processo
produtivo e às imensas trocas culturais que caracterizam o mundo de hoje.
Na sua
habitual estreiteza de vistas, as esquerdas tradicionais, nas próximas eleições
para o executivo camarário de Lisboa não conseguem coragem suficiente para
propor, por exemplo, o fecho da Portela ou o estabelecimento de um sistema
global de portagem para evitar a invasão da cidade com carros. Não é de
esperar, portanto, que aponte, alguma vez, como objectivo para a multidão a
extinção das FA, quem não consegue passar da gestão dos fait-divers na hora do
telejornal.
Em
suma, as FA são o núcleo mais íntimo, mais duro, a reserva mais preciosa, o
diamante do aparelho repressivo do capital e que por isso se torna um elemento
onde mais prolifera a ideologia anti-social, contra o trabalho e contra a
contestação do sistema.
No
contexto geopolítico europeu, contudo, as FA dos estados nacionais são muito
mais do que a milícia das burguesias nacionais. Elas funcionam em rede, com
exercícios conjuntos, com uma imensa troca de informações e acções de formação,
homogeneização de equipamentos, interligando-se com o aparelho militar-industrial
do bloco geopolítico dominante. A rede de FA dos países europeus insere-se, num
plano mais elevado, no aparelho de dominação dos EUA, com posições de
obediência e subalternidade face à suserania americana (Iraque, Afeganistão,
Kosovo, Timor, Líbano…)
8 -
A militarização de todo o espaço público
Outro
aspecto desta militarização é a inundação de todo o espaço público e privado
por polícias, guardas e seguranças com várias fardas. Nas portas das empresas e
serviços públicos, nos supermercados e bancos, no metropolitano, nos hospitais
e nos condomínios mais luxuosos onde moram os capitalistas, gestores de topo e
mafiosos diversos, lá se encontram os afadigados e atentos polícias públicos e
privados. Em muitos casos, não se contentam com a imposição de simples
porteiros, preferem a exposição de uns pobres diabos, com vestes e poses de
rambos aos quais falta (por enquanto?) a exibição de armas.
A
proliferação de empresas e agentes de segurança fornece até, em Portugal, um
dos poucos vectores de geração de emprego por parte de muitos dos pouco
habilitados. Existe também um potencial para essas empresas se encarregarem de
certos “trabalhos” por conta de respeitáveis empresários. Recorda-se, por
exemplo um caso revelado na imprensa, anos atrás de uma empresa de segurança
com obra feita no lançamento de fogo em prédios abandonados para a devida
aceleração de processos de construção… mesmo que daí tenha resultado a morte de
alguns sem-abrigo; ou, mais recentemente, por conta da direcção da Universidade
Independente.
A
interacção das empresas de segurança com a polícia e as FA é comum,
constituindo em conjunto a rede da chamada segurança interna do capitalismo num
dado território. Assim, existem militares em posições de chefia nas polícias e
nas empresas de segurança; e estas fornecem pessoal e serviços às FA. No
Iraque, por exemplo, para além das FA americanas existem dezenas de milhar de
elementos “civis” com missões específicas que não interessa serem assumidas
pelas FA, pois os media só contam como mortos os soldados e porque se algumas
dessas empresas cometerem “exageros” no campo dos direitos humanos, os impactos
não atingem as FA. E tudo isto, sem esquecer que essas contratações são objecto
de vultuosos pagamentos a empresas privadas à custa das contas públicas.
A
segurança tecnológica permite o controlo dos movimentos de todos, a nossa
localização a todo o momento, o traçado de todos os nossos passos, como
explendidamente exposto por Orwell em meados do século XX. A via verde, o
cartão MB, os passes de transporte, a vídeo-vigilância, as chamadas
telefónicas, a utilização da Internet, permitem às polícias monitorar, sempre
que o queiram os nossos movimentos, o pulsar da multidão, a detecção de
comportamentos desviantes e indivíduos suspeitos sabe-se lá de quê. O caso do
brasileiro morto em Londres pela desorientação policial deve estar na memória
de todos; nunca se sabe quando nessa imensa amálgama de informação alguém, por
mais tranquilo e anónimo cidadão que seja, é tomado como suspeito de qualquer
coisa e enviado para um Guantanamo, um Diego Garcia ou para as sevícias das
prisões que a CIA mantém nos países amigos.
Outrora
eram montados pesados serviços de denúncia nos bairros, nas fábricas, nas
escolas para intimidar ou reprimir os adversários ou meros críticos dos regimes
fascistas ou fascizantes. Os campos de concentração, as prisões, os
assassinatos, o terrorismo de Estado, os despedimentos e as discriminações por
razões de ordem política existem hoje, como ontem. Só não têm a notoriedade dos
sistemas antigos porque se diluem no matraquear da propaganda e da publicidade
dos telejornais diários; e porque, os regimes fascistas do passado, a análise
está basicamente feita e as suas características ganham a distância, a
sobriedade e crueza dos factos, não sendo a multidão, geralmente muito dextra
nas comparações históricas.
Não é
preciso que existam de novo os SA como grupos de arruaceiros integrados no
partido nazi alemão; nem os grupos de caceteiros e assassinos que eram os
“fasci” italianos. A sua função está integrada no aparelho do Estado
capitalista de hoje ou contratualizada por este; foi isso que Hitler fez quando
integrou no seu projecto, contractualizou, a Wehrmacht, sacrificando, em
contrapartida, as SA, a milícia do seu amigo Rohm na chamada Noite das Facas
Longas.
9
– Uma breve resenha histórica
Sensivelmente,
podem distinguir-se desde o final da guerra de 1939-45, dois períodos; um, até
meados dos anos 70 e o outro, posteriormente.
No
primeiro período, a emancipação dos povos colonizados num quadro de
reconstrução da devastação provocada pela guerra, a existência dum bloco
político e militar concorrente ao aglutinado sob a hegemonia dos EUA e a força
dos movimentos de massas gerados pela resistência à ocupação nazi-fascista na
Europa, foram os principais factores que colocaram o capitalismo numa posição
defensiva.
Ainda
que a descolonização nem sempre tenha sido isenta de violência (Indochina,
crise do Suez, Argélia, colónias portuguesas…) a atitude típica das burguesias
nos países capitalistas dominantes face aos trabalhadores pautou-se por uma
política de apaziguamento das lutas de classes (o macarthismo e as ditaduras
ibéricas, foram fenómenos temporários ou localizados).
A
reconstrução económica, com o maciço apoio dos EUA, provocou o consequente
aumento das taxas médias de lucro e a reconstituição do poder capitalista
encaixou perfeitamente as nacionalizações da grande indústria. Estava assim
encontrada a base material para a consolidação daquela política de
apaziguamento e concertação social que se viria a designar por pacto
social-democrata, praticada na Europa, na América do Norte e no Japão.
Esse
pacto consistia num contrato social implícito entre os interesses do capital e
os movimentos de carácter socialista ou operário. Os primeiros aceitavam
contribuir para políticas de bem-estar social, como a criação de sistemas
universais de saúde, educação e segurança social, a participação dos
trabalhadores nos ganhos da produtividade ou um extenso corpo de direitos
laborais e salariais. Os segundos aceitavam o jogo político institucional, o
parlamentarismo, os pleitos eleitorais como lugares privilegiados de luta
política e prescindiam de qualquer intuito revolucionário. Criava-se assim a
aceitação de um certo “fim da história”; isto é, a perpetuação do capitalismo,
temperado por uma harmonia duradoura entre o trabalho e o capital.
A queda
da libra e do dólar e o fim da energia a baixos preços, no início dos anos 70,
simbolizam o final dos “gloriosos 30 anos” de elevadas taxas de crescimento
económico e o início do segundo período atrás referido.
Em
termos de doutrina económica foi aberto o caminho para o abandono das teses
keynesianas por troca com as teses neoliberais de Hayek e Friedman, estas,
primeiramente ensaiadas no Chile onde, a mão de Pinochet, guiada pela CIA e
pelas multinacionais, instalou uma ditadura fascista. O fracasso do
evolucionismo da Frente Popular chilena mostrou como é ilusória a construção de
uma sociedade dos/para os trabalhadores, sem rupturas sociais e políticas.
Nos
países dominantes Thatcher e Reagan mostraram as potencialidades enormes do
poder do Estado na acumulação capitalista e na repressão dos trabalhadores.
Baixando as capacidades do sistema para a geração de elevadas taxas de lucro,
abriram-se várias janelas para o compensar: a integração económica entre
Estados como prenúncio da globalização, a segmentação e dispersão geográfica do
processo produtivo, o aumento da utilização da especulação e da financiarização
da economia como forma de gerar, escrituralmente, lucros, o reforço da
integração entre as multinacionais, o sistema financeiro e a economia mafiosa
e, last but not the least, a redução dos custos de disponibilização do trabalho
assalariado, que é o ponto que aqui iremos privilegiar.
O pacto
social-democrata exigia uma forte mobilização de recursos públicos para a
manutenção, em níveis aceitáveis, dos subsistemas ligados ao bem-estar dos
trabalhadores e recursos privados para a manutenção de um poder de compra
elevado, segurança no trabalho e baixo desemprego.
Esses
recursos mobilizados para a gestão social do capital encontram-se, desde então,
sob grande pressão no sentido da sua redução. Por um lado, pretende-se estender
a mercantilização aos sectores sociais e culturais; por outro, a liberalização
dos movimentos de capitais e mercadorias (a do trabalho continua tutelada pelas
burguesias nacionais) aumenta a competição entre as empresas, engrandecida pela
existência de eficazes redes logísticas e de transportes, bem como das
tecnologias de informação e comunicação. É nesse âmbito que se enquadra a
psicose dos deficits públicos que mais não passa do que um conjunto de fórmulas
de redistribuição do rendimento global em desfavor da multidão.
Assim,
o projecto social-democrata perdeu a sua viabilidade convertendo-se os
respectivos partidos em meros gestores neoliberais do capital e passando a
esquerda tradicional a defensora envergonhada de uma social-democracia fora do
tempo. Nesse contexto, assiste-se ao assalto ao bem-estar da multidão como peça
essencial do aprofundamento da racionalização capitalista enquanto as
instituições com influência nos trabalhadores (partidos e sindicatos) praticam
a subordinação aos interesses do capital, a passiva aceitação dum
parlamentarismo estéril e das lutas num quadro meramente nacional.
Não se
observando uma correspondente reorganização dos movimentos dos trabalhadores
para além do limitado quadro nacional, torna-se evidente a flagrante
contradição com o carácter global da produção, cada vez mais integrada num
colectivo planetário dos trabalhadores. E fica facilitada a afirmação actual do
autoritarismo e da arrogância anti-social do mandarinato que prefigura uma
situação pré-fascista, com uma forte componente genocida.
10 – O
carácter genocida do capitalismo
A
referida exacerbada compressão dos gastos públicos de carácter social, a
promoção da mercantilização de toda a realidade económica, social, educacional
e cultural conduz ao desprezo pelas camadas sociais não inseridas, menos
inseridas ou mais frágeis do denominado “mercado global de trabalho” cujo nome
evidencia o seu carácter de mercadoria.
Esse
desprezo é tanto mais chocante quanto os recursos e os meios técnicos
disponíveis pela Humanidade são, hoje, susceptíveis de albergar condignamente
uma população dupla da actual. No cru economicismo que vem fazendo escola na
gestão política, as camadas sociais, as populações de vastas regiões do planeta
são objecto de uma análise custo-benefício adequando-se o custo às vantagens
que o capital retira da existência dessas camadas ou populações. E se o custo é
superior ao benefício pouco importa para o capitalismo se as pessoas sofrem de
carências, doenças ou risco de morte; se desaparecerem ou se a caridade tomar
conta delas, alegram-se os dedicados gestores como a metástase Correia de
Campos ou o plasmódio barbudo do Vieira da Silva. A facilidade com que se
despedem milhares de trabalhadores ou como se degradam as suas condições de
trabalho e de remuneração revela a regressão ao capitalismo selvagem descrito por
Marx.
Esse
pendor, pelo volume de seres humanos abrangidos e pela cuidada tipificação de
que são objecto configura a ideia de genocídio. Este conceito que vem sendo
utilizado pelos media de modo algo arbitrário não parece sensibilizar muito as
esquerdas tradicionais que gritaram por genocídio quando os indonésios mataram
2000 timorenses em 1999 e não aplicam o mesmo termo à condenação a uma morte
lenta de milhões de velhos, pensionistas, sem-abrigo, desempregados, doentes
obrigados a trabalhar pelas regras do Vieira da Silva, etc
O
genocídio actual não é decalcável do aplicado por alguns fascismos históricos,
como o da Alemanha nazi contra eslavos, judeus e ciganos e o dos japoneses
contra os chineses. O pendor genocida do capitalismo actual não se baseia
particularmente na raça ou na etnia, é muito menos ideológico, menos
formalmente programático, obedece aos frios cálculos de gestores. De facto o
capitalismo pretende mais apresentar-se como um sistema de valores inelutáveis,
civilizacionais, a-históricos do que sob formas escatológicas.
O
actual pendor genocida também não visa áreas geográficas específicas, tanto
abrangendo zonas periféricas no âmbito geopolítico como áreas contíguas aos
condomínios fechados onde vivem as camadas dirigentes. No conjunto, porém as
potenciais vítimas do capitalismo actual são muitas mais do que os alvos dos
hitlerianos ou dos japoneses.
Existem,
actualmente, no planeta mais de 3000 milhões de pessoas vivendo em meios
rurais, particularmente nos países do sul. O capitalismo, sobretudo na sua
forma neo-liberal, desestrutura completamente as sociedades rurais, inviabiliza
a produção alimentar local ou regional, gera a predominância das culturas de
exportação, desrespeita as necessidades de recuperação das capacidades produtivas
dos solos, empobrece, arruína e obriga ao abandono em massa dos meios rurais,
por parte dos mais novos. A grande maioria daquela metade da humanidade é
objecto do mais total desprezo por parte do capitalismo que os deixa a vegetar
na miséria, na doença, na inanição, na ignorância, nomeadamente velhos,
mulheres e crianças.
Ao
capitalismo interessa o fluxo de trabalho barato proveniente dos campos para as
cidades, como vem acontecendo no caso do maior êxodo rural da História, em
curso na China; ou dá-lhes uma particular atenção quando põem em causa a
exploração de recursos naturais pelo capital, com a sua resistência.
O
abandono do mundo rural e a integração nos meios urbanos tem-se feito de modo
irracional, criando-se áreas urbanas imensas que constituem outras tantas
regiões de pobreza, violência, doença e degradação ambiental. A expressão dessa
desestruturação urbana está nos bairros da lata onde se amontoam 1000 milhões
de pessoas.
São
duas as pontes desse sub-mundo com o mundo oficial apresentado pelos media.
Uma, é o fornecimento de mão de obra barata e não qualificada; e outra, a
interligação com a economia do crime que, por sua vez enriquece o capitalismo
em geral e o sistema financeiro em particular, sustentando, de passagem, muita
dessa massa de abandonados.
Os
mandarinatos locais não têm qualquer empenho na melhoria das condições de vida
de toda essa gente, pois as suas prioridades vão para o apoio ao investimento
estrangeiro, as compras de armamento e a apropriação da sua fatia no excedente
económico gerado pela multidão. Mais facilmente se ocupam de mais uma
urbanização fechada, com piscina e campo de golfe do que de casas, escolas,
centros de saúde e transportes adequados para os deserdados. No entanto, são
estreitas as suas ligações com a economia informal e violenta do PCC paulista,
das tríades chinesas, dos barões da droga sul-americanos, das máfias de leste
que encontram nesses meios de desespero o caldo em que se movem e se escondem.
Por
outro lado, se a doença e a violência matam precocemente muitos dos
desapossados, isso pouco importa porque todos os dias entram substitutos vindos
das zonas rurais.
A mesma
lógica, ainda que em cenários menos degradantes e numa dimensão menor,
verifica-se também nos países de democracia de mercado onde se registam bolsas
periféricas de populações abandonadas, porventura menos ligadas à economia do
crime. São as áreas de desemprego e pobreza onde vivem, a “escumalha” de
Sarkozy ou, as vítimas do Katrina em New Orleans ou, os imigrados da América Latina
que conseguem atingir o “eldorado” vencendo a vigilância na fronteira sul dos
EUA ou, os africanos que entram na Europa pelas Canárias e pelo Mediterrâneo
ocidental ou, os asiáticos que se infiltram pelas porosas fronteiras do Leste
europeu auxiliados por redes de traficantes e passadores, a troco de pagamentos
elevadíssimos…
A
economia informal e a do crime têm absorvido grande parte desse êxodo rural
mas, a sua vitalidade depende também da integração com a economia oficial,
tornando-se as duas dependentes uma da outra. Assim, o fraco crescimento da
economia global limita a progressão dessas duas economias, a mafiosa
propriamente dita (a do crime) e a mafiosa mais respeitável (a das
multinacionais, a do sistema financeiro e a dos mandarins que pregam na TV à
hora do telejornal). O arame farpado da fronteira EUA-México, os acordos
UE-Marrocos para a contenção da imigração, os sistemas de vigilância das praias
espanholas e o controlo do êxodo rural por parte do governo chinês, constituem
demonstrações das dificuldades do capitalismo em conter o desejo da multidão
pela melhoria das condições de vida.
11 – Portugal – Quem são os
objectos do genocídio?
Pretendemos,
in fine, medir aproximadamente, a dimensão humana dos habitantes da ocidental
praia lusitana que não interessam ao capital. Dos que, numa tecnocrática
análise custo-benefício, não são viáveis como projectos de vida. Que estão,
nitidamente, a mais.
Pensionistas por velhice (Seg. Social)
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1 750 000
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Pensionistas por sobrevivência (Seg. Social)
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670 000
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Pensionistas por invalidez (Seg. Social)
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320 000
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Pensionistas por velhice (CGA)
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380 000
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Pensionistas por sobrevivência (CGA)
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130 000
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Desempregados inscritos no IEFP
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445 000
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Outros desempregados (estimativa)
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100 000
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Funcionários públicos no activo
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737 000
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Beneficiários do RSI
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267 000
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Média mensal de trabalh. com subsídio de doença
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120 000
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Total
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4 919 000
|
Para
aprimorar aquela aritmética pode incluir-se o número de emigrantes qualificados
que os bravos empresários não sabem como utilizar ou, os que se vão embora para
sobreviver; podem ter-se em consideração, para compensar, os imigrantes que,
naturalmente, chegam a Portugal com proveniências ainda mais miseráveis; somar
os muitos precários que saltam de emprego para emprego, sem outro projecto de
vida; os trabalhadores excedentários para despedir nas contas do van Zeller e
do Vieira da Silva; e, seria esquecimento imperdoável, excluir também, de entre
os pensionistas, aquelas coortes de ex-deputadecos, autarcóides, ex-ministros e
entulho afim.
Junho 2007
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